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Educação e Realidade

Print version ISSN 0100-3143On-line version ISSN 2175-6236

Educ. Real. vol.48  Porto Alegre  2023

https://doi.org/10.1590/2175-6236122447vs01 

OUTROS TEMAS

Educação do Campo no Encontro Nacional de Educação Matemática (2013-2019)

Diandra Batirola LedurI 
http://orcid.org/0000-0003-4024-4889

Juliana Gabriele KieferII 
http://orcid.org/0000-0003-4912-5747

Rita de Cássia Pistóia MarianiI 
http://orcid.org/0000-0002-8202-8351

IUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria/RS – Brasil

IIUniversidade Franciscana (UFN), Santa Maria/RS – Brasil


RESUMO

Este artigo objetiva mapear publicações que tomam como objeto a Educação do Campo nos anais de três edições do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM). Por meio de uma pesquisa bibliográfica qualitativa que considera procedimentos da análise de conteúdo, constata-se: aumento do número de produções sobre a Educação do Campo apesar da redução no total de publicações ao longo das três edições; predominância de experiências que revelam processos de ensino e aprendizagem (34,69%), seguida de formação de professores (28,57%), aspectos teóricos (24,49%) e conhecimentos matemáticos de camponeses (12,25%); enfoque em conteúdos/conceitos da matemática escolar apenas em 2019, considerando o cotidiano, principalmente, em situações financeiras.

Palavras-chave Mapeamento; Análise de Conteúdo; Situações Financeiras

ABSTRACT

This article aims to map publications that take Countryside Education as their object on the records of three editions of the National Conference of Mathematics Education (ENEM, initials in Portuguese from Brazil). Through a qualitative bibliographical research that considers content analysis procedures, it could be verified: increase in the number of productions on Countryside Education despite the reduction in the total number of publications throughout the three editions; predominance of experiments that reveal processes of education and learning (34.69%), followed by teacher education (28.57%), theoretical aspects (24.49%) and mathematical skills of countryside people (12.25%); focus on content/concepts of school mathematics only in 2019, considering everyday life at school, mainly, in financial situations.

Keywords Mapping; Content Analysis; Financial Situations

Introdução

O surgimento da Educação Matemática como campo profissional e científico se deve, pelo menos, a três fatos: à preocupação dos próprios matemáticos e de professores de matemática sobre a qualidade da divulgação/socialização das ideias matemáticas às novas gerações, ou seja, à melhoria de suas aulas, atualização e modernização do currículo escolar da Matemática; a iniciação de cursos de formação de professores em nível secundário, proposta por instituições europeias, no final do século XIX, contribuindo assim para constituir os primeiros especialistas universitários em ensino de Matemática; por fim, as pesquisas experimentais sobre processos de aprendizagem, desenvolvidas com crianças, desde o início do século XX, por psicólogos americanos e europeus (Kilpatrick, 1992).

Em 1958, a Sociedade Norte-Americana de Matemática direcionou estudos para o desenvolvimento de um novo currículo escolar, o que levou ao surgimento de grupos de pesquisa envolvendo matemáticos, educadores e psicólogos. A partir disso, também são implementados os primeiros programas de mestrado/doutorado em Educação Matemática, principalmente, nos Estados Unidos (Fiorentini; Lorenzato, 2006).

Em 1959, na França, é realizada a Conferência Internacional pela Organização Europeia de Cooperação Econômica. Diante da preocupação com uma melhor qualificação técnica-científica, especialistas de vinte países discutiram propostas de mudança para o ensino de matemática da escola de nível médio, sendo estabelecidas as bases do Movimento da Matemática Moderna (MMM) (Miorim, 1998).

Desse modo, em nível internacional, nas décadas de 1950 e 1960, os estudos em Ensino de Matemática aumentaram significativamente, em decorrência do MMM. O MMM emergiu em função da Guerra Fria, bem como do afastamento entre o progresso científico-tecnológico e o currículo escolar, observado, depois da conclusão da 2ª Guerra Mundial (Fiorentini; Lorenzato, 2006). Mas já que “[…] não produziu os resultados pretendidos, o movimento serviu para desmistificar muito do que se fazia no ensino da matemática e mudar – sem dúvida, para melhor – o estilo das aulas e das provas e para introduzir muitas coisas novas, […]” (D’ambrósio, 1996, p. 53).

No que tange ao contexto brasileiro, Miguel et al. (2004) reiteram que o MMM teve importante contribuição no ensino e na pesquisa em Matemática, principalmente na década de 60, pois nessa época surgiram publicações de livros didáticos e cursos de formação continuada de professores. Cada vez mais a situação ficava favorável para que uma nova área de discussão fosse formada (Martins; Santos, 2016). Assim, a partir da metade da década de 70, ocorrem, no Brasil, os primeiros indícios de constituição de outra perspectiva sobre o Ensino de Matemática, com a relevância atribuída ao ponto de vista sociocultural no processo de ensino e aprendizagem (Martins; Santos, 2016).

Fiorentini e Lorenzato (2006) destacam que a fase do “nascimento” da Educação Matemática no Brasil vai do início da década de 70 aos primeiros anos da década de 80. É a partir desse período que se começa o processo de produção em Ensino e/ou Educação Matemática em periódicos nacionais, bem como de projetos de pesquisa. De acordo com Miguel et al. (2004), se o reconhecimento da área de Educação Matemática adviria, por um lado, da divulgação das pesquisas, por outro, se restringiam aos trabalhos para fins de titulação e a duas revistas, a saber: Bolema e Zétetikè2.

Outro marco na história brasileira foi a fundação da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM) em 1988, durante a realização do II Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM) em Maringá/PR, e os primeiros programas de pós-graduação. De acordo com Búrigo (2019), com a multiplicidade e valorização das instâncias coletivas de debate implementadas com apoio da SBEM, pôde-se observar uma progressiva institucionalização das políticas educacionais.

Nos primeiros anos da SBEM, esses debates giravam em torno dos temas percebidos como relevantes nas práticas cotidianas dos educadores matemáticos – como a disputa de recursos para a pesquisa, e o reconhecimento da Educação Matemática pelas agências de fomento. Com o tempo, vão progressivamente se alargando, na direção dos temas que dizem respeito aos currículos, à formação de professores, alcançando até o tema mais geral do financiamento ou das finalidades gerais da educação escolar

(Búrigo, 2019, p. 21).

Nesse sentido, destacam-se também discussões promovidas nos grupos de trabalho (GT) da SBEM3, dois deles possuem, em suas ementas, aspectos relacionados à Educação do Campo, a saber: o GT2 – Educação Matemática, nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, tem como foco “[…] a Educação de Jovens e Adultos, o Ensino Médio integrado à educação profissional, a Educação do Campo, a Educação Escolar Indígena, a Educação Escolar Quilombola e a Educação das Relações Étnico-Raciais” (Sbem, 2022, grifo nosso); bem como o GT3 – Currículo e Educação Matemática, em que são desenvolvidas pesquisas sobre papéis e efeitos em diferentes modalidades de ensino, dentre elas a Educação do Campo e também em diferentes etapas da escolaridade (Sbem, 2022).

Nesse contexto, este artigo objetiva mapear publicações que tomam como objeto a Educação do Campo nos anais de três edições do Encontro Nacional de Educação Matemática (ENEM), por meio de uma pesquisa bibliográfica qualitativa do tipo mapeamento que considera procedimentos da análise de conteúdo.

Educação Matemática e Educação do Campo

De acordo com Leite (2018, p. 46), um dos primeiros trabalhos em que se constatam aproximações entre a Educação Matemática e a Educação do Campo no Brasil é datado de 2003. Nessa produção, a etnomatemática foi tomada como alternativa para o ensino de matemática em uma escola de um assentamento do Movimento Sem Terra de Itapuí, localizado no município de Nova Santa Rita/RS. Entre os resultados, Knijnik (2003) indica que a “[…] perspectiva da Educação Matemática pode ser aliada na construção de um novo contexto formativo, melhor e mais coerente com a proposta de Educação do Campo”. Entretanto, após essa produção, poucas interlocuções teórico-práticas foram sistematizadas entre essas duas vertentes.

Uma das hipóteses para esse fato pode estar embasada na necessidade de, primeiramente, fundamentar a Educação do Campo no âmbito da Educação Matemática, para posteriormente, considerá-la em estudos específicos. A outra se refere ao momento histórico em relação às reivindicações e lutas de movimentos sociais e sujeitos do campo (Caldart et al., 2012), bem como às políticas públicas no âmbito da Educação do Campo. Isso porque, a partir de 2002, foram instituídas as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo que estabeleceram a garantia e o direito à educação para os camponeses (Brasil, 2002).

A Educação do Campo surgiu a partir de reivindicações de movimentos sociais e de sujeitos do campo que tinham objetivos e interesses visando:

[…] questões do trabalho, da cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana

(Caldart et al., 2012, p. 259).

Cabe ressaltar, ainda, que entre os marcos legais no âmbito da Educação do Campo, evidencia-se também a Resolução nº 2, de 2008, que estabelece orientações complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas de atendimento da Educação Básica do Campo (Brasil, 2008), bem como o Decreto n° 7.352, de 2010, que dispõe sobre a Política Nacional de Educação do Campo e sobre o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) (Brasil, 2010).

Uma década depois do trabalho de Knijnik (2003), Barbosa, Carvalho e Elias (2013) apresentam um quadro inicial que aproxima estudos da Educação Matemática com a Educação do Campo, como objeto de estudo, para tanto, analisam os anais do ENEM no período de 1987 a 2010, totalizando 10 eventos. Entre os resultados desse mapeamento, constataram que a “[…] produção específica nessa temática é baixa (aproximadamente 0,3% do total) e, em grande parte dos trabalhos, os autores valorizam a conexão entre a realidade camponesa dos estudantes e o cotidiano escolar” (Barbosa; Carvalho; Elias, 2013, p. 1).

Nesse mesmo ano, Lima e Lima (2013) publicaram um estudo com objetivo de refletir sobre indícios de interlocuções entre a Educação Matemática e a Educação do Campo apresentando três desafios: a não politização de projetos de Educação e de aulas de Matemática em escolas do Campo; a dificuldade de implementar uma educação emancipatória em um sistema educacional fundado em bases universalistas; a formação de professores de Matemática que, geralmente, desconsidera elementos políticos e sociais tanto nos processos formativos quanto em seu ensino.

Entre os resultados, Lima e Lima (2013, p. 1) consideram que o ensino de matemática deve contribuir para transformações sociais, o que significa tomar a “[...] História da Educação e das lutas dos povos camponeses, seu lugar de pertencimento e os ciclos produtivos, dentre outros elementos definidores desta escola”. Portanto, a matemática se coloca como um espaço que visa dialogar com os conhecimentos dos campesinos.

Nesse sentido, a Educação Matemática é relevante no contexto da Educação do Campo, pois pode “[…] promover a emancipação do sujeito com transformação social, postura crítica em sua visão de mundo, isso através dos processos educacionais, formais e não formais, que são oferecidos aos educandos nas escolas e em suas comunidades, associações, assentamentos, etc.” (Cavalcante, 2015, s. p.).

Para tanto, é fundamental considerar aspectos interdisciplinares, pois a matemática estabelece uma relação com dimensões sociais dos sujeitos do campo. Além disso, Leite (2018) destaca outros dois pontos (Figura 1):

Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de Leite (2018).

Figura 1 Pontos de aproximação entre a Educação do Campo e a Educação Matemática 

Segundo Leite (2018), o primeiro ponto faz com que a Educação do Campo, articulada com a Educação Matemática, permita observar diferentes dimensões na construção de um conteúdo; o segundo ponto compreende que em processos de ensino e de aprendizagem devem ser apreciadas experiências e especificidades da vida do camponês, sendo que a motivação dos estudantes é maior quando o conteúdo está relacionado à sua realidade e suas experiências; o terceiro ponto considera que a Educação do Campo nasce de movimentos sociais que lutam por igualdade de classes, e, ao se discutir a Educação Matemática nesse espaço, deve-se contemplar diferentes dimensões como social, política e econômica, que são essenciais e desempenham um papel de conscientização política.

Aspectos Metodológicos

Este estudo segue uma abordagem qualitativa do tipo mapeamento ao buscar “[…] reconhecer os mais diversos fatores que se manifestam sobre os entes pesquisados; entender um fato, uma questão dentro de um cenário; servir-se do conhecimento produzido e reordenar alguns setores desse conhecimento” (Biembengut, 2008, p. 135). Desse modo, detalha-se o que já foi publicado sobre Educação do Campo no XI ENEM em 2013, XII ENEM em 2016, XIII ENEM em 2019, evidenciando “[…] quantos, quem e onde já fizeram algo a respeito, que avanços foram conseguidos e quais problemas estão em aberto para serem levados adiante” (Biembengut, 2008, p. 73).

Para compor o marco temporal, que contempla as três últimas edições do ENEM, considera-se como limitante inferior Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014) 4, que apreciaram os anais do ENEM entre 1987 e 2010, e como limitante superior o ano de realização da última edição do ENEM, em 2019. Optou-se por dar continuidade ao estudo supracitado, por considerar-se que o ENEM é o evento da área de Educação Matemática que conta com a participação de diversos segmentos profissionais e científicos: pesquisadores, docentes da Educação Básica e do Ensino Superior, bem como licenciandos em Matemática, Pedagogia e outros cursos afins, bem como da Pós-Graduação lato sensu e stricto sensu de distintas regiões do país (Enem, 2013).

Além disso, é um encontro relevante para a área da Educação Matemática no país, pois reúne o maior público e consequentemente um número significativo de produções. Em termos de variação do quantitativo de trabalhos publicados nos anais do ENEM (Gráfico 1), observa-se que as últimas quatro edições foram as mais expressivas, com ápice no XI ENEM, computando mais de dez vezes a quantidade total de trabalhos quando comparados com o I ENEM. Esse fato corrobora a pertinência e amplitude do evento para a comunidade de educadores matemáticos no Brasil.

Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014) e Monteiro (2018; 2020).

Gráfico 1 Quantitativo de trabalhos publicados nos anais do Enem 

Por fim, vale ressaltar que o período selecionado neste estudo abrange os anos das duas edições do Programa Nacional do Livro Didático do Campo (PNLD Campo), ou seja, 2013 e 2016. Esse programa distribuiu, para escolas do campo, livros didáticos destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental. Cada edição continha duas coleções, que contemplavam entre outros componentes curriculares, Alfabetização Matemática (1º ao 3º ano) e Matemática (4º ao 5º ano).

Para compor as análises qualitativas que apontam tendências e demandas de pesquisa que versam sobre Educação do Campo no ENEM, utilizam-se preceitos da análise de conteúdo que visa obter “[…] por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens” (Bardin, 2016, p. 48). Esse método constitui-se por:

  1. pré-análise, que consiste na organização da pesquisa e definição do corpus;

  2. exploração do material, que é a definição das categorias (codificação) e identificação das unidades de registro (unidade de significação);

  3. tratamento dos resultados e interpretações, que condensa e destaca as informações para uma análise mais elaborada, reflexiva e crítica dos dados, incluindo quadros e gráficos (Bardin, 2016).

Pré-análise

Por meio de uma primeira leitura flutuante dos anais dos três eventos, identificou-se que existiam trabalhos que versavam sobre a Educação do Campo, mas que não continham os termos de busca/filtros/verbetes elencados no mapeamento de Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014), ou seja, “educação do campo”, “educação rural”, “educação no campo”, “escola do campo”, “escola rural”, “educação popular”, “escola ativa”, “escola itinerante”, “assentamento”, “acampamento”, “agricultura”, “sem terra”, “MST”, “reforma agrária” e, também, adjetivos como “agrícola”, “camponês” e “rural”.

Por esse motivo, foram listados possíveis novos termos, e, posteriormente, foi analisada a pertinência de cada um em consonância com o disposto no Dicionário da Educação do Campo (Caldart et al., 2012). Desse modo, foram incluídos mais três verbetes: “campo”, “terra” e “campesino”, totalizando 20 filtros.

A identificação dos verbetes nos 5033 trabalhos ocorreu, inicialmente, pela análise do título das produções e, em seguida, do texto na íntegra. Nos anais do ENEM dos anos de 2013 e 2016 (ENEM, 2013; 2016), tais termos foram digitados, um a um, nos repositórios da página da web, por meio da utilização da ferramenta de localizar do navegador. Já em relação aos anais de 2019 (ENEM, 2019), recorreu-se ao espaço de pesquisa disponível no site. Nesse sentido, corrobora-se com Mendes e Pereira (2021) que evidenciam que buscas em anais de eventos podem ser otimizadas quando eles estão armazenados em páginas da web, mas dependem muito de como os artigos são disponibilizados.

Com esse procedimento, obteve-se 49 trabalhos: 3 publicações no XI ENEM, realizado em Curitiba/PR (2013); 17 no XII ENEM em São Paulo/SP (2016) e 29 no XIII ENEM em Cuiabá/MT (2019). Essa tendência de crescimento na quantidade de publicações que tomam como objeto a Educação do Campo no ENEM não se reflete no total de produções das respectivas três edições, pois constata-se um decrescimento sucessivo como consta no Gráfico 1.

Dentre os autores que apresentaram maior quantitativo de produções, destacam-se Línlya Sachs (vinculada ao PPG Ensino de Matemática - Universidade Tecnológica Federal do Paraná) e Iranete Maria da Silva Lima (atuante no PPG Educação Matemática e Tecnológica - Universidade Federal de Pernambuco).

A partir do tema “Retrospectivas e perspectivas da Educação Matemática no Brasil”, o XI ENEM buscou assim representar anseios de, ao mesmo tempo, visitar o passado de modo crítico e vislumbrar um futuro com propostas de uma melhor Educação Matemática em nosso país. Para tanto, quatro eixos foram organizados – Práticas Escolares, Formação de Professores, Pesquisa em Educação Matemática e História da Educação Matemática – sistematizados em quatro seções: comunicação científica, pôster, relato de experiência e mesa redonda.

No Quadro 1, apresenta-se, na primeira coluna, o código para a produção (P), na segunda o(s) autor(es) e o título da edição de 2013 com destaque para os verbetes de identificação.

Quadro 1 Corpus de análise (XI Enem-2013) 

P Autor(es)/ Título do trabalho
1 BARBOSA, L. N. S. C de; CARVALHO, D. F.; ELIAS, H. R. Educação do Campo nas 10 edições do Encontro Nacional de Educação Matemática: uma retrospectiva
2 LIMA. A. S. de; LIMA, I. M. da S. Educação Matemática em diálogo com a Educação do Campo
3 SILVA, C. B. da; KICHOW, I. V. A transição da escola rural para a escola urbana e seus reflexos no ensino de matemática: um caso na cidade de Laguna Carapã

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Dentre as três pesquisas selecionadas, predomina o verbete “educação do campo”, sendo que uma foi publicada na seção comunicação científica (P1) e as outras na seção pôster (P2 e P3). P1 e P2 buscam um aprofundamento teórico com articulações entre a Educação Matemática e a Educação do Campo por meio de um retrospecto histórico, considerando os anais do ENEM, e de um diálogo cujo objetivo é compreender os fenômenos intrínsecos ao ensino da matemática nas escolas do campo, respectivamente. Já P3, analisa e reflete sobre entraves revelados por estudantes de escolas rurais, em um contexto de transição, bem como expectativas evidenciadas pelos professores que atuam em tal contexto escolar.

O XII ENEM (Quadro 2) teve como tema A Educação Matemática na Contemporaneidade: desafios e possibilidades, colocando em discussão assuntos e tendências teórico-metodológicas que perpassam a Educação Matemática, seja como campo profissional, seja como campo científico. Nesse evento, as publicações foram agrupadas em comunicação científica, relato de experiência, pôster, minicurso e mesa redonda. Entre as 17 produções identificadas, 13 foram alocadas na seção comunicação científica (P4, P5, P6, P7, P8, P9, P10, P11, P12, P13, P14, P15 e P16), três na seção mesa redonda (P17, P18 e P19) e uma na seção relato de experiência (P20).

Quadro 2 Corpus de análise (XII Enem-2016) 

P Autor(es)/ Título do trabalho
4 NETO, V. F. Educação Matemática Crítica e Educação do Campo: reflexões
5 DINIZ, D. C; BARROS, A. H. C. A Licenciatura em Educação do Campo na Formação de Professores em Ciências da Natureza e Matemática no Maranhão
6 SILVA, J. P. da; LIMA, I. M. da S. A natureza falibilista da Matemática, a Educação Matemática Crítica e a Educação do Campo: uma aproximação
7 LIMA, A. S. de; LIMA, I. M. da S. As Formações Matemáticas, Pedagógicas e Sociopolíticas de professores em Cursos de Licenciatura em Educação do Campo
8 SACH, L. Desafios para a Educação do Campo no Estado de São Paulo
9 FERNANDES, F. L. P. Práticas profissionais do campo e a matemática: um olhar para a perspectiva pedagógica da etnomatemática na Licenciatura em Educação do Campo
10 SANTOS, J. G. de C.; SACHS, L. Relações entre movimentos sociais e cursos de licenciatura em Educação do Campo com habilitação em matemática do Paraná
11 SAKAI, E. da C. T.; NOGUEIRA, K. F. P.; ANDRADE, S. V. de. Percursos da educação do campo: um olhar para as aulas de investigações matemáticas
12 SILVA, F. de J. F. da. Práticas socioculturais, problematizações e matematizações em um assentamento rural
13 PIRES, E. T.; MORAIS, T. da S.; GONÇALVES, K. L. N. Educação Matemática do Campo: práticas socioculturais em contexto ribeirinho marajoara
14 GONÇALVES, K. L. N. Formação de educadores matemáticos do campo: desvios sinuosos
15 SOUZA, R. B. Programa etnomatemática: análise de práticas pedagógicas de ensino de matemática no contexto de Educação no/do Campo
16 SÁ, J. R.; FONSECA, M. da C. F. R. “Aí a gente fica numa sinuca”: desafios da formação e da atuação docente na Educação (Matemática) do Campo
17 ROSEIRA, N. A. F. O ensino de matemática na Educação do Campo: sobre os potenciais de formação em valores e para a cidadania
18 MONTEIRO, C. E. F. Recursos no ensino e aprendizagem de matemática em contextos de Educação do Campo
19 LIMA, I. M. da S. A alternância pedagógica como metodologia de ensino de matemática em escolas do campo
20 NASCIMENTO, G. P. Olimpíadas da matemática numa escola rural: uma aliança que deu certo

Fonte: Elaborado pelas autoras.

O verbete “educação do campo” continua sendo mais frequente, enunciado no título de 11 estudos com a variação “educação no/do campo” (P4, P5, P6, P7, P8, P9, P10, P11, P15, P17, P18). No entanto, destaca-se que é a primeira edição do ENEM em que se observam algumas interligações literais entre a Educação Matemática e a Educação do Campo, por meio da composição de termos como “educação matemática do campo” (P13), “educação (matemática) do campo” (P16) e “educadores matemáticos do campo” (P14).

Além do verbete “escola rural”, já observado na edição de 2013, ainda se identificam “assentamento rural”, “educadores matemáticos do campo” e “escolas do campo”, o que pode indicar que nessa edição do ENEM houve uma ampliação de estudos com vistas a considerar o contexto relacionado com a Educação do Campo. Por esse motivo, emergem trabalhos que evidenciam processos de ensino e aprendizagem no âmbito escolar, destacando recursos didáticos, aspectos didático-pedagógicos, bem como de modo incipiente tendências teórico-metodológicas.

Nessa edição, é possível constatar o início de menções a processos formativos, em especial, a formação inicial no âmbito de cursos de licenciatura, revelando as primeiras publicações com temáticas voltadas para a formação de professores que atuam na Educação do Campo. Esse resultado pode estar relacionado ao fato de que “[…] os cursos começaram a formar as primeiras turmas com habilitação em Matemática justamente em 2016” (Lima; Lima, 2017, p. 60).

A edição do XIII ENEM foi realizada em 2019 na Arena Pantanal com a temática “Educação Matemática com as Escolas da Educação Básica: Interfaces entre pesquisas e salas de aula’’. Os anais do evento estão distribuídos em 25 subeixos nas seções palestras, mesas redondas e trabalhos premiados.

A partir da seleção, foram identificadas 29 produções (Quadro 3). Novamente, o verbete mais recorrente foi “educação do campo” (P41, P42, P44, P45, P46, P47, P48), mas, diferentemente das edições anteriores, em menor quantidade proporcional e sem variação, como houve na edição do ENEM de 2016.

Quadro 3 Corpus de análise (XIII Enem-2019) 

P Autor(es)/ Título do trabalho
21 SOUZA, D. R. de; VICTER, E. das F. Etnomatemática das comunidades rurais e o ensino da matemática escolar
22 MENEZES, D. N. de; MANOEL, C. A. L. C. Uma análise das entrevistas de alunos campesinos inseridos em uma escola urbana de Campo Grande – MS
23 BRITTO, S. L. M; BAYER, A. A economia doméstica e rural presente no capítulo XII da obra Rechenbuch Für Duetsche Schulen In Brasillien 2º Heft, de Matheus Grümm
24 SALES, M. S. de; SEVERINO FILHO, J. Medidas agrárias, utilizadas pelos moradores do território quilombola vão grande, na cubagem de terra
25 OLIVEIRA, G. K. S. de; FIGUEIREDO, T. D. Oficinas pedagógicas em uma escola rural: um relato e tantas experiências
26 SOUZA, G. dos S. de; ANDRADE, M. M. Uma casa escolar rural e uma história contada pela professora Neuza
27 SIEGLOCH, A; SOUZA, D. W. N. de; ARAÚJO, V. A. de; TAVARES, R. de S; MARQUES, P. T. F; FAÇANHA, A. B. Mobilização de saberes matemáticos em práticas agrícolas de uma comunidade ribeirinha do sul do Amazonas: contribuições da teoria antropológica do didático
28 NETO, V; GUIDA, A. Redes discursivas: animais, campo, matemática escolar e contribuições metodológicas da análise de redes
29 RODRIGUES, J. Um olhar sobre a possível contribuição da etnomatemática no ensino de matemática para alunos de uma escola da cidade de piracema na zona rural de Minas Gerais
30 MAGNUS, M. C. M. Campo enquanto espaço de produção de saberes
31 ANDREATTA, C; ALLEVATO, N. S. G. Ensino-aprendizagem-avaliação de matemática através de resolução de problemas em uma escola comunitária rural
32 PRANKE, A. Etnomatemática do contexto agrícola: contribuições para a elaboração de problemas de matemática
33 PIOVESAN, C; FONSECA, M. S. da. Um estado do conhecimento sobre a agricultura familiar na perspectiva etnomatemática
34 GONÇALVES, N. C; MATTOS, J. R. L. de. O ensino de matemática na escola família agrícola de Orizona: teoria e prática
35 SANTOS, E. L; SILVA, L. P. da. O exercício da matemática e a vida no campo numa abordagem sobre o conteúdo, espaço e forma nas séries iniciais do ensino fundamental: um estudo em escolas rurais de Sergipe
36 VIEIRA, V. da L; ROSA, M. Ensino da geometria na escola família agrícola: a construção do conhecimento geométrico sob a perspectiva da alternância e da etnomatemática
37 DIAS, R. C. A; DAMASCENO, F. L. de O; SILVA, R. A. O ensino da matemática em escola do campo: uma abordagem dinâmica para o estudo de unidades de medidas agrárias realizada por licenciandos em matemática do IFAP
38 VIEIRA, V. G; PEREIRA, L. B. C; ELEUTERIO, R. de C. O uso das tic’s no ensino da matemática das escolas do campo: reflexões sobre o município de quedas do Iguaçu – PR
39 OLIVEIRA, R. D. de; SALANDIM, M. E. M. Elogio de uma escola rural: notas à margem da História da Educação Matemática a partir de uma entrevista
40 PAIVA, T. F. de. O uso de recursos didático – matemáticos para o processo de ensino e aprendizagem de estudantes dos anos finais de uma escola do campo do DF
41 SANTOS, J. G. de C; SACHS, L. Um dedo de prosa com uma egressa de um curso de licenciatura em educação do campo sobre a formação de professores de matemática
42 LIMA, A. S. de; LIMA, I. M. da S. A formação de professores de matemática em cursos de licenciatura em educação do campo: uma análise da matriz curricular
43 MEDEIROS, D. J. de; LIMA, I. M. da S. Letramento estatístico em livros didáticos adotados por escolas do campo do agreste pernambucano: uma análise à luz da educação matemática crítica
44 SACHS, L. Uma proposta de diálogo entre conhecimentos: aproximando a etnomatemática e a educação do campo
45 MAGNUS, M. C. M. Modelagem matemática na educação do campo: alunas (os) em movimento
46 CUNHA, M. C. da; WAGNER, D. R. Enlaces entre modelagem matemática, estágio supervisionado e educação do campo: relato de uma experiência formativa
47 SILVA, U. M; BICHO, J. S. Etnomatemática e relações interdisciplinares na educação do campo: a partir da horta mandala
48 NOGUEIRA, A. A. C; CORRÊA, L. G; SACHS, L. A (não) educação do campo em um município paranaense
49 ELEUTERIO, R. de C; PEREIRA, L. B. C; DUFECK, L. de F; VIEIRA, V. G. O ensino de matemática na escola do campo: contribuição de uma prática docente à luz da etnomatemática

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Além disso, entre os resultados, observa-se o aumento significativo de estudos realizados no âmbito da sala de aula, pois identificam-se os seguintes verbetes em número expressivo de pesquisas: “escola do campo” (P37, P38, P40, P43, P49), “escola(s) rural(is)” (P25, P26, P29, P31, P35, P39), “escola família agrícola” (P34, P36), bem como em relação ao contexto agrícola: “comunidades rurais” (P21), “economia doméstica e rural” (P23), “campo” (P28, P30), “agricultura familiar” (P33), “agrícola(s)” (P27, P32), “terra” (P24) e “alunos campesinos” (P22).

A partir de uma análise comparativa dos dados dos Quadros 1, 2 e 3, constata-se indícios de que, na edição do ENEM de 2013, ocorreu uma iniciação para o estabelecimento de relações entre as duas áreas: Educação Matemática e Educação do Campo. Já na edição de 2016, o foco centrou-se na formação de professores, e, na edição de 2019, em práticas letivas com ênfase em conteúdos/conceitos da matemática escolar.

Diante de tal constatação, na segunda e terceira fase da análise de conteúdo, exposta na próxima seção, os 49 trabalhos serão apreciados em quatro categorias que foram constituídas a partir do agrupamento dos verbetes identificados, considerados como unidades de registro na perspectiva da análise de conteúdo, a saber: experiências em processos de ensino e aprendizagem; formação de professores e ação docente; interlocuções entre Educação Matemática e Educação do Campo; e conhecimentos matemáticos de camponeses. Além disso, o enfoque das produções de análise desse mapeamento aproxima-se das seis categorias estabelecidas por Monteiro (2018).

Exploração do Material e Tratamento dos Resultados e Interpretações

A distribuição das publicações nas quatro categorias evidencia a predominância de estudos que versam sobre “Experiências em processos de ensino e aprendizagem” (Quadro 4). Nessa categoria, observam-se pesquisas que se centram em estudantes da Educação Básica, bem como na utilização de diferentes tendências e/ou metodologias de ensino, a saber: etnomatemática (P15, P29, P32, P34, P35, P36, P37, P47, P49), modelagem matemática (P46), matemática crítica (P15), resolução de problemas (P31), interdisciplinaridade (P34, P47), recursos didáticos (P40) e tecnológicos (P38), alternância pedagógica (P36), oficinas (P25, P37) e olimpíadas matemáticas (P20). Além disso, P3 e P22 trazem reflexões sobre alunos oriundos do campo inseridos em escolas urbanas, discutindo, por exemplo, sobre deslocamentos em longas distâncias para ter acesso ao ensino.

Quadro 4 Distribuição das produções quanto às categorias 

Principal Enfoque XI Enem (2013) XII Enem (2016) XIII Enem (2019) Total
Interlocuções entre Educação Matemática e Educação do Campo P1, P2 P4, P6, P17, P18 P23, P28, P30, P43, P44, P48 12
Formação de professores e ação docente   P5, P7, P8 P9, P10, P11, P14, P16, P19 P41, P42, P45, P26, P39 14
Experiências em processos de ensino e aprendizagem P3 P15, P20 P22, P25, P29, P31, P32, P34, P35, P36, P37, P38, P40, P46, P47, P49 17
Conhecimentos matemáticos de camponeses   P12, P13 P21, P24, P27, P33 6

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A categoria “Formação de professores e ação docente” envolveu produções que analisaram projetos políticos pedagógicos e/ou matrizes curriculares dos cursos de licenciatura em Educação do Campo (P5, P7, P10, P42); que possuem como sujeitos licenciandos em Educação do Campo, para identificar e compreender quais letramentos e práticas de letramento estão presentes no desenvolvimento curricular de uma disciplina que contempla o conteúdo de funções (P9); que verificam reflexões sobre processos de aprendizagem de um conceito, a partir de aulas que enfatizam investigações matemáticas (P11); que problematizam a constituição do educador matemático do campo em espaços/lugares formativos no tempo comunidade e tempo universidade (P14); que identificam e analisam modos de compreensão sobre uma proposta curricular relacionada tanto com a formação, quanto com as práticas de ensinar matemática no contexto campesino (P16); que dão visibilidade a uma atividade de modelagem que visa analisar situações vinculadas às práticas cotidianas dos alunos (P45).

Além disso, nessa categoria, há publicações que possuem professores como sujeitos (P39, P41), outra relacionada com uma extensão universitária (P25), e uma que destaca desafios da contemporaneidade (P8). Mesmo centrando-se em discutir a formação docente, observam-se pesquisas que abordam tendências teórico-metodológicas de ensino, como a etnomatemática (P5 e P9), a educação matemática crítica (P7, P42), as investigações matemáticas (P11), a alternância pedagógica (P7, P19, P42) e a modelagem matemática (P45).

Na categoria “Interlocuções entre Educação Matemática e Educação do Campo”, foram identificadas produções que buscaram refletir articulações entre as áreas por meio da abordagem educação matemática crítica (P2, P4, P6 e P43), Etnomatemática (P44), da modelagem matemática (P30), de educação em valores e para a cidadania (P17). Mas, também, foram observados estudos que versam sobre livros didáticos disponibilizados para escolas do campo (P18, P28 e P43), mapeamento (P1), análise de um capítulo da obra Rechenbuch Für Deutsche Schulen in Brasillien (P23) e discussões referentes à inexequibilidade de desenvolvimento da Educação do Campo em uma determinada cidade (P48).

A categoria com menor índice de ocorrência trata de “Conhecimentos matemáticos de camponeses” explorados em diferentes contextos: comunidades ribeirinhas (P13, P27), assentamento rural (P12), comunidades rurais (P21), território quilombola (P24) e agricultura familiar (P33). As pesquisas apontam que as práticas socioculturais subsidiam a constituição de fontes que promovem conhecimentos socioculturais, consequentemente potencializam o ensino de matemática e, consequentemente, o melhor desenvolvimento escolar dos alunos. Além disso, são observadas investigações na perspectiva da etnomatemática (P12, P21, P24, P27 e P33), apresentando-a como uma alternativa que permite estabelecer relações entre saberes campesinos e escolares, em especial, o contexto agrícola na área de matemática.

Diante do exposto, verifica-se que em todas as quatro categorias houveram aproximações com as tendências teóricas e metodológicas da Educação Matemática, principalmente, a etnomatemática. Esse fato pode contribuir para a compreensão da realidade e das especificidades camponesas em sala de aula no que tange ao estudo de conteúdos/conceitos matemáticos (Cavalcante, 2015).

Dentre os resultados, ainda, se identifica, somente a partir do ENEM 2019, 10 publicações (34,48% desta edição) que abordaram conteúdos/conceitos da matemática escolar contextualizados no cotidiano e referente a cinco unidades temáticas, conforme a distribuição exposta no Quadro 5.

Quadro 5 Distribuição das produções quanto à unidade temática 

P Unidade Temática Tendência teórico-metodológica Descrição do contexto da matemática no cotidiano
30 Álgebra Modelagem matemática Situações financeiras de custo na criação de aves
45 Situações financeiras de comercialização de produtos
46 Relações entre matemática e agroecologia
43 Estatística Educação matemática crítica (Análise de livro didático) Relações entre estatística e campesinato
35 Geometria Etnomatemática Relações entre objetos geométricos e objetos físicos (da natureza ou criados pelo homem)
36 Etnomatemática Pedagogia da alternância Relações entre objetos geométricos em ambientes distintos (escola/ família/comunidade)
37 Grandezas e Medidas Etnomatemática Entendimentos de medidas agrárias
47 Etnomatemática Interdisciplinaridade Relações entre elementos da ciência e matemática
23 Números (Análise de livro) Situações financeiras referentes à economia doméstica e rural
29 Etnomatemática Situações financeiras que aproximam conhecimentos matemáticos experienciais dos desenvolvidos em sala de aula.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

A partir da análise do Quadro 5, observa-se que as situações financeiras subsidiaram discussões em duas unidades temáticas (álgebra e números) e é o contexto com maior índice de incidência. Diante do exposto, volta-se o olhar para as quatro produções (P23, P29, P30, P45) que versam sobre o processo de ensino e aprendizagem de conteúdos/conceitos contextualizados a partir de situações financeiras, considerando argumentos matemáticos e/ou não matemáticos.

P23 analisa a obra Rechenbuch Für Deutsche Schulen in Brasillien 2º Heft, de Mateus Grümm, que aborda cálculos de economia doméstica e rural com o intuito de auxiliar no controle de aspectos comerciais – receitas e despesas, financeiros – orçamentos e gerenciamento das produções no meio rural. P29 busca analisar a aprendizagem de conteúdos/conceitos de matemática, considerando as experiências dos estudantes, em especial de matemática financeira.

P45, por sua vez, busca dar visibilidade a uma atividade de modelagem matemática por meio de um relato que descreve atividades elaboradas por dois grupos de licenciados em Educação do Campo, envolvendo práticas relacionadas às produções e vendas (gasto, receita e lucro) de bolos e plantas ornamentais. E P30, relata atividades desenvolvidas na pesquisa denominada “Modelagem Matemática na Educação do Campo: visibilidade de saberes locais”, cuja autora é coordenadora. Em P45 e P30, entende-se que a modelagem matemática se caracteriza como um ambiente propício para debates sobre práticas sociais do campo, tomando como ponto de partida saberes dos campesinos, evidenciando matemáticas próprias que podem se aproximar ou subsidiar saberes acadêmicos.

P29 também busca aproximações entre a Educação Matemática e a Educação do Campo através da etnomatemática discutindo problemas cotidianos, vivenciados por sujeitos que pertencem a distintos grupos culturais. Além disso, o artigo considera que trabalhos pedagógicos com conteúdos da Educação Financeira são relevantes para a promoção da cidadania, uma vez que contribuem para a tomada de decisão frente a situações comerciais e financeiras.

Por fim, P23 não faz referência a uma tendência teórico-metodológica específica, mas caracteriza-se como um estudo no âmbito da história da educação matemática, ao analisar um livro que apresenta vivências cotidianas de caráter prático e utilitário. Além disso, ressalta que tais ações, contemporaneamente, fariam parte da denominada Educação Financeira, pois, a partir da proposta da obra, não eram realizados apenas somente o cálculo pelo cálculo.

Esse resultado, aliado ao fato de identificar que P43 também analisa livros didáticos no contexto da Educação do Campo - considerando a unidade temática estatística - aponta para a importância desse recurso, bem como de programas governamentais que subsidiam a produção e distribuição de livros, como é o caso do PNLD Campo. Entretanto, Cavalcanti e Carvalho (2021, p. 15) assinalam que nos dias atuais ocorre um

[…] retrocesso de algumas ações e programas, como a extinção do livro didático para as escolas campo, na tentativa de uniformizar o ensino em todo o país, conforme prerrogativas estabelecidas pela BNCC, desconsiderando, em termos curriculares, as especificidades de cada modalidade de ensino.

Desse modo, torna-se imprescindível desenvolver outros estudos que apreciem livros didáticos à luz de aportes teórico-metodológicos da Educação do Campo, da Educação Matemática e de inter-relações observadas neste estudo.

Considerações Finais

Nesta pesquisa, foram analisadas 49 produções identificadas em três edições do ENEM (2013, 2016, 2019), utilizando 17 verbetes contidos em Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014) e outros três observados nas publicações atuais e no Dicionário da Educação do Campo (Caldart et al., 2012). Desse modo, foi realizada uma atualização dos dados obtidos por Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014) a partir da constituição de quatro categorias: experiências em processos de ensino e aprendizagem; formação de professores e ação docente; interlocuções entre Educação Matemática e Educação do Campo; e conhecimentos matemáticos de camponeses.

Constata-se que na edição do ENEM de 2013 ocorreu um certo “início” para o estabelecimento de relações entre estas duas áreas: Educação Matemática e Educação do Campo. Isso porque, dos três estudos identificados nessa edição do evento, dois deles versam sobre aspectos teóricos. Já na edição de 2016, o foco centra-se na formação de professores, pois das 17 produções identificadas, nove foram categorizadas em Formação de Professores e ação docente. Por fim, na edição de 2019, o foco é em práticas letivas com ênfase em conteúdos/conceitos da matemática escolar, sendo 14 dos 29 trabalhos nessa edição do evento.

Por meio do estudo realizado, foi possível identificar que nenhuma das produções trata especificamente dos livros didáticos do PNLD Campo. Nesse sentido, são pesquisas a serem considerados com vistas a contemplar os conteúdos/conceitos de matemática dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Além disso, pode-se apontar perspectivas para novas investigações que considerem outros repositórios de busca, como, por exemplo, outros eventos na área da Educação Matemática, a saber: Ebrapem, Sipem, Fórum das licenciaturas etc. Como também investigações da próxima edição do ENEM (XIV), que irá abordar o tema “Educação Matemática, Escola e Docência – o que nos trouxe Ubiratan D’Ambrosio” e será realizado de forma virtual em 2022.

Notas

1O presente artigo faz parte de estudos realizados no âmbito do grupo de pesquisa EMgep/UFSM – Educação Matemática: grupo de estudos e pesquisas vinculado à Universidade Federal de Santa Maria.

2Bolema foi criado em 1985 e vinculado a Unesp/Rio Claro; Zetetiké foi fundada em 1993 e vinculada a Faculdade de Educação/Unicamp.

3Em 2022, existem 15 grupos: GT1 – Matemática na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, GT2 – Educação Matemática nos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, GT3 – Currículo e Educação Matemática, GT4 – Educação Matemática no Ensino Superior, GT5 – História da Matemática e Cultura, GT6 – Educação Matemática: Tecnologias Digitais e Educação a Distância, GT7 –Formação de professores que ensinam Matemática, GT8 – Avaliação em Educação Matemática, GT9 – Processos cognitivos e linguísticos em Educação Matemática, GT10 – Modelagem Matemática, GT11 – Filosofia da Educação Matemática, GT12 – Educação Estatística, GT13 – Diferença, Inclusão e Educação Matemática, GT14 – Didática da Matemática e GT15 – História da Educação Matemática.

4Cabe ressaltar que, além do mapeamento realizado por Barbosa, Carvalho e Elias (2013; 2014), existem os estudos de Lima e Lima (2017), Monteiro (2018; 2020).

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Recebido: 20 de Fevereiro de 2022; Aceito: 24 de Agosto de 2022

Editora responsável: Lodenir Karnopp

Diandra Batirola Ledur é graduada em Matemática e mestra em Educação em Ciências pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É professora de Matemática em uma escola estadual de Guaporé/RS.

E-mail: diandraledur@hotmail.com

Juliana Gabriele Kiefer é licenciada em Matemática e mestra em Educação Matemática pela Universidade Federal (UFSM). É doutoranda em Ensino de Ciências e Matemática da Universidade Franciscana (UFN).

E-mail: juliana_kiefer@hotmail.com

Rita de Cássia Pistóia Mariani é graduada em Matemática e mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui doutorado em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professora associada da UFSM.

E-mail: rcpmariani@yahoo.com.br

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