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Educação e Realidade

versão impressa ISSN 0100-3143versão On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.47  Porto Alegre  2022

https://doi.org/10.1590/2175-6236126730vs01 

SEÇÃO TEMÁTICA: SANDRA MARA CORAZZA: UMA VIDA...

Fragmentos de uma Vida ante os Olhos da Morte

Julio Groppa AquinoI 
http://orcid.org/0000-0002-7912-9303

Cristiano Bedin da CostaII 
http://orcid.org/0000-0003-0935-8503

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP – Brasil

IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS – Brasil


RESUMO

Com vistas a apresentar o dossiê Sandra Mara Corazza: uma vida..., este texto opera, inicialmente, a montagem de um conjunto de excertos biográficos da homenageada. Em seguida, são contextualizados os dois blocos temáticos que compõem o dossiê: o primeiro voltado às instâncias empíricas das quais Sandra se ocupou: a docência, a pesquisa e a orientação acadêmica; o segundo referente às principais tópicas teóricas abordadas em sua trajetória intelectual. Soma-se uma entrevista focalizando seus movimentos de pensamento derradeiros. Reunidos, os textos compõem um mosaico das múltiplas reverberações da marcante presença-ausência de Sandra.

Palavras-chave Sandra Mara Corazza; Biografia; Vida-Obra

ABSTRACT

In order to present the dossierSandra Mara Corazza; a life..., this text initially assembles a set of biographical excerpts about her. Next, two thematic blocks that constitute the dossier are contextualized: the first one concerns the empirical instances in which Sandra engaged: teaching, research, and academic advising; the second one refers to the key theoretical topics addressed in her intellectual trajectory. An interview focusing on her final movements of thought is also included. Together, the texts compose a mosaic of the multiple reverberations of Sandra’s remarkable presence-absence.

Keywords Sandra Mara Corazza; Biography; Life-Work

Não acorde o que você ama.

Deixe que durma a sua promessa

(Ramos, 2007, p. 235).

Eis aqui recolhidos alguns excertos biográficos. Subtraídos dos escritos de Sandra Mara Corazza e daqueles/as que com ela compartilharam algo de um viver-junto, essa extração funciona quer como porta de entrada – para os/as novos/as leitores/as – quer como peças embaralhadas da memória de uma vida. Há que se ordenar as tarefas: para que possamos nos apropriar de um pensamento, cumpre inicialmente evocar sua origem e os sentidos de sua força. A montagem dos excertos é, pois, detida na entrada em cena do saber teórico, quando a realidade da escritura é instaurada e a vida que a justifica varia em seus modos de existir (tal é a intenção deste dossiê). A partir desse ponto, Sandra Mara Corazza é a marca de um fazer presente, imaginado e significado por cada uma das mãos que aqui escrevem.

Memento

Sandra Corazza soube honrar lindamente o significado do seu próprio nome: competente, inteligente, criativa e alegre [...] De larga erudição e espírito inquieto, desafiou o conformismo e o lugar comum e inspirou uma geração de professores e pesquisadores com uma vida exemplar de mais de 40 anos dedicados ao ensino e à pesquisa, iniciada ainda como professora na educação básica até à docência no ensino superior

(Nota de pesar da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – GT 12/Currículo).

Sandra vivia para ensinar e vivia ensinando: desde como escrever um resumo para ter um artigo publicado até qual o modelo de roupa mais adequado para uma sessão de defesa. Nada escapava de seu verde olhar faiscante, ímpio e amoroso ao mesmo tempo. Com impactante arsenal de referências e predecessores, leitora voraz de romances e contos, o nome de Sandra estampa teses, dissertações, livros organizados, miríades de produções

(Memorário assinado pela Comunidade da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação da UFRGS, pela Linha de Pesquisa Escrileituras, Artistagens, Variações, e pela Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação).

Cronologia

É evidente que nossa autora é Sandra Corazza, como anuncia a capa do livro. O que é menos evidente é quem ela gostaria de ter sido. E vou dizer uma coisa pra vocês. Muitas vezes é mais importante saber quem gostaríamos de ter sido do que o que somos. Só não vê quem não quer que nossa querida autora gostaria de ter sido, antes de mais ninguém, Friedrich Nietzsche

(Tadeu, 2006, p. 7).

Para falar Dela

Ela é Bando. Ela é uma multiplicidade em si. Ela dá de ombros para a sirene que avisa que acabou o período e a aula está burocraticamente encerrada. Para Ela, o ensino não termina nunca e a aprendizagem é sempre a aventura. Embarcando na Jangada de Medusa, largou bandeiras e ideologias para pegar a fina pena dos manifestos canibais. Antropófaga, quanto mais vive, mais autores devora. Aliás, também é conhecida por Esfinge. Assusta todos a quem questiona. E deuses, Ela QUESTIONA [...] E quem já assistiu uma aula Dela sabe: ninguém sai do mesmo jeito que entrou. Muito menos o currículo

(Texto produzido por Paola Zordan, Nilton Pereira e Samuel Bello; e lido por Cesar Lopes em nome do Departamento de Ensino e Currículo, na Sessão de Homenagem a Professores, em comemoração aos 40 anos da Faculdade de Educação da UFRGS, realizada em 10 de dezembro de 2010 na FACED/UFRGS).

Ascendência

Era filha, a primeira, e mais dois irmãos. Classe: média assalariada. Do Estado do Rio Grande do Sul. Mãe: professora primária. Pai: técnico em laticínios. Avós paternos: imigrantes italianos, pequenos proprietários rurais, na fronteira com o Uruguai. Avós maternos: avó descendente de árabes, sem curso primário completo; avô: pelo-duro, como dizia, se alfabetizou sozinho, em folhas de jornais, enquanto entregava tarros de leite; depois, avô possuidor de muitos dicionários. Para palavras cruzadas. (Ela é herdeira deles.) Criada em zona rural, num lugar, talvez, não por acaso, chamado Passo da Cria, interior de Montenegro. Estação Experimental Zootécnica das Colônias da Secretaria Estadual da Agricultura. Pai e mãe eram ensinantes: ela, de escola rural, multisseriada; ele, da Fábrica de Laticínios, em cursos e estágios. Pai: leitor contumaz, com vasta biblioteca e alguns livros proibidos (‘eram muito fortes’): ‘Lolita’ de Wladimir Nabokov; ‘Numa terra estranha’ de James Baldwin; ‘Kama-Sutra’ de Vatsyayana Kamasutram. Ela procura e encontra a chave do armário dos livros. Durante as sestas ou ausências dos pais. Mas, também, Monteiro Lobato, Os mais belos contos de fadas, Tesouro da Juventude, Reino Infantil, Contos de Andersen, Revista Cacique, poemas de Castro Alves, Gregório de Matos, Os maias de Eça de Queiroz (aos 9 anos), As dores do mundo de Schopenhauer, Jorge Amado, Érico Veríssimo, Jean-Paul Sartre, todos os russos.!

(Corazza, 2014, p. 10).

Estudos

Colégio de freiras. Curso Normal, Magistério. Movimento estudantil contra o regime militar. Presidência do “Grêmio Estudantil Amizade”. Participação no Interact de jovens, ligado ao Rotary Club. Artigos em jornais. Primeira docência, para sempre amada, na terceira série de uma escola estadual da periferia urbana. 1969, cursinho pré-vestibular. 1970, Filosofia na UFRGS. Passeatas, discussões. Predileção pelos pós-kantianos: Hegel, Engels, Marx, Lênin, Trotsky, Althusser, Garaudy, Lefebvre. 1971, atendente psiquiátrica da Clínica Pinel e curso de Magistério do Colégio São José. Chegada na FACED, pelas matérias de formação pedagógica. Monitorias, iniciação à pesquisa. Especialização, tão tecnicista, em Supervisão Escolar (não concluída) e Especialização em Pesquisa Educacional (concluída). Militância. Sindicato. Oitenta, PUCRS, Mestrado em Educação. Materialismo dialético. Pesquisas internacionais. Bolsa de pesquisa. Paulo Freire. 1989, conclusão da Dissertação: 326 páginas, datilografadas em máquina, sobre a prática alfabetizadora: O período preparatório na 1ª série do 1º grau em escolas municipais de Porto Alegre: ritual de passagem. Primeiros artigos publicados: Manifesto por uma dida-lética; O que é o construtivismo dialético, para mim?; Tendência crítico-social dos conteúdos: modismo ou opção consciente? 1992, Educação Popular + Construtivismo Dialético + Psicanálise Freudo-Lacaniana = primeiro livro Tema gerador: concepções e práticas. Educação, Filosofia e Psicologia, análise pessoal e Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Cartéis, seminários, congressos, artigos, fios e linhas. 1993, concurso para Professora Assistente no DEC, Área “Séries Iniciais e Educação Infantil”. Aprovada e classificada e efetivada. Dedicação exclusiva. 1994, seleção ao Curso de Doutorado, PPGEDU/UFRGS. Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida. Pensamento pós-estruturalista, pós-modernista, crítica radical da Educação e da sociedade. Insubordinação prática e inquietude teórica. Anos e anos de docência e pesquisa; artistagens, fabulações, variações. Escrileituras, transliterações: mudar o livro é mudar a vida. 2014: a) Estágio de Pós-Doutorado Sênior (CNPq), Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação; b) Memorial de Vidarbo: escrileitura biografemática, Promoção à Classe E de Professor Titular da Carreira do Magistério Superior. Viver 70 anos como quem escreve. Viver a docência por 48. Reviver no ensino. Refinar na pesquisa. Pulsão por des-formas e in-formes. Caleidoscópio insólito e extravagante. Capacidade, inquebrantável, de dar risadas de ouro.

No banco da escola

Atravessei o portal entre os mundos e abri a primeira porta, indo dar em uma sala de Aula. Deparei-me então com professores, alunos, armários, livros, quadros, luminárias, capachos e janelas com telas, voltadas para o pátio de recreio. Existia ali um gramado malcuidado, de costas para mim, imóvel, virado para uma grande macieira, parcialmente seca, cujos frutos apodreciam no chão, enquanto outros eram bicados por vespas e passarinhos, impregnando o ar de fortes aromas. No começo da tarde, a luz era cinzenta e clara, o ar estava úmido depois da chuva recente. Havia um pequeno caminho pavimentado com pedras mosqueadas, que pareciam ter vindo de York. Haveria um rio, ali por perto, depois do barranco? Não saberia dizer, mas existia um galpão. Para chegar até ele, era preciso passar por tufos de urtigas e de malvas-rosa ainda em flor. Antes de um pequeno pomar, plantas de groselha e cassis eram sufocadas por um capinzal. Perto de uma estufa em ruínas, originalmente feita de tijolos e ferro fundido, toda coberta de musgo, havia um tonel de água e um poço de pedra. De longe, finalmente enxerguei os três salgueiros que se debruçavam sobre o rio. Ao longo de um muro de tijolos cor de laranja que se esfarelavam, havia um banco de pedra voltado para a Escola. Era lá que o Diabo estava sentado, me aguardando. Foi lá que, soltando um riso excruciante, ele juntou a história de toda a minha vida de professora e a amarfanhou numa trouxa sebenta. Apertei-lhe as mãos e, nesse gesto, findei por lhe entregar todos os sonhos. Brindamos à pífia negociata com água tinta de sangue. E nunca mais fui feliz...

(Corazza, 2020, p. 26).

Fabulação

Vidarbo: Vida + Obra. Circulação simultânea dos códigos com os quais escrevo ao mesmo tempo os livros e a vida

(Corazza, 2014, p. 433).

Escrita

Apresentamos às/aos leitoras/es habituadas/os já à segurança dos escritos de Sandra Mara Corazza este intrigante ensaio, desafiador e incômodo, de vez que mexe com nossas certezas, crenças e entusiasmos revolucionários. Se não fosse palavra não mais em moda, diria que se trata de escrito subversivo, pois desorganiza nossas cabeças, e o faz radicalmente, desmontando-as desde a longa história que as fez

(Marques, 1995, p. 7).

Nas artes da escrita, é feiticeira. Sabe, como pouca gente, dar vida à linguagem num território árido, como o da escrita educacional, no qual as palavras já nascem mortas

(Tadeu, 2003, s.p.).

acabei de ler.

sinto-me acabada, jogada no não sei e no não posso.

acho que li depressa demais.

empanturrei-me.

há que avisar o leitor deste perigo de se tornar jiboia.

com certeza é um flechário inteiro disparando fogo e

desassossego.

(Fonseca, 2008, p. 9).

Docência

1972-1993 – Magistério Público Estadual.

1987-1989 – PUCRS.

1990-1994 – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

1993-2020 – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Obras

1992 – Tema gerador: concepções e práticas (UNIJUÍ);

1995 – Poder-saber e ética da escola (UNIJUÍ);

2000 – História da infância sem fim (UNIJUÍ);

2001 – O que quer um currículo? Pesquisas pós-críticas em Educação (Vozes);

2002 – Para uma filosofia do inferno na Educação: Nietzsche, Deleuze e outros malditos afins (Autêntica);

2002 – Infância e Educação. Era uma vez... Quer que conte outra vez? (Vozes);

2003 – Composições, com Tomaz Tadeu (Autêntica);

2004 – Linhas de escrita, com Tomaz Tadeu e Paola Zordan (Autêntica);

2005 – Uma vida de professora (UNIJUÍ);

2006 – Artistagens: filosofia da diferença e educação (Autêntica);

2008 – Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação (Sulina; UFRGS);

2012 – Didáticário de criação: aula cheia (UFRGS);

2013 – O que se transcria em educação? (UFRGS; Doisa).

Organizações

2009 – Abecedário: educação da diferença, com Julio Groppa Aquino (Papirus);

2010 – Fantasias de escritura: filosofia, educação, literatura (Sulina);

2014 – Experimentações de escrita, leitura e imagem na escola, com Betina Schuler e Sônia Regina da Luz Matos (UFRGS; Doisa);

2014 – Dicionário das ideias feitas em educação (lugares-comuns, chavões, clichês, jargões, máximas, bordões, estereótipos, palavras de ordem, fórmulas, besteiras, ideias herdadas, convencionais, medíocres, estúpidas e afins), com Julio Groppa Aquino (Autêntica);

2015 – Biografemática na educação: Vidarbos, com Marcos da Rocha Oliveira e Máximo Daniel Lamela Adó (UFRGS; Doisa);

2016 –Panorama de Pesquisa em Escrileituras: Observatório da Educação, com Máximo Daniel Lamela Adó e Polyana Olini (UFRGS; Doisa);

2017 – Docência-pesquisa da diferença: poética de arquivo-mar (Doisa; UFRGS);

2018 – Aula com... em vias de uma didática da invenção, com Ester Maria Dreher Heuser e Julio Groppa Aquino (UNIOESTE)

2019 – Breviário dos sonhos em educação (Oikos);

2020 – Métodos de transcriação: pesquisa em educação da diferença (Oikos);

2020 – Notas de Tradutores [N.T.]: Escrileituras de um Projeto de Pesquisa do CNPq, com Claudia Regina Rodrigues de Carvalho, Karen Elisabete Rosa Nodari e Silas Borges Monteiro (Oikos).

Presença

O tempo todo, ela está comigo. Dentro de casa, nas ruas, nos lugares, ela está sempre junto comigo. Sinto muita falta dela, assim, física. Me contento com essa presença constante dela que muitas vezes não é suficiente. Sinto também que ela está junto. Aqui dentro de casa então, nem se fala, porque cada canto, cada lugar, cada fresta tem a presença dela (Depoimento de Hugo Corazza, marido de Sandra, constante do livro Sandramaracorazza: obra, vidas etc., organizado por Julio Groppa Aquino, Claudia Regina Rodrigues de Carvalho de Paola Zordan.

Disponível em: https://www.ufrgs.br/escrileiturasrede/smc/).

Resposta

Dando-me de presente a outrem, através desta serialidade discursiva, desprendi-me de mim como uma forma de resistência às tecnologias de produção de minha subjetividade e, ao reagrupar o que sou e o que pretendo ser, experiencei uma prática de liberdade – a de escrever. Por isso, esta missiva, que ora finda, foi um exercício de escrita ‘etho-poética’. Dela aguardo resposta

(Corazza, 2014, p. 20).

Ponto de basta

Paramos por aqui, na esperança de que nossa prática linguageira – aventadora de teoria – convoque outros sujeitos a com ela fazer interlocução. Porque, aí sim, tudo vai começar a ficar muito interessante!

(Corazza, 1992, p. 56).

Isso foi

Fonte: Foto de Polyana Olini (2012).

Figura 1 Sandra e a filosofia 

Certa feita, quando instada a discorrer sobre sua relação com a filosofia, Sandra tomou o Poema em linha reta do heterônimo de Fernando Pessoa como zona tradutória das forças intempestivas que fustigavam seu pensamento, seu modo de habitar o mundo. Eu e a filosofia [Transluminura1de Álvaro de Campos] consiste em um escrito breve em que fulguram não apenas um estilo irrepetível, mas também a voragem contida em uma existência obstinada em se fazer e, de pronto, se refazer, indefinidamente. Ei-lo:

Mas eu, em cujo espírito transluzem e se dobram forças de filosofia, arte, ciência,

Cujas ideias tradutórias inflexionam anomalia, infidelidade e desrazão,

Delírio a delírio, emoção a emoção, minuto a minuto,

Paradoxos, absurdos e ratos se sucedem à deglutição –

Eu, foco miserável da antropofagia perceptiva,

Eu, fantasma triste parido em navio negreiro,

Eu, écran retalhado e desejoso de todas as realidades,

Eu, mulher vibrátil e abstrata do Caleidocosmos,

Eu sofro ser assim mesma eu verdadeira propriamente dita através disso tudo,

Eu sofro ser eu mesma consentida através disso tudo como ter sede sem querer água

(Corazza, 2016, p. 244).

É sobre os acontecimentos dessa exuberante uma vida que os/as integrantes deste dossiê – ligados a ela por diferentes laços intelectuais e afetivos – se debruçaram. Tarefa complexa e, em grande medida, fadada à insuficiência, homenagear o legado de Sandra revelou-se uma experiência rara, posto que em confronto com uma matéria indócil, impossível de ser esgotada no tocante às suas densidade e intensidade.

Mediante o grau de dificuldade da empreitada, a estratégia utilizada foi operar por recortes distintos, mas complementares. Assim, os/as autores/as aqui reunidos/as tiveram como tarefa perspectivar a vida-obra de Sandra – vidarbo, ela diria – segundo dois blocos temáticos. O primeiro dá conta de três instâncias empíricas das quais Sandra se ocupou: a docência, a pesquisa e a orientação acadêmica. O segundo bloco refere-se às principais tópicas teóricas focalizadas em sua trajetória intelectual: infância, didática, currículo, escrileitura e tradução. O dossiê se encerra com uma entrevista, com Paola Zordan (UFRGS), sobre, entre outros temas, a última questão tratada por Sandra: os sonhos.

Um modo de existir na docência, de Angélica Vier Munhoz (UNIVATES), abre o primeiro bloco temático. Entendendo a docência como modo de existência, a autora percebe na vida-obra corazziana três traços constituintes e distintivos: a criação constante de conceitos/noções, as gestualidades e os movimentos nas aulas, bem como a marca deixada por seu pensamento em seus/suas alunos/as e orientando/as. Tecido em tons arquivísticos, o texto recupera disciplinas e seminários, fragmentos de memória, conceitos e proposições, para mostrar o que entende ser uma incontestável disposição para embaralhar os cânones e conferir à docência um modo de existir criador, tradutório e transcriador; residiria nessa tríade ético-operatória, afinal, o legado de Sandra para a educação e para o mundo.

Em Uma ideia de pesquisa que faz a língua educacional gaguejar: pesquisa-docência da diferença contra o mito das castas, Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE) ocupa-se da ideia de pesquisa-docência da diferença. Além de trazer à tona uma luta incessantemente travada por Sandra – a insurgência frente ao consenso nacional de que pesquisa só se faz na pós-graduação, mito responsável pela divisão da educação em castas –, o artigo defende, mostra e exemplifica que a pesquisa-docência inventada e praticada por Sandra teve como condição uma relação específica com a língua pedagógica: fazê-la gaguejar, ao inserir nela o procedimento de escrita-esquizo, pelo qual uma ampliação dos limites do dizer-fazer educacional se faz possível.

 O bloco inicial se encerra com o A orientação acadêmica como espaço de mais-vida, texto assinado por Julio Groppa Aquino (USP). Prospectando o legado de Sandra no tocante à sua atuação como orientadora de trabalhos de pós-graduação, o artigo articula manifestações da orientadora e de seus/suas orientandos/as a respeito do tema, a partir da pesquisa arquivística de teses e dissertações. Trata-se de um bonito testemunho, que põe em cena a capitã do Bando de Orientação e Pesquisa (BOP), cuja atuação se dava em um solo operativo obstinado não apenas com a efetuação de movimentos expansivos de pensar/fazer a pesquisa educacional, mas, sobretudo, com a invenção de modos de existência compositivos e distributivos entre as partes em relação.

O texto El gesto académico y el pensamento intercesor: infantilidade y saberes sobre la infancia, assinado por Dora Lilia Marín-Díaz (Universidad Distrital Francisco José de Caldas, Colômbia), mostra como o pensamento desenvolvido por Sandra a respeito da infância se mantém como um importante intercessor para diferentes campos de reflexão e ações éticas, políticas e estéticas no contexto acadêmico. Mobilizando as noções de infância, de infantilidade e de infantil, a autora, por meio de uma ampla revisão documental, lança luz sobre uma hipótese operatória desde sempre presente na obra de Sandra, a saber: a infância, com suas contingências históricas, sua força e suas relações com a didática e o currículo, como uma chave de leitura para o entendimento e o tensionamento daquilo que somos e fazemos como educadores/as de nosso tempo.

Em Didática do inferno: teatro, pandemônio, tradução, Silas Borges Monteiro (UFMT) examina a palavra didática partindo do seu uso vernacular em direção à sua gênese na cultura grega. Investigando valores de uso plasmados ao termo e identificando a escolha de um sentido oriundo de textos cristãos, em detrimento de um uso primeiro inscrito no teatro grego arcaico, o texto defende a hipótese que a didática ainda hoje se mantém inscrita em uma metafísica da presença que estabelece um ideal de ser humano. Daí a filosofia infernal, com sua correlata didática do inferno, tal como é delineada pelas produções de Sandra, constituir uma alternativa crítica e poética capaz de considerar as fraturas de um pensamento diabólico, assumindo-o como condição para a ressignificação da didática como dídaksis, isto é, uma prática comprometida com a renovação dos sistemas educacionais e culturais contemporâneos.

Marlucy Alves Paraíso (UFMG), em Currículo e seus dizeres, fazeres e quereres: vontade de potência de uma professora?, delineia um bonito mapa do currículo conforme concebido, escrito, conceituado e divulgado por Sandra em sua produção apresentada no GT Currículo nas reuniões anuais da ANPEd – Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação. Documento vivo por se tratar de um relato de quem esteve lá – e que por isso escreve tendo como matéria sensações despertadas pelo encontro com o corpo, o gesto, a fala –, o texto atesta a existência em Sandra de uma ética-política combativa de todo o já pensado, já dito e já realizado no campo curricular. Entre a quantidade imensa de lições que nos foram legadas por Sandra, Marlucy escolhe tomar para si a mais básica e, talvez por isso, a mais bonita delas: a necessidade e o sentido do que está por vir reside na potência de um/a professor/a que cria.

Assumindo um estilo investigativo na tradição de estudos sobre os atos de criação em pedagogia, Poéticas Pedagógicas (Por uma docência em escrileitura), de Marcos da Rocha Oliveira (UFPR), toma a escrileitura – uma das noções-chave oferecidas por Sandra – para afirmar a docência composta no trabalho da palavra poética, afastando-se, assim, da lei do significado e instalando-se, via o texto da aula, em um espaço-tempo de variação contínua da tradição. Por meio da remissão ao duplo Barthes-Corazza, em cujos arredores operam Anton Makarenko, Haroldo de Campos, Maurice Blanchot, entre outros, Marcos defende a docência escrileitural como escolha de rigor inegociável diante das palavras, na medida em que é por elas, por sua força e por seus golpes, que nos chegam os textos, que ajustamos o corpo e as ideias, e que, sobretudo, asseguramos nosso direito ao sonho didático e à poesia curricular.

Ideia semelhante está na base de Tocar o futuro em seu lado de cá: tradução em Sandra Mara Corazza, de Cristiano Bedin da Costa (UFRGS). Perspectivando a tradução como um desdobramento crítico da escrileitura, o texto reencontra o modo transcriador por meio do qual Sandra leu e reescreveu elementos originais científicos, filosóficos e artísticos na língua curricular e na didática. Enfatizando os procedimentos de alegoria e de apropriação, o texto toma a didática-artista da tradução proposta por Sandra como um saber-fazer peculiar, continuamente reimaginado pelo presente da criação (o tempo da entretrama de diferentes tempos e de usos do signo na operação do texto e na ocasião da aula). Para a autora, traduzir é assimilar de modo poético e transcriador a matéria de estudo, de forma que a pesquisa e o ensino convertam-se em ocasiões para o deslizamento do sentido e para a reimaginação da tradição.

O conjunto dos textos evidencia o vitalismo indefectível do pensamento de Sandra. Enquanto os artigos debruçam-se sobre seus movimentos concretos e suas construções teóricas, a entrevista final permite ler de outra maneira as articulações entre a obra e a vida.

É assim que Paola Zordan, ex-orientanda e colega de Sandra, acompanha os movimentos desta última desde meados dos anos 1990, dando a ver os pontos de viragem por ela experimentados. E, novamente, vem à baila a mirada inquieta de Sandra sobre as questões que lhe eram caras: o currículo, o infantil, a artistagem, a biografemática, a escrileitura, a tradução, entre outros. A entrevista culmina na temática do sonho. Para a entrevistada, trata-se não apenas de um novo (e derradeiro) conceito, mas, sobretudo, de um plano de pensamento em que Sandra articula várias tópicas que a conduziram vida adentro, convocando-nos a um diálogo em delay com o espectro de seu pensamento.

O arranjo final deste dossiê, parece-nos, sustenta-se ao modo de “uma rede organizada de obsessões” (Barthes, 1991, p. 9). Na medida em que rede é tanto modo de existir quanto gesto inacabado e não fixidez (Corazza, 2018), não fizemos mais do que resguardar a coerência bricoleur e inesgotável de uma vida de professora. Essa vida, pelo que vem a seguir, dá-se a conhecer na qualidade de ser de memória, de estudo e de escrileitura. Ela e o papel, ou melhor, fragmentos recolhidos na vidarbo de uma professora-pesquisadora, desdobrados e inscritos “na pele do eu-de-papel” (Corazza, 2014, p. 9).

De resto, autorizando-nos aquela paixão por perturbação e por motilidade com que Sandra interrogou a si mesma e a todo objeto de estudo, sugerimos a solidão forçada e o empenho doloroso ao trabalho das letras, frases, sílabas e ideias nunca antes havidas, por intermédio do pensar entre os textos. O desejo de novos “rabiscos pretos se desdobrando em longos fios de tinta” (Corazza, 2021, p. 23), enfim. A busca por algum sentido, o pensar maneiro e matreiro, uma fresta ao menos.

Lá onde a morte não nos vê.

1O termo, criado por Haroldo de Campos, descreve o modus operandi de sua poética, baseada na releitura/reescritura de outros autores.

Referências

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CORAZZA, Sandra Mara. Tema gerador: concepções e práticas. Ijuí: Editora Unijuí, 1992. [ Links ]

CORAZZA, Sandra. Memorial de vidarbo: escrileitura biografemática. 2014. Apresentado à COMISSÃO ESPECIAL DE AVALIAÇÃO para solicitar Promoção à Classe E de Professor Titular da Carreira do Magistério Superior – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: https://www.ufrgs.br/escrileiturasrede/memorial/. Acesso em: 18 maio 2022. [ Links ]

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CORAZZA, Sandra Mara. O Sonho da Docência: Fantástico Tear. Pro-Posições, Campinas, v. 32, 2021. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8666813. Acesso em: 17 abril 2022. [ Links ]

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Recebido: 01 de Junho de 2022; Aceito: 05 de Agosto de 2022

E-mail: groppaq@usp.br

E-mail: cristianobedindacosta@gmail.com

Julio Groppa Aquino é professor Titular da Faculdade de Educação da USP. Bolsista de Produtividade 1D do CNPq. Mestre e Doutor em Psicologia Escolar pelo Instituto de Psicologia da USP, com pós-doutorado pela Universidade de Barcelona.

Cristiano Bedin da Costa é professor do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenador da Rede de Pesquisa Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação.

Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

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