O Solo e as Sementes das Escolas Alemãs no Rio Grande do Sul
A instalação de escolas confessionais no Rio Grande do Sul aconteceu a partir do século XIX e deveu-se à presença de jesuítas alemães no estado, bem como à ação de lideranças evangélico-luteranas na visão de Arendt e Gomes (2008). De acordo com Tambara (2008), a criação dessas instituições estaria também associada ao surgimento de demandas por formação de professores. O próprio governo estadual incentivava o ensino privado que, no século XX, iria se expandir, alcançando, inclusive, o interior do estado (Arriada, 2008). Assim, além das escolas normais criadas pelo poder público, as escolas confessionais começaram a ganhar espaço.
A ausência de escolas elementares, nas localidades onde os imigrantes alemães habitavam, tem sido apontada como causa para a criação de escolas alemãs nesses locais. A esse propósito, Hoppen (1991, p. 8) afirma: “Todos os imigrantes sentiam a falta da escola, completamente ausente no ambiente onde foram localizados”. Entretanto, mesmo que o número destas instituições de ensino não fosse suficiente para atender à demanda da onda imigratória, existiam escolas públicas em número considerável no estado do Rio Grande do Sul: em 1910 existiam 1.231 escolas públicas, das quais 180 estavam vagas; em 1912, existiam 300 escolas urbanas e 897 escolas rurais; em 1916, o número de escolas isoladas era de 660 e dois anos depois era de 1.090 (Mensagens do Governador do Rio Grande do Sul para a Assembleia (RS): 1891 à 19301). A questão crucial é que as escolas existentes não eram o tipo de escola que os imigrantes alemães de confissão evangélica ou católica queriam para seus filhos. As escolas públicas não atendiam aos anseios de tais comunidades, que queriam uma escola alemã autêntica, semelhante àquelas da Alemanha, mas em terras brasileiras. Eles aspiravam a uma instituição em que o ensino fosse ministrado em língua alemã, em que a religião fosse a que cultuavam, em que a cultura germânica fosse transmitida e que assegurasse a perpetuação de tal cultura. Nesse sentido, de fato, inexistiam escolas que atendessem a estes objetivos. Naturalmente, para atuar em escolas com essas características eram necessários professores preparados para tal fim. Assim, com o objetivo de atender a essa demanda, foi criada uma escola de formação de professores primários, em 1909, no Rio Grande do Sul (Silva, 2018).
Durante 30 anos, de 1909 a 1939 existiu, no Rio Grande do Sul, o Seminário Alemão Evangélico de Formação de Professores para o Rio Grande do Sul (Deutsche Evangelische Lehrerseminar für Rio Grande do Sul). Entretanto, com o seu fechamento, em 1939, em consequência da campanha de nacionalização e da II Guerra Mundial, abriu-se uma lacuna na oferta de profissionais para exercerem o ensino primário nas escolas alemãs evangélicas. Transcorreram aproximadamente dez anos, até que um curso emergencial fosse proposto. Uma vez que o Instituto Pré-teológico (Proseminar), instituição destinada à formação de pastores, não fora fechado durante a Guerra e nem atingido pela Campanha de Nacionalização, continuando em funcionamento, tornou-se o lugar ideal para a oferta de um curso de formação de docentes. Em 1948, o departamento de ensino do Sínodo Riograndense propôs que um curso emergencial de formação pedagógica, com duração de um ano, fosse criado e funcionasse no anexo à primeira série do curso Pré-teológico. Este foi o primeiro passo em direção à reabertura de uma escola normal, que não seria igual a que existira até 1939, mas que deveria, ao menos, suprir a carência de professores para os anos iniciais em escolas teuto-brasileiras.
Em 1950, esse curso foi estruturado como um Curso Normal Regional, com duração de 4 anos, funcionou na Escola Técnica de Comércio e seu primeiro diretor foi o professor Hans Günther Naumann2. A estruturação de tal curso seguia o decreto-lei 8.530, de 2 de janeiro de 1946, denominado Lei Orgânica do Ensino Normal. Iniciou com 15 alunos, 10 deles oriundos do Curso Rápido e 5 novos. No ano seguinte, este número cresceu para 31 alunos. A partir daí o curso rápido não mais foi ofertado. A falta de preparo dos ingressantes exigiu que fosse criado um Curso Preparatório ao Exame de Admissão, que começou a funcionar com 8 alunos. Em 1957 já eram 97 os alunos matriculados na escola (Relatório do diretor).
Numa estratégia de sobrevivência, a escola procurou seguir a legislação vigente, aproximando-se das outras escolas brasileiras congêneres. Também mudou o nome, abandonando a denominação em alemão Deutsche Evangelische Lehrseminar für Rio Grande do Sul (DELS) e passando a se chamar Escola Normal Evangélica. Esta estratégia foi utilizada por outras instituições de ensino no estado, como referido por Jacques (2015): em 1936, por exemplo, a Hindenburgschule abandonou esta antiga denominação alemã, passando a se chamar Ginásio TeutoBrasileiro Farroupilha até 1942, quando se converteu em Ginásio Farroupilha e, mais recentemente, em Colégio Farroupilha.
Segundo Hoppen (1991, p. 67), o novo curso, em São Leopoldo, “[...] nasceu das cinzas do período de nacionalização, foi adaptado à nova situação e suas circunstâncias”.
Mais próximo do formato das Escolas Normais de 1o grau, o novo curso adaptado à legislação brasileira continuava a aspirar por uma formação ampla aos candidatos. De acordo com o diretor, o futuro professor deveria ter uma sólida base de cultura geral e, em primeiro lugar, o conhecimento da Língua Vernácula, além de Matemática, História, Geografia Geral e do Brasil e Ciências Naturais. A língua alemã, como língua materna da maioria dos alunos, poderia ser ensinada oficialmente, como previa a Lei Orgânica do Ensino Normal. Tal curso deveria ser independente de qualquer outro curso secundário. Além disso, e indispensáveis para o exercício da profissão, estavam as matérias pedagógicas. A escola normal funcionou em São Leopoldo, nos prédios do antigo Seminário e, em 1966, foi transferida para Ivoti, onde funciona até a atualidade. Até 1962 ela ofereceu um curso normal de 1o grau e, a partir de então, começou a oferecer uma formação mais ampla, de segundo grau, o que possibilitou que seus egressos pudessem concorrer ao ensino superior (Relatório do presidente, Assembleia geral da Associação Evangélica de Ensino, 1962).
Além dos documentos pertencentes ao acervo do Instituto de Educação de Ivoti e de acervos particulares de depoentes, usamos na presente investigação a história oral. Ela é uma metodologia que enriquece o conhecimento sobre a vida escolar, principalmente quando fontes documentais são escassas ou insuficientes para responder à questão investigativa. Aém disso, os depoentes nos contaram sobre práticas escolares que dificilmente os documentos seriam capazes de revelar. Para Benito (2017, p. 156), “A tradição viva pode expressar, em suas manifestações, a persistência de certos padrões de cultura encarnados na conduta dos atores, em forma de usos e hábitos”. No item a seguir, traremos alguns depoimentos de ex-seminaristas da Escola Normal Evangélica, acompanhados de reflexões sobre os discursos dos que participaram como alunos ou professores da vida desta instituição. Sempre que possível, cruzaremos as interpretações oriundas de diferentes fontes.
A Formação de Professores e os Saberes Matemáticos
Na minha escola primária, fui influenciado por um modelo de organização que me auxiliou muito para atuar em escolas unidocentes por alguns anos. Apesar de ter sido uma escola pedagogicamente bastante ‘prussiana’, ela lançou bases para minha formação cultural (Wagner, 2019).
A epígrafe é um fragmento do depoimento de Hermedo Wagner, aluno da primeira turma do curso de formação de professores após a reabertura deste, em 1950. Ele nasceu em Sinumbu (RS) em 1936.
Entre os atores da vida escolar estão os professores de uma época, que permanecem no imaginário de cada um, pois foram, depois dos pais, as principais autoridades no mundo infantil (Benito, 2017). Wagner começa seu relato falando sobre o professor da escola primária, onde ele estudou por seis anos (1944-1949) – o professor Adolfo Dassow, que obteve sua formação no Lehrerseminar em 1923. Wagner, ao falar, extravasa suas emoções e mostra por que admirava seu professor da escola primária:
O Prof. Dassow era um homem sério, culto, abriu meus horizontes para o mundo, dava valor à pesquisa e estimulava a iniciativa no estudo. Cantava muito conosco e sempre acompanhado pelo seu violino. Não dava grandes explicações, mas mostrava caminhos e indicava fontes para leitura e orientação (Wagner, 2019).
As aulas marcantes de Dassov, durante cinco anos, deixaram marcas na formação do depoente, que afirmou ter tomado emprestado de seu professor o modelo para atuar como professor nos anos iniciais, logo que concluiu os estudos na Escola Normal Regional Evangélica. Provavelmente concluiu a escola primária em 1949, pois, em 1950, já se candidatava como aluno do curso de regentes de ensino na Escola Normal Evangélica em São Leopoldo. O ingresso nesta instituição era feito mediante uma prova de admissão. Brito (2018, p. 95), em entrevista realizada com egressos da Escola Normal Evangélica, constatou que havia “[...] uma prova de conhecimentos gerais, de português e de matemática” como condição de acesso.
Wagner, em depoimento, afirmou que:
No curso normal livre de nível ginasial, de 1950 a 1953, não lembro que alguma vez tenhamos usado algum material didático. O programa de conteúdos, sem uso de algum livro, constava de uma revisão das 4 operações básicas, frações, geometria (área e volume), introdução à álgebra, resolução de problemas matemáticos e muito cálculo oral (Wagner, 2019).
Um dos depoimentos de Wagner nos permite inferir que a matemática ensinada na década de 1950 na Escola Normal Evangélica estava mais próxima daqueles conteúdos do curso ginasial do que daqueles do ensino secundário. Ao comentar sobre sua preparação para o ingresso no curso de Pedagogia, em São Leopoldo, Wagner nos diz que a matemática vista no curso normal não era a mesma do curso científico: “Eu nunca ouvi falar na escola normal em seno e cosseno”.
Os cadernos de matemática utilizados nos quatro anos de estudo da Escola Normal Evangélica foram preservados por nosso depoente. A partir deles, pudemos comprovar o que foi narrado por Wagner. Uma análise sobre eles será apresentada neste texto.
Em 1953, a matemática ensinada no primeiro ano do curso de formação de professores, segundo o diretor da escola, equivalia àquela do livro de Stávale. Curiosamente, no Quadro 1, deparamo-nos com um texto escrito numa mistura de línguas: português e alemão.
3. Matemática: Etwa 1. Série ginasial. Nach Stávale. Elementos de Matemática. Grundrechungensarten, Wiederholung und Festigung. Bruecke. |
Tradução: 3. Matemática: algo equivalente a 1asérie ginasial, segundo Stávale, elementos de Matemática, as operações matemáticas básicas, repetição e consolidação, frações. |
Fonte: Documento do Arquivo do Instituto Ivoti: Carta de Hans Naumann, diretor da Escola Normal Evangélica para o prof. Florencio Berger em 7/06/1953.
Uma mudança significativa na orientação pedagógica da nova Escola Normal Evangélica diz respeito aos livros didáticos: os autores alemães de livros didáticos (como Otto Büchler) deixaram de ser adotados, e o professor de matemática seguia a orientação de Stávale.
Todos os que passaram pela escola recordam de seus professores, sendo que alguns marcaram mais do que outros, mas aquele professor severo dificilmente é esquecido. Assim, Wagner prossegue, recordando de sua formação de professor e referindo quais foram seus dois professores mais marcantes: o professor de matemática e o de canto, respectivamente, Helmut Kopittke e Wilhelm Weihmann. Kopittke foi egresso do Lehrerseminar, na turma de 1929 e, posteriormente, estudou Psicologia na Universidade de Yena, na Alemanha. Ambos os professores foram referência para Wagner, que aprendeu a gostar de matemática, sua disciplina favorita. Foi com Kopittkte que ouviu pela primeira vez o nome de Piaget. A falta de maturidade, nos seus 16 anos, foi, segundo ele, um impedimento para que compreendesse mais a fundo esse psicólogo. Isso só viria a ocorrer quando ele cursou Pedagogia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras.
Relembrando sua formação na Escola Normal Evangélica, Hermedo Wagner afirmou que Koppikte e Weihmann “[...] jamais nos indicaram um livro como base do nosso estudo. Fazia-se muita pesquisa de biblioteca e de exercícios” (Wagner, 2019). Essa nova orientação de não usar livros didáticos difere radicalmente daquela seguida no DELS, em que os livros eram amplamente utilizados (Silva, 2018). Por isso, vamos mostrar posteriormente, no presente texto, que o depoente cometeu um equívoco.
Segundo o depoente Wagner, Adolfo Dassow é o segundo da esquerda para a direita na quarta fila, com terno claro e gravata de listras horizontais (Figura 1). Segundo Hoppen (1991), Helmut Kopittke é o quarto na quarta fila.
O currículo do curso de regentes de ensino tinha a duração de 4 anos. A Escola Normal Evangélica procurava adequar-se ao previsto em lei, como pode ser visto no Quadro 2. Entretanto, não deixava de ter suas particularidades, como as disciplinas de línguas estrangeiras, religião, estenografia e escrituração comercial, assim como a aprendizagem de instrumentos musicais.
Grade Curricular Curso Escola Normal Evangélica | Lei Orgânica do Ensino Normal Decreto-lei n. 8.530 de 2 de janeiro de 1946 |
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Português, Matemática, História, Geografia, Ciências Naturais, Didática e Prática de Ensino, Psicologia, Desenho, Trabalhos Manuais, Ginástica, Música, Religião, Alemão, Pedagogia, Harmônio, Violino, Caligrafia, Inglês, Francês, Estenografia e Escrituração Comercial | Português, Matemática, Geografia Geral, Ciências Naturais, Desenho e Caligrafia, Canto Orfeônico, Trabalhos Manuais e economia doméstica, Educação Física, História Geral, Noções de anatomia e fisiologia humanas, História do Brasil, Noções de Higiene, Psicologia e Pedagogia, Didática e Prática de Ensino |
Fonte: Atestado de conclusão de curso de Hermedo Wagner (esq.) e Brito (2018, p. 174).
Os documentos retratando a vida escolar dos alunos mostram que as disciplinas para a formação pedagógica ocorriam nos dois últimos anos (Quadro 3). Quanto à Prática de Ensino, esta era realizada na escola primária Instituto Rio Branco. Um maior detalhamento da distribuição das disciplinas ao longo dos quatro anos de ensino é mostrado no Quadro 3.
Série | Disciplinas |
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1a | Religião, Alemão, Português, Matemática, História Geral, Geografia Geral, Ciências Naturais, Desenho, Ginástica, Música, Harmônio, Violino. |
2a | Religião, Alemão, Inglês, Português, Matemática, História Geral, Geografia Geral, Ciências Naturais, Desenho, Ginástica, Música, Harmônio, Violino, Trabalhos Manuais, Caligrafia. |
3a | Religião, Alemão, Inglês, Português, Matemática, História do Brasil, Geografia do Brasil, Ciências Naturais, Pedagogia, Psicologia Educacional, Didática e Prática de Ed. Primária, Ginástica, Música, Harmônio, Violino, Trabalhos Manuais, Caligrafia, Datilografia. |
4a | Religião, Alemão, Inglês, Português, Matemática, Ciências Naturais, Pedagogia, Psicologia Educacional, Didática e Prática de Ed. Primária, Ginástica, Música, Harmônio, Violino, Estenografia, Escrituração. |
Fonte: Boletim de Anibaldo Fiegenbaum 1952-1955 (Arquivo IEI).
A escola seleciona os saberes e as disciplinas que compõem o currículo e também define os valores que quer transmitir. Neste caso, a valorização da música é uma herança da tradição germânica. Wagner lembra de seu professor primário Dassov tocando violino e cantando durante as aulas (Silva, 2019a).
Vistas numa perspectiva histórica, Benito (2017) considera que as relações da escola com a cultura são complexas. Concordamos com o autor com relação a essa complexidade. No caso do antigo Lehrerseminar, com a Nacionalização, houve a intenção de apagar os vestígios culturais alemães da instituição – proibindo que o ensino fosse ministrado em língua alemã e que os livros didáticos alemães fossem utilizados. Ao se reestruturar, a nova Escola Normal adequou-se a essas exigências, mas a língua alemã não desapareceu, apenas ficou enfraquecida, aparecendo na proposta curricular como língua estrangeira. Os livros didáticos alemães que eram vetores fortes de propagação da cultura alemã foram excluídos do ensino.
A imagem da Figura 2 mostra a primeira turma de formandos de 1953. Diferentemente de outras escolas, em que os alunos posam com togas e chapéus, a fotografia registra alunos uniformizados e professores com seus ternos, usados para ministrarem aulas. Foram identificados pelo depoente Hermedo Wagner, na fotografia, sentados da esquerda para a direita: Silvia Suffrian, Irmgard Leistner, Helmuth Koppikte (professor de matemática), Hans Günter (diretor), Edith Winkel, Brunilde Werkheuser. Em pé, na mesma ordenação: não identificada, Werner Käser, Edemar Treter, Werno Schuck, Hermedo Wagner, Lilly Schewe.
A fotografia retrata o contexto de uma época, ela expressa valores culturais. No caso da fotografia 2, na posição central da imagem estão dois personagens importantes na hierarquia escolar: o diretor e um professor da turma. O diretor era a figura mais importante nos cursos de formação de professores, segundo o modelo alemão, pois ele era o responsável pela formação pedagógica do curso. Os professores estão sentados, enquanto duas alunas estão em pé atrás. Detentores de conhecimento tem poder. Os professores ocupam um lugar bem determinado à frente, no centro da fotografia. Todos os alunos estão uniformizados, os professores usam ternos claros e não sorriem, em uma demonstração de seriedade, que talvez o momento exigisse. Nota-se, diferentemente do que ocorria nas demais escolas normais públicas do Rio Grande do Sul, a presença masculina, já que dos dez formandos, quatro eram rapazes. Nos anos iniciais do funcionamento do Seminário Alemão Evangélico de Formação, ocorria o oposto: a maioria dos alunos eram rapazes. A escola normal formava à época professores para atuarem nas escolas rurais, e esse cargo, seguindo a tradição alemã, poderia ser ocupado tanto por moças quanto por rapazes.
A maioria dos professores eram alemães ou ex-alunos de origem alemã que haviam estudado no Seminário Alemão Evangélico de Formação de Professores, exceção feita à docência da disciplina de Português, que era exercida por uma brasileira.
Em 1957, Wagner iniciou sua atuação como professor no curso de Admissão à Escola Normal, que servia para preparar os alunos para o exame de ingresso. Enquanto isso, cursava a Escola Normal 1o de Maio em Porto Alegre, com vistas a obter uma formação de ensino secundário. Em 1960, ingressou no curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Cristo Rei3, em São Leopoldo.
O que os cadernos (Figura 3) do seminarista Hermedo revelam sobre os saberes matemáticos ensinados na instituição na década de 1950? Como o depoente não recorda ter utilizado um livro-texto nas aulas, será que os cadernos trarão subsídios que mostrem o contrário?
As anotações no caderno de Hermedo, em 16 de outubro de 1951, mostram a utilização de um livro, pois o tema de casa para esse dia indicava o problema 12 da página 149, os problemas 2 e 3 da página 150 e, no dia 17 do mesmo ano e mês, os exercícios 5 e 6 das páginas 151. Como o diretor Hans nos havia fornecido uma pista de autor de livro didático, citando o nome de Stávale, buscamos no livro do 2o ano ginasial deste autor os problemas referidos (Figura 4). Confirmando a suspeita, lá estavam os problemas enunciados (Stávale, 1948).
Fontes: Extrato da p. 150 do livro Elementos de Matemática de Jacomo Stávale, segunda série do curso ginasial, 1948 e Extrato do Caderno Hermedo Wagner em outubro de 1951.
Os saberes presentes nos cadernos envolvem conteúdos de Aritmética, Álgebra e Geometria e estão listados no Quadro 4.
1oano1950 Aritmética, introdução à álgebra; geometria) 162 páginas | Revisão da Aritmética: quatro com números inteiros e fracionários. Problemas aplicados à compra e venda, número de alunos, distâncias percorridas, envolvendo as 4 operações de números inteiros e fracionários. A letra xcomo valor desconhecido. Problemas de cálculo de perímetro e área de quadriláteros. Expressões numéricas. Letras xe ycomo duas desconhecidas a serem calculadas em operações e problemas. Divisibilidade: Máximo divisor comum de dois números, mínimo múltiplo comum de dois ou mais números. Problemas de torneiras que enchem tanques. |
2oano1951 Unidades de medida, geometria Dois cadernos com 146 e 70 páginas | 1ocaderno: Sistema métrico decimal: transformações de unidades. Sistema monetário. Problemas aplicados. Problemas de áreas de quadriláteros e área lateral e volume de prismas (cubo, paralelepípedo). Circunferência: raio, arco, comprimento. Problemas aplicados à circunferência. Problemas sobre velocidades. Raiz quadrada. 2ocaderno: média aritmética; operações com frações; uso do xcomo desconhecida; monômios e operações com eles; proporções e propriedades; problemas aplicados variados incluindo medidas de terrenos, cálculo de áreas e volumes, velocidades. Porcentagens. Regra de três. |
3oano1952Álgebra e Geometria Dois cadernos com 61 e 34 páginas | 1ocaderno: Números relativos. As quatro operações com números relativos. Expressões numéricas. Álgebra: polinômios, operações. Raiz quadrada e raiz cúbica. Volume de cubo e paralelepípedo. Binômio. Expoentes negativos. 2ocaderno: equações do 1ograu. Raiz cúbica. Cálculo de volume de cubo. Valor numérico de expressões algébricas. |
4oano1953Álgebra e Geometria Caderno com 160 páginas | Álgebra: expressões algébricas. Equação do 2ograu: relações entre coeficientes e raízes. Resolução de equações do 2ograu. Sistemas de equações: 3 equações e 3 variáveis. Recapitulação da álgebra: equações envolvendo radicais, sistemas de equações. Altura de um triângulo. Geometria dedutiva: teoremas sobre perpendicularidade, ângulos retos, ângulos suplementares, ângulos opostos pelo vértice, bissetrizes, mediatriz, postulado das paralelas, paralelismo, ângulos formados por duas retas cruzadas por transversal, soma dos ângulos internos de um triângulo, igualdade de triângulos, paralelogramo, losango, trapézio, mediatrizes de um triângulo, alturas de um triângulo, Teorema de Tales, Teorema de Pitágoras.Dízimas, geratriz. |
Fonte: Cadernos do acervo particular de Hermedo Wagner.
Há fortes indícios de que o professor da turma, professor Helmut Kopiktte, tenha usado e adotado os livros de Jacomo Stávale, rompendo assim com a tradição de recomendação de livros de autores germânicos ou de descendentes de alemães. Apresentamos a seguir (Figura 5) alguns exemplos que evidenciam a utilização por Kopiktte do referido livro (Stávale, 1954).
Fontes: Livro Jacomo Stávale, Problemas de matemática, primeira série ginasial, 1954, p. 59 e Caderno (Wagner, Hermedo 1950).
O segundo exemplo mostra um problema aritmético em que é solicitado encontrar dois números que satisfaçam uma condição dada. O aluno resolve o problema algebricamente (Figura 6).
Transferências Culturais
As transferências culturais, objeto de investigações de vários pesquisadores como Espagne (1999), Dittricht (2013), Fontaine (2014), Silva (2015), Matasci (2016), são utilizadas para entender as interações entre culturas e sociedades numa dimensão histórica. “O termo transferência cultural marca a preocupação de falar simultaneamente de vários espaços nacionais, de seus elementos comuns, sem justaposição das considerações sobre um e outro para confrontá-los, compará-los ou simplesmente acumulá-los (Espagne, 1999, p. 1). Para Matasci (2016), professores e livros didáticos são, entre outros, agentes culturais que atuam como meios de transferências culturais. A ideia da importância da atuação de indivíduos que, deslocando-se de um país a outro, transferem conhecimentos, é reforçada por Burke (2004), que acredita que, para que tal aconteça, mais valioso que transporte de cartas ou livros é o movimento físico dos seres humanos.
Antes mesmo de concluir o curso de Pedagogia, o normalista Hermedo Wagner envolveu-se na docência de Didática da Matemática na Escola Normal Evangélica. Não se sentindo preparado para a tarefa, buscou ajuda, consultando livros da biblioteca da instituição. Em seu depoimento, recorda ter usado o livro de Thorndike4. Alguns anos depois, no curso de Pedagogia e no Seminário Superior de Pedagogia em Worms, recebeu reforços quando estudou mais aprofundadamente as ideias de Piaget. Sobre esse tema, escreveu um texto que usava em suas aulas de didática da matemática, intitulado Normas metodológicas para aprender matemática segundo a teoria de Piaget (Wagner, 1980).
A Escola Normal Evangélica, com sua herança germânica, mantinha um intercâmbio pedagógico com a Alemanha. Assim, Wagner recebeu auxílio financeiro para estudar por um ano na Escola Superior de Pedagogia Westendshule, em Worms. Segundo ele: “Lá foi aberto meus olhos para uma matemática diferente”. Aqui no Brasil, percebia que os professores estavam preocupados que os alunos decorassem a tabuada: “Lá tive contato com outra prática, inclusive em escolas onde estagiei. Procurei desenvolver a compreensão, conforme Piaget” (Wagner apud Silva, 2018).
No caso do depoente Hermedo Wagner, percebemos que, ao deslocar-se de seu país de nascimento para um centro com tradição em pesquisas pedagógicas, recebeu novos saberes e, a partir de motivações recebidas na Alemanha, apropriou-se de um novo conhecimento pedagógico e o utilizou no Brasil.
Depois de vivenciar essas experiências, constatou que o ensino do seu antigo professor Weihmann era muito prussiano – baseado em seguir regras. Assim, a matemática e didática da matemática que começou a ensinar baseavam-se nas ideias de Piaget e também, segundo ele, do nosso amigo Paulo Freire (Silva, 2019a).
Não apenas as experiências na Alemanha, mas também sua aproximação com educadores em eventos brasileiros – como o 1o Congresso Brasileiro de Ensino Normal no Rio de Janeiro, em 1966, e do curso com Dienes, de que participou no Instituto de Educação General Flores da Cunha em 1972 – provocaram mudanças no seu modo de entender e ensinar matemática. Além disso, participou de outros cursos promovidos pela professora Esther Pilar Grossi, no GEMPA e teve acesso a obras que começaram a ser publicadas à época, como as do educador brasileiro Amaral Fontoura, por ele referidas.
As ideias contidas no texto escrito por Wagner – Normas metodológicas para aprender matemática segundo a teoria de Piaget deixam transparecer a sua compreensão e apropriação do pensamento piagetiano: “Todo problema proposto deve levar o aluno que aprende matemática a uma ação real, portanto, concreta quando for uma ação sensório motora, ou uma ação representada quando for imaginada, mas ambas são reais” (Wagner, 1980). Ele prossegue chamando a atenção para a importância da ação: “A Matemática se aprende com movimento, com ação, com operações reais [...] Preparar o aluno para a aprendizagem é ativar seus esquemas de ação”.
Na entrevista, o depoente chamou a nossa atenção para a necessidade de uma prática em que os alunos estejam envolvidos em ações. Em seu texto sobre Metodologia escreveu:
Frisamos que na metodologia da matemática deve-se provocar ações, pois não se ensina com figuras (figurinhas) estáticas em flanelógrafo, mas com atividades; não se usa resultados estáticos resultantes de ações que o aluno não praticou, mas o aluno que aprende pratica as ações. Concluímos que objetos manipuláveis são mais adequados que cartazes fixos. Enquanto o aluno não tem o poder de manipular mentalmente o ensino matemático deve ser feito com a manipulação de objetos e, antes dos 12 anos (segundo Piaget), a criança normalmente não tem maturidade mental para ‘manipular mentalmente’ (Wagner, 1980, grifos do autor).
Nessa mesma entrevista, forneceu exemplos de como orientava seus alunos de didática da matemática a ensinar a tabuada traçando um desenho no papel. O desenho da Figura 7 foi feito pelo depoente durante a entrevista. Iniciou explicando que sugeria o uso de varetas de madeira que deveriam estar dispostas conforme o desenho, caso fosse explicada a multiplicação de 3 vezes 4. Tomaria varetas colocando-as de maneira cruzada; após os alunos deveriam contar quantas vezes as varetas se tocavam, ou seja, encontrar e contar todos os pontos de intersecção.
Outro exemplo dado para o ensino da tabuada foi a formação de pares para dançar. A partir de uma certa quantidade de moças e rapazes, descobrir quantos pares diferentes poderiam ser formados. Em seu depoimento, ele destacou: “Isso são coisas que aprendi na Alemanha. [...]. A minha base de matemática foi a partir do curso da Alemanha. Eu trouxe um livro de didática da Alemanha. [...]. A matemática que eu comecei a ensinar foi baseada nos princípios de Piaget” (Wagner, 2019).
Invocando um fragmento de seu texto Metodologia da Matemática, o depoente tentou explicitar como se apropriou das ideias de Piaget e Zoltan Dienes:
[...] criança aprende matemática repetindo, portanto essa ‘caminhada’ do concreto (real) ao abstrato. Eu diria ‘na vida da criança se repete a evolução da humanidade’ assim como a humanidade descobriu os processos e as diversas fórmulas, da mesma forma a criança deve ser orientada para fazê-lo, partindo de uma história, de um problema, de uma situação social concreta e vivencial, para chegar ao axioma, isto é, às regras, às fórmulas, enfim, à sistematização, que é uma ‘expressão abstrata’ interiorizada no pensamento do aprendiz (Wagner, 1980).
A fotografia na Figura 8 ilustra uma cena de sala de aula, na qual aparece um jovem professor, de terno, em frente à lousa. O espaço corresponde a uma sala de aula moderna, com mesas individuais, grande lousa e algumas alunas numa posição de participantes e outros de ouvintes. Destaca-se, na fotografia, o grande ábaco à frente da lousa, um relógio sobre uma mesa e a lousa com a representação em giz de um quadro valor de lugar. Provavelmente, a aula era sobre o ensino do sistema decimal e o professor com a mão estava indicando a posição das dezenas. Na imagem, aparece o material didático, como o ábaco e o relógio. Também aparece, à esquerda do professor, outro objeto de tamanho grande, que parece ser um quadro (talvez um flanelógrafo). Sobre as mesas dos alunos, vê-se muitos livros e cadernos.
Na lousa vê-se a data registrada. O desenho do quadro valor de lugar está desenhado em perspectiva. Há indícios de que as alunas estejam realizando alguma atividade prática, uma vez que estão em pé com um papel na mão. Os alunos não estão uniformizados, e parece que há pelo menos dois rapazes sentados. Os cabelos claros dos alunos, neste contexto, nos trazem indícios de que eram descendentes de alemães.
Tradicionais fotografias do professor com seus alunos foram preservadas como registros de uma época vivida em função da docência, como parece ter sido o caso do depoente Hermedo. Algumas fotografias registram momentos menos formais, como a da Figura 9, que mostra uma turma de alunos do terceiro ano normal da Escola Normal de Ivoti, onde os rapazes são a maioria, ao contrário do que aconteceu em outras escolas normais do Estado, em que o houve uma feminilização dos cursos de formação de professores primários.
Os depoentes Erni Rohsig e sua esposa Isoldia Rohsig estudaram de 1959 a 1963 na Escola Normal Evangélica. Relataram o ingresso na escola e o exame de admissão realizado: “Em São Leopoldo havia Exame de Admissão. Era uma prova classificatória que envolvia conhecimentos da Escola Primária” (Silva, 2019b). Entre os ex-professores de matemática relembrados, está a professora Yolanda, que, segundo eles, dava muita ênfase ao ensino dos números relativos. Mas o personagem marcante, que ficou no imaginário construído pelos depoentes, foi Ernest Sarlet, que segundo eles foi
[...] um grande psicólogo, francês, exilado da Guerra, deu-nos a lógica do processo da aprendizagem de uma criança. Explorava a necessidade em observar o desenvolvimento mental para qualquer área de estudo. Não especificamente, na área de Matemática. Ele enfatizava que é preciso respeitar as informações trazidas pelas crianças, do ambiente em que vivem com suas crenças e hábitos (Silva, 2019b).
Na avaliação do casal Rohsig, o curso trazia muita teoria e pouca prática, sendo o conteúdo matemático pouco direcionado para a aplicação em sala de aula. Os teoremas no quadro verde foram recordados como parte desses saberes matemáticos teóricos. Entretanto, apesar das críticas, eles recordam terem usado o livro intitulado O ensino da Matemática pela compreensão, uma tradução em língua portuguesa dos autores Foster Grossnickle e Levy Brueckner.
Arrematando os Laços
Após o final da II Guerra Mundial, buscando manter-se em funcionamento, uma escola de formação de professores de confissão religiosa evangélica, para atender à falta de professores titulados nas comunidades alemãs e com a liderança do Sínodo Riograndense, mudou radicalmente a estrutura que mantinha até então, enquanto Seminário Alemão Evangélico de Formação de Professores. Mas o que mudou não foi apenas isso: antes, o ensino na instituição era ministrado em língua alemã por professores em sua maioria alemães; a partir de 1950, a nova escola implementou uma proposta curricular que atendia à legislação brasileira e, portanto, emitia certificados que habilitavam seus egressos a assumir a docência em qualquer escola. Abandonou a antiga designação de Lehrerseminar, passando a denominar-se Escola Normal Evangélica e adotou um currículo que atendia ao disposto na Lei Orgânica do Ensino Normal. As mudanças foram grandes: livros de brasileiros substituíram os antigos manuais alemães, o currículo observava o previsto em Lei, mas manteve a língua alemã como língua estrangeira. Entretanto, os primeiros professores continuaram sendo, em sua maioria, alemães, embora, progressivamente, tenham sido substituídos por brasileiros. Independente disso, a parceria com a Alemanha nunca deixou de existir e a Escola continuou enviando alunos para receberem uma complementação de estudos em escolas superiores de Pedagogia daquele país, como o caso do depoente Hermedo Wagner. Esta estratégia garantia uma aproximação com a pedagogia alemã. Os viajantes traziam em sua bagagem livros didáticos alemães além de uma experiência com práticas em escolas alemãs. Assim, de alguma maneira, mantinha-se um vínculo estratégico entre os dois países.
Os saberes matemáticos ensinados nos primeiros anos do curso normal pouco diferiam daqueles de outras escolas normais regionais, envolvendo os conteúdos de Aritmética, Álgebra e Geometria. Quando a Escola Normal Evangélica passou a ser uma escola de ensino secundário, ocorreram algumas alterações no ensino ministrado, as quais não foram contempladas neste estudo. O depoente Wagner relatou que a didática da matemática, que lecionou por muitos anos, foi muito influenciada por sua experiência na Alemanha, pelo aprofundamento na psicologia da educação de Piaget e nos contatos com outros educadores brasileiros. A aproximação da Escola Normal Evangélica com o Instituto de Educação General Flores da Cunha ocorreu quando o referido professor começou a frequentar os cursos abertos aos professores lá oferecidos. Assim, novos personagens do cenário educacional internacional lhe foram apresentados e o contato direto com Zoltan Dienes possibilitou que o professor levasse para a Escola Normal Evangélica as ideias pedagógicas que circulavam nas grandes metrópoles.