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Educação e Realidade

versão impressa ISSN 0100-3143versão On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.47  Porto Alegre  2022

https://doi.org/10.1590/2175-6236115965vs01 

OUTROS TEMAS

Formação Continuada de Professoras: o espaço-tempo da escola infantil

IUniversidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), Ijuí/RS – Brasil


RESUMO

A formação docente no espaço-tempo das escolas infantis é o tema central deste artigo, que objetiva questionar e compreender a maneira como vêm sendo pensada a formação das professoras e o cotidiano das escolas infantis. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa com abordagem qualitativa, exploratória e de levantamento. A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas com as professoras e auxiliares da escola em estudo. As principais fontes teóricas utilizadas foram Foucault (2021; 2014); Freire (2019); Rousseau (2004); Santos (2018); Vigotski (2000), entre outros. As crescentes mudanças sociais geradas pelo processo de globalização levam a refletir sobre essa faixa etária, que muitas vezes acaba esquecida dessas transformações.

Palavras-chave Educação Continuada; Educação Infantil; Espaço-Tempo

ABSTRACT

Focusing on the teacher education in the space-time of preschools, this paper seeks to investigate and understand how teacher education and the daily life of early childhood schools have been thought out. Based on a qualitative and exploratory approach, the research uses data collected by interviews with school teachers and aides. Foucault (2021; 2014), Freire (2019), Rousseau (2004), Santos (2018), Vigotski (2000), among others make up its theoretical background. The growing social changes generated by globalization lead us to reflect on this age group, which is often ignored within these transformations.

Keywords Continuing Education; Early Childhood Education; Space-time

Introdução

Atualmente, as dúvidas e as inquietações nos fazem refletir e pensar em possibilidades de intervir na realidade, não apenas para transformá-la, mas para compreender as condições e as possibilidades que levam à condução das práticas no cotidiano das instituições responsáveis pela educação infantil (Foucault, 2014). O interesse em pesquisar sobre a formação de professoras1 da Educação Infantil se deve ao fato de acreditarmos na possibilidade de transformar a prática educativa, vislumbrando uma escola infantil que garanta dignidade tanto para quem educa, quanto para quem é educado. Esta perspectiva de pesquisa tem em seu horizonte o objetivo de compreender as relações estabelecidas no contexto escolar e as condições oferecidas para que os professores possam dar continuidade ao processo de educação para o exercício da docência. O estudo também visa perceber a importância atribuída pelas professoras à educação e como produzem os espaços-tempos do cotidiano escolar em meio às relações de poder e saber constituidoras das instituições educativas.

Diante de tantos outros estudos preocupados em problematizar o cotidiano das escolas infantis, é o envolvimento dos sujeitos com a pesquisa que torna singular este trabalho. Adentrar esse cotidiano revelou novas perspectivas de reflexões sobre a temática em desenvolvimento. A diversidade cultural permeia o cotidiano escolar e leva a perceber que não há como conceber, em nossa sociedade, a supremacia de uma cultura ou de uma infância, pois se está imerso em “culturas e infâncias” que possuem perspectivas de vida e de espaço-tempo muito diferentes umas das outras.

Metodologia

Esta pesquisa possui abordagem qualitativa, que é a mais indicada para estudos de campo, como esse, uma vez que não há fórmulas ou receitas prontas para se seguir, a análise dos dados na pesquisa qualitativa tem muita relação com o estilo do pesquisador. Também se identifica como uma pesquisa exploratória, pois possui como objetivo proporcionar familiaridade com um problema, para tanto este estudo se apoiou em levantamentos bibliográficos e entrevistas. Trata-se de uma pesquisa de levantamento que se valeu de uma amostra da população em estudo, a coleta de dados foi realizada por meio de entrevista (Gil, 2008).

Entre tantos procedimentos metodológicos possíveis, aqui se optou por um capaz de favorecer a busca de respostas aos questionamentos levantados, cabe salientar que as entrevistas foram realizadas com todas as professoras e profissionais de apoio da escola, não se limitando a apenas uma turma. O processo de pesquisa teve início em setembro de 2005, após ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, todas as autorizações necessárias foram solicitadas a Secretaria de Educação do município em questão. As autorizações foram concedidas no mês de outubro de 2005, quando os contatos e entrevistas na escola tiveram seu início.

As entrevistas foram concluídas no final de dezembro de 2005, iniciando então o processo de transcrições e análises, fase em que foi reforçada a exigência de seriedade e comprometimento ético da pesquisadora, visando à possibilidade de contribuir de forma significativa com o coletivo de pessoas que estão envolvidas com as questões socioeducativas. A escola de Educação Infantil em estudo será caracterizada a seguir.

A Escola de Educação Infantil

A escola de Educação Infantil em estudo localiza-se no estado do Rio Grande do Sul e pertence à rede municipal de ensino. A pesquisa de campo foi realizada no ano de 20052, quando a instituição contava com 51 crianças na faixa etária de 0 a 6 anos de idade, em turno integral.

O espaço físico da escola estava organizado da seguinte maneira: no corredor de entrada havia uma sala pequena na qual eram guardados os materiais didáticos, na sequência a sala da direção e o banheiro para os adultos. Passando o corredor, visualizava-se um espaço maior, que não era coberto, no qual os/as alunos/as brincavam quando não chovia e os banheiros para sua higiene. Em torno dele estavam as quatro salas, divididas em: berçário (0 a 2 anos), com 16 alunos/as e 2 profissionais de apoio por turno; maternal A (2 a 3,5 anos), com 20 alunos/as e 2 profissionais de apoio por turno; maternal B (3,5 a 4,5 anos), com 17 alunos/as, 1 profissional de apoio e 1 professora (apenas no turno da manhã); e o jardim A (4,5 a 6 anos), com 18 alunos/as, com 1 profissional de apoio no turno da manhã e 1 professora no turno da tarde.

Os espaços eram bem organizados e limpos, porém alguns aspectos legais, regulamentados pelo Parecer n. 398/2005, do Conselho Estadual de Educação (Rio Grande do Sul, 2005), relacionados à organização das turmas na Educação infantil merecem mais atenção, o item 5 deste Parecer estabelece um número máximo de alunos/as da educação infantil por professor, o que, no momento da pesquisa, não era respeitado pela escola. Nesse mesmo item, o referido Parecer afirma que “nenhuma turma pode funcionar sem a presença de professor habilitado, na forma da lei” (Rio Grande do Sul, 2005, p. 4).

A escola ainda não possuía pracinha para os/as alunos/as brincarem. Em torno da escola existia espaço para a construção de uma praça e brinquedos, todavia, enquanto não eram construídos, o momento de brincadeiras era realizado em uma praça em frente à escola, pertencente ao bairro. Por mais que esta praça trouxesse muitos benefícios aos alunos/as, é importante considerar o Parecer n. 398/2005, que estabelece os requisitos mínimos para oferta da Educação Infantil a partir dos 3 anos, uma das exigências regulamentadas no item 8.2, inciso X, é a seguinte: “praça de brinquedos provida de cerca de proteção para uso exclusivo dessa faixa etária” (Rio Grande do Sul, 2005, p. 7).

Fensterseifer (2005), refletindo sobre as necessidades que os seres humanos têm de persistir e acreditar na escola como instituição capaz de se recriar, questiona:

Por que precisamos de instituições? Arriscando uma resposta: porque precisamos de certezas e elas as objetificam. Mas, por que precisamos de certeza? Porque somos seres incertos e esta incerteza é o ‘espírito’, é a anima (alma) das instituições que sobrevivem porque nunca estão inteiramente calcificadas (permanecem porque mudam)

(Fensterseifer, 2005, p. 155).

Por esse motivo, a escola é considerada um lugar privilegiado de produção de saberes, no qual as pessoas estão em interação. É esse processo de socialização de culturas de todos os gêneros que permite pensar a escola para além de seu espaço físico, visto como resultado de determinadas decisões que envolvem relações de poderes e interesses. Cercado por limitações (muros, grades e portões), todo o ambiente escolar pressupõe saberes e conhecimentos que, ao mesmo tempo em que trazem certa segurança, também levam a incertezas e dúvidas que incitam a pesquisa em busca de respostas capazes de satisfazer anseios pessoais e sociais.

A escola de educação infantil, em seus fazeres cotidianos, não está fora de um contexto de relações de poder-saber que constituem os sujeitos. Para Foucault (2021), o poder não é um objeto natural, é uma prática social e, como tal, é constituída historicamente. Assim, a escola infantil é o local em que, historicamente, discursos sobre a educação das crianças foram e vão sendo reproduzidos.

Estes escritos correspondem à leitura de uma realidade educativa particular e única, mas também contribuem para pensar as instituições de educação infantil contemporâneas, levando em consideração as semelhanças que podem vir a contemplar as representações de crianças e infâncias no interior das escolas, das famílias e no meio social.

Docentes: a formação em questão

Falar da escola de educação infantil é pensar em sujeitos que interagem mediados por brinquedos, brincadeiras e também por pessoas. Então, para que seja possível compreender as relações educativas que são estabelecidas em determinado contexto escolar, é fundamental conhecer a formação e organização dos recursos humanos da escola. Em relação ao quadro docente, é pertinente destacar algumas particularidades referentes às exigências de formação para desenvolver a atividade com crianças nas creches ou pré-escolas do município em análise.

Por muitos anos, a seleção, realizada através de concurso público, exigiu dos concorrentes um grau mínimo de estudo; por exemplo, para concorrer às vagas de profissional de apoio de creche. A exigência era o ensino fundamental e médio; para o concurso como professora, a exigência mínima era o ensino médio, na modalidade Normal. Assim se organizou o quadro docente de muitas escolas infantis, não apenas do município em análise, pois essa estrutura abrange toda a região, o Estado e, talvez, o país.

Como se pode observar, o corpo docente é dividido entre professoras e profissionais de apoio. Assim como as palavras expressam diferenças, também as ações revelam a divisão da atividade que realizam no cotidiano da escola. As profissionais de apoio estão presentes em maior número e também são aquelas que ficam mais tempo com as crianças. No momento da realização da pesquisa as profissionais de apoio eram chamadas de atendentes, pois realizaram o concurso para serem “atendentes de creche” e não possuem a formação exigida para atuarem como professoras. Sobre esse aspecto, é importante ressaltar que o município já estava reorganizando os critérios para realização de concursos públicos na área da educação infantil e atualmente, busca atender as exigências legais previstas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996), que estabelece como formação mínima o Magistério, modalidade Normal, em nível médio. O cargo de atendente foi extinto através de lei municipal, porém, as profissionais concursadas como atendentes de creche tiveram seus direitos mantidos e garantidos até a aposentadoria.

Fato interessante é que, quanto menor o nível de escolarização da profissional de apoio, menor a idade das crianças que ficam sob sua responsabilidade. Por exemplo, as crianças do berçário, pela manhã, são atendidas por duas profissionais de apoio que não possuem o ensino fundamental completo; à tarde, apenas uma possui o curso Normal em nível médio (Magistério). Assim como as crianças avançam na idade, também aumenta o nível de escolarização das pessoas responsáveis por elas. Apenas o Jardim A conta, no período da tarde, com uma professora que possui curso superior - Licenciatura Plena em Pedagogia.

A fase pré-escolar tem importância decisiva para o desenvolvimento das habilidades sociais, afetivas, emocionais e motoras das crianças. São momentos em que os estímulos e a interação com outras crianças e com os adultos possibilitam a compreensão do mundo ao redor da criança, favorecendo sua aprendizagem. Vigotski (2000) publicou uma série de pesquisas sobre o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, ele mostra que os processos que culminam na formação de conceitos começam na fase mais precoce da infância e afirma:

Pesquisas recentes acerca das primeiras formas de comportamento da criança e das suas primeiras reações à voz humana (realizadas por Charlotte Bühler e seu grupo) mostram que a função social da fala já é aparente durante o primeiro ano, isto é, na fase pré-intelectual do desenvolvimento da fala. Nessa fase, encontramos um rico desenvolvimento da função social da linguagem. Essas investigações mostraram igualmente que as risadas, o balbucio, os gestos e os movimentos são meios de contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança

(Vigotski, 2000, p. 130).

As particularidades do corpo docente, percebidas nessa realidade educativa, revelam a necessidade de refletir sobre a organização desse espaço-tempo, no qual as crianças passam a maior parte das horas e dos dias. Há que se considerar, também, que mesmo com poucos conhecimentos e sem a formação exigida para realizar as atividades com as crianças nas creches e pré-escolas, as profissionais de apoio afirmam seu lugar de educadoras devido aos saberes produzidos com sua experiência ao longo do tempo. Porém, é preciso considerar a importância da formação inicial e continuada dos responsáveis pelas crianças nos contextos das escolas infantis, levando em consideração que a atividade é desenvolvida com e por sujeitos.

Escola Infantil: educadoras, professoras ou tias?

O predomínio da mulher nas escolas é um fato, ainda mais quando se trata da educação infantil. Por esse motivo, os saberes necessários para educar e cuidar as crianças nas escolas podem parecer implícitos, tendo em vista o papel desempenhado pelas mulheres cotidianamente, olhadas como mães, avós e tias. Pensando nessas questões e também nas relações e funções destinadas a homens e mulheres, as reflexões em relação ao gênero parecem explicar melhor o lugar social destinado a cada um. Referindo-se ao conceito de gênero, Louro (2004, p. 23) afirma:

O conceito passa a exigir que se pense de modo plural, acentuando que os projetos e as representações sobre as mulheres e homens são diversos. Observa-se que as concepções de gênero diferem não apenas entre as sociedades ou os momentos históricos, mas no interior de uma dada sociedade, ao se considerar os diversos grupos

(étnicos, religiosos, raciais, de classe).

Com esse conceito é possível compreender a amplitude de fatores que envolvem a representação da mulher no mercado de trabalho e como, historicamente, foi sendo construída e aceita a definição de papéis e imagens que estabelecem padrões, distinguindo e separando homens, mulheres e crianças. A escola é justamente o espaço-tempo em que as diferenças de todos os gêneros são sentidas e vividas, desde a forma de conceber os professores/as, as crianças e as famílias, enfim os sujeitos que constituem o fazer educativo, de acordo com Louro (2004, p. 94):

Se, por um lado, práticas e arranjos de ensino sugerem algumas continuidades no processo educativo escolar; por outro, certas modificações indicam possíveis descontinuidades ou rupturas. Magistério e escola, como atividades ou instituições sociais, transformam-se historicamente. Os sujeitos que circulam nesse espaço se diversificam e a instituição talvez seja, sob vários aspectos, uma outra instituição. Entre as mudanças que marcam, de forma mais evidente, esse processo de transformação está a feminização do magistério

(grifo do autor).

Historicamente, as mulheres foram educadas para desempenhar a função de esposas e mães, responsabilizando-se pelas atividades domésticas, enquanto o homem, como provedor, responsabilizava-se pelo sustento da família, tanto que, conforme Louro (2004), a escola foi primeiramente masculina e religiosa. Nem sempre a mulher teve a posição que atualmente tem nas escolas, uma conquista que, aos poucos, foi sendo reconhecida. Mesmo que muitas mudanças tenham ocorrido na maneira de pensar a atuação da mulher no contexto social, nas escolas infantis persistem alguns questionamentos referentes à linguagem e à concepção de profissionais dirigidas às pessoas que desenvolvem sua atividade com crianças. A questão é problematizar os discursos que perpassam as representações de educadoras, professoras ou tias (como são chamadas as profissionais de apoio da escola em questão) e acabam por constituir o jeito de ser e fazer da atividade docente.

O dicionário Aurélio (Ferreira, 2010, p. 614) define professor/a como: “Aquele que ensina uma ciência, arte, técnica; mestre”. O termo educador/a é definido pelo mesmo dicionário como sinônimo da palavra educar que significa: “Promover o desenvolvimento da capacidade intelectual, moral e física de (alguém), ou de si mesmo. Instruir(se). Educador” (Ferreira, 2010, p. 271). A definição de um e outro termo pelo dicionário evidencia particularidades, à medida que define professor/a relacionando-o com arte, ciência, técnica. A partir dessa definição é possível perceber que para ser professor/a é necessário ter o domínio de conhecimentos específicos sobre determinada área do saber e ainda ter a sensibilidade e a capacidade de refletir acerca das diversidades culturais que permeiam o cotidiano educativo. Já para ser educador/a, no sentido de instruir moralmente alguém, não há necessidade de desenvolver competências e habilidades específicas, pois valores éticos e morais são aprendidos desde a infância no seio familiar. Paulo Freire (2019) revela uma série de fatores que contemplam a atividade do professor/a. Entre suas afirmações, destaca-se:

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a seriedade

(Freire, 2019, p. 24).

Com base no conceito de educar trazido por Freire (2019), é possível questionar a prática educativa baseada apenas em saberes da experiência ou transmissão/reprodução de culturas, sem que haja reflexão e contextualização do lugar e do momento vivido pelos sujeitos que constituem o fazer educativo.

A atividade realizada nas escolas de educação infantil não foge à exigência de autenticidade, decência, seriedade e profissionalização das pessoas responsáveis pelo cuidado e educação das crianças. Educador/a qualquer pessoa pode ser, já para ser professor/a é imprescindível a formação adequada à atividade que se pretende realizar na escola e na sala de aula, tendo ainda a necessidade de estar em constante processo de aprendizagem, aliando a pesquisa à prática docente.

Este é mais um dos pressupostos do “ser professor/a” trazidos por Freire (2019, p. 29): “Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”. No caso específico da educação infantil, é necessária, também, a compreensão de como acontece o desenvolvimento da criança e tudo o que envolve essa fase de socialização e descoberta. A maneira de proceder, de falar, de conduzir o cotidiano da escola exige do/a professor/a a produção de saberes que fundamentem a prática educativa em consonância com as necessidades do estudante.

As particularidades da escola infantil em questão revelam o embate entre saberes científicos e saberes da experiência. Neste espaço-tempo escolar, a experiência é vista como o fundamento da prática educativa. Os anos de experiência das profissionais de apoio, associados à idade já avançada, demonstraram saberes já estabelecidos. Conforme o depoimento de uma profissional de apoio: “Para mim a palavra professora não atinge o meu ego. Sinto-me uma educadora e não professora. Sinto-me uma educadora porque sempre ensino o que não deve ser feito e até onde podem ir” (Formação Magistério3).

O tempo de trabalho que possuem permite a afirmação de que são educadoras. A maior parte das funcionárias da escola é mãe e algumas até avós. Essa experiência que possuem com crianças fora do contexto escolar possibilita considerações e certezas sobre o que deve e o que não deve ser feito com as crianças no ambiente escolar. Da mesma forma, esse saber popular/cotidiano sobre a educação dos/as alunos/as precisa ser considerado, porém, não se resume a isso. A escola, como o lugar em que se produz conhecimento, precisa ir muito além de transmitir saberes cotidianos: sua função é aliar os conteúdos e saberes científicos com os saberes não científicos que estão relacionados à cultura e às interações sociais vivenciadas pelos/as alunos/as em ambientes extraescolares.

É oportuno destacar que os depoimentos revelam desconfortos em relação às mudanças que vêm ocorrendo na forma de conceber o/a professor/a. Demonstram também a dificuldade de compreender a teoria estudada nos bancos escolares e, principalmente, não conseguem articulá-la com o cotidiano. Há muitas resistências ao estudo teórico e exacerbada valorização da prática.

Na época em que fiz o concurso não era exigida formação. O máximo era a segunda série primária, que hoje é o ensino fundamental. Eu aprendi muito, não com o Magistério, é claro que me ajudou a definir alguns pontos, mas com a própria prática. Mas hoje em dia se não tem o ‘canudo’ não é ninguém. Deveriam valorizar a prática que as pessoas têm, a bagagem que trazem

(Formação Magistério).

A experiência docente permite um entendimento maior sobre a prática cotidiana na escola, porém os anos de atividade não bastam para compreender a complexidade que é ser professor/a. O desafio é aliar a prática, que não deixa de ser um saber produzido no/pelo cotidiano, com teorias que embasam e justificam o fazer pedagógico. Quando há oportunidade de estudar e, principalmente, quando existe o desejo de dar continuidade aos estudos, percebe-se que a escola não se resume ao bairro em que está localizada, à cidade a que pertence, mas faz parte de um contexto social amplo e diversificado. Por isso há a necessidade de se inovar a prática educativa e, acima de tudo, de se dispor a rever certezas e verdades que permeiam o dia a dia da escola. Não se pode mais ser condizente com a simples e repetitiva reprodução de culturas que já não condizem com a atual realidade social. Tardif (2005, p. 15) afirma que:

O saber dos/as professores/as está sempre ligado a uma situação de trabalho com outros (alunos, colegas, pais), um saber ancorado em uma tarefa complexa (ensinar), situado em um espaço de trabalho (sala de aula, a escola) enraizado em uma instituição e em uma sociedade.

As constantes transformações dos espaços-tempos mostram que reproduzir ou apenas transmitir conhecimentos já não atende às expectativas dos educandos, pois o acesso à informação está cada vez mais facilitado pelos meios de comunicação. Vive-se, de acordo com Castells (1999), em meio à “sociedade da informação” e a escola já não mais é o único lugar de acesso ao conhecimento. Porém, essa instituição continua desempenhando um papel fundamental para que os conhecimentos aprendidos pelos educandos, dentro e fora dela, possam ser sistematizados.

Ser professor/a é tarefa que, além da formação necessária, exige disponibilidade, vontade, dedicação e tempo. Ligado a esses aspectos está o sentido que é atribuído a esse constante processo de aprendizagem, pois quando o estudo não é significativo para quem ensina, jamais será para aqueles que estão dispostos a aprender, levando em consideração que ensinante e aprendente estão em constante processo de interação. Mais uma vez as considerações de Freire (2019, p. 23) se mostram pertinentes: “Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender”.

Atrelados aos saberes da experiência, aparecem profissionais especialistas como: psicólogos/as, nutricionistas/as e médicos/as. Em uma ocasião das observações, a nutricionista do Município media e pesava os/as alunos/as, anotando as informações em uma planilha de acompanhamento de alunos/as que frequentavam as creches municipais, nessa ocasião, comentou-se que: “Faz parte do controle do desenvolvimento das crianças” (Pedagoga). Como afirma Foucault (2014), o controle minucioso do corpo e de seus movimentos perpassa o ambiente educativo: gestos, ações e falas. Todos os movimentos são sutilmente controlados e limitados por discursos produzidos na relação entre os saberes das funcionárias da escola e dos “mecanismos” de poder-saber impostos pelo social e reproduzidos na escola como forma de sanar a defasagem da formação para a docência.

A baixa escolarização facilita a interiorização de discursos que, muitas vezes, não condizem com a real necessidade da escola. Nesses casos, a sistematização de saberes acaba não sendo suficiente para a compreensão dos acontecimentos sociais que influenciam diretamente a vida das instituições educativas. Não sendo suficientes as orientações da psicóloga e de outros profissionais especialistas, as professoras e as profissionais de apoio recorrem a outros meios para justificar suas ações, conforme o depoimento:

Não gosto de pegar livros de 200/300 páginas para ler, a leitura me dá sono. Gosto de revistas e histórias curtas. Como não temos muitos cursos e quando tem no horário inverso não participamos, então gosto muito da TV senado, da TV educativa que sempre tem informação. Gosto de assistir: não estou lendo, mas ouvindo. Mas claro se algo realmente me interessa pego e leio e busco por mim mesma em jornais e revistas

(Formação Magistério).

É importante levar em consideração que as novas tecnologias que possibilitam inúmeras informações em curto espaço de tempo são aliadas no processo ensino-aprendizagem. Desconsiderar sua importância é desmerecer os avanços sociais que transformam o meio e as relações entre as pessoas, uma nova maneira de se comunicar possibilitada por uma linguagem interativa e dinâmica, que acaba envolvendo e seduzindo as pessoas. Não se pode desconsiderar essa linguagem, porém o desafio é perceber até que ponto e como pode ser usada em benefício das aprendizagens escolares.

Valorizar a infância dos/as alunos/as é deixá-los/as sob os cuidados de pessoas qualificadas para o desenvolvimento dessa atividade. Da mesma forma, a valorização e o reconhecimento das pessoas que dedicam anos de suas vidas à educação nas creches e pré-escolas é imprescindível. A responsabilidade, o comprometimento e a ética permeiam (ou deveriam permear) o cotidiano da atividade docente. Louro (2004, p. 108), discorrendo sobre a pluralidade dos sujeitos docentes, corrobora esse entendimento:

Quem é bom professor ou professora, ou mais, simplesmente, quem é o professor é uma questão que pode, sem dúvidas, comportar muitas e diversas descrições. A concepção de uma identidade una, coerente e estável não cabe aqui (na verdade, não pode caber em relação a qualquer sujeito ou situação). Não existe tal identidade unitária, tanto porque não há só uma (‘verdadeira’) representação desse sujeito, quanto porque ele não é apenas um professor ou professora.

O que está em jogo não é apenas a palavra que mais convém usar para definir a atividade docente e sim os efeitos discursivos que permeiam sua constituição e representação. Há grandes diferenças entre ser tia, educadora e professora, mas a quem interessam essas particularidades, em que contextos elas foram geradas? Uma pessoa que trabalha com alunos/as em uma escola infantil de forma alguma pode ser confundida com a tia, pois esta conotação remete a um grau de parentesco que supostamente não existe entre professor/a e aluno/a.

Outro aspecto importante é que, diferentemente do que afirmam os depoimentos citados, ser professor/a envolve inúmeras situações, comprometimentos e saberes que um educador/a não precisa, necessariamente, possuir. Mas, como afirmou Louro (2004, p. 108), “[…] não há apenas uma representação de sujeito professor/a”, por isso, as várias interpretações e conotações ganham espaços e fortalecem os discursos porque não sugerem inquietações, assim as “tias” e as “educadoras” constituem os espaços educativos pelo simples fato de não causarem indignação e incômodo, até porque nesta realidade educativa a própria formação defasada garante e reforça essa maneira de representar o sujeito educativo.

Rousseau (2004) traz significativas contribuições que permitem refletir acerca das questões relacionadas ao ser professor/a e ser educador/a. Conforme esse autor:

A palavra educação tinha entre os antigos um sentido diferente, que já não lhe damos: significava alimentação. Educat nutrix, instituit paedagogus, docet magister4. A educação, a formação e a instrução, portanto, são três coisas tão diferentes no que se refere ao seu objeto quanto à governanta, o preceptor e o professor. Estas distinções, porém, não são bem compreendidas e, para ser bem dirigida, a criança deve seguir um só guia

(Rousseau, 2004, p. 15).

São essas diferenças trazidas por Rousseau (2004), tendo como exemplo a escola infantil em questão, que demonstram os equívocos também gerados nas distinções entre educador/a e professor/a. Para o/a professor/a a profissionalização passa a ser uma questão fundamental e decisiva para a educação das crianças. Quando Rousseau (2004, p. 15) afirma que “[…] para ser bem dirigida a criança deve seguir um só guia”, entende-se que chama a atenção para um referencial, ou seja, alguém capaz de educar, cuidar e instruir o/a aluno/a em consonância com o contexto familiar e social em que está inserida. Na escola, esta é uma das funções do/a professor/a: ser a referência que conduzirá a criança às aprendizagens científicas e à vida em sociedade.

Considerando as diversas questões que permeiam a constituição dos espaços-tempos educativos, desde a organização da rotina das crianças, da arquitetura escolar, do sentido deste tempo escolar e da infância, busca-se refletir sobre o interior da escola. A partir das problematizações e concepções sugeridas na realidade educativa em questão, adentrar esse espaço-tempo permite compreender um pouco mais os encantos e desencantos sugeridos por esse cotidiano.

Escola Infantil: um tempo e um lugar

Na escola infantil convivem adultos e crianças. Muitas mudanças sociais vêm transformando a maneira de pensar a escola e a educação infantil, e já não é possível conceber um espaço-tempo infantil descontextualizado do mundo em que está inserido. De acordo com Santos (1996, p. 252): “Cada lugar é, a sua maneira, o mundo”. As palavras do autor levam a refletir sobre algumas posições da escola: se, por um lado, a escola não está distante do contexto global, por outro, cria seu próprio mundo; e, de certa forma, são as relações cotidianas estabelecidas nesse mundo particular que garantem sua continuidade. O autor traz contribuições à reflexão sobre essas questões que, no dia a dia da escola, revelam-se conflitantes:

Na verdade a globalização faz também redescobrir a corporeidade. O mundo da fluidez, a vertigem da velocidade, a frequência dos deslocamentos e a banalidade dos movimentos e das alusões a lugares e a coisas distantes, revelam, por contraste, no ser humano, o corpo como uma certeza materialmente sensível, diante de um universo difícil de apreender

(Santos, 1996, p. 251).

As mudanças que acontecem no mundo demoram muito tempo para atingir o cotidiano escolar e acabam não gerando mudanças significativas relacionadas à maneira de conceber seus espaços e sua organização - muitas vezes rígida, fechada, envolvida por fazeres burocráticos. Essa característica não é apenas das instituições educativas, mas de muitas outras, sejam elas instituições escolares ou não.

Diante de tantos desafios colocados à escola, como pensar esse tempo escolar que atinge a vida de muitas pessoas? Estudantes e professores/as; crianças, jovens e adultos passam por ali, deixando e levando marcas. Ao refletir sobre qual o sentido das vivências e experiências que são possibilitadas cotidianamente, é interessante destacar o seguinte depoimento:

O tempo da escola é importantíssimo, me envolvo com eles. Esse tempo para mim é pouco, quando vejo já passou. Eu acho que tem que viver o tempo, o aprendizado que temos com as crianças, esse tempo é maravilhoso, aprendemos coisas para a vida, se estivesse em outro lugar não aprenderia tanto. Então esse tempo é fundamental e precisa ser valorizado

(Formação Magistério).

Pensar a escola infantil como um tempo de vida, repleto de significados, pode parecer um desafio, porém o depoimento revela que, apesar das dificuldades, da pouca formação para desenvolver o trabalho com os/as alunos/as e dos contratempos do cotidiano, o tempo na escola é visto como fundamental. Acrescentaria que é um tempo decisivo para os/as alunos/as que frequentam esse ambiente. Por isso, a necessidade de ter pessoas preparadas para interagir com os estudantes; não basta afirmar que é “um tempo maravilhoso” se, no dia a dia, não demonstra sensibilidade nessas interações. Nesse sentido, um questionamento se impõe: se esse tempo em que se está com os/as alunos/as é tão significativo, por que não dar continuidade aos estudos, a fim de conhecer mais sobre o trabalho que realiza? Por outro lado, o depoimento abaixo revela um discurso que atualmente impera em nossa sociedade:

O/a professor/a sempre leva trabalho para casa. Quanto mais coisa a gente tem para fazer, mais tempo vai ter, quanto menos coisa, menos tempo encontra. Eu acho que o/a professor/a tem tempo, é só ele/a querer, quanto mais fizer, mais tempo vai achar para fazer, mais coisas vai querer fazer porque vai ficar empolgado. Eu acho que o profissional tem que arrumar tempo

(Formação Magistério).

Não é apenas de empolgação que vive uma instituição de educação infantil, muitas vezes à falta dessa motivação é o grande desafio. Acúmulo de trabalho, reuniões, encontros de pais, pareceres para entregar, salas para organizar; enfim, inúmeras tarefas que envolvem ser professor/a. É questionável levar como parâmetro de valorização do tempo a teoria do mais-mais trazida neste depoimento. Para que uma escola possa atender às expectativas, é importante que haja certa organização e planejamento, considerando que não é interessante fazer tudo de qualquer jeito, o importante é realizar as atividades com qualidade, atendendo às necessidades dos educandos e orientando-os na produção de conhecimentos e descobertas. E essa organização depende de cada professor/a, partindo de reflexões havidas no interior das atividades realizadas em sala de aula, nos sujeitos que constituem o processo educativo e nos objetivos que deseja alcançar. Nesse sentido, Santos (1996, p. 258) afirma:

No lugar – um cotidiano compartilhado entre as mais diversas pessoas, firmas e instituições – cooperação e conflito são a base da vida em comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se individualiza; e porque a contiguidade é criadora de comunhão, a política se territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O lugar é o quadro de uma referência pragmática ao mundo, do qual lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis, através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da espontaneidade e da criatividade.

Essa afirmação reflete muito bem aquilo que se deseja enfatizar: são diversas as leis que delimitam a forma de agir, territórios marcados por ordens, currículos a cumprir, e afins. Como afirma o autor, “ações condicionadas” e conflitos constantes são características que constituem as instituições, entre elas, a escola. Um exemplo é a Lei n. 11.114/2005 que estabelece a ampliação do Ensino Fundamental para 9 anos. Em consequência dessa mudança, a educação infantil passa a contemplar a faixa etária dos 0 aos 5 anos, e o ensino fundamental passa a ser frequentado por estudantes a partir dos 6 anos. Uma mudança que, segundo ressaltado no documento do Ministério da Educação (Lei n. 11.114/2005), trará “benefícios à educação básica considerando a oportunidade de repensar a prática educativa, os currículos e programas escolares, o tempo escolar e a qualidade social da educação” (Brasil, 2005).

Não é possível garantir a lógica desse pensamento. Mais uma vez o discurso é de “adiantar um tempo”, “avançar antes do tempo” para, como afirma Foucault (2014), “fabricar corpos dóceis”, maleáveis, que atendam às exigências do sistema de ensino diretamente atrelado a um sistema mundial de subordinação e controle econômico-político-social. Existem muitos discursos contraditórios sobre as necessidades das crianças. Como exemplo há o próprio documento do Ministério da Educação alerta sobre as seguintes questões que merecem ser consideradas nessa transição da Educação Infantil para o Ensino Fundamental:

De que forma as crianças interagem com outras crianças e com os diversos objetos de conhecimento na perspectiva de conhecer e representar o mundo? Que significado tem a linguagem escrita para uma criança de seis anos? Que condições tem ela de apropriar-se dessa linguagem?

(Brasil, 2004, p. 19).

A reflexão sobre essas questões desvela algo de contraditório no próprio documento: ao mesmo tempo em que afirma a decisão legal como o melhor para a criança, também deixa escapar que o foco de interesse não é o sujeito infantil, mas a aceleração da aprendizagem da leitura e da escrita como “decifração de códigos”, o que garantirá, em um futuro próximo, mão de obra qualificada para o mercado de trabalho e não pessoas letradas que compreendam as relações sócio-político-econômicas do mundo “globalizado” em que estão inseridas.

Saber ler e escrever, muitas vezes, pode não significar compreender o mundo e as relações que constituem os espaços-tempos da sociedade atual. Esse lugar de vivências, em muitos momentos desconsidera as pessoas que questionam certas imposições, que conhecem a realidade em que vivem e falam sobre ela, que buscam estar informadas sobre os acontecimentos que dizem respeito ao contexto social em que estão inseridas. Pessoas com essas características acabam excluídas, porque incomodam um sistema hierarquizado e reproduzido ao longo dos tempos. Muitos jovens e adultos, após terem desistido, por algum motivo, da escola, retornam a ela buscando adequação a esse sistema e oportunidade de se sentirem cidadãos, tendo um trabalho que garanta dignidade. Nesse contexto, a escolarização pode ser vista como uma necessidade de sobrevivência e não como algo que desenvolve a capacidade de questionamento da realidade e reflexão sobre os acontecimentos do mundo.

A escola de educação infantil, na contemporaneidade, contempla um aspecto fundamental da sociabilidade humana. Nessa perspectiva, todas as questões que envolvem a constituição de seus espaços-tempos merecem uma reflexão cuidadosa, para que os sujeitos que dela fazem parte não sejam simplesmente objetos de manipulação, mas que tenham a oportunidade de intervir, opinar nas decisões que dizem respeito ao cotidiano educativo. A partir do momento em que os sujeitos que constituem o processo educativo perdem a capacidade de se indignar com as situações, e que as leis, normas e padrões passam a não ser questionados e avaliados, algo está errado.

Santos (2018) sugere que, para intervir na realidade é necessário ir às raízes da crise, inventar ou reinventar o pensamento e a vontade de emancipação. Ou seja, fazer com que a escola sobreviva tendo como foco a descoberta e a resolução dos problemas que perpassam seus espaços-tempos. Assim, talvez, ela possa ter mais possibilidades de intervir no meio, devolvendo às pessoas a coragem para se sentirem parte dela e das relações sociais que permeiam sua constituição. Conforme Callai (2002, p. 84):

Muitas vezes sabemos coisas do mundo, admiramos paisagens maravilhosas, nos deslumbramos por cidades distantes, temos informações de acontecimentos exóticos ou interessantes de vários lugares que nos impressionam, mas não sabemos o que existe e o que está acontecendo no lugar em que vivemos.

O entusiasmo e a vontade de fazer da escola um ambiente propício para o desenvolvimento humano às vezes parece estar perdido ou esquecido. Em nossos tempos, os desejos são outros e estão fortemente atrelados ao consumo, à satisfação das necessidades ligadas à aparência, uma das principais maneiras de se sentir incluído no processo de globalização. Essa globalização é questionável porque não atende todas as necessidades dos países e das pessoas, considerando que houve um grande crescimento em relação ao acesso às informações e ao desenvolvimento tecnológico, mas ainda não foram resolvidos problemas elementares como: fome, miséria, habitação, educação. O grande salto do desenvolvimento tecnológico passou longe dessas questões; mesmo tendo proporcionado avanços significativos e importantes para a humanidade, ainda existem milhares de pessoas que não têm acesso à educação e, em muitos casos, nem o que comer em seus lares. Essas são condições precárias de vida que desnudam contradições e andam na contramão do desenvolvimento. Apesar de haver descrença em relação à escola infantil e aos problemas que essa enfrenta pela falta de estrutura física, recursos humanos e reconhecimento social, ela ainda é vista como um espaço digno em que são atendidas as necessidades básicas dos/as alunos/as. Em relação a isso, é importante destacar o depoimento de uma profissional de apoio:

Este tempo aqui é muito gratificante. Tem crianças que cuidei desde que comecei a trabalhar, agora cuido os seus filhos. É muito gratificante ver as crianças crescerem, isso é muito bom e passa tão rápido. Recordo o primeiro dia do meu trabalho, cheguei aqui na creche e aprendi muito porque nunca tinha cuidado de crianças pequenas

(Formação Magistério).

De geração a geração, a escola acaba sendo referência, tanto para os educandos, como para as pessoas responsáveis por elas. Quando a profissional de apoio diz: “[…] aprendi muito porque nunca tinha cuidado de crianças pequenas”, revela que a própria prática deu suporte para que aprendesse a cuidar das crianças, sugerindo a interpretação de que a experiência cotidiana ensina o que é necessário realizar para satisfazer às necessidades dos/as alunos/as. Esta maneira de pensar a educação pode ser considerada um dos problemas fundamentais que estão na raiz das práticas, como afirmou Santos (2018). É questionável tomar a experiência como ponto de partida para compreender todas as relações estabelecidas com os educandos nas escolas. A experiência ensina muito, mas não é tudo. Para além (ou Além) dela, há todo um contexto de problematizações, que são possibilitadas pela dedicação ao estudo e pela formação adequada. As pessoas imersas em um cotidiano que há anos vem sendo reproduzido acabam não percebendo que os seus saberes não são únicos e necessitam de atualização constante.

É importante que a diversidade das relações estabelecidas no contexto escolar seja considerada e sobre ela reflitam todos os envolvidos com a educação. Somente garantindo acesso à dimensão reflexiva da prática educativa é que se admite sua decisiva importância para o processo de desenvolvimento social. Trabalhar com educação é se envolver com as questões sociais que afetam os sujeitos. Da mesma forma, trabalhar com a educação infantil é se envolver com os/as alunos/as, com a representação de seu mundo e com o tempo da infância, que não deixa de ter sentido quando é considerado, pensado e questionado cotidianamente. Diretamente relacionada a esse sentido do tempo está a organização dos espaços da escola: a arquitetura e a rotina são fatores determinantes da constituição escolar. Nesse sentido, não poderia deixar de questionar a organização arquitetural da escola infantil em questão.

Caminhando para a Conclusão

Adentrar o mundo infantil é sentir que ainda temos chance e que é preciso continuar a refletir, buscando possibilidades de intervir para que a qualidade do ensino e a dignidade dos sujeitos envolvidos no processo educativo sejam garantidas. As escolhas são feitas de modo individual, da mesma forma, as consequências dessas escolhas também serão vividas e sentidas individualmente.

Por mais rude e cruel que a realidade possa ser, é preferível buscar compreendê-la, não para transformá-la, mas ao desvelar as situações cotidianas da vida, que não deixam de estar relacionadas com as escolhas profissionais, é possível interferir na própria maneira de pensar, agir e reagir diante dos encantos e desencantos que determinadas situações podem vir a revelar. Não há como refletir sobre o tema das relações educativas entre professores/as e alunos/as e, de forma mais ampla, entre as próprias relações humanas, sem tomar como base as relações de poder e saber. De modo geral, é inerente ao ser humano a relação entre a produção do conhecimento e a geração de poder dele decorrente.

O caminho percorrido nesta abordagem foi delineado pela concepção de que é impossível falar em ação educativa sem compreender que, nas entrelinhas de todo o sistema educacional, social e da prática pedagógica, existem interesses pessoais do/a professor/a, como profissional inserido no mercado de trabalho e também como agente de transformação da sociedade. Nas interações, com colegas, estudantes, comunidade escolar e com a sociedade, o/a professor/a não está destituído/a de poder, porém, ao mesmo tempo em que exerce, também sofre a ação dele.

O debate sobre o atendimento a alunos/as de 0 a 5 anos em creches e pré-escolas vem ganhando espaços sociais de reflexões, principalmente no que se refere à formação das pessoas responsáveis pelos/as alunos/as no cotidiano das escolas infantis. Esta investigação revela um pouco do que é vivido e pensado sobre a escola infantil em tempos de profundas mudanças na maneira de conceber a infância e o/a professor/a que desenvolve sua atividade com esta faixa etária. O corpo docente da escola estudada, no momento da análise, era constituído por 10 profissionais de apoio e 3 professoras, elas foram unânimes em considerar importante a continuidade dos estudos, porém, a questão é como conduzem esse processo, considerado fundamental para o desenvolvimento de todos os envolvidos com educação.

Para o grupo em questão, o estudo não traduz as necessidades da educação dos/as alunos/as, porém, manter-se atualizado sobre as novas metodologias de ensino e desenvolver práticas pedagógicas mais eficientes são alguns dos principais desafios do/a professor/a. Concluir a licenciatura é apenas uma das etapas do longo processo de capacitação, o qual não pode ser interrompido enquanto houver pessoas dispostas a aprender. Nessa perspectiva, o aprender contínuo é fundamental, podendo se concentrar em dois pilares: a própria pessoa do/a professor/a, como agente, e a escola, como lugar de crescimento profissional permanente.

A preocupação com a pessoa do/a professor/a é central na reflexão educacional e pedagógica, pois a educação continuada depende do trabalho de cada um. Nessa perspectiva, mais importante do que formar, é formar-se; todo conhecimento é autoconhecimento e toda formação é autoformação. Por isso, a prática pedagógica inclui o indivíduo, com suas singularidades e afetos. A educação é algo que pertence ao próprio sujeito e se inscreve em um processo de ser (nossas vidas e experiências, nosso passado) e em um processo de ir sendo (nossos projetos, nossa ideia de futuro).

É necessário oferecer aos/as professores/as condições estruturais básicas, dotadas de incentivo à carreira. É no espaço concreto de cada escola, transitando em torno de problemas pedagógicos ou educativos reais, que nasce o processo de educação do/a professor/a. Há que se ressaltar, também, que as universidades carregam parcela importante e decisiva na aplicação exitosa do plano teórico e metodológico a serviço da aprendizagem.

A educação continuada é necessidade de todos os/as professores/as que desenvolvem atividades com crianças, está diretamente relacionada à atividade docente e é enfatizada nos cursos de formação de professores/as. Porém, não se resume à participação apenas como ouvinte de cursos, oficinas ou palestras; é necessário o envolvimento com pesquisa que o/a leve a refletir e buscar soluções para os problemas que afetam o cotidiano da escola. Todo conhecimento produzido só tem eficácia se o/a professor/a conseguir inseri-lo em sua dinâmica pessoal e articulá-lo com seu processo de desenvolvimento.

Com esta pesquisa, deseja-se instigar, questionar, levar à reflexão; Por isso, não se pretende, com as palavras de Foucault (2021), esclarecer o papel da teoria, tampouco fazer com que as pessoas mudem de uma hora para outra sua maneira de perceber os acontecimentos. O desejo é incitar a dúvida, que pode (ou não) levar os/as professores/as a questionarem suas práticas. A educação continuada pode ser vista como uma escolha pessoal e, até, uma opção de vida. O para quê de tudo isso, só sente quem ousa adentrar esse mundo de infinitas possibilidades e interpretações e se deixa levar por essa aventura de percorrer caminhos conhecidos e/ou desconhecidos. Por isso, neste momento, o objetivo não é “terminar ou concluir” este estudo, mas socializá-lo, torná-lo público e exposto a críticas, o que poderá possibilitar a continuidade dessa aventura.

1O termo professoras será utilizado no texto por se tratar dos sujeitos da pesquisa, que foram predominantemente do sexo feminino.

2O estudo foi realizado no ano de 2005, porém as informações coletadas seguem relevantes para a discussão do cenário atual.

3Os sujeitos da pesquisa serão preservados, seguindo as recomendações do comitê de ética e os preceitos éticos. Sendo assim, cada depoimento será identificado apenas pela formação do indivíduo.

4Tradução do autor: A parteira põe no mundo, a ama cria, o pedagogo forma, o mestre ensina.

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Recebido: 15 de Junho de 2021; Aceito: 30 de Dezembro de 2021

Elisabete Andrade é doutora e mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) na Linha de Pesquisa “Currículo e Formação de Professores”. Participou como bolsista CAPES do Programa de Doutorado, tendo cumprido parte dele na Universidade de Lisboa/PT. Hoje, é professora no Centro Educacional Francisco de Assis (Unijuí, Ijuí – RS).

E-mail: andradeelisabete15@gmail.com

Editora responsável: Lodenir Karnopp

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