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Educação e Realidade

versión impresa ISSN 0100-3143versión On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.47  Porto Alegre  2022

https://doi.org/10.1590/2175-6236116927vs01 

SEÇÃO TEMÁTICA: VIGOTSKI HOJE: IMPLICAÇÕES EDUCACIONAIS

Estudo sobre Emoções e Sentimentos na Educação Infantil

Jéssica Bispo BatistaI 
http://orcid.org/0000-0002-4185-9896

Juliana Campregher PasqualiniI 
http://orcid.org/0000-0002-6497-8783

Giselle Modé MagalhãesII 
http://orcid.org/0000-0003-4045-7040

IUniversidade Estadual Paulista (UNESP), Araraquara/SP – Brasil

IIUniversidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos/SP – Brasil


RESUMO

Este estudo investigou o papel do processo pedagógico sobre o desenvolvimento das emoções e sentimentos na idade pré-escolar, a partir da análise da atividade escolar da criança. A pesquisa envolveu observações em sala de aula e uma entrevista com a professora regente, a fim de analisar em que medida as atividades pedagógicas mobilizavam os aspectos emocionais das crianças e contribuíam para seu desenvolvimento afetivo-emocional. Os resultados demonstraram que ser reconhecido no coletivo pela professora é emocionalmente mais significativo que a natureza e o sucesso da execução da tarefa. Conclui-se que compreender a dinâmica das emoções na vida escolar concreta das crianças em idade pré-escolar é imprescindível para o planejamento pedagógico que vise a emancipação dos sujeitos.

Palavras-chave Educação Infantil; Teoria Histórico-Cultural; Emoções

ABSTRACT

This study aimed to investigate the role of the pedagogical process on the development of emotions and feelings in the preschool age, based on the analysis of the child’s school activity. This research involved observations in the classroom and an interview with the responsible teacher, in order to analyze the extent to which the pedagogical activities mobilized the emotional aspects of children and contributed to their affective-emotional development. The results showed that being recognized by the teacher in the collective is emotionally more significant than the nature and success of the task execution. It follows that understanding the dynamics of emotions in the concrete school life of pre-school children is essential for pedagogical planning that aim the emancipation of subjects.

Keywords Early Childhood Education; Cultural-Historical Psychology; Emotions

Introdução

A relação entre os processos emocionais e o ensino escolar tem ganhado destaque no cenário contemporâneo. O debate sobre a forma com que a esfera afetivo-emocional da atividade atua no processo de ensino-aprendizagem-desenvolvimento tem permeado diversos espaços e se evidenciado, inclusive, nas grandes mídias. Destacam-se as iniciativas instaladas a partir do Fórum Internacional de Políticas Públicas: educar para as competências do século XXI, realizado em São Paulo em 2014, que demarcou as competências socioemocionais como necessárias no ensino para garantir o sucesso das crianças e adolescentes e culminou em duas grandes ações: a instalação de um projeto piloto no Estado do Rio de Janeiro de implementação de avaliações escolares para medir a formação de competências socioemocionais e a incorporação das habilidades socioemocionais na nova Base Nacional Comum Curricular.

É evidente, portanto, a necessidade de se debater o papel da educação sobre o desenvolvimento de emoções e sentimentos na infância. Embora hegemônica, a teoria das competências reedita a amplamente problematizada dicotomia entre razão e emoção. Superar tal dicotomia é um desafio histórico posto por Vigotski2 e outros pesquisadores que assumem o materialismo histórico-dialético como método de investigação e compreensão da psicologia.

Buscando contribuir com esse debate e somar esforços com pesquisadoras que vêm se debruçando sobre o problema dos afetos na perspectiva histórico-cultural, este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa que tomou como objeto a relação entre atividade pedagógica e as emoções e sentimentos das crianças na idade pré-escolar. O texto resgata proposições elaboradas por autores e autoras clássicos da Escola de Vigotski e outros mais contemporâneos, para elaborar uma breve síntese do desenvolvimento das emoções e sentimentos em geral e na idade pré-escolar e apresenta, na sequência, os procedimentos metodológicos da pesquisa, seus principais resultados e suas conclusões

Abordagem Histórico-Cultural do Desenvolvimento das Emoções e Sentimentos

Lev S. Vigotski revisitou diversos temas caros à ciência psicológica, entre eles o debate filosófico, político e científico a respeito das emoções e sentimentos humanos. Como bem pontuam Wortmeyer, Silva e Branco (2014, p. 286), o autor não desenvolveu, propriamente, uma teoria das emoções ou afetos, mas “[...] essa temática perpassa diferentes momentos de sua produção, em que é sinalizada a importância fundamental do tópico para os estudos em Psicologia”. Ainda segundo as autoras, mesmo sendo esta uma estrada inconclusa na obra vigotskiana, o autor “[...] estabeleceu marcos importantes, que ajudam a balizar o caminho investigativo nesse território desafiador” (p. 286).

Dentre os diversos caminhos possíveis para a abordagem do problema das emoções e sentimentos no pensamento de Vigotski, elegeremos como ponto de partida retomar sua concepção de desenvolvimento humano, que destaca a gênese cultural dos processos psíquicos complexos, incluindo a função afetiva.

A teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano tem como premissa que o ser humano se apropria da cultura a partir da atividade social que realiza; nesse processo, as funções psíquicas se desenvolvem e se requalificam, adquirindo novas estruturas, instituindo-se como funções psíquicas superiores. Segundo Vygotski (2012), a explicação das formas superiores da conduta humana não pode ser encontrada nas disposições orgânicas, tampouco na mera interação entre as formas culturais e biológicas, mas no choque entre esses desenvolvimentos:

Na medida em que o desenvolvimento orgânico se produz em um meio cultural, passa a ser um processo biológico historicamente condicionado. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento cultural adquire um caráter muito peculiar, que não pode ser comparado com nenhum outro tipo de desenvolvimento, já que se produz simultânea e conjuntamente com o processo de maturação orgânica e posto que seu suporte seja o dinâmico organismo infantil em vias de crescimento e maturação

(Vygotski, 2012, p. 36, tradução nossa3).

A peculiaridade do desenvolvimento cultural é decisiva para compreendermos o processo de complexificação das funções psíquicas em geral e, em particular, das emoções e sentimentos. As funções psíquicas superiores não são produto ou mera expressão da atividade orgânica, mas evidentemente não a dispensam, uma vez que o psiquismo humano é o próprio corpo em funcionamento, o qual tem como principal atributo a ligação dos processos vitais ao sistema nervoso4.

Com Vigotski (2004b), compreendemos que devemos considerar a importância do radical biológico da emoção, mas não reduzir e restringir sua expressão às alterações orgânicas. Conforme Costa e Pascual (2012, p. 629), nosso autor foi crítico tanto à posição que reduzia as emoções a “[...] nada além de processos de natureza exclusivamente biológica, restritas ao funcionamento orgânico”, quanto a concepções que “[...] ignoravam a dimensão corporal” dos sentimentos.

A explicação histórico-cultural do psiquismo humano focaliza o desenvolvimento cultural que se processa no interior das relações sociais concretas da vida em sociedade, pois são as relações sociais que provocam o desenvolvimento das capacidades propriamente humanas. A compreensão da natureza histórica e social do psiquismo humano reside, para essa teoria, nas transformações qualitativas dos processos naturais (marcados por uma relação imediata e fusional do ser com o meio) em processos artificiais, mediados por signos, que ao retroagirem sobre as funções psíquicas possibilitam o desenvolvimento da conduta volitiva e, em última instância, da atividade consciente.

Signos constituem, segundo Vigotski (2004a, p. 93), “[...] dispositivos artificiais dirigidos para o domínio dos próprios processos psíquicos”, que contêm significados e intencionalidade socialmente construídos. É como meio de comunicação e influência sobre os outros sujeitos e sobre si mesmo que os signos surgem e cumprem um papel essencial no desenvolvimento cultural do psiquismo humano. As formas superiores de comportamento, mediadas por signos, se instituem no plano interpsíquico, ou seja, ao se estabelecer relações externas com a realidade social, e passam, mediante processos de internalização, a constituir o plano intrapsíquico do sujeito (Vygotski, 2012). O processo de internalização dos signos representa, em última instância, a possibilidade de domínio da própria conduta para alcançar os objetivos da atividade na qual se encontra engajado o sujeito, tendo, tais dispositivos culturais, importância decisiva para os processos afetivos.

A internalização dos signos da cultura engendra rearticulações interfuncionais entre os diversos processos psíquicos, o que significa dizer que a ação mediada por signos provoca transformações não apenas em funções isoladas, como percepção, atenção, memória etc., mas no sistema interfuncional como um todo. Estabelecem-se novas relações entre as funções psíquicas, que passam a atuar em conjunto, gerando novas combinações por meio de um sistema complexo. Assim, as emoções estão sujeitas a tais processos de reestruturação e requalificação desde o primeiro ano de vida e principalmente a partir da aquisição da linguagem, o que vai tornando possível a regulação consciente das manifestações emocionais no psiquismo (Martins; Carvalho, 2016).

Logo, compreender as complexas articulações interfuncionais promovidas pelos signos traz à análise o desenvolvimento da esfera afetiva do psiquismo. Ao estabelecerem novas conexões com as demais funções psíquicas (cognitivas), mediante a aprendizagem, também as funções afetivas conquistam novas estruturas, mais complexas. Machado, Facci e Barroco (2011, p. 649-650) enfatizam, nesse sentido, que as emoções, em Vigotski, “[...] aparecem costurando outros fenômenos psicológicos, como a imaginação e o pensamento, mas não como epifenômenos ou fenômenos auxiliares”, o que significa dizer que não são simplesmente desencadeadas por ações do sujeito, mas participam da própria gênese das ações. Sawaia e Silva (2015) destacam, nesse âmbito, o enlace apontado por Vigotski entre emoção e imaginação e a participação dos elementos afetivos na atividade criadora. Portanto, as emoções e sentimentos são entendidos como produto e, ao mesmo tempo, elemento regulador da atividade humana, conectando-se “[...] a cada uma das demais funções psicológicas na estrutura da consciência” e especificando-se, no curso do desenvolvimento, como elemento motivador da personalidade, como explica Gomes (2018) ao situar e contextualizar a análise dos processos afetivos no sistema categorial atividade-consciência-personalidade.

A intrincada articulação entre nossos afetos e os conceitos que compõem nossa consciência é um dos aspectos fundamentais do desenvolvimento da esfera afetiva evidenciado por Vigotski (2004a). O autor exemplifica essa tese com a análise da construção cultural do ciúme, demonstrando que o mesmo sentimento pode possuir conteúdos diferenciados dependendo do lugar político, histórico e ideológico em que a mulher está inserida. Desta forma, a análise dos afetos não pode perder de vista as relações interfuncionais produzidas pelos significados culturais.

Em termos simples, nossos afetos atuam num complicado sistema com nossos conceitos e quem não souber que os ciúmes de uma pessoa relacionada com os conceitos maometanos da fidelidade da mulher são diferentes dos de outra relacionada com um sistema de conceitos opostos sobre a mesma coisa, não compreende que esse sentimento é histórico, que de fato se altera em meios ideológicos e psicológicos distintos apesar de que nele reste sem dúvida um certo radical biológico, em virtude do qual surge essa emoção

(Vigotski, 2004a, p. 127, grifo nosso).

Este excerto apresenta fundamentos essenciais para o aprofundamento da concepção de desenvolvimento das emoções e sentimentos na perspectiva da psicologia histórico-cultural: evidencia-se o radical biológico em unidade com componentes psíquicos e ideológicos. Fica evidente que, na análise vigotskiana, o pensamento participa de modo decisivo na formação dos sentimentos, colocando em destaque o conteúdo social das formações afetivas.

Magiolino (2014) destaca que em um de seus últimos trabalhos – dedicado à psicologia do ator – Vigotski “[...] retoma o problema da (trans)formação das emoções para colocá-lo numa perspectiva histórica que traz, dentre outras, colocações relacionadas à classe social e à ideologia”, apontando a necessidade de criação de um complexo sistema de ideias, conceitos, imagens para que se possa dar um sentido à expressão das emoções.

Se Vigotski “[...] não elaborou uma definição sobre os termos que se relacionam ao domínio afetivo – emoções, sentimentos, paixões, afeto” (Tassoni; Leite, 2011, p. 80), suas formulações indicam caminhos que têm sido explorados por continuadores de sua obra em busca de diferenciações relevantes para a compreensão do desenvolvimento afetivo-emocional. Cientes de não ter ainda se estabelecido um consenso entre pesquisadores contemporâneos a esse respeito, adotamos, no presente estudo, a compreensão das emoções como produto da evolução das espécies e base da esfera afetiva-emocional da atividade humana, estreitamente vinculadas às sensações e à satisfação de necessidades de ordem orgânica, ao passo que os sentimentos são entendidos como formações afetivas que surgem e modificam-se no curso do desenvolvimento histórico da humanidade, na dependência das condições de vida do homem, de suas relações e necessidades.

Para Martins e Carvalho (2016), as reações emocionais expressam-se no corpo, na fala e no pensamento de modo intenso e profundo, mas circunstancial, ao passo que os sentimentos têm caráter mais prolongado e constante, “[...] uma vez que não resultam apenas de traços positivos ou negativos apreendidos isoladamente, mas das correlações entre eles”. As autoras consideram que Vigotski evidenciou a natureza histórico-cultural dos sentimentos, que estão, portanto, estreitamente vinculados aos significados históricos dos objetos e fenômenos da realidade e se formam na unidade entre manifestações emocionais e pensamento.

Machado, Facci e Barroco (2011, p. 651) alertam, contudo, que não se deve atribuir caráter histórico-social apenas aos sentimentos, pois “[...] as emoções, ainda que mais associadas a fenômenos orgânicos, são sempre e inevitavelmente reações de um ser social, ligadas às exigências sociais de cada período histórico da humanidade”. A exigência que se coloca ao se assumir a diferenciação entre emoções e sentimentos é não tratar a ambos de modo dicotômico ou fragmentado, mas em unidade, pois “[...] a prevalência de dados sentimentos pode induzir manifestações emocionais, ou comoções emocionais se fazerem seguidas de determinados sentimentos” (Martins; Carvalho, 2016, p. 709). Logo, tanto as emoções quanto os sentimentos se complexificam na atividade do sujeito e, ao mesmo tempo, a regulam, conforme as condições objetivas e subjetivas. Já a noção de processo afetivo abarca toda a dimensão da esfera emocional e constitui-se em unidade com os processos cognitivos, com destaque ao pensamento e à linguagem.

Em síntese, temos que a dimensão afetiva do psiquismo conquista estruturas mais complexas mediante a internalização dos signos da cultura e estabelecimento de conexões com as demais funções psíquicas, sendo marcada pela dinâmica entre emoções e sentimentos e alterando-se em função do contexto histórico-ideológico.

Diante do exposto, situar as emoções e os sentimentos na estrutura e na dinâmica da atividade social é fundamental para percebermos as determinações históricas e culturais como de classe, gênero, etnia, orientação sexual etc., que assumem uma importância substantiva no processo de desenvolvimento da consciência, desde o primeiro ano de vida.

Tais significados sociais incorporados no curso do desenvolvimento serão instrumento da gradativa reestruturação do sistema psíquico e da formação da consciência, colocando-se como mediadores da relação do sujeito com o mundo e engendrando a regulação cultural das reações emocionais da pessoa. Tal compreensão coloca como problema para investigação científica o desenvolvimento afetivo-emocional da criança, cuja relevância se evidencia ao se considerar as consequências da análise histórico-cultural dessa problemática para a prática educativa.

Emoções e Sentimentos na Idade Pré-Escolar

Nessa pesquisa, elegemos como foco de análise o desenvolvimento afetivo-emocional na idade pré-escolar, período do desenvolvimento psíquico cujo parâmetro etário relativo vai dos três aos seis anos, aproximadamente. Como já apontado, o psiquismo se desenvolve na relação ativa com a realidade, isto é, na base da atividade que condiciona e provoca sua complexificação estrutural; desse modo, para abordar o desenvolvimento das emoções e sentimentos na idade pré-escolar, tomaremos como eixo orientador a atividade que guia a formação de novas capacidades do psiquismo neste período.

A atividade é tomada como categoria central para a explicação do processo de desenvolvimento humano, pois é na atividade e por meio dela que a criança se relaciona com a realidade, sendo seus processos psíquicos desenvolvidos. Porém, diferentes atividades cumprem diferentes papéis no desenvolvimento do psiquismo. As que reorganizam e impulsionam o desenvolvimento de neoformações psíquicas em um dado período do desenvolvimento psíquico são chamadas de atividade guia ou dominante. Em cada período constitui-se uma atividade guia impulsionada por determinados motivos construídos social e historicamente.

Sendo assim, a periodização do desenvolvimento humano a partir da psicologia histórico-cultural não corresponde a estágios ou etapas imutáveis e universais do desenvolvimento, mas a uma análise teórica que situa as gradativas transformações estruturais do psiquismo infantil no interior da relação criança-sociedade, destacando as condições de vida e educação como determinação fundamental do processo de desenvolvimento.

As crianças de idade pré-escolar inseridas em sociedades com alto grau de desenvolvimento das forças produtivas não estão incorporadas no trabalho produtivo, ou não deveriam estar5, pois ainda não possuem as capacidades necessárias que esta atividade exige. No entanto, as relações sociais continuam a criar na criança a necessidade de participar e estar inserida nas atividades dos adultos, de compreender as relações sociais estabelecidas na esfera produtiva interditada à infância.

Para Leontiev (2001), a especificidade do lugar social ocupado pelas crianças de idade pré-escolar determina seu interesse pelo mundo adulto. Do ponto de vista do desenvolvimento do psiquismo, a transição entre a primeira infância e a idade pré-escolar é marcada justamente pela tendência à atividade independente e pelo desejo de fazer o que faz o adulto. A criança sente essa necessidade, mas não domina (nem pode dominar) as operações corporais e psíquicas exigidas para atuação com os objetos do mundo adulto, vindo a canalizar sua vontade de inserção na prática social por meio da representação lúdica dos papéis sociais na brincadeira protagonizada.

A brincadeira de papéis é justamente a atividade guia do período pré-escolar, o que significa dizer que o desenvolvimento dos processos psíquicos mais decisivos nesse período será impulsionado fundamentalmente pela protagonização lúdica do mundo adulto. Segundo Elkonin (2009), essa atividade mobiliza mais diretamente a esfera afetivo-emocional do psiquismo, pois em seu interior a criança lida com o problema dos sentidos e motivos que regulam a atividade humana e as relações entre as pessoas. O conteúdo fundamental da brincadeira protagonizada são as relações humanas, as normas, valores e princípios (implícitos) que as regem. No decurso da brincadeira protagonizada, a criança assimila e elabora modelos de relação entre as pessoas.

Como elucida Elkonin (2009), quando a boneca se converte em filho, e a menina e/ou o menino se convertem em pais, os atos de cuidado (dar banho, alimentar etc.) transformam-se em responsabilidade da criança decorrente da assunção do papel, ou seja, pertinente à atividade parental. Esse processo mobiliza e recria no psiquismo infantil determinadas emoções (a depender das relações concretas que circundam a criança e dos valores e modelos apreendidos por ela nessas relações), atuando na dimensão afetiva da imagem subjetiva da realidade em formação no psiquismo infantil.

Conduzido pela brincadeira de papéis, o psiquismo da criança pré-escolar alcança um funcionamento psíquico embrionariamente voluntário e consciente. Um dos aspectos fundamentais da reestruturação psíquica que possibilita esse avanço foi identificado por Alexander Zaporozhets (2002), pesquisador vinculado à Escola de Vigotski que estudou especificamente o desenvolvimento das emoções e sentimentos na idade infantil. O autor demonstra o papel fundamental que as emoções têm na formação e realização dos motivos das atividades infantis, identificando que na idade pré-escolar os afetos mudam de lugar na estrutura temporal da atividade, passando a se antecipar como imagem emocional que medeia o curso de uma dada tarefa. Esse processo tem relação direta com o caráter crescentemente coletivo da atividade infantil, como explanaremos a seguir.

A idade pré-escolar é o momento em que a criança assimila um mundo mais amplo que a atuação com os objetos, tornando-se mais consciente das relações que estabelece com as pessoas e das afecções provocadas por estas. Zaporozhets (2002) explica que a mudança do lugar dos afetos na estrutura da atividade infantil ocorre, pois, ao tentar realizar tarefas não só necessárias a si mesmas, mas às outras pessoas a sua volta, a criança de idade pré-escolar passa a ter preocupação e sentimentos relativos ao impacto que suas ações terão sobre si e sobre o grupo. Suas investigações empíricas evidenciam que avaliações (positivas ou negativas) sobre a atividade de crianças em idade pré-escolar interferem diretamente em seus interesses e posteriores formas de realização das mesmas atividades. Segundo Leontiev (2001, p. 60):

Uma criança reconhece sua dependência das pessoas que a cercam diretamente. Ela tem de levar em conta as exigências, em relação a seu comportamento, das pessoas que a cercam, porque isto realmente determina suas relações pessoais, íntimas, com essas pessoas. Não apenas seus êxitos e seus malogros dependem dessas relações, como suas alegrias e tristezas também estão envolvidas com tais relações e têm a força de motivação.

Assim, no início da idade pré-escolar a criança já consegue fazer uma avaliação emocional positiva ou negativa dos resultados de suas ações, e esta gradual consciência permite à criança progressivamente controlar sua própria conduta de tal forma que as emoções e sentimentos passam a funcionar, de forma mais decisiva, como elementos reguladores do comportamento.

Até a transição da primeira infância à idade pré-escolar, o afeto aparece como avaliação emocional positiva ou negativa da situação que é resultado das ações da criança, de modo que a criança tende a redirecionar seu comportamento após receber/perceber uma resposta negativa do adulto ou do coletivo de crianças. Gradualmente, os processos emocionais conquistam diferentes complexidades, criando a possibilidade de correção emocional antecipatória, aparecendo anteriormente à ação, como antecipação emocional das possíveis consequências e da situação (imaginária) que pode ser gerada quando/se a ação se completar (Zaporozhets, 2002). Isso significa que os sentimentos passam a antecipar e regular o desenvolvimento de determinada tarefa.

É por meio das novas e variadas ações realizadas pelas crianças que o conhecimento sobre si mesmas e suas capacidades ganham força e “[...] surgem assim o orgulho, a satisfação de si mesmo, a autonomia, a insegurança, a hesitação, a alegria pelo êxito e demais sentimentos humanos superiores” (Liublinskaia, 1971, p. 377). Trata-se do aparecimento incipiente de emoções generalizadas que dão base à formação dos sentimentos, como expressão do salto qualitativo no sistema interfuncional psíquico resultante da internalização de signos, discutido anteriormente.

A protagonização na brincadeira exige que a criança seja capaz de compreender as regras de conduta internas aos papéis sociais e subordinar a elas sua conduta, renunciando a seus desejos ou impulsos imediatos. A fala, além de meio auxiliar para subordinar as ações da criança às regras da brincadeira, também será uma nova forma de expressar, nomear e, gradativamente, tomar consciência de seus desejos e emoções. A relação entre o desenvolvimento da brincadeira de papéis e das funções psíquicas, principalmente a linguagem, é importante para compreender como o processo de antecipação emocional vai sendo construído na infância. O conteúdo da imagem emocional da realidade que vai se constituindo no psiquismo infantil e passa a atuar como elemento mediador de sua conduta tem relação direta com as condições concretas de vida e educação da criança, as quais se refletem em sua atividade.

Em síntese, a discussão apresentada até aqui evidencia a importância do período pré-escolar para a (trans)formação da esfera afetivo-emocional do psiquismo e, ao mesmo tempo, a importância dos processos afetivo-emocionais para a compreensão da especificidade das neoformações que se produzem nesse período do desenvolvimento. Destacamos da discussão apresentada a própria noção de desenvolvimento da esfera afetivo-emocional do psiquismo, que se produz no curso da atividade (social) infantil tendo como lastro a relação com a linguagem e demais processos funcionais psíquicos.

Destacamos também o conteúdo social e ideológico dos processos emocionais em formação na infância, que tem como determinação as vivências infantis no interior das condições concretas de vida e educação. Considerando esse enquadre, realizamos uma pesquisa que se debruçou sobre a relação entre o processo pedagógico e o desenvolvimento das emoções e sentimentos na idade pré-escolar a partir da análise da atividade escolar da criança, apresentada a seguir.

Procedimentos Metodológicos e Caracterização dos Sujeitos da Pesquisa

Tendo como objetivo investigar o papel do processo pedagógico no desenvolvimento das emoções e sentimentos na educação infantil, realizamos uma pesquisa de campo que teve como eixo fundamental de investigação a atividade escolar da criança. Essa escolha metodológica fundamenta-se na compreensão teórica da atividade como mediação fundamental da relação da criança com o mundo social que mobiliza e provoca a formação dos processos psíquicos (considerados em sua forma e conteúdo).

O estudo foi realizado em uma escola municipal de educação infantil de uma cidade no interior do Estado de São Paulo, com população estimada em 370 mil habitantes, IDH (aferido em 2010) de 0,801 (muito alto) e 59% da população distribuída nas classes C, D e E (com renda mensal entre R$ 300,00 e R$ 2.200,00)6. A escola localizava-se em um bairro antigo e periférico do município, ofertando atendimento em período parcial.

A pesquisa envolveu dois procedimentos metodológicos: observações em sala de aula e entrevista com a professora da turma. O projeto de pesquisa foi devidamente apreciado e aprovado pelo Comitê de ética da Universidade via Plataforma Brasil e todos os cuidados éticos foram garantidos. Após a finalização da pesquisa, as autoras retornaram à escola e apresentaram os resultados à professora.

As observações foram realizadas junto a uma turma composta por 20 crianças de 3 a 4 anos com a respectiva professora responsável. Foi feito registro em diário de campo in loco e elaboração do relato de observação imediatamente após cada sessão. Após duas sessões piloto, foram observados nove dias corridos de aula, com duração de três horas e trinta minutos cada, totalizando trinta e uma horas e trinta minutos de observações (31h30’). Em uma das sessões de observação a professora regente exerceu o direito de abono, e a turma foi conduzida por uma professora substituta.

As observações visaram identificar as atividades pedagógicas propostas pela professora e o envolvimento afetivo-emocional das crianças com tais atividades, tendo em vista apreender: a natureza, conteúdo e estrutura das atividades propostas para as crianças; o envolvimento emocional das crianças nas (diferentes) atividades propostas e conduzidas pela professora; a existência (ou não) de intervenções pedagógicas que contribuem para o desenvolvimento dos processos afetivo-emocionais das crianças. Buscava-se verificar: se haveria diferença de envolvimento emocional das crianças em função do tipo/natureza de atividade proposta (lúdicas, produtivas etc.); se a professora realizaria intervenções pedagógicas favorecedoras da articulação entre emoções e sentimentos com os demais processos psíquicos, favorecendo a gradual tomada de consciência pela criança de seus processos afetivos e forjando a possibilidade de antecipação emocional (conforme discutido na fundamentação teórica); qual o conteúdo social e ideológico das intervenções da professora dirigidas às manifestações emocionais das crianças.

Os indicadores para observação e registro da mobilização afetivo-emocional das crianças nas diferentes atividades envolveram o conteúdo das verbalizações (na interação das crianças com a professora, entre as próprias crianças e verbalizações autodirigidas) e as manifestações corporais das crianças (agitação psicomotora, apatia, comportamentos agressivos e expressões faciais indicadoras de estados emocionais). A pesquisadora manteve-se como observadora das atividades, participando em situações em que era solicitada pela professora ou por alguma criança, em casos específicos.

Como estratégia de sistematização dos dados, após a finalização da coleta foram preenchidos protocolos de observação para cada sessão que continham os seguintes itens: tarefas propostas pela professora; instruções dadas pela professora para a realização de cada tarefa; reações das crianças após ser anunciada a tarefa; intervenções da professora durante a execução da tarefa; conduta das crianças durante a tarefa; episódios circunstanciais.

Concluída a etapa de observação, a pesquisadora realizou a entrevista com a professora. Com base nos pressupostos teóricos e nos dados da observação, a entrevista foi elaborada de forma semiestruturada, com quatro perguntas principais que nortearam as demais (surgidas durante a entrevista), tencionando investigar a compreensão da professora acerca das seguintes questões: a que atribui diferenças individuais em termos da vivência e expressão das emoções e sentimentos humanos; qual o papel das emoções e sentimentos na educação; como as emoções e sentimentos das crianças permeiam as aulas; se a educação pode contribuir de alguma forma para o desenvolvimento afetivo-emocional das crianças. A entrevista foi gravada e posteriormente transcrita.

Apresentação e Análise dos Resultados

A escola observada possuía quatro salas de aula, sendo que apenas três eram de uso cotidiano das turmas e a quarta era utilizada em atividades específicas, contendo prateleiras com alguns brinquedos antigos e uma televisão tipo tubo. A escola mantinha um rodízio de utilização dos espaços, que regia o tempo e o lugar para a rotina padrão das turmas. As crianças da turma observada eram recebidas em uma sala pequena cheia de caixas de papelão; o espaço possível de utilização era um tapete grande e dois bancos, onde a professora sentava e colocava seu material. Na primeira meia hora de aula, ocorriam as ações de recepção: verificação do calendário, oração e contação de história. Nos trinta minutos seguintes, a turma podia utilizar o pátio para atividades que exigiam movimentos corporais. Na sequência, era servido o lanche com duração de trinta minutos. Após o lanche, as crianças se dirigiam para o parque e brincavam espontaneamente por aproximadamente uma hora. A turma finalizava o dia de aula com atividades de produção (desenho, pintura, modelagem etc.) em outra sala com mesas, cadeiras, lousa e tapete, com duração de aproximadamente uma hora. Ao final da aula, os responsáveis buscavam as crianças na porta desta última sala, chamada pela professora de sala da rotina.

Todos os dias observados foram marcados por muitas dispersões e conflitos entre as crianças e repreensões realizadas pela professora. De modo geral, constatou-se que a professora iniciava as tarefas sem oferecer instruções claras para as crianças sobre o que fazer, como fazer e por que fazer. Isso pareceu gerar dificuldade de compreensão para a maioria das crianças, resultando em dispersão da turma após alguns minutos, como se pode verificar nos excertos do diário de campo a seguir7:

Após todos se sentarem, a professora pega uma caixa com cubinhos de madeira e sorteia uma letra, diz em voz alta a letra e um objeto com a inicial correspondente e fala para colocarem uma pecinha (de outro jogo) em cima da letra do crachá, se houver. Cada um tem um crachá com seu respectivo nome escrito. Muitas crianças tentam identificar a letra na pecinha (do outro jogo) em cima da mesa, ao invés de procurar no crachá. Após seis rodadas, a professora chama a atenção de uma criança por estar conversando e mexendo com as pecinhas da mesa. Neste momento a criança diz que não sabe o que é pra fazer, pois não existe letra nas peças. Com isso, a professora percebe que muitas estão fazendo o mesmo – tentando encontrar as letras nas peças, quando deveriam apenas marcar as letras sorteadas no crachá – e encerra a brincadeira dizendo que precisa arrumar feijão para ser a marcação do bingo

(Sessão 1).

Na tarefa seguinte, a professora chamou uma aluna e conversaram distanciadas da turma durante alguns instantes. Elas voltaram cantando uma música. A professora pede para a turma fazer uma fila e um por vez passar entre ela e a aluna. Quando a música acaba a professora e a aluna seguram a criança que está entre elas e a professora diz pra criança sair e sentar. Após seis rodadas, aproximadamente, as crianças param de fazer a fila e a brincadeira acaba. Ao final da brincadeira, duas crianças se batem e a professora dá bronca na que bateu primeiro. A criança olha para baixo e chora. A turma olha atentamente para a cena

(Sessão 7).

Situações marcadas pela ausência ou insuficiência de explicações iniciais a respeito da tarefa a ser desenvolvida pelas crianças aparecem como um padrão de ação da professora, que vai constituindo um histórico de afecção negativa nas crianças em relação à maioria das tarefas propostas, pois se produzem sentimentos de confusão e desorientação que confluem para atritos e conversas paralelas. Estas situações geram um impacto sobre o desenvolvimento afetivo-cognitivo da criança pré-escolar, que ainda não é capaz de organizar autonomamente suas atividades, necessitando de instruções, orientações e elogios do adulto.

A partir do protocolo de análise, foram contabilizados a proposição de vinte e nove tarefas (sem contar o parque, que se configurava como momento de ação espontânea e não dirigida). Deste total de tarefas, oito envolveram a maioria das crianças no início, ou seja, as crianças pareciam dispostas a desenvolver as tarefas e olhavam para a professora enquanto ela explicava os procedimentos. Porém, apenas em três tarefas a turma conseguiu permanecer engajada até o final, todas elas concentradas na sessão 2 e coordenadas pela professora substituta, a exemplo do que se pode observar no seguinte episódio do diário de campo:

A professora pergunta para a turma se gostam de histórias e todos respondem, agitados, que sim. A professora pegou um livro e contou a história de um grupo de lagartas que diminuía, durante a história a professora criava um clima de suspense para as crianças tentarem adivinhar o que estava acontecendo com as lagartas que estavam sumindo. Ao final, quando as crianças viram que todas viravam borboletas abriram um sorriso e deram muitas risadas. Poucas crianças não participaram durante toda a contação de história

(Sessão 2).

Identificamos dois grandes determinantes que consubstanciam o desinteresse e tendência à dispersão das tarefas nas demais sessões de observação: a ausência de ações mediadoras pela professora regente; e a pobreza e fragmentação de conteúdos nas tarefas.

A ausência de mediação foi determinante para produzir uma afecção negativa pela tarefa proposta nas crianças, que se expressa no desinteresse e abandono da tarefa, buscando outras ocupações, como agredir os colegas. O envolvimento afetivo com as tarefas escolares depende da compreensão das finalidades e da construção de um sentido da atividade para a criança, bem como da possibilidade de conseguir ou não realizar o que foi solicitado. Nas situações observadas, verificou-se que as crianças não são ensinadas a organizar suas ações em função de finalidades previamente delimitadas, o que seria uma conquista fundamental do período pré-escolar. A observação da aula regida pela professora substituta reforça a conclusão de que as ações mediadoras da professora são mais determinantes para o engajamento emocional das crianças na tarefa do que a própria natureza da tarefa, considerando-se as atividades observadas.

Em pesquisa realizada por Tassoni e Leite (2011, p. 80) em uma escola privada na cidade de Campinas, na qual também buscavam “[...] identificar as manifestações afetivas na dinâmica interativa da sala de aula, suas influências na aprendizagem e nas relações dos alunos com os objetos de conhecimento”, destacou-se o papel central do professor na mobilização da esfera afetiva-emocional dos sujeitos-aprendizes:

Os dados demonstraram que a figura do professor, seu desempenho, suas características pessoais, sua maneira de se relacionar, modos de agir e de falar produzem sentimentos e emoções que interferem na produção de conhecimentos em sala de aula, afetando a relação dos alunos com o conteúdo, com a escola, com os próprios professores e consigo mesmos. A qualidade da mediação evoca experiências emocionais que determinam o tipo de influência que o ambiente exercerá no desenvolvimento cognitivo

(p. 79).

Os procedimentos metodológicos da referida pesquisa incluíram observação, gravação em vídeo e discussão com alunos sobre situações vividas em sala de aula em turmas dos últimos anos de cada nível de ensino, incluindo a educação infantil, tendo se evidenciado, na análise dos resultados, que crianças de seis anos8 já identificam a mediação pedagógica como promotora da aprendizagem e o empenho da professora para que consigam aprender (“Eu gostei porque a tia ajuda a gente. A gente aprende como é que vai fazer”; “Ela conversa direito, explica direito. Ela ajuda, ela conversa do meu trabalho. Isso ajuda, porque ela dá umas ideias pra gente”) (Tassoni; Leite, 2011).

Na análise de nossos dados, a pobreza de conteúdo nas tarefas também nos parece determinante para explicar o desinteresse e dispersão dos alunos. Nas tarefas propostas, a professora priorizou os procedimentos e a produção de algo, explorando pouco a função social dos objetos e fenômenos que permeavam as tarefas. Como exemplo citamos a contação de história, que se repetia praticamente todos os dias, mas em nenhum dia observamos o conteúdo da história ser discutido e/ou problematizado com as crianças. Existia bastante rotatividade de tarefas durante os dias de observação, mas elas estavam desvinculadas entre si e nenhuma delas propunha trazer articulação com a experiência concreta das crianças. Os momentos em que as crianças faziam relação com a própria vida, como, por exemplo, quando começavam a contar alguma história vivenciada fora da escola, eram geralmente desconsiderados pela professora, que pedia silêncio, para que retornassem ao foco da tarefa proposta por ela.

Como já discutido, a antecipação emocional é uma conquista importante do desenvolvimento afetivo na infância e só é atingida quando as atividades se complexificam, quando o desafio proposto pela tarefa exige da criança esta capacidade. No contexto escolar observado, as tarefas resumiam-se a ações isoladas e carentes de conteúdo, não constituintes de uma atividade organizada. Pode-se considerar que as emoções e sentimentos produzidos neste processo são alheios aos motivos autênticos da atividade para a criança.

Foi possível constatar uma heterogeneidade no desenvolvimento das crianças, que parece resultar da desigualdade na qualidade das mediações recebidas no contexto familiar e comunitário. A ação da professora parece corroborar para a reprodução e manutenção dessa desigualdade, na medida em que, nas situações em que a turma está dividida em grupos realizando tarefas, a professora investia mais tempo e energia nas instruções para os grupos de crianças mais desenvolvidas. Havia um grupo de crianças que apresentava dificuldades mais pronunciadas em acompanhar as tarefas; ao longo das sessões de observações foram as crianças que sistematicamente receberam menos atenção pedagógica. Necessário observar que se tratava de crianças em sua maioria negras, não havendo crianças negras entre o grupo das mais desenvolvidas da turma. A condição socioeconômica precária era também um traço predominante entre essas crianças.

A professora distribui os instrumentos e diz que é para formar a fila de cada um. O instrumento que cada um vai tocar foi escolhido pelo grau de habilidade das crianças. Crianças que normalmente não fazem as tarefas ou são pouco participativas nas aulas ficaram na turma do guizo, que seria tocado durante toda a música, sem qualquer instrução. A turma do coco era composta por alunos que já conseguiam seguir instruções. A turma do triângulo tinha as crianças mais participativas e envolvidas nas aulas e foi a turma que recebeu mais mediação da professora durante o ensaio da música. Tanto a turma do triângulo como a turma do coco ficavam de frente a uma partitura e a professora intervinha para ensinar a leitura da partitura. Depois de ensaiarem seis vezes a música, a professora fez a avaliação dos subgrupos por instrumento para a sala, dizendo em tom ‘amigável’ que quem estava no guizo é porque não consegue, que a turma do coco estava feia e a do triângulo estava bonita

(Sessão 3).

Mesmo com os alunos mais desenvolvidos, uma estratégia pouco utilizada pela professora, mas que, quando realizada, gerava resultados significativos na construção do orgulho e da satisfação das próprias crianças, eram os elogios durante a realização das tarefas, que sempre as agradavam e faziam com que se envolvessem de maneira mais atenta: “Durante a contagem dos números do mês um dos meninos acertou o número do dia e a professora o elogiou, ele ficou bastante sorridente” (Sessão 3). O sucesso da criança na atividade – conseguir alcançar o que a professora propõe – parece ser um determinante do envolvimento emocional da criança com a professora e, a princípio, é mais significativo do que a própria natureza da atividade em questão. Antes de realizar e analisar as observações desta pesquisa, havia a hipótese de que o envolvimento emocional das crianças dependeria da natureza da atividade. No entanto, a análise dos dados revela que o envolvimento das crianças com as tarefas depende fundamentalmente da qualidade da mediação do adulto, no caso, da professora.

Zaporozhets (2002) postula a importância das avaliações positivas ou negativas sobre a realização de uma tarefa pela criança como algo fundamental para sua execução e posteriores formas de realização desta. Nas sessões de observação, foi possível perceber que as crianças buscam o elogio e reconhecimento da professora, principalmente quando estão realizando tarefas que exigem mais concentração, realizadas na sala da rotina. É notável a alegria da criança quando recebe um elogio por suas realizações, tanto nas palavras, quanto nas expressões faciais e excitação corporal, como pode ser constatado na seguinte situação:

Durante a tarefa, as crianças levam o retrato para a professora ver. A professora faz comentários mais específicos de alguns retratos e de outros, os que têm mais dificuldade, responde apenas que ‘está bom’. Após os elogios, as crianças voltavam sorrindo para as mesas

(Sessão 6).

Na já referida pesquisa de Tassoni e Leite (2011), chamam atenção verbalizações de crianças de seis anos que se ressentem de críticas e da falta de suporte por parte da professora (“Eu não gosto muito quando ela fala do meu trabalho, quando tem alguma coisa errada. Porque eu fico triste e não consigo pensar. Ela não fala quando eu não consigo pensar”), como também reconhecem o carinho da professora como promotor de bem-estar na escola (“A [professora] sempre faz carinho. Eu gosto. É bom. Tudo que agrada é bom”).

Em nossas sessões de observação, o recurso mais recorrente empregado pela professora para controle do comportamento das crianças durante a execução das tarefas foram as ameaças e repreensões, quatorze ao total e presentes em todos os dias de aula:

Ao chegar, a professora repreendeu longamente as crianças, mencionando as cartinhas aos pais, dizendo que não queria criança fazendo bagunça etc. Durante a bronca a sala ficou em silêncio, muitas crianças baixaram a cabeça

(Sessão 5).

A professora encerrou a brincadeira depois de ter dado várias broncas na turma para que as crianças continuassem sentadas na escada

(Sessão 6).

A professora coloca uma caixa de papelão simulando ser um vaso sanitário no pátio com as crianças e volta para pegar outros materiais. Uma criança olha para o ‘vaso sanitário’ e diz ‘Olha, um pivada!’, senta e rasga toda a caixa. A professora chega, dá uma bronca na criança e deixa-a isolada do parque e dos colegas, que a observam. A professora cola as partes rasgadas e coloca a caixa (vaso sanitário) junto com um chuveiro para simular um banheiro perto da casinha de boneca do parque, mas nenhuma criança chega perto dos brinquedos

(Sessão 9).

Nesta última situação, fica evidente o distanciamento entre o motivo da atividade da criança e o motivo da atividade pedagógica da professora. Enquanto a criança (com dificuldades na aprendizagem bastante pronunciadas) se afeta pelos objetos à sua frente e tenta utilizá-los no contexto de sua função social, com um potencial de desenvolvimento de atividade lúdica, a professora maneja o incidente punindo o aluno. A repreensão foi dirigida ao aluno, mas como consequência serviu de ameaça para o restante da turma, visto que nenhuma criança se aproximou dos objetos lúdicos no período de brincadeiras no parque. Neste e demais exemplos, nota-se a ausência de um modelo positivo de atividade e a ausência de mediação pedagógica para se construir a ação lúdica. Além das punições verbais explícitas, outras formas de controle e ameaça eram utilizadas pela professora, como por exemplo, por intermédio dos conteúdos das histórias contadas por ela.

Em seguida a professora diz que teve uma ideia: iria abrir a caixa de histórias. Uma das crianças diz que quer a história da ‘Filomena, a que tinha preguiça’. A professora olha para a pesquisadora e diz que é uma história folclórica latino-americana, trata-se de uma mulher, a Filomena, muito preguiçosa, tinha preguiça de levantar da cama e dizia ter muitas dores para seu marido, isso fazia com que ele fizesse todos os serviços domésticos até o dia que ele arrumou a vara de marmelo. Depois de contar o resumo da história a professora chama a turma e vão para a sala de aula, lá ela abre a caixa de histórias. […] Ao final da tarefa proposta, a professora pede para a sala ajudar a guardar os livros corretamente na caixa, no lugar que pegou e que ela iria pegar a vara de marmelo para quem não ajudasse a guardar, fazendo com que as crianças gritassem e dessem risadas

(Sessão 1).

Depois do parque, na sala da rotina, a professora diz que vai pegar a vara de marmelo se a turma não ficar em silêncio

(Sessão 4).

Uma das crianças da turma, J., chama atenção por demonstrar ter mais dificuldades nas tarefas escolares, e é a mais sistematicamente repreendida pela professora. Quando coage verbalmente as crianças, a professora diz, com frequência, que devem se afastar de quem faz bagunça, referindo-se implicitamente a J. Foi possível notar que as crianças respondem aos comandos da professora, afastando-se de J. e reproduzindo uma relação de repulsa e estigmatização para com esse aluno, dado que corrobora o que Mukhina (1996, p. 190, grifo nosso) assevera: “A criança mostra uma tendência para imitar o adulto, para aprender com ele a avaliar as pessoas, os acontecimentos e as coisas”. No parque, por ser o período da aula em que a professora não propõe atividades e deixa as crianças brincarem espontaneamente, foi possível observar a formação de subgrupos entre as crianças por afinidade e se fez mais evidente a reprodução de práticas de estigmatização entre as próprias crianças:

A professora recebe a turma com um beijo na bochecha e um bom dia. Um aluno chegou e já foi sentar na ponta oposta em que as crianças estavam sentadas, e elas disseram logo na sua chegada ‘agora o J. vai irritar a gente!’

(Sessão 4).

Os meninos brincavam de barco e precisavam prender o J., que era sempre o ‘monstro’

(Sessão 3).

As situações referidas exemplificam o emprego dos signos nas relações entre os pares, utilizados para alertar e controlar a conduta das outras crianças a partir dos significados e valores sociais apresentados pelos adultos/professora. É assim que J. se torna o monstro que vai irritar a todos. Como ensina a teoria, as formas externas (interpsíquicas) de controle do comportamento do outro vão sendo apropriadas pelas crianças e vão se constituindo no plano intrapsíquico, como parte da própria personalidade. Este é um processo importante e necessário para o desenvolvimento do domínio da conduta, mas os dados tornam evidente que existem conteúdos ideológicos que participam deste processo. Os modelos de relação humana permeados por tais conteúdos e sua apropriação pelas crianças pré-escolares se expressam em disputas e segregação, que são sentidas e percebidas por elas mesmas, causando frustração e sofrimento. No excerto a seguir, observamos uma situação de marginalização de uma criança, que se utiliza da orientação sempre reiterada pela professora de não ser egoísta para nomear a situação vivida:

Um pequeno grupo brincou de fazer casinhas, mas nem todos eram aceitos no grupo, uma das meninas disse à professora que a brincadeira estava egoísta e começou a chorar dizendo que não tinha amigos

(Sessão 2).

Outro aspecto a ser ressaltado é que o planejamento, as intervenções e toda a organização do espaço e da aula são notadamente divididos por gênero. Isto demonstra como a educação tem contribuído para acirrar a divisão social de gênero, colaborando para a reprodução do modelo hegemônico de relações entre os gêneros e provocando sentimentos específicos do que é ser menino e ser menina nesta sociedade:

A professora faz a chamada todos os dias utilizando dois cadernos diferentes, um azul com a lista e anotações dos meninos e outro rosa com a lista e anotações das meninas.

Uma das mesas composta por meninas ganha uma massinha rosa da professora [...] Um dos meninos pergunta para uma menina da mesa de massinha rosa o que está fazendo e ela diz que está fazendo uma boneca, o menino faz uma cara de nojo e sai de perto da mesa

(Sessão 5).

Após o lanche, a professora pede para a turma ficar na escada antes de entrar para o parque e elas já sentam divididas entre meninos e meninas, hoje foi o dia das meninas entrarem primeiro, um dos meninos entra junto com as meninas e logo recebe uma punição das próprias meninas, perguntando se ele usava vestido. O menino para e volta para junto dos outros meninos (Sessão 5).

As crianças de idade pré-escolar vivem um momento de fazer o que o adulto faz e tendem a imitar, inclusive, a conduta mais provável do adulto-modelo nas diversas situações. Durante a observação, chamou atenção o fato de uma das crianças, que se desponta em termos de aprendizagem, reproduzir uma fala extremamente adultizada. Ela diz para outra criança que se machucou correndo no parque que “[...] já tinha avisado para não correr porque ia machucar, mas ninguém confiou nela” (Sessão 8). A criança que verbaliza esta repreensão é também a criança que corre durante o parque, mas repete os comandos da professora e aos poucos vai internalizado as regras e controlando os colegas:

No final do parque, uma das meninas bate a cabeça em um ferro e começa a chorar muito. A professora pede para uma aluna ir buscar gelo na cozinha. A aluna traz o gelo e muitas crianças fazem uma roda em volta da criança machucada pedindo para ela se acalmar porque a dor já ia passar. A menina que buscou o gelo, na roda, diz que tinha avisado para não correr porque ia machucar, mas ninguém confiou nela

(Sessão 8).

Ao mesmo tempo em que as crianças repreendem umas às outras, elas também se ajudam, revelando, portanto, dois modelos de relações que estão em disputa: a solidariedade e a delação.

A professora liberou a turma para lavar as mãos e sentar na escada do pátio para esperar o bolo. Na escada, as crianças ficam todas apertadinhas, conversam, se tocam e se batem. As três turmas da escola ficam juntas no pátio e todos se envolvem com o ‘parabéns pra você’. Enquanto esperavam as professoras servirem os bolos, duas crianças discutiram e começaram a chorar, as crianças ao redor se mobilizaram para saber o que havia acontecido e pediram para se acalmarem. Elas pararam de chorar e voltaram a se falar

(Sessão 3).

Todas estas situações revelam que os signos e correspondentes significados utilizados por adultos/professora tornam-se mediadores das relações das crianças entre si e, aos poucos, vão sendo utilizados para controlar o próprio comportamento. Quando uma criança sinaliza, expressando medo, que J. vai irritar o grupo, ainda que naquele exato momento J. estivesse quieto, vemos que a imagem emocional de certas situações passa a antecipar a própria realização das ações das crianças. Nesses episódios, as crianças reproduzem as normas e os valores sociais (como o de obediência e subordinação) primeiramente com o outro e depois para si mesma. Assim, destacamos que ao se analisar a importância do processo de antecipação emocional para o desenvolvimento do psiquismo, não pode secundarizar a dimensão do conteúdo social dos signos e significados presentes nas relações entre os pares e que se refletem na imagem antecipada das interações reproduzindo valores e opressões presentes na sociedade vigente. A base das emoções emergidas e construídas nas relações criança-criança na escola está nas relações que a criança estabelece com a professora e demais adultos, que veiculam as determinações ideológicas que historicamente constituem esta sociedade.

A partir das análises aqui apresentadas, constatamos que não há uma educação intencionalmente voltada para o desenvolvimento das emoções e sentimentos. A professora faz uso deste processo psíquico para conseguir manejar a turma e lidar com o cotidiano da sala de aula. As ameaças e punições tornam-se frequentes e funcionam como estratégias de controle externo da conduta dos alunos. O medo torna-se um recurso pedagógico rápido e efetivo para silenciar a turma. Vigotski (2003) destaca os impactos deletérios desta prática sobre o desenvolvimento:

‘O castigo educa escravos’. Essa regra antiga é absolutamente correta em termos psicológicos, uma vez que a punição não ensina realmente nada a não ser o medo e a capacidade de orientar o comportamento exatamente por medo. E por ser o meio pedagógico mais fácil e mais incapaz é que a punição produz um rápido efeito, sem se preocupar com a educação interior do instinto. Partindo da rejeição natural da criança à dor, é de extrema facilidade atemorizá-la com uma vara de marmelo e assim obrigá-la a abster-se de um mau hábito, porém isto não suprime o hábito, mas, ao contrário, em vez de um mau hábito ainda introduz um novo: a subordinação ao medo

(Vigotski, 2003, p. 114, grifo nosso).

Neste sentido, consideramos que é possível afirmar que a professora faz um uso instrumental das emoções e sentimentos, principalmente dos negativos, para conseguir conter a agitação das crianças. Esta hipótese é corroborada pelos dados colhidos na entrevista, uma vez que as emoções e sentimentos citados pela professora são sempre exemplos negativos, ou seja, as emoções aparecem como problema a ser solucionado, seja pela escola, seja pelos pais e/ou familiares, como pode ser constatado nos excertos a seguir:

[...] Então vamos supor, quando bate no outro lá, dependendo da criança eu faço ela cuidar do amigo. Eu falo ‘olha aqui!’, eu falo isso, ‘o amigo tá triste porque você bateu, ele tá chorando, se alguém bater desse jeito você, você ia gostar? Ele também tem dores, tem sentimentos’.

[...] penso eu também que a maneira como o pai lida com a mãe também pode contribuir com algumas coisas, eu acho que isso influencia, porque a criança pequena, no conhecimento né que eu vejo, que eu já ouvi, que a gente estuda às vezes um pouco, que a criança não tem ainda o perfil pra lidar com certas emoções, com certas angústias, ela tá aprendendo.

A partir do momento em que a criança nasce, ela já tem um pouco de emoção, né. A insegurança quando ela fica sozinha no quartinho e ninguém vai lá dar atenção.

Não houve na entrevista um único momento em que a professora citasse exemplos de emoções positivas, que poderiam ser construídas na escola, ou que integram e enriquecem o processo de ensino-aprendizagem. O trato com as emoções e sentimentos aparece como perspectiva de consertar aquilo que a criança já traz e que dificulta sua aprendizagem e seu comportamento (angústia, dor, insegurança, tristeza etc.). Tal achado nos remete ao destaque feito por Wortmeyer, Silva e Branco (2014, p. 287) à crítica que Vigotski realiza, na obra Psicologia Pedagógica, ao ideal pedagógico de “[...] atuar na direção da repressão e do enfraquecimento das emoções”, concebidas como elementos desnecessários ou mesmo nocivos no sistema de comportamento humano. Trata-se de um ideal derivado de uma concepção biologizante que defende a tese da inutilidade das emoções no processo evolutivo da espécie, à qual Vigotski se contrapõe afirmando a positividade das emoções por seu efeito de tornar o comportamento mais complexo e diverso (Wortmeyer; Silva; Branco, 2014). Os resultados da pesquisa a respeito da concepção da professora sobre o desenvolvimento das emoções e sentimentos parecem indicar que este não é percebido como um processo psíquico superior a ser desenvolvido, mas como um problema a ser manejado na escola.

Considerações Finais

A análise dos resultados desta pesquisa indica que a afecção da criança pelas tarefas escolares é determinada principalmente pelo envolvimento emocional que ela estabelece com a professora, constatação que coaduna com o momento de desenvolvimento em que as crianças se encontram, marcado pela necessidade de ter a atividade do adulto como referência para seus atos. Ser reconhecido pela professora, neste momento do desenvolvimento, seja pelas expressões faciais, elogios etc., parece mais importante que o próprio sucesso da execução da tarefa. A pesquisa mostra que a professora é uma referência significativa para as crianças, e a forma como ela assume este papel impacta diretamente em como as crianças reconhecem suas capacidades e seus sentimentos sobre si e sobre os outros. Observamos, nesse sentido, que a turma parece ser bastante heterogênea quanto ao desenvolvimento afetivo-cognitivo, pois enquanto algumas crianças já conseguem antecipar emocionalmente uma situação de conflito, outras necessitam passar por elas para então sentir a emoção, o que parece refletir o acesso desigual a medições no contexto extraescolar e que é perpetuado pela prática escolar.

Os processos emocionais, em unidade com os valores sociais, são decisivos na formação da personalidade da criança, e, como explica Blagonadezhina (1960, p. 355, grifos originais), “[...] uma reação emocional só é motivada por aquilo que de maneira direta ou indireta serve para satisfazer as necessidades dos sujeitos e está ligada às exigências sociais”. Notadamente, portanto, os resultados de nosso estudo precisam ser compreendidos a partir da totalidade das relações e fenômenos sociais, visto que as determinações da sociedade vigente permeiam e fundamentam todas as relações constatadas na dinâmica escolar. As práticas detectadas na escola como a divisão social de gênero, a educação pelo medo, a reprodução e manutenção da desigualdade de ensino não são características dos indivíduos singulares acessados por esta coleta de dados, tampouco da unidade escolar, mas expressões particulares das determinações gerais da teia relacional da sociedade capitalista.

Desta forma, é importante situar o movimento de realidade revelado por essa investigação no bojo da sociedade capitalista, em que a produção e reprodução da vida estão ancoradas na exploração do trabalho. Os personagens desta pesquisa e suas relações reproduzem singularmente expressões das “[...] tendências histórico-sociais de seu tempo ou do gênero humano” (Pasqualini; Martins, 2015). Isto porque o controle e manutenção das práticas e valores da sociedade capitalista não se dão apenas nas relações produtivas, mas em todos os níveis de sociabilidade. Uma sociedade que se engendra a partir da apropriação privada dos produtos do trabalho social, da competição e do individualismo, ou seja, das disputas individuais para alcançar um suposto bem-estar, tem como principal desdobramento (político, econômico e psicológico) relações opressivas instituídas como modo de estrutura social. Podemos citar o machismo e o racismo enquanto opressões estruturais da sociedade capitalista, que produz situações de violações e opressões desde a sala de aula até o sistema tributário9.

Os dados que registramos demonstram que as opressões cumprem uma função social dentro da sociabilidade burguesa, que envolve desde a produção da desigualdade social no campo econômico até o desenvolvimento do sentimento de inferioridade no campo psicológico. O medo, nesse cenário, atua como um elemento de controle presente não só no processo educativo, mas nos diferentes espaços em que as relações de poder são necessárias para assegurar historicamente a submissão da classe trabalhadora (Castro, 2012). Por fim, a desigualdade de ensino identificada na pesquisa também tem sua função social na produção do fracasso escolar, que se inicia já na primeira infância no sentido de culpabilizar individualmente as crianças pelas dificuldades de aprendizagem a partir de diagnósticos, como expressão do processo de patologização e medicalização da vida (Patto, 2000).

Por isso, compreender os resultados desta pesquisa a partir das determinações mais universais de nosso tempo nos leva a perceber que não porventura as notícias e programas educacionais relacionados às emoções e sentimentos na educação escolar têm como foco o desenvolvimento das competências emocionais. Nesta perspectiva, a escola cumpre o papel de condicionar emoções exigidas pelo mundo do trabalho (no qual os trabalhadores se encontram cada vez mais precarizados e desvalidos) e, ao mesmo tempo, prevenir e conter ímpetos de ruptura da ordem social.

Em última instância, a escola colabora para a reprodução das relações sociais do modo de produção capitalista. Por isso, a concepção hegemônica de desenvolvimento das emoções e sentimentos presente nesta instituição corresponde majoritariamente aos interesses da classe que se beneficia da barbárie capitalista.

Ao mesmo tempo, contraditoriamente, a escola mostra-se um espaço social em que se produzem disputas ético-políticas, o que pode ser observado nas situações em que as crianças se solidarizam e exercitam a empatia e o apoio mútuos, como também na experiência de afecção positiva pelas tarefas e conteúdos escolares que a professora substituta consegue produzir com as crianças.

Se têm sido sistemáticos os investimentos na relação entre ensino e emoções, com vistas à formação de sujeitos adaptáveis às mudanças do mundo do trabalho, que aceitem com paciência e amabilidade as flexibilizações e precarizações das condições de trabalho, colocar em debate a atual função social da escola, em particular seu papel sobre o desenvolvimento de emoções e sentimentos de crianças em idade pré-escolar, é indispensável para que travemos a necessária disputa em torno da função social da escola, tensionando suas contradições na direção da produção de novas relações sociais coletivistas, emancipadoras.

1Esta pesquisa obteve o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

2Optamos pela grafia ‘Vigotski’ no corpo do texto, mas as citações obedeceram à grafia das obras.

3Todas as demais citações traduzidas das obras em espanhol são de responsabilidade das autoras.

4Decisivas contribuições sobre a radicalidade material do psiquismo podem ser encontradas na neurociência contemporânea, referendando a concepção histórico-cultural. Damásio (2004), por exemplo, demonstra o quanto a evolução do aparato biológico permitiu ao ser humano representar imagens mentais dos estados do corpo e senti-las a partir de um sistema nervoso altamente complexo. Ver: Damásio (2004).

5No período de 2008 a 2015, a inspeção do trabalho realizou 45.479 fiscalizações de combate ao trabalho infantil, alcançando 53.470 crianças e adolescentes em situação de trabalho irregular (Dieese. 2015).

6Fonte: IBGE: <https://cidades.ibge.gov.br/>. e Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE): <https://www.seade.gov.br/>. Acesso em: 04 nov. 2021.

7As situações que serão apresentadas são os relatos elaborados após cada observação. Os números das sessões correspondem ao dia observado em ordem cronológica.

8À época da realização da pesquisa não havia ainda sido implementado o ensino fundamental de nove anos.

9Segundo os dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Salvador, 2014), proporcionalmente, as mulheres negras são as que têm menor renda e as que mais pagam tributações no Brasil.

Referências

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Recebido: 19 de Julho de 2021; Aceito: 09 de Novembro de 2021

Jéssica Bispo Batista é Psicóloga graduada pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015). Atualmente é orientadora educacional. Possui experiência docente em graduação de curso de Formação de Psicólogas/os e cursos de formação contínua de educadoras/es. Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr/UNESP) com bolsa CAPES.

E-mail: jebispob@gmail.com

Juliana Campregher Pasqualini é Professora do Departamento de Psicologia da UNESP Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da UNESP Araraquara, com pós-doutorado pela Faculdade de Educação da UNICAMP. É graduada em Psicologia pela UNESP Bauru, mestre em Educação Escolar pela UNESP Araraquara e doutora pelo mesmo programa, com estágio de doutorado-sanduíche na University of Bath, Inglaterra.

E-mail: juliana.pasqualini@unesp.br

Giselle Modé Magalhães é Professora do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), com pós-doutorado pela Faculdade de Educação da UNICAMP. É graduada em Psicologia pela UNESP Bauru, mestre em Educação Escolar pela UNESP Araraquara e doutora pelo mesmo programa.

E-mail: gisellemagalhaes@ufscar.br

Editora responsável: Carla Vasques

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