Introdução
Os princípios dos direitos humanos que estruturam os documentos normativos datam do período pós-guerras, na esteira da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) de 1948. Tais ideias foram inseridas no sistema de proteção internacional na intenção de conduzir consensos para a formulação de uma nova ordem política mundial que vislumbrava a paz e a estabilidade das nações. Seus princípios universais são a dignidade e a equidade, os quais introduzem, nas políticas internacionais, a universalização de considerações sobre as condições econômicas, sociais e culturais indispensáveis à vida digna. Esse movimento muda a relação do indivíduo com o Estado, que passa a ter o compromisso de propor políticas tendo em vista a garantia de direitos (Piovesan; Silva; Campoli, 2014).
Entretanto, os direitos humanos, conforme os princípios dos documentos normativos, remetem-nos a tensionamentos e contradições. Por um lado, ter um sistema protetivo internacional apoiado nos direitos humanos ajuda a regular a barbárie e institui espaços de disputas políticas. Por outro lado, embora a estabilidade e a paz sejam o fim do sistema de proteção internacional, é denunciado que a proposição de políticas globais pode levar à descaracterização nacional por meio de imposições culturais denominadas imperialistas, o que pode tornar-se uma ameaça às democracias liberais nacionais (Series, 2020).
Além desses pontos, Souza e Chauí (2014) e Souza e Martins (2019) fazem-nos refletir sobre questões intrínsecas aos princípios de direitos humanos que vigoram na atualidade, ao problematizarem esses princípios como discursos hegemônicos e convencionais de gênese nortecêntrica que silenciam o Sul Global. Souza e Martins (2019, p. 16) afirmam que a “[...] hegemonia global dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana convive com a perturbadora constatação de que a maioria da população mundial não é sujeito de direitos humanos, mas objeto dos seus discursos de direitos humanos”. Ainda, ao tratarem dos sujeitos alijados de direitos, Souza e Martins (2019) ressaltam o racismo, o sexismo e a opressão às pessoas com deficiência como processos que estruturam as desigualdades e a violência na sociedade contemporânea, remetendo a políticas que naturalizam corpos e instituem hierarquias dentre os humanos.
Ao considerarmos que as formas de sociabilidade de um sistema econômico permeiam a ordem política estatal e a forma jurídica em uma sociedade constituída por antagonismos de classes, assumimos que os direitos se inscrevem nos documentos normativos do sistema protetivo sob medidas neoliberais de ajustes mínimos. De acordo com Mascaro (2017), a manutenção da estrutura política do capitalismo requer um processo variável de afirmação e negação, de garantia e seletividade dos padrões de direitos humanos. A defesa dos direitos sociais, da liberdade e da dignidade humana é contingenciada face ao movimento de proteção e promoção do capital e seus detentores. A igualdade formal entre os indivíduos, que subsidia a ideia de sujeito de direito, é institucionalizada sob princípios mercantilizadores e privatizadores pautados em oportunidades altamente desiguais.
Souza e Martins (2019, p. 15), ao afirmarem que os direitos humanos são, hoje, a linguagem da dignidade humana, indagam sobre a possibilidade de usarmos essa linguagem de forma contra-hegemônica, construindo “[...] gramáticas de dignidade a partir dos diferentes sentidos do humano que emergem dos contextos que são vividos”. Os autores propõem a incorporação de diferentes linguagens de dignidade a partir de um
[...] profundo conhecimento das vozes (gritos e murmúrios), das lutas (resistências e levantes), das memórias (traumáticas e exaltantes), e dos corpos (feridos e insubmissos) daqueles e daquelas que foram subalternizados pelas hierarquias modernas baseadas no capitalismo, no colonialismo e no patriarcado
(Souza; Martins, 2019, p. 15).
Em outros termos, instigam-nos a pensar na dignidade humana, no desenvolvimento e na educação de forma a disputar os sentidos dos princípios explicativos que sustentam as formulações sobre os direitos humanos e sobre as políticas sociais.
É nesse meandro das contradições e das disputas no campo dos direitos humanos que situamos o nosso estudo. Partindo do pressuposto de que a concepção de deficiência orienta a forma como respondemos a ela e afeta as condições materiais da vida das pessoas com deficiência e, ainda, preocupadas com a efetivação de uma educação escolar referenciada socialmente, problematizamos, brevemente, os conceitos de modelo social e da educação denominada inclusiva, conforme inscritos nos textos das políticas sociais internacionais.
Posteriormente, por meio de um estudo teórico-conceitual, mobilizamos o legado de Vigotski1 sobre o desenvolvimento humano, no campo da psicologia educacional, a fim de examinar a concepção dialética de deficiência e suas proposições sobre a educação social, cunhadas sobretudo nos estudos da Defectologia. Com base nessa abordagem teórica-metodológica, ao assumirmos a dialética como o movimento, analiticamente procedemos de forma a situar o conceito de deficiência na intrínseca relação natureza-cultura, bem como a considerar as condições e as contradições históricas e estruturais na compreensão do desenvolvimento humano.
Sem perder de vista os diferentes contextos históricos, políticos e sociais de produção do conhecimento, arrazoamos que o posicionamento crítico-progressista assumido na discussão vigotskiana sobre a deficiência se apresenta na contemporaneidade de forma instigante e relevante para tensionar proposições sobre o direito à educação das pessoas com deficiência. Vislumbramos com este estudo contribuir com a construção de uma visão prospectiva e transformadora no debate sobre os direitos humanos e especificamente sobre a educação escolar da pessoa com deficiência.
Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos: modelo social e educação
O reconhecimento de que as condições de vida das pessoas com deficiência é uma questão de direitos humanos, alinhado ao sistema de proteção internacional, é bastante recente. Essa estrutura jurídica e política, como já apresentamos no texto, é de caráter liberal, e está inserida em sociedades organizadas por valores e pela ideologia capacitista. Entendemos o capacitismo estrutural e intersubjetivo como produto e processo que estrutura e é estruturado pelo capitalismo, o qual privilegia determinadas formas da in(corpo)ração humana. Nesse sentido, a deficiência é compreendia como um fenômeno do corpo e da saúde individual e não pela sua acepção ideológica que produz crenças, discursos e práticas sociais, culturais, políticas e econômicas de opressão e de desigualdade, as quais são, historicamente, vivenciadas pelas pessoas com deficiência (Campbell, 2009; Taylor, 2017).
No embate marcado pelas disputas entre o capacitismo e as reivindicações políticas dos movimentos sociais de pessoas com deficiência aliadas às demandas do mercado alavancadas por questões econômicas e pelos princípios da DUDH, as condições de vida desse grupo estão pautadas no campo dos direitos humanos, a partir do monitoramento das políticas de enfrentamento da pobreza, que apontam a relação bidirecional entre pobreza e deficiência (Souza, 2013).
O documento que é síntese do debate e da aproximação com campo dos direitos humanos é a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) (UNGA, 2007), em 2006, e ratificada pelo Brasil com valor de emenda constitucional em 2009 pelo Decreto n. 6.949 (Brasil, 2009). Esse documento é um tratado específico de direitos humanos, e está pautado em oito princípios, dentre os quais destacamos: não discriminação; deficiência como parte da diversidade humana; acessibilidade; respeito ao desenvolvimento; e preservação da identidade das pessoas com deficiência (Piovesan; Silva; Campoli, 2014; Series, 2020).
Um dos pontos centrais da CDPD é a definição de deficiência como princípio filosófico que fundamenta todo o tratado. Grande parte dos autores e dos documentos defendem que o conjunto de princípios da CDPD estão alicerçados no modelo social da deficiência. Nesse modelo, ao deslocarmos o impedimento da dimensão orgânica do corpo do indivíduo para as barreiras que impactam sua participação social, há um “[...] reconhecimento explícito de que o meio ambiente econômico e social pode ser causa ou fator de agravamento da deficiência” (Piovesan; Silva; Campoli, 2014, p. 470).
Em relação à educação, é proposto na CDPD que o Estado deve assegurar esse direito por meio da construção de sistemas educacionais inclusivos e de uma série de princípios e de procedimentos que induzam a elaboração de políticas referenciadas pela diversidade humana. Tais políticas devem ter como foco a construção de condições adequadas para que as pessoas com deficiência não sejam excluídas nem discriminadas nos sistemas regulares, públicos e gratuitos de ensino com equiparação de oportunidades, a fim de maximizar suas potencialidades de aprendizagem e de desenvolvimento em todos os níveis de ensino e ao longo da vida. Dentre as condições listadas no documento, destacamos: acessibilidade arquitetônica, atitudinais, de informação e comunicação; capacitação de professores, inclusive de professores com deficiência; promoção de ensino individualizado e ministrado em diferentes modos e meios de comunicação (língua de sinais, comunicação aumentativa e alternativa, escrita alternativa, dentre outros); adequação dos ambientes que favoreçam o máximo desenvolvimento acadêmico e social (Brasil, 2009; Resende; Vital, 2008).
Souza (2013; 2021), ao analisar o modelo social de deficiência e as políticas de educação sob o paradigma da inclusão, conforme inseridos no conjunto de documentos normativos internacionais, afirma que estes têm como eixo central a noção de acessibilidade (impedimentos versus participação social). Ainda, argumenta que esses conceitos estão atrelados à ideia de desenvolvimento humano, segundo as proposições do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)2, e trazem, em seu escopo, as noções de funcionalidade e de incapacidade propostas pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)3.
Em relação à noção de desenvolvimento humano, à época da elaboração da CDPD, era assumida pelo Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), de 2010, como
[...] ampliação das liberdades das pessoas para que tenham vidas longas, saudáveis e criativas, para que antecipem outras metas que tenham razões para valorizar e para que se envolvam ativamente na definição equitativa e sustentável do desenvolvimento num planeta partilhado. As pessoas são, ao mesmo tempo, os beneficiários e os impulsores do desenvolvimento humano, tanto individualmente como em grupos
(PNUD, 2010, p. 2).
Já as noções de funcionalidade e de incapacidade na CIF, a partir do modelo biopsicossocial, são vistas como resultantes das interações entre estados de saúde e fatores ambientais, conforme World Health Organization (WHO, 2001). Para o modelo social, a incapacidade é um problema não relativo aos impedimentos do indivíduo, mas socialmente criado e que demanda uma resposta política.
Souza (2021), ao evidenciar os conceitos que estruturam os textos das políticas no campo dos direitos humanos relativos às pessoas com deficiência, analisa que estes se apresentam com a função de
[...] induzir a eliminação das barreiras que impedem a participação das pessoas com deficiência, com equiparação de oportunidades, nas esferas política, social, cultural e econômica, a fim de que cada indivíduo tenha liberdade e capacidade de construção de seu caminho/explorar as oportunidades de desenvolvimento
(Souza, 2021, p. 31).
A ideia de equidade está atrelada à ideia de justiça social segundo a organização da estrutura capitalista como argumento teórico que, sem demandar alterações na ordem econômica, legitima os problemas e as contradições intrínsecas a esse sistema econômico. Assim, a partir dessas noções aqui explicitadas, podemos considerar que, no modelo social, conforme se inscreve nos documentos normativos, com base na relação de funcionalidade e de incapacidade, o viés do impedimento de participação social reduz a ideia de acessibilidade à remoção de barreiras por meios instrumentais de ajustes mecânicos. De tal forma, por não considerar processos históricos de exclusão de direitos e suas marcas culturais, desconsidera as possibilidades de transformação social.
Além disso, em comparação ao modelo médico, análises apontam que o modelo social pode induzir, por outros princípios, a compreensão do caráter histórico, sociológico e político da deficiência, deslocando a problemática da esfera da vida privada para a esfera pública. A deficiência passa a ser compreendida como uma condição de vida, cujas desvantagens não têm sua gênese nas lesões orgânicas, mas na opressão dos sistemas sociopolíticos e econômicos. Em outras palavras, a deficiência é, então, a expressão da interação do corpo com a sociedade, cujos impedimentos são significados na conversão das experiências sociais, podendo, assim, ser uma manifestação da desigualdade (Diniz; Medeiros; Squinca, 2007; Diniz; Barbosa; Santos, 2009).
Em relação à educação, a proposta política sob o paradigma da educação inclusiva induz importantes avanços históricos, como a responsabilização do Estado pela educação das pessoas com deficiência, a construção de políticas que promovam a escolarização desses alunos, o acesso à escola regular da comunidade, o tensionamento sobre a função social da escola e sobre os processos de ensino e de aprendizagem. Essas características importam na medida em que abrem espaços de disputa sobre o papel social e político das pessoas com deficiência, colocando em questão propostas educacionais segregadoras.
Contudo, não distante do papel que vem assumindo desde os anos de 1990 nos documentos normativos, sustentada pelos princípios da Teoria do Capital Humano de caráter liberal-conservador e convencional, a educação é proposta como foco central à instrumentalização do sujeito com deficiência, para que ele possa buscar suas oportunidades de desenvolvimento e com isso alcançar a inserção nas atividades laborais futuras. Desse modo, o não acesso à educação, além de agravar a situação de pobreza, pode representar um alto custo para a economia dos países, tanto pelo gasto com assistência social como pela falta de mão de obra produtiva (Souza, 2013).
Reiterando o caráter não transformador, Rodrigues, Nozu e Coimbra Neto (2019), ao tratarem dos direitos humanos e das políticas de educação inclusiva, afirmam que estas são colocadas como um devir, na medida em que, embora sejam prerrogativas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, não preveem a construção de uma sociedade na qual não seja mais necessário esse sistema de proteção.
Gentili (2009), ao se debruçar sobre os processos de exclusão de direitos à educação na América Latina, ressalta a assimetria abissal que separa os fundamentos das ações e das práticas no campo dos direitos humanos. O autor afirma que, embora a proposta de uma educação inclusiva esteja construída em oposição às forças políticas que historicamente negaram o direito à educação aos mais pobres, esta foi concebida em uma política privatista e economicista que despreza o humano. Por isso, ela não mobiliza o enfrentamento dos processos que designam diferentes oportunidades nas escolas e na vida, reiterando a desigualdade educacional, a discriminação pedagógica ou, nos termos de Vigotski (1995), o abandono pedagógico, e gerando expectativas educacionais distintas. Com isso, restringe-se as fronteiras de desenvolvimento cultural da personalidade em suas máximas possibilidades.
As questões trazidas até aqui apontam para as contradições no campo dos direitos humanos, o qual preconiza o estabelecimento da dignidade humana em um sistema sociopolítico e econômico estruturado pelas desigualdades. Todavia, ter um sistema normativo referenciado nos direitos humanos abre possibilidades para disputarmos um projeto social e educacional voltado à ampliação dos processos de humanização. Nesse sentido, colocamos em perspectiva as contradições, de modo a perscrutar espaços que oportunizam a construção de princípios políticos orientados para a transformação social.
A Concepção Histórico-cultural de Vigotski: educação, desenvolvimento humano e transformação social
Consideramos que, para entendermos o potencial dos princípios teórico-metodológicos da obra de Lev S. Vigotski, é necessário compreendermos o significado histórico de suas teses e conceitos. “É na difícil luta pela transformação das relações sociais de produção que suas ideias, conceitos, aforismos, repetições e citações ganham vida” (Tuleski, 2008, p. 25) e marcam a nossa contemporaneidade com tom de originalidade e valor humanista-revolucionário. Retomamos os seus escritos e suas formulações no intuito de contextualizarmos as condições de produção e de colocarmos em perspectiva o caráter inconcluso de seus trabalhos. Buscamos tensionar o conjunto de ideias vigotskianas entendendo que as suas elaborações abrem (não fecham) possibilidades de formulação conceitual.
Vivendo em um contexto revolucionário, pautado na construção de uma sociedade assentada nos princípios socialistas da igualdade e da justiça social, o autor russo envolveu-se, profundamente, com o processo de transformação social. O estudo de Prestes e Tunes (2017) evidencia a conclamação do jovem estudioso às organizações partidárias e aos movimentos sociais judaicos em curso, o que demonstra o seu engajamento e o seu posicionamento em relação aos acontecimentos políticos da época.
Dentre as principais tarefas apresentadas pelo novo poder soviético instalado e recebidas por Vigotski com entusiasmo e compromisso, estava a construção de uma escola pública, popular, gratuita e laica. O autor comprometeu-se com o Ministério da Educação da antiga União Soviética ao contribuir com a área da educação das pessoas com deficiência, nomeada como Defectologia. Tornou-se membro do Conselho Científico do Estado – Centro Metodológico do Comissariado de Educação do Povo (Pino, 2002) – e uniu esforços no movimento de construção do Sistema Nacional de Educação que viria a respaldar a organização de uma educação pública regida por princípios democráticos, com vistas a uma escola única para todos os cidadãos em todos os níveis (Krupskaya, 2017). Vale destacarmos que, no projeto de sociedade almejado naquele contexto revolucionário, não havia discussões sobre os direitos humanos, visto que a dignidade humana era princípio já assumido na concretização da nova ordem social. A educação era tida como condição de formação do novo homem, assumida, portanto, como dimensão social essencial e transformadora.
Em meio a essa ambiência histórica, Vigotski buscou construir uma psicologia orientada para a formação da personalidade e do desenvolvimento humano na interface com a educação. Ele realizou essa proposta no diálogo com diversos autores da época de diferentes correntes epistemológicas e com ancoragem nos princípios marxistas. Como afirma Shuare (2017), o empreendimento de Vigotski era aplicar, criativamente, o materialismo histórico-dialético à ciência psicológica, abrindo um novo caminho na psicologia soviética.
Ao partir do pressuposto da natureza social do psiquismo humano e ao assumir o historicismo como eixo de análise, Vigotski (1995) examina a sociedade como instância constitutiva da personalidade. Ele realça a característica transformadora da atividade produtiva humana, transformadora da natureza e do próprio humano. Em outros termos, compreende que o ser humano produz suas próprias condições de vida e se constitui nesse processo. O trabalho é concebido como categoria mediadora da relação do ser humano com o meio, por intermédio do qual é possível a criação e o uso de instrumentos e de signos (Pino, 2000; 2002), ampliando a gama da atividade social humana, o que possibilita processos de significação que acarretam consequências na forma de organização e de expressão das funções psíquicas. O desenvolvimento histórico-social marca, portanto, o gênero humano, uma vez que suplanta as funções biológicas transmitidas pela hereditariedade. Quer dizer, as funções elementares de ordem orgânica e biológica transformam-se em funções psíquicas mediadas no âmbito do trabalho social.
Nessa direção, Vigotski formula a Lei geral do desenvolvimento cultural, que consiste em explicar como o desenvolvimento do indivíduo se produz entrelaçado com o desenvolvimento histórico da humanidade. Nessa óptica, “[...] o homem é um ser social e, fora da relação com a sociedade, jamais desenvolveria as qualidades, as características que são resultado do desenvolvimento metódico de toda a humanidade” (Prestes; Tunes, 2018, p. 90).
A educação, especificamente a forma escolar, ocupa lugar essencial no processo de desenvolvimento das funções psíquicas constitutivas da personalidade. Caracteriza-se como instância mediadora do desenvolvimento cultural do psiquismo. Em outros termos, é entendida como via de acesso socialmente instituído da criança ao conhecimento científico, filosófico, artístico, historicamente elaborado e sistematizado. A atividade de ensino, ao sustentar a conversão das funções sociais em conteúdo da personalidade, possibilita a pessoa a atingir as máximas propriedades do gênero humano e a ampliar a sua participação social.
Podemos dizer, então, que os postulados vigotskianos apontam para o estudo das condições sociais concretas de desenvolvimento, do caráter mediado do psiquismo e da função da educação escolar nesse processo. O seu legado distancia-se substancialmente das concepções ambientalistas e biologicistas do desenvolvimento, as quais ainda circulam fortemente nos tempos atuais por referências aos padrões de normalidade que oprimem corpos que se distanciam do tipo psicofísico valorizado dentro de uma ordem social capacitista, injusta e desigual. Nessa forma de organização social, as condições de desenvolvimento não são as mesmas para todos os indivíduos. Há limites estruturais estabelecidos na consolidação e na ampliação das fronteiras dos direitos sociais, dentre eles o direito à educação.
Em vista disso, consideramos o potencial dessa teorização que, por sintetizar a referência histórica do desenvolvimento da humanidade e por tomar como centro de análise a universalidade social que se faz presente nas mediações constitutivas da vida de cada pessoa (Martins; Rabatini, 2011), incide na efetivação da existência humana digna.
A Concepção Dialética: um modelo explicativo de deficiência
O estudo sobre a deficiência perpassa todo o processo investigativo de Vigotski a respeito da relação entre desenvolvimento e educação. O desenvolvimento da criança com deficiência é constituído por/constitutivo do desenvolvimento histórico da humanidade. Nesses termos, o conjunto de texto reunidos na obra Fundamentos de Defectologia expressa o seu empenho em tematizar as não conformidades de percursos típicos de desenvolvimento como um meio para entender os processos de desenvolvimento em geral (Smagorinsky; Cole; Braga, 2017).
Ao assumir a dialética natureza e cultura para explicar as leis gerais do desenvolvimento, Vigotski (1995; 1997) enfatiza a dinamicidade dos processos psíquicos. Com isso, tece contundentes críticas à concepção hegemônica de deficiência baseada no modelo médico-organicista orientado para o reducionismo biológico. Sem desconsiderar a base biológica, contrapõe-se a visões naturalistas e mecanicistas da sua época e examina a deficiência como uma condição humana de desenvolvimento profundamente marcada pela dinâmica social e histórica. Em outros termos, compreende a deficiência como um fenômeno de desenvolvimento sociocultural.
Nessa perspectiva, problematizarmos a questão da deficiência implica focalizarmos a relação da criança com o meio social, o que possibilita substanciarmos a análise de como a situação social incide sobre a dimensão orgânica, definindo os processos constitutivos do desenvolvimento cultural da personalidade. Nos escritos vigotskianos, encontramos, portanto, a posição de que a ciência defectológica deveria ter como objetivo de estudo não o déficit, mas as condições de vida, nas quais ocorre o desenvolvimento cultural orientador da personalidade da criança com deficiência (Dainez; Smolka, 2014).
Vigotski (1995; 1997; 2000), ao situar a deficiência no plano social do desenvolvimento, aborda os signos e os instrumentos como “órgãos sociais” produzidos no âmbito das relações/da atividade humana e condutores dos processos de organização e de desenvolvimento das funções psíquicas. Além de atuar diretamente sobre o objeto, o ser humano age indiretamente. Ou melhor, o desenvolvimento acontece por meio de “caminhos indiretos”, socialmente mediados e historicamente adquiridos pela humanidade. Isso significa dizermos que a cultura orienta o curso do desenvolvimento da pessoa e incide sobre o conteúdo do comportamento, redimensionando-o. Sob essa óptica, é possível compreendermos a natureza dinâmica da deficiência afetada pelos processos educacionais, pelas mediações sociais e pelas condições concretas de vida (Dainez, 2017).
O autor argumenta que, no curso do desenvolvimento, ocorre a fusão das duas linhas de desenvolvimento, a natural e a cultural. O plano cultural e o plano biológico entretecem-se de tal maneira que é impossível dissociá-los. No caso da deficiência, essas duas linhas não coincidem, visto que o modo de organização do meio social não atinge a diversidade dos modos de constituição do ser humano. Posto isso, realçamos a complexidade da estrutura da deficiência para além do estudo da soma de sintomas, das consequências primárias ligadas à dimensão orgânica. As consequências secundárias, de ordem sociocultural, são, assim, trazidas para o primeiro plano de análise, de ação e de intervenção.
Há de considerarmos que, se por um lado, o déficit pode gerar uma força impulsionadora de processos criativos de desenvolvimento humano, incitando novos caminhos, meios e canais de desenvolvimento, por outro lado, dependendo do modo como o meio social concebe e significa a deficiência, aspecto associado aos fatores operantes em dada forma de organização da sociedade, os obstáculos e entraves podem ser gerados e interpostos na relação da criança com o meio, produzindo processos de exclusão, de discriminação e de segregação. A deficiência abre (ou não) novas possibilidades de desenvolvimento cultural dependendo de como se estrutura a sociedade em todas as suas dimensões.
Sobressai, na abordagem histórico-cultural, a tensão entre concepção de deficiência e o modelo de sociedade. Com isso, podemos afirmar que a valorização de um tipo psicofísico de humano que predomina em uma sociedade capacitista releva o lugar da norma como princípio regulador da vida social (Martins, 2016) e produz barreiras sociais, psicológicas, físicas de desenvolvimento e de participação cultural daqueles que, embora partícipes da produção social, são considerados à margem desse processo. Tanto as potencialidades quanto os limites de desenvolvimento são, portanto, situados e cunhados socialmente.
Seguindo essa linha de raciocínio, Stetsenko e Selau (2018) definem a deficiência como condição de desenvolvimento extranormativo que toma o seu curso e a sua forma nas práticas socioculturais. Com esse argumento, os autores buscam avançar no plano conceitual contrapondo-se a uma visão deficitária da deficiência e centrando-se na diferença dos processos de desenvolvimento. Acerca dessa discussão, salientamos a importância de se considerar a variabilidade do desenvolvimento humano, uma vez que Vigotski buscou explicar as regularidades dos processos identificando não o que é comum, mas o que é divergente, variável. A visão defendida por Vigotski foi revolucionária e prospectiva, no sentido de prezar pela variabilidade da constituição da pessoa e não se prender à variante de um tipo específico de humano.
Educação Social em Perspectiva
As elaborações de Vigotski nos estudos de Defectologia oferecem-nos uma sólida base teórica e metodológica para pensarmos a educação especial escolar que ainda merece ser explorada na contemporaneidade (Gindis, 1995). Segundo Rodina (2006), as proposições desse autor podem fomentar discussões a respeito da construção de um sistema de educação, uma vez que permite superar as fronteiras historicamente constituídas entre o ensino regular e o ensino especial. Esse fato expressa a potência das premissas educacionais vigotskianas nos dias atuais, sobretudo na realidade brasileira que ainda se depara com o desafio de criar um Sistema Nacional de Educação (Saviani, 2008; 2013).
Já no século XX, Vigotski (1997) teceu contundentes críticas às abordagens pedagógicas baseadas no pressuposto da incapacidade de aprendizagem das crianças com deficiência. Assumindo que o homem é um conjunto de relações sociais (Vigotski, 2000), argumentou que as condições de desenvolvimento humano não estão circunscritas ao aparato orgânico-biológico. As determinações político-econômica-social demarcam a disparidade do acesso às formas de apropriação cultural e definem as condições de possibilidades de desenvolvimento humano.
Com base no construto educação social, defendendo uma educação comum pública que garantisse a acessibilidade do conhecimento escolar para toda a população soviética, Vigotski (2000) argumentou que o ensino da criança com deficiência deveria se ancorar fortemente nos mesmos princípios de desenvolvimento cultural, visto que o objetivo educacional é o mesmo: apropriação dos bens culturais historicamente produzidos e acumulados. O que se difere são os meios, os recursos, as formas de apoio e de mediação pedagógica para intermediar e conduzir a relação do aluno com o conhecimento.
Nesse sentido, ao contestar a organização do ensino da época em que o aluno com deficiência era privado do direito à educação escolar, Vigotski (2004) defende o papel transformador da educação na vida da pessoa e refere-se ao desafio de se consolidar um sistema educacional soviético baseado nos princípios de uma educação social. Ele argumenta sobre a importância de se repensar a educação especial pela óptica da educação social, considerando esta como o único caminho para se atingir a compensação social da deficiência, ou seja, para se efetivar processos fecundos de ensino e de aprendizagem que permitam elevar os níveis de organização e funcionamento psíquico, potencializando o desenvolvimento cultural e integral da personalidade.
Nessa forma de conceber a educação, o conteúdo escolar entretece-se aos princípios de uma vida em sociedade vislumbrada sem antagonismo de classes cujo objetivo é a formação da consciência humana, a percepção histórica da realidade e o desenvolvimento de processos emancipatórios (Barroco, 2011). Isso pressupõe tomar-se o trabalho como núcleo humanizador e a coletividade como lócus de sustentação da vida humana.
Com efeito, a educação social referenciada à atividade laboral, portanto, à vida, configura-se nessa perspectiva como instância de participação significativa e prospectiva da pessoa com deficiência nas relações e produções humanas. Ao provocar a emergência de formas conscientes de desenvolvimento da atividade coletivamente organizada e planejada, ela viabiliza modos de participação efetiva nas múltiplas dimensões da vida associada (Dainez; Freitas, 2018).
Ao afirmar que “[...] um indivíduo só existe como um ser social, como um membro de algum grupo social em cujo contexto ele segue a estrada do desenvolvimento histórico” (Vigotski, 2004, p. 12), o autor leva-nos a pensar na responsabilidade do meio social em organizar processos educacionais que possibilitem a abertura de canais de desenvolvimento humano. Quer dizer, uma educação que se apresente como lócus potencializador do processo de humanização e de uma organização social alicerçada em um sistema sócio, político e econômico verdadeiramente justo e igualitário. É por meio da educação que é possível apreendermos e compreendermos o mundo para termos condições de atuar sobre ele, integrando o processo de transformação social. A proposta de educação social, portanto, contempla mudanças estruturais na sociedade.
Dessa forma, o autor brinda-nos com um projeto educacional inovador e transformador que ainda não alcançamos, haja vista as condições de desigualdades sociais, a concepção economicista de educação e de trabalho e o desenvolvimento fragmentado do nosso sistema escolar, o qual é fortemente marcado pela presença de propostas políticas convencionais globais, da filantropia e dos reformadores empresariais (Freitas, 2012; Gentili, 2009; Kassar, 2011; Saviani, 2008).
Para além de integrar ou incluir a pessoa com deficiência à sociedade, o ato de educar, no âmbito da educação social, envolve a pessoa com deficiência na trama da coletividade, constituindo-a como sujeito da atividade e artífice do desenvolvimento humano. Pavimenta, assim, o caminho da participação social e política da pessoa com deficiência.
Considerações Possíveis
Este texto é fruto de um primeiro esforço de aproximação e discussão da problemática dos direitos humanos convencionais relativos às pessoas com deficiência pelo prisma da teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano. Visto que a emancipação das pessoas com deficiência ainda se apresenta como um desafio epistemológico e político, buscamos aprofundar a concepção dialética de deficiência e ressaltar as proposições da educação social tensionando o modelo social de deficiência e da educação inclusiva.
A partir da explanação realizada, é possível considerarmos que os termos que constituem os princípios do modelo social da deficiência e da educação inclusiva, conforme os textos normativos, sob o olhar das aparências, podem apresentar-se semelhantes às ideias vigotskianas sobre a educação da pessoa com deficiência. Tendo isso em vista, indagamos sobre o conteúdo e os princípios explicativos que sustentam os termos colocados em análise, de modo a disputar os sentidos e os discursos que permeiam os textos dessas políticas.
Ao problematizarmos a concepção de deficiência no escopo dos direitos humanos, reconhecemos o avanço dos princípios do modelo social em comparação ao modelo médico, por deslocar os impedimentos do corpo para a interação entre o sujeito (funcionalidade) e o ambiente, demandando uma resposta política de enfrentamento ao capacitismo. Entretanto, se no modelo médico, acomodatório à deficiência, a ideia de incapacidade demanda uma resposta clínica de correção da dimensão orgânica do corpo, no modelo social, que pressupõe a remoção de barreiras e a instrumentalização do sujeito, o acomodatório é referente ao modelo socioeconômico das políticas globais convencionais.
Opondo-se aos processos de normalização hegemônicos do início do século XX, Vigotski explicou a deficiência como condição humana de desenvolvimento, considerando o entretecimento entre a dimensão orgânica e a social, a biológica e a cultural. Ao assumirmos a relação dialética, intrinsicamente constitutiva entre sujeito e meio, argumentamos que, se o meio é fonte de desenvolvimento (Prestes; Tunes, 2018), este também se configura como lócus de impedimentos. Nessa perspectiva, problematizar a condição de deficiência significa questionar o tipo psicofisiológico humano desejado em determinada ordem social. A concepção dialética de deficiência, portanto, traz argumentos para o redimensionamento político, econômico e ideológico do meio social.
Em relação à educação sob o paradigma inclusivo, realçamos os avanços no âmbito normativo da responsabilização do Estado em assegurar e promover a educação das pessoas com deficiência. Também, destacamos a indução da escolarização desses alunos nas escolas comuns. Contudo, a elaboração de políticas educacionais em sistemas neoliberais mantém portas abertas para propostas atreladas ao setor filantrópico, privado-assistencialista, o qual tem forte presença na história da educação especial brasileira (Jannuzzi, 2004; Laplane; Caiado; Kassar, 2016).
Ainda, pela lógica liberal conservadora, a educação inclusiva é a chave para o desenvolvimento humano, uma vez que sua função visa o empoderamento do sujeito e a qualificação técnica para o mercado de trabalho. A ideia é que a educação abra caminhos para o acesso a outros direitos humanos, dado que um sujeito economicamente ativo tem condições de participar plenamente do ambiente social e cultural e se torna responsável pelo seu processo de desenvolvimento, desonerando o Estado.
O constructo da educação social formulado em outro contexto histórico é baseado na ideia de construção de uma escola unitária, que supere o dualismo ensino comum e ensino especial. Isso pressupõe a construção de um sistema nacional de educação e de proteção social intrínseco a um modelo de sociedade. Nesse sentido, as possibilidades de desenvolvimento humano são sustentadas pela coletividade e pela responsabilidade social do Estado.
Alicerçada na concepção dialética de deficiência que prevê a potência da educação no desenvolvimento integral e cultural da personalidade, a proposta da educação social tem como fim a apropriação dos bens culturais que são produzidos e acumulados historicamente, referenciados pelo trabalho social e laboral. A concepção de educação e de trabalho é ancorada em uma visão social transformadora. Nesta, o trabalho social e laboral constitui e regula o psiquismo humano. Dessa forma, o fim da educação, nesse contexto, é a formação humana orientada para a contribuição singular do indivíduo no desenvolvimento político e social da coletividade e do Estado.
Aqui, reside a principal implicação teórica que aponta para a responsabilidade política de organização de um meio social e educacional orientado para promover a abertura de possibilidades de humanização, com condições de vida dignas, de modo a poder avançar no processo de desenvolvimento humano. A condição de deficiência deve ser tomada como um potencial motivador para o estabelecimento de uma nova ordem social, mais justa e igualitária, que respalde o acesso a todos e a cada um do patrimônio cultural humano historicamente produzido e acumulado. Assim sendo, podemos dizer que a educação escolar se configura, nessa perspectiva, como um direito humano fundamental que potencializa processos emancipatórios (Pino, 2002).