O INíCIO DA DéCADA DE 2020 FOI MARCADO PELO INéDITO IMPACTO INTERNACIONAL da pandemia do coronavírus Sars-Cov-2, o que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a decretar emergência de saúde pública de importância internacional entre fins de janeiro de 2020 e maio de 2023. Até que fossem desenvolvidas e distribuídas vacinas contra o vírus, que provoca a doença que ficou conhecida como covid-19, o controle da pandemia dependeu de medidas não farmacológicas, sobretudo do distanciamento social, que impactou toda sorte de atividades socioeconômicas e levou ao fechamento temporário das instituições de ensino.
As repercussões da pandemia no Brasil foram particularmente dramáticas, com mais de 38 milhões de casos e quase 710 mil óbitos confirmados pelas autoridades de saúde até fins de 2023. A gestão da crise sanitária foi marcada por omissão da esfera federal e falta de coordenação intergovernamental (Abrucio et al., 2020). O país também teve um dos mais prolongados períodos de suspensão de aulas presenciais de todo o mundo,1 provisoriamente substituídas pelo ensino remoto emergencial,2 com prejuízos para o acesso, permanência e aprendizagem nas diferentes etapas e modalidades de ensino.
O presente ensaio sintetiza parte dos resultados de uma revisão sistemática de literatura (Vosgerau & Romanowski, 2014), do período 2020-2023, sobre os impactos da covid-19 na educação básica de pessoas jovens e adultas no Brasil,3 com atenção especial aos obstáculos à fruição do direito humano à educação de jovens e adultos (EJA) e às respostas geradas pelas políticas educacionais à modalidade. Realizado entre o segundo semestre de 2022 e outubro de 2023, o levantamento integra pesquisa internacional que visa a elaborar recomendações para o campo das políticas educacionais, considerando a possibilidade de novas pandemias no contexto de aceleração de mudanças climáticas, conforme alerta da OMS.
A revisão bibliográfica correspondeu à etapa preliminar do estudo, que posteriormente empreendeu análise documental e entrevistas em escolas municipais e organizações sociais paulistanas que promovem a EJA. Restrições de tempo e equipe condicionaram as opções metodológicas do levantamento bibliográfico que se somaram às limitações impostas às investigações realizadas por pesquisadoras e pesquisadores no contexto pandêmico. Considerando esse quadro, embora não possibilite generalizações conclusivas, a revisão bibliográfica apresentada neste artigo oferece um panorama abrangente das questões que marcaram o contexto nacional da modalidade no período.
Inicialmente, o levantamento bibliográfico privilegiou artigos de revistas indexadas na base brasileira Scientific Eletronic Library Online (SciELO)4 e foi ampliado por meio de busca no Portal de Periódicos da Capes. Também foram consideradas as teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação, registradas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict). Utilizaram-se como chaves de busca os descritores “covid” ou “pandemia”, em conjunto com “educação de adultos” ou “educação de jovens e adultos”, selecionando-se os textos que versavam sobre o contexto brasileiro. Foram lidos os resumos e, quando consideradas relevantes, as conclusões ou a íntegra das publicações, e resenhados seus conteúdos para análises posteriores. Com base nas leituras, foram estabelecidas categorias que possibilitaram o agrupamento dos textos por tipo de abordagem.
Identificaram-se documentos que podem ser categorizados em três grandes grupos, segundo a abordagem predominante: o primeiro problematiza a restrição à fruição de direitos educativos e a ampliação das desigualdades educacionais na pandemia, em virtude da posição marginal que a educação de pessoas jovens e adultas ocupa na agenda de políticas de educação básica, da vulnerabilidade socioeconômica dos sujeitos que dela participam, bem como de seu limitado acesso às tecnologias da informação e comunicação (TIC); o segundo e mais numeroso conjunto de documentos aborda as estratégias mobilizadas pelos educadores para adequar currículos, materiais didáticos e metodologias de ensino em face da necessidade emergente de interrupção do ensino presencial e adesão ao ensino remoto, com emprego das TIC; e o terceiro conjunto, com quantidade pequena de textos, reflete as respostas das políticas públicas para a EJA implementadas no contexto da pandemia.
Por limitações de espaço e em face do objetivo principal do estudo, que é subsidiar as políticas públicas educacionais, neste artigo destacaremos alguns achados do primeiro e do terceiro grupos de textos apurados no levantamento bibliográfico.
O corpus inicial de análise que atendeu aos descritores propostos e à seleção realizada com base na leitura dos resumos e conclusões foi constituído por dois artigos científicos identificados na base ScieLO (Andrade et al., 2023; Silva & Di Pierro, 2022), sete artigos selecionados no Portal de Periódicos da Capes (Almeida & Guaraciaba, 2021; Barbosa, 2022; Costa et al., 2022; Kluthcovsky & Joucoski, 2021; Pires et al., 2021; Silva & Barbosa, 2022; Souza et al., 2022) e três dissertações de mestrado encontradas na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Ibict (Luz, 2021; Pires, 2021; Winter, 2021).5
A maior parte dessa produção é constituída por estudos de caso em unidades escolares ou municípios, com baixo grau de generalização, o que fez com que, posteriormente, em uma busca mais exploratória, fossem considerados também artigos, relatórios de pesquisas e comunicações em eventos encontrados no Google Acadêmico ou mencionados nas bibliografias dos textos inicialmente selecionados, como também documentos produzidos pelos Fóruns EJA6 e organizações da sociedade civil no contexto pandêmico.7
A discussão se beneficiou também de bibliografia mais geral sobre os impactos da pandemia na educação, inclusive textos que não abordam especificamente a EJA. Da literatura internacional, foram consultados alguns documentos de referência publicados pela Unesco e por redes latino-americanas de sociedade civil relativos ao campo da educação e aprendizagem de adultos, mencionados ao longo do artigo e referidos na bibliografia.
A educação de jovens e adultos em um mundo impactado pela covid-19
Já no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, editorialistas de uma revista especializada estadunidense (Boeren et al., 2020) mapeavam com precisão os prováveis impactos da covid-19 sobre a educação e aprendizagem de adultos: pesquisas prévias evidenciavam que as pessoas adultas e idosas com menores níveis educacionais, não brancas e imigrantes, dependentes de trabalhos precários e que auferem menores rendimentos seriam as que enfrentariam maiores dificuldades de usufruir oportunidades de formação, indicando que tais processos de seleção e exclusão viessem a se acentuar com o fechamento de escolas na pandemia, sobretudo naquelas comunidades densamente povoadas e mal atendidas por serviços de saúde.
Segundo os autores, a estagnação econômica decorrente da pandemia e a capacidade desigual de resposta à crise produziriam desemprego, miséria, violência e fome, e nem mesmo trabalhadores essenciais da “linha de frente” (da saúde, limpeza, cuidado, transportes e comércio), expostos ao adoecimento e às suas consequências financeiras e de saúde, receberiam orientações e formação adequadas durante a pandemia.
Boeren et al. (2020) destacavam que o fosso digital que divide nossa sociedade faria com que, mesmo com a proliferação de oportunidades de aprendizagem a distância, muitas pessoas não pudessem se beneficiar por não disporem de conexão com a internet ou só terem acesso por celular com planos de dados limitados, ou ainda por não possuírem habilidades para se engajar na aprendizagem autodirigida em ambiente virtual. Os autores faziam votos de que a educação de adultos auxiliasse a conectar pessoas às quais se impôs o distanciamento físico, ajudando a tecer as tão necessárias redes de apoio e solidariedade para mitigar os múltiplos efeitos nefastos da pandemia (Boeren et al., 2020).
Em nota temática emitida naquele mesmo ano, a Unesco (2020) também afirmava que a pandemia configurava uma oportunidade de exercício da solidariedade e da cidadania ativa e reiterava a relevância da educação de adultos no contexto pandêmico, em que a capacidade de as pessoas manejarem as TIC tornara-se estratégica, tanto para acessar as informações sobre saúde quanto para detectar informações distorcidas ou errôneas (as chamadas fake news). Reconhecendo que a maioria da população mundial nem sequer tinha acesso à internet, a organização considerava prioritário democratizar tal acesso e promover a aprendizagem on-line. Porém nenhum programa internacional nesse sentido foi lançado pelas Nações Unidas.
Realizada dois anos depois, no Marrocos, ainda sob a pandemia, em formato híbrido, a VII Conferência Internacional de Educação de Adultos (Confintea) aprovou um documento que reconheceu o impacto estrutural de longo prazo da covid-19 (entre os quais o aprofundamento das desigualdades sociais e educacionais), destacando a relevância da educação de adultos no enfrentamento da crise climática e na formação dos trabalhadores diante das transformações no mundo do trabalho, demográficas e tecnológicas (em que as habilidades digitais são essenciais), assim como os desafios da participação informada na vida cívica contemporânea.
Em um momento em que as sociedades estão ameaçadas pelo fanatismo e pelo extremismo cada vez mais violentos, pelo aumento da desconfiança quanto à ciência e pelo aprofundamento das desigualdades dentro e entre os países, nós reafirmamos que a aprendizagem e educação de adultos pode constituir uma resposta política poderosa para consolidar a coesão social, melhorar o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, garantir a paz, fortalecer a democracia, melhorar o entendimento cultural, eliminar todos os tipos de discriminação, bem como promover a convivência pacífica e a cidadania ativa e global. (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 2022, p. 4).
No ano anterior, em preparação à VII Confintea, redes regionais da sociedade civil traçaram um panorama da educação de pessoas jovens e adultas (EPJA) na América Latina (Hernández Flores et al., 2021), em que destacaram que os compromissos decorrentes das Confinteas têm sido insuficientemente monitorados e seguidamente descumpridos pelos países da região (Cabrera, 2022) e que a crise sanitária aprofundou um cenário de pobreza e desigualdades socioeconômicas, territoriais, raciais, de gênero (Aragão et al., 2022) e educativas, num contexto de estagnação econômica e crise de emprego. Ao revisar os documentos sobre os impactos da pandemia nos sistemas educativos da região, Hernández Flores et al. (2021) se depararam com o fosso digital, a invisibilidade da EJA e de seus sujeitos como titulares de direitos educativos, assim como a fragilidade institucional, a escassez de financiamento e a marginalidade da EJA na agenda de políticas educativas:
Se documenta una diversidad de estrategias de respuesta en la pandemia, pero se coincide en la falta de apoyos oportunos e igualitarios para la EPJA en el marco del conjunto de los sistemas educativos nacionales. En este contexto, la innovación, creatividad y compromiso, singularmente de educadoras y educadores, fue central para la continuidad educativa. Su sentido incluyó más que los contenidos curriculares, la interacción personal, la afectividad, lo socioemocional ante pérdidas humanas y precarización del trabajo y la vida en confinamiento. (Hernández Flores et al., 2021, p. 85).
Várias dessas questões reaparecem na literatura nacional, como veremos a seguir.
A educação na pandemia e os desafios da juventude fora da escola no Brasil
Com o objetivo de compreender as especificidades da EJA no contexto pandêmico e o que houve de comum com outros níveis e modalidades de ensino e com a maior parte de seus educandos, incluímos, na revisão bibliográfica, alguns estudos que abordam o impacto da pandemia no conjunto da educação escolar e na juventude brasileira.
A suspensão das aulas presenciais por um período prolongado foi a resposta generalizada das redes de ensino brasileiras à emergência de saúde decorrente da pandemia de covid-19. As demais respostas diferiram, prevalecendo a transição para o ensino remoto emergencial, com emprego de materiais didáticos impressos, videoaulas (síncronas ou assíncronas), plataformas on-line e outros recursos computacionais em um país caracterizado pelo fosso digital.
A pandemia evidenciou a precariedade das políticas públicas de inserção das tecnologias digitais na educação, pois o ensino remoto emergencial demandou intenso uso de conexão à internet de qualidade, inacessível para a grande maioria da população e até mesmo para uma parcela significativa das escolas.8 Durante a pandemia, observou-se também a adesão de redes públicas e das demais instituições de ensino às plataformas privadas de tecnologia, em modos que induzem à fidelização e colocam em risco a privacidade de discentes e docentes, constrangendo a autonomia didático-pedagógica das unidades escolares e dos professores (Pretto & Bonilla, 2022).
Os estudos mais abrangentes realizados com o objetivo de mapear as respostas das redes de ensino à emergência sanitária e apreciar seus resultados não especificam os contextos da EJA, mas são unânimes em constatar que houve significativas perdas em relação à participação e às aprendizagens dos estudantes, bem como o aprofundamento das desigualdades educacionais preexistentes (Senkevics & Bof, 2022).
A inadequação das respostas da gestão das políticas educacionais à pandemia foi destacada por pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas (Villas Bôas & Unbehaum, 2020) sobre a educação básica durante o isolamento social, com base em formulários preenchidos por professores. Sem abordar especificamente a EJA, a investigação identificou que, apesar da percepção das pessoas entrevistadas de que a pandemia promoveu um maior reconhecimento por parte das famílias sobre a importância do trabalho docente, por outro lado há uma avaliação negativa com relação à atuação das gestões educacionais, considerada como algo que acirrou ainda mais a precarização da profissão e negligenciou a escuta ativa e a participação dos profissionais de educação.
Abordando o impacto da pandemia entre os jovens brasileiros, a pesquisa Juventudes e a pandemia: E agora? - 3ª edição (Atlas das Juventudes, 2022), promovida pelo Conselho Nacional da Juventude e parceiros, com jovens de 15 a 29 anos, identificou que 11% pensavam em parar de estudar e 34% informaram que já pensaram nessa possibilidade, mas diziam não querer mais deixar os estudos. Apesar de considerarem a interrupção, continuar os estudos fazia parte da visão de futuro da maioria: 82% dos estudantes e 74% dos que não estavam estudando em 2022.
Investigando o universo dos jovens que não trabalham e não estudam - conhecidos como “nem-nem” - no contexto da pandemia, os pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Enid Rocha Andrade da Silva e Fábio Monteiro Vaz, em artigo publicado em 2020, destacaram uma especificidade da crise intensificada pela pandemia: ela não somente impactou o mercado de trabalho, mas também interrompeu o processo de construção de habilidades, como a continuidade da educação e da formação profissional, que são fundamentais para ampliar as chances de os jovens conquistarem um trabalho decente na fase de recuperação.
Entre os 56,7% que ainda estudavam, 31% continuaram realizando atividades de estudo de maneira remota, contra 30% que não estavam conseguindo fazê-lo, fosse por falta de oferta, fosse porque fora preciso intensificar atividades de trabalho, fosse porque não estavam conseguindo combinar as inúmeras atividades no período. A despeito disso, 52% pretendiam continuar os estudos, contra 12% que não projetavam voltar aos estudos e 32% que estavam em dúvida quanto à continuidade. (Silva & Vaz, 2020, p. 1).
Os autores enfatizam a importância de as políticas educacionais realizarem a busca ativa e ampliarem as possibilidades de escolarização, reconhecendo as especificidades e heterogeneidades dos jovens “nem-nem”, para que esse contingente retome sua trajetória educacional.
Outros estudos assinalam que a modalidade EJA é um dos percursos pelos quais muitos jovens que abandonaram a escola durante a pandemia (ou antes dela) podem, assim como os adultos e idosos, retomar estudos, desde que sejam adotadas políticas e estratégias apropriadas.
É fundamental que estratégias adequadas sejam implementadas para trazer essa população de volta à sala de aula ou proporcionar uma primeira oportunidade de escolarização, num ambiente motivador para a continuidade dos estudos, bem como para distanciar as dificuldades impostas pelo trabalho, pela mobilidade nas grandes cidades e pela precariedade da oferta de EJA nos pequenos municípios. (Sampaio & Hizim, 2022, p. 292).
Impactos da pandemia nos sujeitos da EJA e respostas das políticas educacionais aos desafios da modalidade
Entre as escassas respostas aos desafios educacionais colocados pela pandemia, o governo federal editou, em março de 2020, a Portaria n. 343 (2020), que autorizou a substituição de aulas presenciais por aquelas ministradas por meios digitais, e, em abril de 2020, a Medida Provisória n. 934 (convertida na Lei n. 14.040, 2020), pela qual os estabelecimentos de ensinos básico e superior foram dispensados, em caráter excepcional, do cumprimento do número mínimo de dias letivos previstos na legislação, delegando aos sistemas de ensino a formulação de alternativas de cumprimento dos currículos e demais obrigações. Também em abril, o Conselho Nacional de Educação autorizou, no Parecer n. 5 (2020), a reorganização do calendário escolar, permitindo que atividades remotas substituíssem o ensino presencial. No que tange à EJA, o Parecer reafirma diretrizes anteriores que sublinham as especificidades da modalidade:
Enquanto perdurar a situação de emergência sanitária que impossibilite as atividades escolares presenciais, as medidas recomendadas para o ensino fundamental e para o ensino médio, na modalidade EJA, devem considerar as suas singularidades na elaboração de metodologias e práticas pedagógicas, conforme Parecer CNE/CEB n. 11, de 10 de maio de 2000 e a Resolução CNE/CEB n. 1, de 5 de julho de 2000 que estabeleceu as DCN’s para a Educação e Jovens e Adultos (EJA), e a Resolução CNE/CEB n. 3, de 15 de junho de 2010, que instituiu Diretrizes Operacionais para a EJA. (Parecer CNE/CP n. 5, 2020, p. 14).
A literatura consultada sugere que, em vários contextos, as gestões municipais e estaduais de educação passaram a redefinir o atendimento educacional de forma improvisada e desarticulada. As orientações do Conselho Nacional de Educação recaíram sobre serviços municipais e estaduais de EJA que já se encontravam negativamente impactados por retrocessos nas políticas públicas para a modalidade, como assinalaram Musial e Araújo (2022, pp. 2-3) em revisão bibliográfica relativa ao período que antecedeu a pandemia:
. . . cabe destacar que, nos últimos anos, vêm ocorrendo rupturas nos avanços que vinham ocorrendo no campo das políticas públicas voltadas para EJA. Uma primeira ruptura pode ser notada com a aprovação da Emenda Constitucional n. 95/2016, que estabelece um teto dos gastos públicos por 20 anos (BRASIL, 2016), e que tem impactado fortemente o financiamento da Educação. Mais recentemente, a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que orienta a elaboração do currículo das unidades escolares da Educação Básica, pode ser considerada outra ruptura, pois não apresentava diretrizes para a educação de jovens e adultos (BRASIL, 2017). Com a eleição de Jair Messias Bolsonaro, que assumiu a presidência da República em 2019, não houve nenhuma proposta para essa modalidade de ensino, ao contrário: no seu primeiro mês de governo, a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) foi extinta, e dentre outras modalidades, ela era responsável pela EJA. Contudo, já transcorrido mais da metade do seu período de governo, e substituição de três ministros da educação, não há qualquer proposição mais consistente para o fortalecimento da educação de jovens e adultos em uma perspectiva emancipatória, democrática e como direito. Ao invés disso, foi aprovada a Resolução nº 1, de 28 de maio de 2021, que institui Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos nos aspectos relativos ao seu alinhamento à Política Nacional de Alfabetização (PNA) e à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e Educação de Jovens e Adultos a Distância (BRASIL, 2021). A construção do referido documento recebeu críticas contundentes da comunidade acadêmica, representada pelo do GT18 - Educação de Pessoas Jovens e Adultas da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd).
Essa perspectiva crítica das políticas federais para a EJA do período recente - sobretudo a inserção subordinada da modalidade na BNCC e na reforma do ensino médio - é compartilhada por Andrade (2021), que interpreta tais medidas como elementos de um projeto de adaptação do trabalhador às exigências do mercado de trabalho, objetificando os sujeitos sob o discurso da empregabilidade.
Nicodemos e Serra (2020) qualificam a BNCC e o novo ensino médio como contrarreformas, assinalam a invisibilidade da EJA nas respostas dos poderes públicos à pandemia e sua inadequação às características dos sujeitos (educandos e educadores) e identificam, nas políticas recentes para a modalidade, uma inclinação à desescolarização, na medida em que as normativas e a ação governamental concedem prioridade à mediação a distância e à certificação pelo Exame Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja).
Outros diagnósticos do período recente (Mansutti et al., 2022) confirmam a redução do número de escolas que oferecem EJA, o contínuo fechamento de turmas, a acentuada queda de matrículas e a drástica redução do gasto público federal na modalidade, colocando em perspectiva o descumprimento das respectivas metas do Plano Nacional de Educação 2014-2024, contexto agravado pela pandemia.
A educação escolar de jovens e adultos foi fortemente afetada pela pandemia de covid-19, com impactos negativos sobre os níveis de participação (menor matrícula e maior evasão) e de aprendizagem. De um lado, os grupos sociais que compõem o público-alvo da EJA escolar foram intensamente atingidos não só pela emergência de saúde, mas também pela crise de emprego e renda, colocando em risco sua segurança alimentar e condições básicas de vida. Com a queda da renda familiar em decorrência da contração do mercado de trabalho, muitos jovens, adultos e idosos com baixa escolaridade tiveram que buscar meios de sobrevivência na economia informal, em extensas jornadas de trabalho ou de procura por trabalho e assistência social, atividades estas de difícil conciliação com as rotinas escolares, afetadas também pelo confinamento das famílias nos reduzidos ambientes domésticos. O abandono escolar se intensificou e a frequência às atividades educativas declinou substancialmente. A participação dos jovens e adultos na modalidade foi influenciada também pela migração para o ensino remoto emergencial que as redes de ensino público tiveram que realizar em 2020 e 2021. Poucas redes de ensino desenvolveram estratégias alternativas ou produziram materiais pedagógicos (impressos, veiculados por rádio, televisão ou computadores interligados em redes) específicos para a EJA, e mesmo nesses casos os estudantes tiveram dificuldades de acessá-los, sobretudo devido à limitada conexão a aparatos tecnológicos e pacotes de dados, compartilhados por diversos membros das famílias. (Mansutti et al., 2022, p. 33).
Como parte do movimento de esvaziamento da modalidade, que ganhou intensidade a partir do golpe institucional de 2016 e adquiriu dimensão dramática no governo Bolsonaro, os autores também indicam que o investimento na expansão do Encceja foi realizado na perspectiva de aligeiramento e de precarização da EJA (Mansutti et al., 2022). Eles revelam que o número de inscritos na prova, que havia aumentado de 366 mil em 2012 para 2,9 milhões em 2019, correspondeu a 1,6 milhão em 2021, durante a pandemia. Em 2022, esse exame nacional passou a ser divulgado amplamente por meio de campanha publicitária em rádio e televisão.
Em artigo sobre o impacto da pandemia na população de migrantes e refugiados, Rita de Cássia da Cruz Silva e Maria Clara Di Pierro (2022) destacam três fatores importantes desconsiderados pela gestão das políticas de EJA ao transferir todas as atividades escolares para plataformas on-line: 1) a maior parte dos alunos da EJA corresponde a pessoas que ficaram afastadas da escola por muito tempo e poderiam não ter autonomia suficiente para a realização de atividades remotas; 2) esse público é constituído, sobretudo, por trabalhadores, muitos dos quais estão na informalidade, sem direitos sociais, e cuja realidade econômica não permite acesso a equipamentos e internet de qualidade para a realização das atividades; e 3) por ser um público que tenta sobreviver em um contexto dificílimo, essas pessoas poderiam não ter tempo e disposição para o ensino remoto. Além disso, as autoras observam que, com as moradias lotadas, muitos tiveram de compartilhar equipamentos, dispositivos e sinal de internet, o que - em muitos casos - acabou por inviabilizar a continuidade dos estudos.
Esses obstáculos à aprendizagem durante o período de ensino remoto - despreparo dos docentes, limitações de dispositivos, conectividade e letramento digital dos educandos,9 inadequação dos ambientes domésticos e dificuldades de conciliar rotinas familiares, profissionais e de estudo - foram constatados também em pesquisas com educandos e educadores da EJA realizadas por Lopes e Vieira (2022), em Ceilândia (DF); Costa et al. (2022), em Baturité (CE); Kluthcovsky e Joucoski (2021), em Curitiba (PR); Pires et al. (2021), em Aragarças e Rio Verde (GO); Silva e Barbosa (2022), na rede estadual do Rio de Janeiro; entre outros.
Socialização, impactos do isolamento social e o papel das TIC
Há tempos os estudos sobre a EJA sublinham a importante função de socialização que a escola cumpre para jovens, adultos e idosos de baixa renda e escolaridade, configurando um espaço onde os sujeitos podem ser reconhecidos e interagir com relativa liberdade fora dos padrões hierárquicos da família patriarcal e do trabalho subordinado. Como afirmam Morais e Oliveira (2022, p. 35), “a escola se apresenta como um lugar de encontro, de relações, de socialização”. Alguns dos textos sobre a EJA na pandemia mencionam que a súbita interrupção dos encontros presenciais regulares provocou insegurança sobre a capacidade de seguir aprendendo, desmotivação para persistir no ensino remoto e sentimentos de regressão na aprendizagem, o que se somou a outras repercussões da pandemia (econômicas, de saúde física e mental, de acesso a outros direitos, etc.) como fatores indutores da baixa participação e da evasão escolar (Silva & Barbosa, 2022; Souza et al., 2022).
Uma parcela da literatura menciona também os impactos emocionais da pandemia e na saúde mental da população, como registrado em um estudo de caso em município amazônico, cujos autores convocam a escola a exercitar o acolhimento: “faz-se necessário observar os alunos que estão vivenciando o luto, que tiveram perda de referências e afetividades em suas vidas, que têm sofrido com queixas de ansiedade, insônia, depressão” (Cunha et al., 2021, p. 31).
São raras ainda as publicações que abordam o retorno às aulas presenciais após o controle da pandemia mediante vacinação da população. Traçando o perfil dos estudantes de uma escola privada, porém gratuita, de EJA na capital paulistana, Frochtengarten (2022) constatou que muitos educandos da EJA interromperam os estudos, sofreram drástica queda de renda, viveram o desemprego ou a precarização ainda maior das condições de trabalho e presenciaram o aumento de conflitos no ambiente escolar.
Dentre as revisões sistemáticas de literatura referentes à EJA na pandemia, apenas um estudo - relativo ao Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com Educação Básica na modalidade Educação de Jovens e Adultos (Proeja), que analisou dez textos nacionais e quatro internacionais - depositou expectativas otimistas na mediação pedagógica das TIC: embora diversos artigos revisados tenham apontado que os estudantes da EJA enfrentam dificuldades para acessar as ferramentas digitais, Melo et al. (2022, p. 15) concluíram que elas têm o potencial de favorecer a construção de conhecimentos dos educandos da EJA, desde que existam políticas que facilitem o acesso ao ciberespaço e promovam a formação dos educadores. O estudo de Winter (2021) sobre o Proeja em Santa Maria (RS) corrobora em parte essas conclusões, pois, embora tenha registrado uma proporção significativa de estudantes que não aderiram ao ensino remoto e desistiram do curso, constatou a persistência de uma parcela de alunos que pode se beneficiar das adequações metodológicas ao ensino-aprendizagem mediado pelas TIC, além dos auxílios financeiros e ferramentas digitais proporcionados pela rede federal de ensino.
Diversos relatos de experiências de ensino remoto mencionam que os docentes, predominantemente, viabilizaram a comunicação com os educandos da EJA pelo WhatsApp, uma vez que a maioria dos jovens, adultos e idosos possui celular e já utiliza o aplicativo gratuito de troca de mensagens, inclusive aqueles que estão em processo de alfabetização e têm conhecimentos rudimentares de leitura e escrita, pois podem utilizar mensagens de voz (Costa, 2021; Morais & Oliveira, 2022; Pires et al., 2021; Santos, 2021; Silva & Barbosa, 2022).
Os desafios de inclusão digital e da garantia de condições de sobrevivência dos educandos da EJA durante a pandemia, em especial relativos ao acesso à renda, à saúde e à segurança alimentar, também foram abordados por Jorge Luis Teles da Silva (2020) em artigo apresentado à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). O autor identificou que as rotinas docentes foram drasticamente alteradas, e que o planejamento e a avaliação sofreram constrangimentos que colocaram em risco a participação e o acompanhamento dos estudantes da EJA.
Um dos temas polêmicos encontrados na literatura foi a conveniência de incluir os educandos da EJA na progressão automática, medida largamente adotada durante a pandemia nas redes de ensino público, repudiada por grande parte dos educadores e educandos da EJA.
Desconsiderar que muitos desses estudantes passaram anos distantes da escola e oferecer- -lhes um certificado desacompanhado de uma aprendizagem efetiva é manter a lógica da certificação vazia, é não enxergar sua capacidade de ampliar conhecimentos a fim de compreender e agir no mundo a sua volta, é pensar que os estudantes da EJA não são capazes de atingir um grau satisfatório de aprendizagem por conta de toda problemática vivenciada que os [levou] ao afastamento da escola, é um ato de exclusão e desqualificação. (Barauna et al., 2022, p. 247).
Na pressão por respostas das políticas educacionais voltadas para a EJA, em julho de 2020 os Fóruns EJA do Brasil lançaram um documento nacional chamando a atenção para ações emergenciais em tempos da pandemia de covid-19. Além de denunciar o agravamento das desigualdades socioeconômicas, o documento elencou três pontos prioritários na luta em defesa das políticas da EJA no contexto pandêmico:
O primeiro ponto da pauta de luta diz respeito a disponibilizar banda larga, como direito social, na forma de serviço público gratuito; plataforma pública, com expansão da Rede Nacional de Pesquisa (RNP); integração com TVs públicas, rádios públicas e redes sociais; e infraestrutura de tecnologia virtual, em sala de aula, como instrumentos de inserção no chamado ciberespaço com produção de transvídeos e construção de tipos textuais no celular, demonstrando as funcionalidades e aplicações na vida de cada educando(a). . . . O segundo ponto da pauta de luta é que reafirmamos que a oferta da EJA precisa tornar-se parte da constituição de políticas públicas de Estado (em âmbito federal, estadual, municipal e distrital) e não por meio de programas. Defendemos o direito à educação de qualidade e nos posicionamos contrários à oferta de atendimento compulsório da EJA na modalidade EaD. Exigimos que, para esse atendimento, o poder público e suas instituições (nos âmbitos federal, estadual, municipal e distrital) realizem o recenseamento, a mobilização da sociedade por meio de chamada pública e divulgação de vagas da demanda e garanta a abertura e manutenção de turmas/escolas de EJA na educação básica (Fundamental e Médio) na forma integrada à Educação Profissional nos termos do artigo 5º da LDB 9394/96 e Lei 13.005/2014 do Plano Nacional de Educação (Metas 9 e 10). . . . O terceiro ponto da pauta de luta é a defesa de que o ano letivo não precisa coincidir com o ano civil, principalmente em situações excepcionais como a que nos encontramos. É possível organizar os dias letivos e horas, de modo a garantir o ensino presencial para todos(as), assegurando-se que: não haja discriminação devido às condições de vida dos(as) trabalhadores(as) estudantes e à estrutura das instituições educacionais; a autonomia aos sistemas (municipais, estaduais, federais e distrital) para definir suas formas de recuperação, com GESTÃO DEMOCRÁTICA, assegurando a participação das comunidades escolares. (Fóruns EJA Brasil, 2020, pp. 2-4).
Apesar das pressões dos Fóruns EJA e de outros movimentos sociais em âmbitos nacional, estadual e municipal, foram poucas as respostas das gestões educacionais nos diferentes níveis às demandas de sustentação da modalidade em contexto tão dramático para seus educandos: mais de 70% compostos por pessoas negras, trabalhadoras e trabalhadores precários, empregadas domésticas, população LGBTQIA+, mulheres idosas, profissionais do sexo, jovens e adultos egressos de espaços de privação de liberdade, entre outros sujeitos com ricas experiências e muitos conhecimentos de vida, mas com trajetórias marcadas por profundas violações de direitos.
A EJA em espaços de privação de liberdade
Registra-se que, no período da pandemia, a maior parte dos estabelecimentos de privação de liberdade, vinculados ao sistema prisional ou às medidas socioeducativas de internação de adolescentes em conflito com a lei, suspendeu a limitada oferta do atendimento educacional nas unidades, intensificando os efeitos violadores das instituições totais (Carreira & Oliveira, 2016). Tal situação afetou dramaticamente essa população, constituída por mais de 800 mil pessoas, sendo cerca de 80% por população negra, considerada em condição degradante em relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o Brasil, publicado em fevereiro de 2021.
Em dissertação de mestrado sobre as respostas dos governos estaduais à situação do atendimento educacional em unidades prisionais, Beatriz Luz (2021) identificou que, quando existentes, as respostas ocorreram por meio da distribuição de roteiros e materiais impressos, exibição de videoaulas, projetos de promoção da leitura para fins de remição da pena e estímulo à elaboração de cartas para parentes e amigos, no contexto de interrupção de visitas decorrente da pandemia. Com a maior população carcerária do país, cerca de 230 mil pessoas, o estado de São Paulo distribuiu kits, materiais e roteiros elaborados por profissionais da Secretaria Estadual de Educação a apenas 17 mil detentos.
Observa-se que, apesar das recomendações emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) - Recomendação n. 62 (2020) e Recomendação n. 68 (2020), destinadas ao Poder Judiciário, referentes aos sistemas carcerário e socioeducativo, no sentido de flexibilização e abreviação de procedimentos que visassem a diminuir a população privada de liberdade durante a urgência sanitária -, prevaleceu a perspectiva punitivista da maior parte dos juízes, ao não implementarem tais recomendações, segundo avalia o relatório da organização de direitos humanos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) (2020), mantendo os níveis de encarceramento e de internação durante a pandemia.
A diversidade da EJA nos territórios impactados pela covid-19
Os estudos reportados na literatura nacional revisada, apesar de não poderem ser generalizados, permitem entrever os desafios e os diversos encaminhamentos adotados por várias redes escolares municipais e estaduais para dar continuidade ao ensino-aprendizagem na EJA.
Analisando o contexto educacional de João Pessoa (PB), Andrade et al. (2023) sublinham o despreparo dos professores para manejar os recursos tecnológicos necessários ao ensino remoto emergencial, agravado pela ausência de oportunidades de formação para aquisição e desenvolvimento de tais habilidades. Esse despreparo torna-se mais evidente quando a docência é exercida em turmas com grande heterogeneidade geracional, uma vez que os idosos têm maiores dificuldades de uso das TIC, além de escassos recursos econômicos para adquirir aparatos e pacotes de dados que lhes permitam aprender com mediação tecnológica.
Em um estudo de caso sobre a implementação concomitante da BNCC e do ensino remoto emergencial em um centro de educação de jovens e adultos da rede estadual, situado em Fortaleza, que antes da pandemia organizava o ensino modular de forma disciplinar e semipresencial, Costa et al. (2021) observaram que as orientações proporcionadas pela Secretaria da Educação (Seduc) e pelo Conselho Estadual de Educação para adoção, em 2020, do regime especial de atividades não presenciais de ensino e, posteriormente, em 2021, do ensino híbrido, combinando atividades remotas e presenciais, foram improvisadas e inespecíficas, estando os professores despreparados para levá-las à prática. Ainda assim, a escola formulou seu plano de atividades domiciliares, conforme a orientação superior, e realizou ajustes no currículo, em conformidade com a Matriz de Conhecimentos Básicos, proposta pela Seduc e alinhada à BNCC. Os autores concluem que a incorporação das TIC nesse modelo híbrido de ensino e aprendizagem requer mais recursos e investimentos em infraestrutura e formação de professores.
Cunha et al. (2020) analisaram os impactos da suspensão das aulas presenciais na EJA, no primeiro ano da crise sanitária da covid-19, em três municípios com características diversas (Bom Jesus da Lapa, Itapetinga e Porto Seguro), na Bahia, estado que concentra o maior contingente de analfabetos do país.10 Os três municípios interromperam as aulas presenciais e adotaram diferentes encaminhamentos de ensino remoto - via TIC e/ou materiais impressos -, porém nenhum deles dispunha de meios para contratar plataformas digitais ou dotar as escolas de recursos tecnológicos (seja equipamentos ou conexão à internet em banda larga) para prover ensino a distância, recaindo sobre os docentes (que não receberam capacitação) a responsabilidade de produzir materiais educativos e fazer com que estes chegassem aos estudantes.
Barbosa (2022) relata as medidas adotadas em 2020 na rede municipal de ensino do Rio de Janeiro, cujo Conselho Municipal de Educação autorizou o regime especial domiciliar, cabendo à Escola de Formação Paulo Freire preparar o magistério para o uso das ferramentas tecnológicas disponíveis. Os entrevistados pela pesquisa avaliaram “reduzida adesão dos estudantes às atividades remotas e o baixo acesso às plataformas digitais”, sobretudo devido às limitações dos pacotes de dados para acesso à internet, o que obrigou a Secretaria Municipal de Educação (SME) a disponibilizar um aplicativo de acesso gratuito (Barbosa, 2022, p. 10), sem que, contudo, tenham sido feitos maiores investimentos para democratização do acesso às TIC. O autor conclui que o ensino remoto se mostrou inadequado para a modalidade EJA.
Destaca-se, também no Rio de Janeiro, a produção de dossiês sobre EJA na pandemia por parte do Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Estado do Rio de Janeiro, em especial o Dossiê sobre terminalidade na EJA em tempos de pandemia (Fórum de Educação de Jovens e Adultos do Estado do Rio de Janeiro [Fórum EJA RJ], 2020), que deu base a várias denúncias públicas e ao Ministério Público sobre o aprofundamento do movimento de redução de turmas e a precarização acelerada da oferta da modalidade, durante a pandemia, em decorrência da inadequação das respostas da gestão educacional às especificidades da modalidade.
A drástica redução de turmas durante a pandemia também foi vivenciada na cidade de São Paulo. Dados levantados pela Agência Mural (Oliveira, 2023) mostram que, entre 2019 e 2022, foram fechadas 322 turmas da EJA - queda de 1.653 para 1.331 turmas. Além disso, 28 escolas passaram a não contar com nenhuma sala para a educação de jovens e adultos, de acordo com informações disponibilizadas pela Secretaria Municipal de Educação. De 2019 a 2022, o número de matrículas na EJA, na cidade de São Paulo, caiu de 45.048 para 29.141, uma redução de 35%. Nesse mesmo período, a gestão municipal deixou de aplicar R$ 10 milhões na EJA, segundo dados apurados pela Agência Mural junto ao Tribunal de Contas do Município.
Dentre as recomendações aprovadas pelo Conselho Municipal de Educação (CME) de São Paulo, destacam-se a Recomendação n. 2 (2020), que tratou da aprendizagem híbrida, e a Recomendação n. 7 (2021), que abordou procedimentos de busca ativa escolar para toda a educação básica. Especificamente sobre a EJA, o CME aprovou em junho de 2021 o Parecer n. 5 (2020), voltado para a maior flexibilização da EJA modular durante a pandemia, a partir de consulta proposta pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo e constituição de grupo de trabalho com participação de representantes das unidades que ofertavam essa forma de atendimento.11
Assim como em outras cidades, experiências importantes de acolhimento e de solidariedade foram promovidas por profissionais da EJA, como a desenvolvida pelo Centro Integrado de Educação de Jovens e Adultos (Cieja) Perus, vinculado à rede municipal de educação de São Paulo, abordada em artigo de Fialho et al. (2020). Atendendo a uma população de cerca de 800 imigrantes e refugiados, a grande maioria haitianos, de um total de 1.500 educandos, a equipe do Cieja Perus diversificou as formas de alimentação de vínculos e de assistência para além do proposto pela Secretaria Municipal de Educação e desenvolveu atividades de conscientização dos educandos quanto às formas de prevenção da covid-19 e de reconhecimento e tratamento dado às fake news.
Em artigo em que detalha a experiência do Cieja Perus durante a pandemia, a diretora do Centro, Franciele Lima (2022), demonstra como a indissociabilidade do direito à educação de outros direitos humanos é chave no desenvolvimento de políticas da EJA, perspectiva também afirmada por Eda Luiz (2022), ao abordar em artigo a experiência do Cieja Campo Limpo em sua intensa relação com o território do entorno.
Em estudo sobre a oferta da EJA ensino médio em oito escolas no município de Diadema (SP), Fernando Ferreira Pires (2021) revelou que o vazio de orientações específicas para a modalidade por parte da gestão estadual forçou que as escolas tomassem decisões locais dissonantes umas das outras, situação decorrente da ausência de uma rede de interação entre elas, com coordenação e orientação regional ou estadual para gerir os processos, o que acirrou, apesar dos esforços de alguns educadores, uma política de exclusão continuada. O vazio de orientações específicas para a EJA foi registrado também por Alves et al. (2022) na rede estadual do Rio de Janeiro.
Mirando o contexto amazônico durante a pandemia, Alessandra Sampaio Cunha, Joana d’Arc Vasconcelos Neves e Nívia Maria Vieira Costa (2021) abordam a realidade das políticas da EJA no município de Bragança, estado do Pará. Assim como ocorre em outros estudos, as autoras destacam que a pandemia acirrou o desmonte da modalidade em curso no município, que a realização de atividades remotas foi muito menor do que no restante do país, devido à dificuldade acentuada de acesso à internet e à falta de recursos tecnológicos pelas populações locais amazônicas - ribeirinhos, agricultores familiares, pescadores, coletores, entre outros - e que a suspensão das atividades de ensino presenciais se estendeu no município para além do período vivenciado na maior parte do país.
Considerações finais: O potencial da EJA na mitigação dos impactos educacionais da pandemia de covid-19 e na prevenção e enfrentamento de novas pandemias
Reconhecendo-se os limites desta revisão bibliográfica, inclusive no que se refere aos desafios enfrentados pelas investigações realizadas durante a pandemia, é possível depreender que houve poucos avanços ou inovações nas políticas públicas da EJA, exceto uma intensificação de experimentações pedagógicas mediadas por TIC, constrangidas pela reduzida formação dos professores nesse terreno e pelas limitações de acesso de educandos, educadores e unidades escolares a aparatos tecnológicos, pacotes de dados e conexões de qualidade.
A análise do levantamento bibliográfico sugere que o potencial da EJA não foi mobilizado pelas políticas públicas na mitigação dos efeitos da pandemia de covid-19, na formação de educadores, no fortalecimento das redes de solidariedade e de acesso a outras políticas e na formação da população para a cidadania democrática (Benevides, 1996; Muzzatto & Silva, 2021) diante da onda negacionista promovida ostensivamente pelo governo Bolsonaro (2019-2022). Pelo contrário, de modo geral, a pandemia acirrou o movimento em curso de desmonte das políticas de EJA, a desarticulação do atendimento entre redes de ensino municipais, estaduais e federal e a invisibilização da modalidade nas políticas educacionais.
Evidenciou-se a desigualdade de acesso às tecnologias da informação e comunicação, a ser superada com a democratização dos recursos informacionais - equipamentos e conexões de qualidade - com a necessária garantia da proteção dos dados das comunidades educacionais ante os interesses de mercado. Tal democratização deve estar a serviço de projetos formativos abertos, que promovam a convivência para a construção de conhecimentos e que não privem educandos e educadores de autonomia, como ocorreu durante a recente pandemia (Pretto et al., 2020).
Apesar dessa situação, uma parte da literatura apurada12 oferece evidências de criatividade e esforço de professoras e professores da EJA no desenvolvimento de estratégias de ensino e aprendizagem; de estímulo de redes de troca de conhecimentos, de experimentação tecnológica; de uso dos próprios recursos informacionais e financeiros para apoiar educandos em situações de extrema vulnerabilidade; e das tentativas de busca ativa e fortalecimento de vínculos de solidariedade com os educandos. Também é destacada a atuação de educadores populares e ativistas dos Fóruns EJA em criar alternativas cotidianas e cobrar das gestões educacionais respostas efetivas aos desafios da modalidade no contexto pandêmico.
Considerando a gigantesca demanda potencial da EJA, sobretudo o crescimento dela entre os jovens (Sampaio & Hizim, 2022), a análise realizada recomenda que se compreenda a educação de jovens e adultos efetivamente como um direito humano e, especificamente, como modalidade de acolhimento de um contingente de adolescentes e jovens excluídos dos ensinos fundamental e médio durante a pandemia, cujas trajetórias escolares provavelmente só serão retomadas por meio da EJA.
Além da importância do investimento na EJA para a educação de crianças e adolescentes que têm seus pais escolarizados ou em processos de escolarização, chamamos a atenção para o imenso potencial da EJA - na perspectiva da educação popular emancipatória (Di Pierro, 2017; Carreira, 2014; Paludo, 2008) - de construção de redes de solidariedade, de acesso de populações de baixa renda a políticas intersetoriais, de disseminação de informações de qualidade, de letramento político-democrático e de formação cidadã para o enfrentamento do negacionismo, racismo, violência de gênero intensificada na pandemia, fascismo e efeitos das mudanças climáticas.
Nesse sentido, nossa análise indica a urgência de que as políticas da EJA sejam fortalecidas, com financiamento adequado, planejamento coerente e coordenado, formação continuada de educadores, articulação do atendimento entre redes municipais, estaduais e federal, ação territorializada e intersetorial, normativas educacionais adequadas à modalidade, bolsas de permanência aos estudantes e participação social, tendo como base o reconhecimento das especificidades de seus sujeitos diversos como parte das estratégias de enfrentamento das profundas desigualdades raciais, de gênero e sociais do país, acirradas pela pandemia de covid-19, e de prevenção e mitigação dos efeitos de possíveis novas pandemias.