Em que pese a diversidade de unidades escolares existentes e dos sujeitos que a atravessaram, algumas características foram estruturantes da forma pela qual a educação se institucionalizou a partir da modernidade ocidental. Assim sendo, a institucionalização de um modelo de escola centrado no saber escrito, no controle dos fluxos e no seu entendimento como espaço por excelência da infância é o resultado de uma configuração sócio-histórica específica e disputada. O seu entendimento, por sua vez, animou análises e categorias caras à História da Educação sob a perspectiva da História Cultural, tais como as noções de cultura (Julia, 2001) e forma escolar (Vincent et al., 2001), como também o entendimento do processo de profissionalização do professorado ancorado em fases, dimensões e um eixo estruturante (Nóvoa, 1997, pp. 13-33). Em comum, tais estudos têm o destaque a alguns pontos considerados recorrentes na implantação da escola e da profissão docente no Ocidente e que, por conseguinte, marcaram as formas pelas quais a docência e a rotina escolar se estruturaram.
Esse engendramento, por sua vez, teve também consequências materiais para a forma pela qual a educação passou a se organizar. Dito de outro modo, uma vez estabelecidos tempo, espaço, ritmo e relação pedagógica padronizados, estabeleceu-se também a necessidade de mobiliário adequado, livros didáticos e toda uma infinidade de materiais escolares cujo convívio, aos poucos, virou sinônimo de “escola”. Dentre os tantos efeitos possíveis dessa organização está a constituição da escola como mercado consumidor. É, pois, do engendramento dessa configuração e dos efeitos que ela teve que o livro História econômica da escola: Uma abordagem antropológica em circuito transnacional (Vidal & Alcântara, 2024) se ocupa.
Ainda que a historiografia da educação já venha se ocupando da materialidade que organiza a escola, essa abordagem ganhou força, sobretudo, pela via dos estudos da cultura material escolar. Tal perspectiva, marcada principalmente pelo viés internalista de compreensão da instituição, fez recrudescer o olhar para a diversidade de fontes possíveis para pensar a história da escola e amadurecer categorias de análise amplamente abraçadas pelo campo.1 A obra aqui resenhada, pois, se beneficia desses veios de pesquisa já consolidados, mas inverte o olhar ao se ocupar das relações exógenas à escola. Dessa forma, ao contemplar dados econômicos após atravessar e ver consolidada a perspectiva da História Cultural no campo da História da Educação, faz sentido que o entendimento dos objetos se dê tomando-os como artefatos, e o das fronteiras opere considerando sua porosidade e fluidez.
A obra, portanto, opera deslocamentos ao realocar o debate e, consequentemente, priorizar novas problemáticas. Ao demarcar como opção metodológica o entendimento do mercado de material e mobiliário escolar como uma construção social, atentar para a construção social e cultural dos vínculos econômicos e para a dimensão simbólica dessas trocas reforça uma perspectiva histórica preocupada com os sujeitos, com as práticas e as representações alicerçadas nos processos de consumo (Vidal & Alcântara, 2024, pp. 21-23). Ademais, o foco na dimensão material da escola de massas permitiu problematizar tanto a sua territorialidade quanto a agência de sujeitos não estatais (Vidal & Alcântara, 2024, p. 27). Sobre o primeiro ponto, as autoras chamaram a atenção para as apropriações locais e os significados partilhados em escala transnacional a respeito do aparelhamento e do funcionamento da instituição. O desdobramento disso foi a adoção de uma perspectiva transnacional para entendimento da história da escola, que por sua vez operou desterritorializando e reterritorializando as fronteiras nacionais a partir do entendimento do objeto de estudo (Vidal & Alcântara, 2024, p. 27). Já sobre o segundo ponto, destacaram que a escola de massas já nasceu demandando do setor privado, de modo que a agência desses atores não estatais deve ser tomada como objeto por ter operado sentidos e ações nos processos de escolarização (Vidal & Alcântara, 2024, p. 27).
Para dar conta dessas problemáticas e operar com as categorias que se propõe, o livro se divide em oito capítulos. Eles, por sua vez, abordam desde fotografias do campo de estudo e das categorias mobilizadas - sobretudo nos dois primeiros capítulos, intitulados “Da cultura material escolar à história econômica da escola” e “Sobre marcos temporais e categorias” -, até investidas sobre objetos, artefatos, iniciativas editoriais e industriais específicas. Os objetos e artefatos foram tema, respectivamente, dos capítulos 3 (“Artefatos escolares: Os quadros parietais da Maison Derolle”) e 5 (“Indústria escolar transnacional: As carteiras escolares”) da publicação. Já as iniciativas industriais e editoriais esmiuçadas conglomeram-se nos capítulos 4 (“Comércio local e consumo escolar: A casa Lebre”), 6 (“Indústria escolar local: Eduardo Waller & Comp.”), 7 (“Mercado livreiro: A Biblioteca do povo e das escolas”) e 8 (“Monopólios e cartéis: O Syndicat Commercial du Mobilier et du Materiel d’Enseignement”). Todos eles, vale dizer, são atravessados por esforços coletivos de pesquisa financiados por agências de fomento e responsáveis não somente por congregar número expressivo de pesquisadores, mas também por publicizar processos e resultados na forma de publicações e comunicações.
Talvez por isso, o livro - ainda que breve - funcione ao mesmo tempo para sistematizar resultados já alcançados e para assinalar veios possíveis de análises futuras. Isso porque os capítulos, tal qual anunciados na introdução, são em grande parte escritos que já circularam, ainda que parcialmente, em publicações pregressas de ambas as autoras, que por sua vez possuem uma trajetória consolidada na lida com esse tipo de objeto e uma longeva inserção no campo. A primeira autora - Diana Gonçalves Vidal (1994) - vem se ocupando de análises da materialidade da escola há tempos, atentando-se sobretudo ao seu papel de suporte para normatizações e reformas no campo educacional. Mais recentemente, tem também chamado a atenção para o impacto do aparelhamento material da escola para a formação das subjetividades e o peso das apropriações dos sujeitos (Vidal & Silva, 2010), como também da potencialidade da aproximação com campos específicos, como a arqueologia e a antropologia, para o estudo da cultura material (Vidal, 2017). Já Wiara Alcântara (2014) é estudiosa do tema desde o doutoramento, no qual se debruçou sobre a análise da carteira escolar como artefato industrial e, posteriormente, sobre a sua transnacionalização a partir da circulação de saberes e discursos a respeito do corpo infantil e da escola moderna (Alcântara, 2016). Mais recentemente, e ainda no esteio da análise da cultura material da escola, segue se ocupando da circulação e industrialização de artefatos escolares (Alcântara, 2023; Meloni & Alcântara, 2019; Alcântara, 2018).
Ao mesmo tempo, ao operar um redirecionamento do olhar para entendimento da escola e das relações econômicas que a atravessaram, a obra dá notícias de caminhos de pesquisa possíveis, mas ainda pouco explorados. Essa proposta, vale dizer, conversa e justifica sua inserção na coleção “Diálogos em História da Educação” e sua vinculação editorial com a Sociedade Brasileira de História da Educação, já que opera sedimentando e organizando um arrazoado de pesquisa no campo, abrindo, assim, espaço para investidas ainda por vir. Assim sendo, História econômica da escola é uma obra que, por ser devedora de esforços de pesquisa pregressos, dá notícias de publicações de diferentes fases de ambas as autoras. Visto por esse lado, trata-se de uma retrospectiva e de um panorama do campo e, também, de um convite para operar um olhar externo à escola, nuançando suas relações com indústria, consumo e lógicas produtivas. E se o entendimento das relações da escola com as configurações econômicas que a cercam faz pensar o deslocamento de sujeitos e objetos, ele também é capaz de propor o derretimento de algumas fronteiras. Nesta leitura específica, o esforço foi de esmorecer as delimitações entre público e privado e de problematizar o peso das fronteiras nacionais na implantação da escola de massas ao sinalizar as limitações de atendimento dos agentes estatais e a fluidez dos artefatos na sua implantação presentes ao longo do processo histórico de sua institucionalização.