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Educação e Realidade

versão impressa ISSN 0100-3143versão On-line ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.47  Porto Alegre  2022

https://doi.org/10.1590/2175-6236124429vs01 

SEÇÃO TEMÁTICA: SANDRA MARA CORAZZA: UMA VIDA...

Currículo e seus Dizeres, Fazeres e Quereres: vontade de potência de uma professora?

Marlucy Alves ParaísoI 
http://orcid.org/0000-0002-3542-4650

IUniversidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte/MG – Brasil


RESUMO

Este artigo realiza um mapa do currículo conforme concebido, escrito, conceituado e divulgado por Sandra Mara Corazza em sua produção sobre o tema apresentada no Grupo de Trabalho (GT) Currículo nas reuniões anuais da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Mostra que a sua produção busca seguir uma ética-política combativa daquilo que já foi produzido no campo, para produzir sentidos novos para o currículo e atrelá-lo à potência de uma professora que cria.

Palavras-chave Currículo; GT Currículo; Sandra Mara Corazza

ABSTRACT

This article makes a map of the curriculum as conceived, written, conceptualized and disseminated by Sandra Mara Corazza in her production on the topic presented in the Work Group (WP) Curriculum at the annual meetings of National Association of Graduate Studies and Research in Education (ANPEd, initials from Portuguese from Brail). It shows that her production seeks to follow a combative ethics-politics of what has already been produced in the field, to produce new meanings for the curriculum and link it to the power of a teacher who creates.

Keywords Curriculum; GT Curriculum; Sandra Mara Corazza

Introdução

Neste artigo realizo uma espécie de mapa do currículo conforme concebido, escrito, conceituado e divulgado por Sandra Mara Corazza em sua produção sobre o tema apresentada no Grupo de Trabalho (GT) Currículo nas Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd). Além disso, incorporarei a esse mapa algumas sensações despertadas por suas apresentações, quando as assisti na ocasião em que foram feitas. Escolhi percorrer sua produção apresentada no GT Currículo da ANPEd porque trata-se do mais importante evento para a divulgação das pesquisas educacionais, que possui, desde 1986, um GT específico para as discussões das pesquisas sobre currículo. Sandra Corazza participou intensamente, por um período de 10 anos, das atividades do GT Currículo da ANPEd, sendo inclusive a coordenadora do GT, no período de 2002 a 2003. Foi também membro do Comitê ad-hoc do GT e do Comitê Científico da ANPEd. Apresentou, nesse período, cinco trabalhos que foram de grande importância nas mudanças que ela foi fazendo em suas pesquisas e produções acadêmicas.

Além disso, percorri sua produção divulgada nesse evento porque, ao mergulhar na leitura da produção acadêmica de Sandra Corazza, ficou evidente o investimento da autora por apresentar aí os embates teóricos por ela empreendidos no campo curricular, de 1994 a 2001, assim como os conceitos por ela priorizados para explorar um entendimento caro à sua produção: o de que um currículo não existe por si mesmo, não está fixado e não é eterno e nem universal porque é “[…] conquistando e reconquistando, que se dá o jogo de herdar e de legar […] que se faz a pedagogia e o currículo” (Corazza, 2005a, p. 8). Afinal, é nesse jogo que faremos das heranças “[…] outras coisas, diferentes, inéditas, novidadeiras, para também deixá-las de herança àqueles que virão depois de nós” (Corazza, 2005a, p. 8).

Ao analisar a produção sobre currículo de Sandra Corazza apresentada no GT Currículo da ANPEd e publicada, posteriormente, em diferentes revistas acadêmicas e livros, foi possível compreender que a autora deixa rastros em suas escritas que permitem – ao acompanhar as perguntas-problema que mobilizam suas pesquisas e as mudanças feitas no seu próprio pensamento e enfoques de pesquisas curriculares – constatar as criações e criaturas que ela usou para se movimentar e produzir no campo do currículo ao seu modo, que é um modo bastante original e particular. Ao desmontar as escrituras de Sandra Corazza – para responder à pergunta “o que aí está registrado de suas criações sobre currículo?” – pude constatar que sua produção segue os contornos do que podemos chamar de uma ética-política combativa e novidadeira, pois empreende a construção de uma escrita sobre currículo na qual, ao combater o já produzido no campo, se dilaceram os processos convencionais, e faz emergir, por meio da linguagem que ela torce, retorce, compõe, uma luta ética-política que faz um currículo tornar-se completamente dependente do/a professor/a e de suas criações. Mostro, neste artigo, então, como a produção de Sandra Corazza atrela currículo com a potência de um professorar que cria. Afinal, além de apostar na tese de que “[…] o professor cria teoria, prática e método porque, ao educar, traduzindo, não tem como não criá-los” (Corazza, 2018, p. 1), pude verificar, como espero mostrar neste artigo, que a autora aposta no/a docente criador/a, que desconstrói, desaprende, perde, esquece, abandona o já feito para que um currículo possa se revitalizar e ser partícipe da força de transformação e criação que a educação necessita.

Com seus mais variados desdobramentos e recortes, o currículo, na produção aqui analisada, não se apresenta somente como um espaço de representação ou de luta por representação. O currículo, na produção analisada, trata-se de um espaço “de criação na educação”. Há um desejo de que uma/um “[…] docente percorra os contornos de outras linguagens recolhendo aquilo que a/o arranque do medo, da tristeza e da frustração para improvisar, criar” (Corazza, 2005b, p. 104) no currículo. E claro, ao atrelar o currículo à ação de um/a professor/a que se movimenta, interroga, desfaz, refaz, é nos currículos-menores que é necessário investir. Afinal, depreendo, da produção analisada, que é no currículo-menor que se pode fazer a improvisação, a experimentação e a criação.

Os currículos-menores são aqueles “[…] feitos por nós, educadores/as, que todos os dias em nossas salas de aula produzimos encontros, agenciamos saberes e culturas, movimentamos com a diferença e fazemos embates com o currículo-maior e sua sede de controle e prescrição” (Paraíso, 2019, p. 36). Argumento, neste artigo, que, ao apostar na necessidade de interrogar permanentemente os dizeres, fazeres e quereres do currículo, é nos currículos-menores que Sandra Corazza vê possibilidades de invenção e resistência. Afinal, é nos currículos-menores – esses que emergem “em processos de exterioridade ao Estado” (Corazza, 2010, p. 160) e que demandam a vontade de potência de uma professora –, que podemos construir “o futuro que queremos mudado” (Corazza, 2001c, p. 14).

Sandra Corazza, em sua produção acadêmica sobre currículo, divulgada no GT Currículo da ANPEd, ao apostar nos currículos-menores que são ou podem ser feitos por professores/as, busca um arsenal conceitual sofisticado, complexo e variado para explorar temas pedagógicos articulados com currículo. Muitas vezes, o campo, ao trabalhar com as perspectivas críticas e também pós-criticas de currículo, tomou-o como “um fato”, como dado, como sendo meramente técnico, sem problematizações, tais como: aula, didática, professor/a, infância, avaliações, pareceres descritivos… E é exatamente ao trazer para o campo do currículo a discussão desses temas pedagógicos, já quase esquecidos pelas teorias curriculares em suas problematizações, que Sandra Corazza, apostando na vontade de potência do/a professor/a, traz o novo para o campo. Isso faz com que o currículo seja pensado de modo bastante diferente do usual nos campos pedagógico e curricular. É isso que busco mostrar a seguir, trazendo aquilo que ela produziu e apresentou no GT Currículo da ANPEd no tempo em que participou ativamente de seus encontros e atividades.

Dizeres e Fazeres nos Currículos: embates com o existente porque são significados transcendentais do currículo que dificultam o novo!

O primeiro sentido de currículo produzido por Sandra Corazza e apresentado na reunião então anual da ANPEd pela primeira vez, em 1994, foi o de “[…] currículo como um espaço de divulgação de significados transcendentais” (Corazza, 1994a; 1995c1). Nesse mesmo ano, 1994, Sandra Corazza havia iniciado o doutorado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), orientada por Tomaz Tadeu da Silva. Na época, já trabalhava em um projeto de investigação com o título O Construtivismo Pedagógico como Significado Transcendental do Currículo: Razão e Obscurantismo da Educação (Corazza, 1994b2). Na esteira das críticas contundentes que Tomaz Tadeu vinha fazendo do construtivismo pedagógico (Silva, 1993; 1994a; 1994b), Sandra apresenta, no GT Currículo da ANPEd, suas primeiras problematizações sobre o construtivismo pedagógico no currículo. O trabalho apresentado deixa evidente que sua escrita não vinha para acalmar; mas sim para o bom combate. Trabalho denso, com questões e uma postura crítica aguçada chama para o bom combate por meio da desconstrução daquilo que havia se transformado na grande verdade para a educação. Suas primeiras palavras no GT foram: “O Currículo tem significados transcendentais que dificultam o novo!” (Corazza, 1994a, p. 1). Ao “[…] desconstruir esses significados transcendentais e mostrar sua feitura talvez possamos fazer o novo aparecer. Um desses significados transcendentais é, certamente, o construtivismo pedagógico!” (Corazza, 1994a, p. 2). Então, a Sandra, com estratégias da desconstrução – aprendidas sobretudo de Jacques Derrida, mas também de Cleo H. Cherryholmes –, coloca o construtivismo pedagógico nu, mostrando como essa “[…] teoria psicológica-epistemológica, por se apresentar e ser apresentada como teoria social”, acaba sendo falada e escutada “[…] como uma metanarrativa poderosa e global, quer em suas formulações conceituais, quer em suas práticas e ideais pedagógicos e políticos” (Corazza, 1995c, p. 220). O Construtivismo Pedagógico, como significado transcendental do currículo, afirma Sandra Corazza, serve “[…] como crença racional/mística de que necessita o estado neoliberal/neoconservador para instalar suas políticas educacionais” (Corazza, 1995c, p. 227) que buscam “[…] quebrar o direito à educação, ao instituir […] a lógica do mercado” (Corazza, 1995c, p. 227).

O ano, 1994, era o auge do construtivismo no discurso pedagógico no Brasil, na América Latina e em vários países da Europa. Anos depois o construtivismo ainda era discurso considerado tão verdadeiro que ganhou lugar de destaque na política curricular brasileira ao ser indicado nos Parâmetros Curriculares Nacionais (Brasil, 1997) como sugestão de teoria pedagógica para subsidiar o trabalho das professoras e dos professores da escola básica brasileira (Moreira, 2010). Após a apresentação desse trabalho da Sandra, naquela ocasião, fez-se um silêncio estridente na sala. Ninguém comentou, ninguém perguntou nada sobre o trabalho. Mas ninguém sequer movia… Depois de minutos de silêncio, alguns participantes dirigiram perguntas aos outros apresentadores que se encontravam na mesma sessão. Muitas hipóteses levantamos sobre aquele silêncio. Nunca o deciframos ao certo. Paraíso (2005) escreveu o seguinte sobre esse silêncio:

Algumas linhas, das pesquisas pós-criticas apresentadas do GT Currículo da Anped, como, por exemplo, a linha do construtivismo como significado transcendental do currículo, parecem se desmanchar logo que traçadas. Elas somem no silêncio dado em resposta à sua força de inquietação. O silencio-incômodo que se fez após a sua apresentação no GT, também se faz até hoje. Não há sequência dessas linhas e nem continuidade nos traçados iniciados. Talvez, porque, naquele momento, as linhas tenham sido fortes, vivas e cortantes demais. Talvez porque tenha introduzido uma novidade no campo. Talvez porque ainda fosse um pensamento “fora da caixa”. Será mesmo por isso? Talvez; apenas talvez… De todo modo, o que é evidente é que no currículo-mapa nem todas as linhas proliferam, ainda que tenham força suficiente para deixar curriculistas incomodados/as, por muito tempo, em relação à temática abordada e também ao silêncio recebido. A linha do construtivismo como significado transcendental do currículo, que uma curriculista estende na arena do GT currículo, não é retomada por ninguém no mapa do currículo pós-crítico. Essa linha […] para ali. Ninguém a retoma ou procura estende-la no território analisado. Pelo menos por enquanto…

(Paraíso, 2005, p. 74).

Certamente, se o silêncio produzia controvérsias, isso não paralisava Sandra, que seguia problematizando procedimentos e práticas caras ao construtivismo pedagógico. No ano seguinte, 19953, Sandra Corazza apresenta novo trabalho no GT Currículo colocando agora em questão uma prática de avaliação que era central para os currículos construtivistas e que gozava de absoluto prestígio nas práticas pedagógicas críticas: os Pareceres Descritivos. Embora ainda houvesse resquícios de elementos de uma desconstrução inspirada na produção de Jacques Derrida, há nesse trabalho uma outra perspectiva que passa a subsidiar as análises de Sandra: a “perspectiva fou­caultiana e dos Estudos Culturais” (Corazza, 1995a, p. 47). Considerando os Pareceres Descritivos um dispositivo de poder, Sandra Corazza explora as “[…] relações entre currículo, cultura, conhecimento escolar, identidade e poder” (Corazza, 1995a, p. 47), e mostra suas funções estratégicas para a política cultural da infância-escolar e dos saberes escolares. Isso é feito, conforme argumenta a autora, “[…] a fim de exercitar um questionamento permanente dos sistemas de pensamento e das formas problemáticas da experiência social em que nos encontramos” (Corazza, 1995a, p. 47).

Vemos nesse trabalho – que, ao contrário do trabalho apresentado no ano anterior, foi minuciosamente discutido e debatido pelos/as pesquisadores/as participantes do GT Currículo –, uma prática extremamente interessante na produção acadêmica de Sandra Corazza, que percorre toda a sua vida de pesquisadora: a prática de problematizar, interrogar, desconstruir e atribuir outros sentidos a termos e práticas usados na teorização pedagógica comumente como uma questão técnica. Aqui é a avaliação que é escrutinada por Sandra Corazza. É falando disso que a pesquisadora começa a sua intervenção no GT naquele ano quando diz: “A avaliação vem sendo tratada, por alguns segmentos da teorização educa­cional, como uma questão meramente didática, técnica, cognitiva ou atitudinal; ou então, por uma abordagem mais crítica, como uma genérica corporificação do poder!” (Corazza, 1995a, p. 48). E continua: “Neste trabalho, propus-me a […] inclinar tais tratamentos consagrados pelo discurso pedagógico corrente acerca da avaliação” (Corazza, 1995a, p. 48).

Nesse trabalho, Sandra Corazza assume uma perspectiva inspirada na produção do filósofo francês Michel Foucault e “seus derivativos para o campo da Teoria Crítica do Currículo” para lançar, alguns “olhares” aos Pareceres Descritivos objetivando sua desnaturalização. Enfoca os Pareceres Descritivos “[…] como uma impor­tante estratégia da política cultural da escola, nos domínios de produção-controle-­dominação da infância-escolar e do currículo praticado na educação dessas mes­mas crianças” (Corazza, 1995a, p. 49). Além disso, os Pareceres Descritivos são analisados como “[…] uma prática pedagógica de regulação moral, que constitui ou transforma a experiência que as crianças têm de si e que, portanto, torna-se uma exemplaridade das relações entre currículo, identidade e poder” (Corazza, 1995a, p. 49). Os Pareceres Descritivos são “um dos dispositivos avaliativos operantes” na escola investigada pela autora e, ao analisá-lo, a autora descreve “[…] suas funções estratégicas no processo de regulação moral, em direção à constituição de identidades dos grupos sociais e dos sujeitos par­ticulares, com efeitos culturais homogeneizadores e, por isso mesmo, discrimi­natórios e excludentes” (Corazza, 1995a, p. 48). Uma das conclusões apresentadas no trabalho é a de que as prescrições analisadas nos pareceres

[…] corporificam um dos tantos instrumentos políticos de discriminação cultural utilizados pela escola em sua relação com os grupos sociais, ao se atribuir a força de legislar sobre quem é incluído e quem deve ser excluído; ao fabricar identidades pessoais e sociais; ao prescrever um catálogo de regulação moral para as posições sociais e de sujeito admissíveis e inadmis­síveis; ao criar e promover divisões de classe e gênero inferiorizando e excluin­do; enfim, ao moldar a armadura da conduta cotidiana escolar e os sujeitos que devem vesti-la

(Corazza, 1995a, p. 55).

Os Pareceres Descritivos são, então, considerados uma prática curricular que mobiliza diferentes saberes modernos identificados pela autora. Inspirada na compreensão foucaultiana de ética como “prática de si­ mesmo”, já que “[…] existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós” (Foucault, 2000, p. 257), a autora convoca a abdicarmos “[…] minimamente do poder-saber pedagógico moderno até agora instituído sobre a infância-escolar (do qual os pareceres constituem um disposi­tivo), para que esta – e, por consequência nós, o sujeito contemporâneo ali narrado – consiga ser um pouco diferente do que dele foi dito/feito” (Corazza, 1995a, p. 56), e para que tentemos ao menos “fazer da educação que nos deram, algo diferente do que aquilo que dela resultou” (Corazza, 1995a, p. 56).

Essa luta está presente em toda a produção de Sandra Corazza analisada: fazer do currículo e com o currículo algo diferente do que fizeram com o currículo que nos formou! Fazer conosco mesmo algo diferente do que fizeram de nós! Isso demanda que interroguemos os termos, saberes e práticas pedagógicas que são usados na escola. Afinal, eles foram usados para nos constituirmos como somos hoje.

Interessante registrar também que a problemática do construtivismo já vai diluindo nesse trabalho, até desaparecer de sua produção para dar lugar à problematização de outras práticas pedagógicas. Há, já aqui, embriões para a formação de um novo campo problemático que vai, cada vez mais, tornar-se central nas problematizações, investigações, preocupações e escritas de Sandra Corazza: a infância. É ela, junto com currículo, que a partir daqui vai se tornar tema central de sua produção acadêmica.

No ano seguinte, 1996, Sandra Corazza apresenta mais um trabalho intitulado Olhos de poder sobre o currículo (Corazza, 1996b 4) para uma sala lotada de pesquisadores/as que, cada vez mais, se aglomerava para escutar os resultados parciais de pesquisas que ela apresentava no GT Currículo da ANPEd. A perspectiva foucaultiana é aprofundada nesse trabalho para fazer uma espécie de genealogia sobre os saberes e poderes usados nos Pareceres Descritivos que escrutinam, normalizam e produzem as crianças de determinados modos no currículo escolar. Sandra Corazza inicia sua apresentação dizendo:

Os olhos que olham as crianças na escola e na sala de aula não são nunca isentos, sequer desinteressados, muito menos descritivos. Seus olhares – se­jam curriculares, didáticos, pedagógicos, psicológicos, sociológicos, filosófi­cos, antropológicos – estão historicamente comprometidos em determinadas relações de poder-saber e implicados na constituição de certas políticas de iden­tidade e de representação culturais, e não de outras

(Corazza, 1996a, p. 47).

Ainda colocando em foco os Pareceres Descritivos e sua força normalizadora nos currículos escolares, Sandra Corazza explora nesse trabalho inicialmente o que ela chamou de “Usos e Costumes” dos Pareceres Descritivos. Em seguida ela aborda as “Continuidades Didáticas” desses Pareceres – já que ela vê uma “[…] linha contínua que estende as significações vistas na prática escolar pesquisada até as orientações fornecidas pelos textos didáticos”. Numa terceira parte do seu trabalho, a autora explora o que chamou de “Ver, Saber”, para mostrar “[…] alguns dos modos pelos quais a peda­gogia moderna se apropriou e reterritorializou as positividades médicas de olhar e de produzir saber, para criar e pôr a funcionar seus dispositivos avaliativos da observação, auto-avaliação e pareceres escritos”. Por fim, ela discute a “Penalização Normativa”, estabelecendo aí “[…] correla­ções entre a forma de penalização normativa moderna e a avaliação escolar” (Corazza, 1996a, p. 47-48).

Chamando a atenção para os olhares de poder no currículo, a autora mostra que de inocência esses olhares nada têm, já que por meio desses Pareceres Descritivos exerce-se um novo poder de julgar. A autora argumenta que esses Pareceres, vistos como um “olhar de poder no currículo”, colocam “[…] a criança em proces­so permanente de claridade, de produção, de normalização e patologização”; até que “[…] ela mesma interiorize sua própria transparência e possa se tornar um civili­zado indivíduo ocidental auto-normalizado” (Corazza, 1996a, p. 66). Chama a atenção para o fato de que não é por serem descritivos e “suaves” que esses pareceres exerçam menos poder. Ao contrário, a “[…] suavidade de seu olhar, dito humanizante, está investido como técnica de poder, e é isto que o discurso pedagógico contemporâneo prossegue, reiteradamente, escamoteando” (Corazza, 1996a, p. 66). Corazza encerra sua apresentação interrogando a nós, pesquisadores/as do campo curricular, sobre quais são os olhos que usamos para olhar os currículos. Afinal, pergunta a pesquisadora, “[…] até quando continuaremos olhando para esses olhos de poder sobre o currículo, de maneira inocente?” (Corazza, 1996a, p. 66). Os nossos corpos – de pesquisadoras/es do currículo que a assistíamos – que se mexiam de um lado para o outro como se não encontrassem um lugar cômodo para estar, denunciam que a pergunta nos tocava em cheio. Havia ali uma convocação a sair do lugar cômodo! Tudo no currículo moderno precisava ser mexido, revisto, revirado. Isso produzia muitos incômodos.

Fica evidente que, nesse período de 1994 a 1996, Sandra Corazza apresenta trabalhos que produzem uma série de embates com os currículos existentes: desconstrói os significados transcendentais do currículo. Mostra como os saberes modernos, que os currículos operacionalizam e que nos constituem, dificultam o novo na escola. Analisa a política cultural de avaliação nas escolas e seus efeitos na constituição dos infantis. Faz uma espécie de genealogia dos poderes que prescrevem modos adequados de ser estudantes na escola. Esmiúça saberes e poderes que marcam, moralizam e governam infantis por meio de pareceres e “olhares” em diferentes práticas curriculares. Em síntese, Sandra Corazza – em suas pesquisas apresentadas e discutidas no GT Currículo da ANPEd – centra-se, nesses primeiros anos, em explorar os dizeres e os fazeres dos currículos que produzem sujeitos e dificultam que o novo venha na educação e na vida. Era pelo novo que a pesquisadora Sandra Corazza clamava.

Quereres no/do Currículo: fraturas da infantilidade moderna e modos de subjetivação do infantil

Em 1999, Sandra Corazza apresenta, no GT Currículo da 21ª Reunião Anual da ANPEd, um trabalho intitulado O currículo como modo de subjetivação do infantil (Corazza, 1999; 2001a5). Explicitando que seu trabalho se alimenta e se insere no campo das teorias pós-críticas sobre currículo, a autora lembra que essas teorias não formulam qualquer política subjetivadora prescritiva, mas convidam a “[…] expor a astúcia do autoconhecimento, renunciando às práticas que nos aprisionam às próprias identificações” (Corazza, 2001a, p. 57). As teorias pós-críticas de currículo incitam a fazer “[…] uma ontologia histórica e crítica das subjetividades, tornando-as ‘estranhas’; a desmascarar a contingência de suas verdades fixadas; a desenterrar suas raízes históricas; a descobrir o funcionamento dos processos de subjetivação que ocorrem em um domínio particular de saber-poder” (Corazza, 2001a, p. 57).

Mais uma vez Sandra Corazza estabelece uma outra mudança em sua produção sobre currículo, ao significá-lo como uma prática subjetivadora. Localizando, então, seu trabalho no território da “ética de si” de Michel Foucault, a autora lembra que essa ética “[…] faz com que deixemos de tolerar nossas condições subjetivadoras”. Essa ética faz com que “[…] percebamos a violência das auto-identificações”, expondo “[…] os custos de haver podido, até então, dizer a verdade sobre nós mesmas/os” (Corazza, 2001a, p. 57). É com essa abordagem que ela explora os modos de subjetivação do infantil pelo currículo e entende que o currículo é uma linguagem que sempre quer modificar alguma coisa e/ou alguém.

Seu trabalho de pesquisa se volta então para a subjetivação, “[…] que diz respeito ao que somos, ao que fazemos e como nos significamos” (Corazza, 2001a, p. 57). A autora explicita que conceber o currículo como modo de subjetivação implica “[…] analisar seus conhecimentos, linguagens, formas de raciocínio, ciências, tipos de experiência, técnicas normativas”, como estando “[…] vinculados às relações de saber e de poder que atravessam os corpos para gravar-se nas consciências” (Corazza, 2001a, p. 57). Investigar o currículo como prática subjetivadora, explicita a autora, “[…] exige isolar e reconceptualizar uma dimensão específica derivada desses poderes e saberes, mas que não depende deles nem a eles se reduz: a dimensão da subjetividade” (Corazza, 2001a, p. 57-58).

Ainda posso sentir o pacote de sensações provocadas ao ouvirmos – nós, pesquisadores/as – a crítica da subjetividade infantil feita por Sandra; ao escutarmos sobre o que somos, sobre a astúcia do autoconhecimento, sobre o funcionamento dos processos de subjetivação, sobre as práticas que nos aprisionam às próprias identificações. Ainda posso sentir os tremores ao escutarmos a convocação para “[…] desmascarar a contingência das verdades fixadas sobre nós mesmas”; para “desenterrar as raízes históricas” de nossa constituição. Sandra Corazza já tem vidradas/os a todos/as nós pesquisadores/as que a escutávamos, sobretudo porque escolhe um domínio particular de poder-saber para analisar que nos é muito caro: o currículo destinado aos infantis.

Aproveitando nosso estado de comoção, a autora diz a que veio: quero dizer a vocês que, em relação ao currículo e aos modos de subjetivação do infantil,

[…] é possível que tenha chegado a hora de esquecer os velhos poderes, que não se exercem mais; os velhos saberes que não são mais úteis; as velhas crenças, nas quais nem cremos mais; e os velhos modos de nos produzir como sujeitos, que não correspondem mais às subjetividades que vimos constituindo

(Corazza, 2001a, p. 66).

Sem nos dar tempo para pensarmos nessas despedidas, Sandra segue sua argumentação: “[…] lá de dentro de nossos currículos, o infantil zomba de nós”. Isso talvez “[…] porque ele saiba que nós o escutamos e olhamos, como se fosse uma subjetividade que ainda brinca de ser grega, cristã… enquanto que o que ele vem armando é o exercício de novas práticas de liberdade” (Corazza, 2001a, p. 66).

Os novos modos de enunciação do infantil, “El Niño” e “La Niña”, mostrados por Sandra Corazza como demarcando a fratura da infantilidade moderna, fizeram-nos prender a respiração provisoriamente. Essas “duas figuras emblemáticas”, afirma a pesquisadora com contundência,

São as crianças mais mal-educadas de hoje. Não sabem ler, nunca foram à Escola; não são tiranizadas pela cultura midiática, não assistem televisão e nem tem computador. Não precisam resolver nenhum complexo de Édipo; não têm pai e nem mãe. Não são expropriadas nem violentadas; parece até que não brincam

(Corazza, 2001a, p. 71).

Enquanto a autora descrevia esses dois modos de enunciação do infantil que nos aterrorizavam, continuávamos com a respiração suspensa para soltarmos somente quando mencionada a infância doce do Menino Jesus, que ainda insistimos em ver em nossos currículos e em nossas crianças.

Como se não bastasse, cada frase seguinte, arrepiava e atormentava-nos porque dizia da despedida e morte de um tipo de infância, produzindo “saudades da aurora querida” das nossas vidas. Numa espécie de poesia da subjetivação, como se tivesse antecipado o estado de comoção que nos tomava pela morte anunciada daquela infância que nos era também conhecida, Sandra Corazza afirma que é “[…] possível pensar que a ‘morte’ de subjetividades por demais familiares seja o contrário de morte. Talvez as práticas feitas para matá-las liberem finalmente suas linguagens, no exterior de seu mutismo” (Corazza, 2001a, p. 74). E completa: “Como no canto das sereias, talvez sua sedução consista no vazio que abrem, na imobilidade fascinante que provocam naqueles/as que as escutam” (Corazza, 2001a, p. 74).

Quando a autora finaliza sua apresentação dizendo: “Pode ser que tenha chegado a hora da despedida”, a emoção já tinha tomado conta do GT. De fato, o currículo como modo de subjetivação do infantil tocou, abalou, estranhou, fez chorar, emocionou… Produziu uma espécie de antes e depois, tanto na produção sobre currículo de alguns/algumas pesquisadores/as do campo como na própria produção acadêmica de Sandra Corazza sobre currículo.

Afinal, ao mesmo tempo em que Sandra Corazza falava da despedida de um tipo de infantil, parecia também uma espécie de despedida de um tipo de abordagem em suas pesquisas, já que os últimos parágrafos de seu trabalho falam de uma escrita no território da ética do currículo, em outro registro do político: “De um político-trágico, como para Nietzsche […]. Não residente na angústia e na tristeza, nem na nostalgia da unidade perdida. […] Mas, definindo-se na multiplicidade, na diversidade da afirmação, na alegria plural, no riso alegre do ser e do devir” (Corazza, 2001a, p. 74). Temos aí talvez os germes de embriões do que viria a ser o investimento de Sandra Corazza para desfazer-se de vez do já feito e buscar o “futuro”, que, ela dizia, queria ver modificado.

Um Outro Investimento para mostrar o(s) Risco(s) do Hibridismo nas Políticas de Currículo

No ano seguinte, em 2000, Sandra apresenta um trabalho, a convite do GT Currículo, não mais para pesquisadores/as apenas de currículo. Ela participa de uma mesa, Sessão Especial da ANPEd, junto com os professores Reinaldo Fleury, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Silvio Galo, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A mesa era coordenada pela professora Alice Lopes, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) – na época professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenadora do GT Currículo. A Sala Baependi – do Hotel Glória de Caxambu-MG onde ocorria o evento – encontrava-se completamente lotada. As pessoas, não tendo mais onde ficar, acumulavam-se sentadas no chão próximas dos/as palestrantes ou perto das janelas e portas, apertando-se umas nas outras para escutar. A mesa era composta pelos GTs Currículo, Educação Popular e Educação Fundamental e tinha como tema Propostas curriculares: entre o oficial e o alternativo6. Sandra Corazza nomeou sua fala de Currículos alternativos-oficiais: o(s) risco(s) do hibridismo (Corazza, 2000a). Seu trabalho foi publicado com o mesmo nome, no ano seguinte, na Revista Brasileira de Educação (Corazza, 2001b 7).

Quando muitos/as de nós que ali estávamos esperávamos mais uma crítica contundente ao currículo oficial e à defesa dos currículos alternativos que “[…] contassem outras histórias. Histórias que, por serem ‘alternativas’, minassem ‘a inevitabilidade’ e ‘naturalidade’ das narrativas dominantes” (Silva, 1995, p. 185-186), e que trouxessem exemplos dos currículos alternativos que o Brasil construíra nos anos 90, como o da Escola Plural de Belo Horizonte, o da Escola Cidadã de Porto Alegre, o da Escola Democrática e Popular do Estado do Rio Grande do Sul – para falar apenas de três das várias propostas consideradas alternativas construídas naquela época e extremamente aclamadas –, já vem Sandra Corazza atormentar-nos com aquele risco do hibridismo. Esse risco do hibridismo mostrava o quanto os currículos alternativos e oficiais, os de esquerda e de direita, tinham discursos, saberes e narrativas parecidos.

Sandra Corazza diz: vou argumentar que “[…] não conseguimos consolidar políticas, currículos, propostas pedagógicas ou discursos alternativos” (Corazza, 2001b, p. 101). Não conseguimos por um motivo bem simples: “[…] não que tenhamos fracassado, mas, porque, em função de muitos fatores (pertinentes à nossa condição histórica, profissional e subjetiva), perdemos o rumo, os limites e o diferencial, que nos permitiam distinguir o que era ‘oficial’ do que era ‘alternativo’” (Corazza, 2001b, p. 101). Sem dar trégua aos murmurinhos que se faziam na sala, ela continua:

Porque somos sujeitos desta época e de nenhuma outra, não conseguimos experienciar mais a educação e a Pedagogia do mesmo jeito que antes. Por isso, as praticamos, enquanto os novos seres híbridos que somos. Seres que, dentre outras características, possuem, em seus fazeres, pensares e dizeres, uma porção de currículo ‘oficial’ e outra porção de currículo ‘alternativo’. Ao perdermos os fatores distintivos, entre ‘oficial’ e ‘alternativo’, nossos currículos passam a ser representados pelo traço de união que liga, agora, as duas palavras

(Corazza, 2001b, p. 102).

E apesar dos burburinhos que aumentavam e se espalhavam por toda a sala, Sandra seguia: “Por mais que isto me doa (e ‘dói’) realizarei o exercício analítico de buscar similaridades discursivas entre o Currículo Nacional, expresso nos PCNs, e o ‘Movimento Constituinte Escolar’” (Corazza, 2001b, p. 17). Esse movimento de “[…] construção da Escola Democrática e Popular visa a definição de princípios e diretrizes para a educação da rede pública estadual do governo petista do Rio Grande do Sul” (Corazza, 2001b, p. 17-18).

Sem se deixar paralisar pelas reações da plateia, Sandra Corazza mostra, então, duas listas com fragmentos das propostas curriculares dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e da Constituinte Escolar do Rio Grande do Sul, sem identificar de qual proposta se tratava. Ela disse: “[…] selecionei enunciados dos dois currículos, reuni-os em temáticas sob um título comum e suprimi os seus dados de identificação”. E convida: “Procedi deste modo, pretendendo convidá-los/as para um ‘jogo’. O jogo consiste em identificar qual proposta educacional é de quem. Qual é a do Governo FHC, e qual é a do Governo Olívio Dutra?” (Corazza, 2001b, p. 17-18).

Chamados/as a entrar no jogo da busca para reconhecer qual discurso era da proposta alternativa/de esquerda e qual era oficial/de direita, ali estávamos estupefatos/as com a semelhança do que víamos. De fato, não conseguíamos identificar à qual proposta aqueles fragmentos pertenciam. Currículos semelhantes, embora um fosse de um governo neoliberal e o outro de esquerda. Um havia sido feito em gabinetes fechados com a participação de uns poucos especialistas escolhidos pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (Moreira, 2010). O outro com participação ativa dos/as professores/as da escola básica do Estado do Rio Grande do Sul, de membros da comunidade, sindicados, movimentos sociais e dos mais diferentes especialistas da educação (Moreira, 2000). Ainda assim, havia muitas semelhanças.

Então, após o susto, naquela ocasião, inúmeras perguntas foram feitas à Sandra. Objeções de todos os tipos, tais como: 1) “O vocabulário pode ser o mesmo, mas as semânticas podem ser diferentes e você não explorou isso”. 2) “Os processos de construção foram diferentes, e isso conta muito”. 3) “Mas as duas propostas são oficiais, você está mesmo trazendo proposta alternativa?”. 4) “Você não disse nada do currículo efetivo, e é aí que se dá a diferença”. 5) “Tudo que disse está errado. Não é nada disso. Nunca foi. Só parece que é. Você se enganou redondamente”. 6) “O que você está fazendo é, além de complicado, perigoso, igualando as propostas de currículos de governo de direita e de esquerda!”. E assim seguiam as objeções…

Vale registrar que, quando Sandra Corazza publicou esse seu trabalho na Revista Brasileira de Educação, no ano seguinte, ela incorporou no artigo comentários sobre cada uma dessas objeções que ela recebera naquele momento (Corazza, 2001b, p. 103-105). Aceitando toda a enxurrada de perguntas, comentários, críticas e objeções que recebia, e que quase não lhe davam tempo para respirar ou responder, a autora diz:

Mesmo em face dessas objeções, prossigo argumentando que nossas propostas curriculares atuais não estão entre o oficial e o alternativo. Estão no meio, no traço de união, no hífen de ligação. Que elas são fusão, associação, combinação. Que nossos currículos alternativos, produzidos em quase trinta anos de trabalho nas organizações não-governamentais, sindicatos, movimentos sociais, escolas, vilas, universidades, estão lá, presentes e encravados no Currículo Nacional. E que este, oficial, está também aqui, nos currículos que organizamos e implementamos, e que ensinamos a organizar e a implementar

(Corazza, 2001b, p. 106).

Sem deixar dúvidas na evidência de que os currículos de governos de “esquerda” e de “direita” estavam unidos, fundidos, associados e combinados, ela sentia que queríamos algum caminho. Mas o caminho, sabíamos, precisava ser feito seguindo, caminhando, inventando… Sandra Corazza conclui, então, o seu trabalho, convocando ao criar. Ela diz:

Para desmontar, desfazer, disjuntar o que está aí, representado pelo traço de união entre currículo alternativo–currículo oficial, penso que podemos avaliar, no sentido nietzscheano de ‘criar’. Duvidar de pretensos valores educacionais em si. […] Afirmar a relatividade de valores […]. Avaliar o valor de nossas ações e convicções, pautadas por estes valores porque fomos nós as/os doadoras/es que forneceram valor e sentido às palavras que estão tanto no currículo nacional quanto no alternativo […]. Fazendo isto (por mais que doa, e ‘dói’), estaremos, primeiro, aceitando que estamos implicadas/os, sim, nesse risco/traço, e correndo os riscos do hibridismo político-educacional. Em segundo lugar, estaremos mais aptos/as para exercitar nossa força criativa e produzir currículos que ainda não existem. […] Ao exercer nossa vontade criadora […], poderemos, quem sabe, […] desfazer o risco de ligação, que fez com que nossos currículos deixassem de ser não-oficiais. […] Sabendo que, se o seu traçado chegou até aqui, assim, é porque, como tal, foi criado. Se foi criado assim, poderá ser traçado de outros modos

(Corazza, 2001b, p. 106-107).

É assim que Sandra Corazza finaliza suas palavras, deixando-me perplexa; mas, ao mesmo tempo, com a ciência de que muito ainda precisa ser disjuntado, desaprendido, desfeito, imaginado e criado. Certamente, foi nisso que ela própria passou a investir em suas pesquisas. Toda a sua produção acadêmica a partir daí passa por inúmeras mudanças. Mas Sandra Corazza segue pesquisando e escrevendo sem jamais deixar de expressar seus “quereres” por uma educação outra, um currículo outro, uma aula outra. Quereres que demandam invenção e criação na educação.

Conclusão: currículo e a vontade de potência de uma professora

Nessa última apresentação de trabalho no GT Currículo da ANPEd, Sandra Corazza deixa claro que o trabalho de criação no currículo é de todas/os as/os professoras/es. Sandra Corazza foi, nos dois anos seguintes, 2002 e 2003, coordenadora do GT Currículo da ANPEd, e depois se retirou dele. Nos tempos seguintes, ela passa a participar dos encontros da ANPEd-Sul. Apresenta trabalhos e participa de mesas redondas no GT de Artes daquele evento. Esses são outros tempos, de outras produções, que também merecem ser mapeados e analisados, porque muitos outros sentidos de currículos são produzidos e ali divulgados.

Mas a produção aqui analisada evidencia um desejo sem freio de interrogar os currículos do presente; de problematizar os mais diferentes aspectos dos currículos existentes para criar o novo. Isso só se multiplicou na produção de Sandra Corazza, como atesta sua enorme, diversa e densa produção acadêmica. Talvez, pela sua longa experiência como professora da escola básica, antes de cursar o doutorado e iniciar sua carreira como professora do Ensino Superior, Sandra Corazza, em sua produção sobre currículo, apostou na capacidade criadora do/a professor/a, na vontade de potência da professora, e problematizou diferentes temas pedagógicos com os quais todos/as nós professores/as lidamos. Insistiu que as “[…] práticas educacionais não existem por si mesmas, não estão fixadas, não são eternas e nem universais”. E que é “[…] conquistando e reconquistando […] que se faz a pedagogia e o currículo” (Corazza, 2005a, p. 8). Enfatizou e viveu intensamente sua tese de que “ser educadora” não é só “acumular”; mas também “[…] abandonar, largar, gastar e, nesse gasto, readquirir, retomar, para poder se revitalizar” (Corazza, 2005a, p. 8). Sandra Corazza buscou sobretudo nas Filosofias da Diferença – mas também nas Teorias de Currículo, nos Estudos Culturais, nas Artes e na Literatura – intercessores para movimentar o currículo e seus temas. Foi com um olhar interrogador dos temas pedagógicos que ela conseguiu trazer novas problematizações e conceptualizações para temas que, mesmo sendo caros à teorização pedagógica, são muitas vezes tomados como óbvios, tanto na teoria educacional como fora dela. Sandra Corazza tomou esses temas em sua produção acadêmica sobre currículo como problemas, e então os conceituou de modo bastante diferente do usual no campo pedagógico, fazendo agenciamentos inesperados, estendendo a linguagem ao máximo, expondo sua “gagueira”, fazendo outras conexões, criando outros sentidos.

Agenciou no campo do currículo o plano, a aula, a didática, o/a professor/a, a criança e a infância com sonhos, fabulações, deusas e deuses, diferença, afirmação, fenômenos da natureza como el niño e la niña etc. Ao assim proceder, fez a linguagem do currículo gaguejar, torceu as palavras, transformou substantivos e sujeitos em verbos, verbos em locuções, juntou palavras inusitadas transformando-as em conceitos. Produziu composições e explorou sensações forçando-as a se explicarem e trazendo novidades para o campo do currículo. Foi isso que Sandra Corazza fez em sua produção sobre currículo apresentada na ANPEd e que busquei mostrar neste artigo.

Novos dizeres, novos quereres e novos fazeres no currículo foi sua luta do início ao fim de seu pesquisar, como ficou evidente na sua produção aqui analisada. Um desejo de criação no currículo que a desassossegava e a fazia movimentar continuamente, sem pausa. Como espero ter deixado evidente neste artigo, Sandra Corazza mudava o tempo todo: mudava o seu material de estudo, suas ferramentas teóricas, seu método de trabalho, sua escrita, sua leitura, seu pensamento, suas pesquisas. Se posso tirar uma linha que perpassa os trabalhos que a Sandra apresentou no GT currículo da ANPEd, e que continua em toda a sua obra, é a atividade poética. “Poetizar no currículo significa produzir, fabricar, inventar, criar sentidos novos, inéditos. Isso para que tudo que é enunciado no currículo não fique paralisado, fixo, permanente ou se tome ‘é’!” (Paraíso, 2005, p. 79). Isso demanda um/a professor/a com vontade de potência; incomodado/a com o que estamos fazendo com aquilo que fizeram de nós; preocupado/a com os currículos-menores que criam.

Sandra, a pesquisadora-poeta, investiu muito trabalho na criação de novos sentidos, novas conexões, novos sonhos em e para o currículo. É isso que suas produções têm mobilizado no campo do currículo e que, espero, possamos estender e multiplicar, fazendo parte da tradição de “receber e entregar modificado”, como ela defendeu ser nossa tarefa de educadoras/pesquisadoras comprometidas com as necessidades do tempo em que vivemos. Tempo que ela nomeou, em sua composição com Gilles Deleuze, de “Tempo da Diferença Pura” (Corazza, 2005a).

Tendo a firmação da vida como uma linha de sua produção e seu professorar, é muito evidente que Sandra Corazza amou o que fez! Amou estar e apresentar seus trabalhos no GT Currículo da ANPEd. Amou os acontecimentos que foram essas apresentações; os burburinhos, as objeções, a emoção… Amou ser parte da ANPEd e encontrar com os/as colegas pesquisadores/as em Caxambu-MG para discutir as suas pesquisas, conversar e confabular. Pesquisou e escreveu com paixão. Amou a vida e o destino. Ela sabia, nietzscheanamente, que não existe nenhum valor superior à vida. Assim viveu a curriculista Sandra Corazza, que pensava alto, rápido e sempre. É como se eu pudesse escutá-la: Assim eu quis! Assim eu fiz!. E eu não tenho dúvidas: ela viveria tudo de novo!

Notas

1Faço as duas referências porque se trata do Trabalho apresentado na 17ª Reunião Anual da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação, 1994, Caxambu – MG, com o título O construtivismo pedagógico como significado transcendental do currículo (Corazza, 1994a), e de capítulo de livro, com o mesmo nome, já que esse trabalho foi publicado, com pequenas mudanças, no ano seguinte, no livro Crítica pós-estruturalista e educação, organizado por Alfredo Veiga-Neto (Corazza, 1995c).

2Cabe registrar que Sandra Corazza, nos anos seguintes, modifica completamente o seu problema de investigação, na feitura da pesquisa, e termina por fazer uma tese, publicada em livro, História da Infância Sem Fim (Corazza, 2000b).

3Nas citações a esse estudo, usarei o artigo publicado na Revista Educação & Realidade, já que o trabalho, apresentado no GT em 1995 (Corazza, 1995b), foi publicado, na íntegra, com o mesmo nome e no mesmo ano (Corazza, 1995a).

4Esse trabalho foi publicado nesse mesmo ano na Revista Educação & Realidade, na íntegra. As citações que faço aqui são do artigo publicado na revista (Corazza, 1996a).

5Esse trabalho, apresentado em 1999, foi publicado posteriormente com o mesmo título no capítulo 3 do livro intitulado O que quer um currículo? (Corazza, 2001a). As citações que faço aqui são de 2001, e não de 1999, quando o trabalho foi apresentado.

6Trabalho apresentado na sessão especial Propostas curriculares: entre o oficial e o alternativo, promovida pelos Grupos de Trabalho Currículo, Educação Popular e Educação Fundamental, na 23a Reunião Anual da ANPEd, realizada em Caxambu (MG), de 24 a 28 de setembro de 2000.

7Embora o trabalho tenha sido apresentado em 2000, ele foi publicado em 2001 na Revista Brasileira de Educação, revista da própria ANPEd. Por isso as citações que faço dele estão com a data de 2001, e não 2000, quando foi apresentado.

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Recebido: 10 de Maio de 2022; Aceito: 12 de Julho de 2022

Editora responsável: Fabiana de Amorim Marcello

Marlucy Alves Paraíso é professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Programa de Pós-graduação Conhecimento e Inclusão Social da mesma instituição. É fundadora e atual coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Currículos e Culturas (GECC). É pesquisadora com Bolsa Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Nível 1B.

E-mail: marlucyparaiso@gmail.com

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