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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. Rev. vol.33  Belo Horizonte  2017  Epub 14-Set-2017

https://doi.org/10.1590/0102-4698162511 

Artigos

Os álbuns ilustrados do sertão paulista: a modernidade encarnada (1900-1930)

The illustrated albums from countryside of são paulo: incarnated modernity (1900-1930) 1

Raquel Discini de Campos1  *

1Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia - MG, Brasil


RESUMO:

O artigo analisa os álbuns ilustrados publicados no Estado de São Paulo, em cidades pelas quais passava a Estrada de Ferro Araraquarense, entre os anos de 1900 e 1930, com ênfase no escrutínio do Album de Araraquara 1915. Discute a confecção de tais álbuns como uma estratégia das elites do interior, visando tornar conhecidos os vastos “sertões” em relação ao restante do país e do mundo. À luz da historiografia cultural francesa, bem como da Análise do Discurso, constata que tais suportes nasceram para ser a síntese gloriosa de um determinado tempo/espaço, tendo se transformado em verdadeiros “documentos monumentos”. Considera que em meio à utopia de representação total da realidade levada a cabo pelos artífices daqueles álbuns, a temática educacional ganhou contornos peculiares, consoantes ao processo civilizador em curso nos confins paulistas, particularmente no que concerne a um modo épico de retratar os sujeitos e as instituições escolares daquele rincão.

Palavras-chave: Álbuns ilustrados; História da Educação Paulista; Impressos e História da Educação

ABSTRACT:

The present paper analyses the illustrated albums published in the Estado de Sao Paulo newspaper in cities served by Araraquara’s railroad, from 1900 to 1930, focusing on the scrutiny from the Album of Araraquara 1915. It also discusses the making of such albums as strategies developed by the elites of the countryside. Such group aimed to make their region acclaimed in relation to the rest of the country and the world. Through Cultural French Historiography, as well as Discourse Analysis, we were able to find that those publications were born to be a glorious synthesis of a specific time and space, having turned in truly documents-monuments through the years. It considers that, in the midst of the utopia of total representation of reality carried out by the producers of those albums, the educational theme has acquired peculiar contours, consonant to the civilizing process in progress in the São Paulo countryside, particularly in what concerns an epic way of portraying individuals and school institutions in that corner.

Keywords: History of Education in São Paulo; Illustrated albums; Publications and History of Education.

O SERTÃO, OS ÁLBUNS

Muito já se escreveu sobre o processo de incremento capitalista pelo qual passou o Estado de São Paulo na virada dos séculos XIX/XX. Temas como a cafeicultura, a imigração, o desenvolvimento das cidades e lavouras, a construção de uma malha ferroviária (até então inexistente ligando os sertões do território à capital, ao porto de Santos e aos demais Estados brasileiros), a urbanização e a racionalização de espaços públicos, a arquitetura da simbologia bandeirante, bem como os diversos projetos de modernização em voga no período, são assuntos há tempos explorados pela historiografia (MILLIET, 1941; MONBEIG, 1984).2

Particularmente no que diz respeito à História da Educação, pesquisas demonstraram que um dos temas privilegiados para os grupos sociais que monopolizavam os espaços consagrados do poder/fazer no Estado era a Educação. Políticos, juristas, médicos, engenheiros, advogados, educadores, cientistas e letrados em geral, entre outros grupos, acreditavam que a arquitetada modernização de São Paulo e do país se daria por intermédio do binômio educação e saúde, signos que se apresentavam como expressão máxima do progresso a ser alcançado em nível nacional (CARVALHO, 1989; HILSDORF, 2003; NAGLE, 2009).

Não por acaso, iniciativas como a criação dos grupos escolares, jardins de infância, escolas normais e de ensino profissionalizante, ginásios e faculdades tiveram grande acolhida em terras paulistas - ou mesmo se originaram por lá, como é o caso dos famosos grupos escolares. O próprio modelo de ensino primário, mais tarde adotado em boa parte do país, foi pioneiramente instituído nos grupos por Caetano de Campos, em 1893.

Tal modelo era pautado pela constituição de classes seriadas, o que se juntava à designação de funcionários específicos para cada função exercida dentro da escola. Como exemplo, temos o cargo de diretor, emparelhado, na dinâmica interna a cada escola, à existência de um professor para cada série. Objetivava-se racionalizar tanto o acesso quanto a permanência dos alunos nas escolas, bem como as avaliações - geralmente pontuais - de rendimento, isto é, de quanto os conteúdos abordados em sala poderiam ter sido assimilados - de acordo com medida pressuposta ao trabalho docente e discente (CARVALHO, 1989; MONARCHA, 2009; SOUZA, 1998).

Pode-se afirmar algo equivalente quanto às ações concernentes à saúde. Campanhas de esclarecimento em relação à transmissão, cura e profilaxia de doenças deram o tom aos mais variados discursos e práticas observados no período. Assim vêm à luz: a fundação de postos de higiene; santas-casas; institutos de pesquisas, tidos como órgãos voltados para o conhecimento científico das enfermidades que afligiam a população; a criação de comissões e inspetorias médicas que, voltadas à formação de educadores sanitários, constituíram, entre outras ações, a marca de movimentos que, no interior da esfera da saúde, marcam a interseção entre a saúde e a educação no período. Tais empreendimentos, os quais fizeram parte do amplo projeto de intervenção social elaborado pela corporação médica de então - mas não apenas por ela - encontraram terreno fértil em solo paulista (MONARCHA, 2009; ROCHA, 2009). Trata-se de um discurso heterogêneo, já que instalado no limiar entre a saúde e a educação, e também devido ao modo de processamento junto a distintas realidades socioeconômicas.

A região da Araraquarense, em especial, mostrou-se espaço privilegiado para o desenrolar desse processo de transformação física, social, étnica, política e cultural ocorrida no Estado. Ela foi uma das últimas fronteiras a ser preenchida pelo que Monbeig chamava de “marcha pioneira”, ou seja, o fenômeno de ocupação de terras até então desabitadas ou ocupadas pelos índios. Também ficou conhecida como Araraquarense em função da identificação da região geográfica dos trilhos da estrada de ferro que saía de Araraquara, a partir de 1898, chegando até Catanduva, em 1910, São José do Rio Preto, em 1912, Mirassol, em, 1933 e, finalmente, Presidente Vargas, atual Rubineia, já na fronteira do Estado de São Paulo com os Estados de Mato Grosso do Sul e Minas Gerais, em 1952.

Estudos realizados sobre aquele tempo e espaço demonstraram que proliferaram nas cidades da região iniciativas relacionadas à publicação de impressos de variadas envergaduras e diferentes matizes ideológicos: livros regionalistas, jornais diários, boletins associativos, revistas bimestrais ou semestrais (católicas, integralistas, comunistas, liberais), estudos históricos, etnográficos e almanaques, num processo intenso (e extenso concomitantemente) de peculiar difusão de ideias. Da mesma forma, foram observadas as relações entre tal processo de disseminação de periódicos e as práticas sociais de publicação em nível regional - bem como as suas relações com o desenrolar contraditório dos projetos de modernidade em curso (CAMPOS, 2004; 2009). A palavra (o discurso) era contraditória, o ator histórico era contraditório - já que passamos ao largo de qualquer ilusão de transparência ou de homogeneidade para o sujeito e seu discurso. Nesse quadro, despontam os álbuns ilustrados.

Entre as práticas levadas a efeito e entre os textos postos em circulação na região, tomavam seu lugar, portanto, os álbuns ilustrados. Artefatos materiais e simbólicos poderosos, eles foram concebidos para serem peças propagandísticas das regiões em que eram confeccionados, mas igualmente para se tornarem espécies de documentos fundadores das cidades de onde se originaram, desde aqueles tempos e além das datas com que se registravam. Caminhas contemporâneos, os escrivães, fotógrafos e editores do século XX que construíram os álbuns também se debruçaram sobre um “novo mundo” e, tal qual escribas de outras frotas, procuraram mapear, quantificar, contar e perenizar aquilo que viam e viviam.

Do ponto de vista historiográfico em geral, e da historiografia da Educação em particular, os álbuns constituem um corpus documental raro, valioso e inédito. Um levantamento realizado sobre eles demonstra que, apesar de serem citados como fontes secundárias para a realização de trabalhos científicos diversos, bem como utilizados como “provas” para a legitimação das narrativas oficiais sobre a história daquelas plagas, jamais foram tomados como objetos de pesquisa.3 Da mesma maneira, as questões educacionais reiteradamente destacadas em suas páginas nunca foram interpretadas à luz da historiografia educacional contemporânea.

Procurando olhar para tais álbuns, respeitado seu incontestável estatuto de “documento/monumento”, conforme definição clássica de Le Goff (2003), e procurando contemplá-los segundo a “operação historiográfica” (CERTEAU, 2011) sustentada por eles, desenvolveremos nossas interrogações sobre o que são tais documentos na correlação estabelecida por eles com o homem de um tempo-espaço determinado, o que reverbera na contemporaneidade. Por conseguinte, os álbuns são tomados como artefatos atravessados por relações de força desde o momento em que foram concebidos e postos em circulação, até os dias atuais, vez que atualmente se constituem como vestígio de determinado recorte ou visada do sujeito sobre o mundo de então. Assim, procuramos discutir como o passado está presentificado no tempo e na relação estabelecida com o leitor contemporâneo - na medida em que o passado se presentifica nesses documentos, que parecem terem sido fadados ao destino de monumentos. O modo de construir discursivamente os álbuns certamente remete a um estilo grandioso de dizer - um épico urbano.

Por intermédio da leitura feita de tais textos, buscamos rearticular fragmentos dos tempos de outrora, procurando ouvir a voz de um material mantido tão eloquente quanto silenciado, tão presente quanto esquecido. Vimos confirmando os álbuns (objetos) em documentos, alterando até seu estatuto, já que, como bem indicou o pesquisador jesuíta, “o historiador trabalha sobre um material para transformá-lo em História” (CERTEAU, 2011, p. 45).

Amalgamamos tanto a forma de registro (os álbuns) quanto o problema da pesquisa desenvolvida: afinal, quais são os significados inerentes à circulação desses impressos naquele tempo/espaço? Especialmente no que concerne à História da Educação, quais são os sujeitos e as práticas envolvidos no modo do parecer e do ser - isto é, observadas as estratégias de mostrar-se e de dissimular-se, próprias ao enunciador de qualquer texto, e respeitadas as coerções desse gênero discursivo, feito para narrar o bom, o belo, o grandioso, sem que isso não anule o documento como “arena de conflito” (BAKHTIN, 2009).4

Como se depreendem nos álbuns as imagens daqueles que narram e inevitavelmente dialogam com o leitor e intérprete cravado na contemporaneidade? Buscamos, para isso, partir da materialidade tanto do suporte (álbum), com atenção dada ao verbal, como dada às fotografias que se constituem, em conjunto e sincretizadas ao verbal, numa narrativa de impacto sensível - testemunhas plásticas sobre o processo de transformação do homem no tempo-espaço relativo ao interior paulista daqueles tempos. Partimos, enfim, da hipótese de que tais álbuns, significativos veículos de promoção das regiões em que foram confeccionados e por onde circularam, funcionaram como espaço favorecedor da visibilidade das elites e camadas médias regionais - o que supõe o silenciamento imprimido a outros grupos sociais. Procuramos verificar, ainda, se a função do álbum era relevantemente propagandística: fazer crer nos ideais de um grupo social, de um Estado do Brasil, de um modo de vida urbano em ascensão - como o que era natural e único. Compreendemos que, por aí, é possível verificar estratégias próprias às narrativas sobre o passado paulista, bem como contemplar projeções sobre o presente/futuro: isso, não apenas do Estado de São Paulo, mas também da nação.

Assim, entendemos que os projetos dos grupos que lançaram e consumiram tais álbuns estão encarnados no próprio projeto dos álbuns, que era o de levar um modelo de civilização muito característico para além das fronteiras da região onde foram produzidos - e ainda atrair investimentos e dar visibilidade para a zona pioneira em ascensão. De um documento intenso, em termos de impacto como estratégia discursiva, entendemos haver ampla extensão de propósitos, do sujeito que arquitetou tais álbuns - para que fosse dado a ver um universo de ações bem-sucedidas, silenciador de polêmicas sociais.

Vale destacar que pesquisas anteriores já demonstraram que os grupos que puseram em circulação os álbuns foram os responsáveis pela criação e manutenção de ambiente intelectual muito próprio na Araraquarense. Invariavelmente, foram tais grupos que editaram os jornais e revistas da região, produziram a literatura regional, encenaram as peças teatrais locais, proferiram as palestras e conferências (médicas, estéticas, jurídicas, educacionais) nos mais variados espaços de sociabilidade, fundaram as associações profissionais, beneficentes, clubes, etc. (CAMPOS, 2004, 2009).

A esse respeito, Miceli (2001) indicou que podemos pensar nos grupos sociais como formações em que indivíduos estabelecem relações sociais estáveis, construídas ora em torno de amizades, ora em razão de parentesco ou em função da simples sensação de pertencimento. Bontempi Jr. (2012, p. 9), por sua vez, enfatiza que

[...] esses grupos não são dados objetivamente ou projetados mecanicamente a partir de sua condição econômica, mas que são construídos por suas ações e relações, permanecendo em constantes disputas por espaços de poder. Nessas lutas, um dos artefatos de persuasão e combate vêm a ser os discursos pelos quais tais grupos organizam a realidade social à luz de seus valores, convicções, saberes especializados e projetos a serem agenciados pelo Estado.

Ao falar em grupos, cravamos o ator que está pressuposto aos álbuns e encarnado semanticamente neles, como um ator individual e social - no social, o ator coletivo, responsável ética e esteticamente pela edição de um álbum e pela totalidade deles. Tomamos, então, os álbuns como produtos culturais que manifestam os anseios de um grupo social, que é singular, no que diz respeito às suas características regionais, mas também é plural, no que concerne ao diálogo com projetos de outros grupos em curso na primeira metade do século XX, no Brasil e no mundo. Depreende-se, ainda, que as temáticas mais relevantes presentes nos álbuns, tais como educação, urbanização, saúde, filantropia e outras estão em diálogo com um projeto coletivo muito maior e em curso no mundo ocidental no período: o projeto liberal burguês.

Os suportes investigados foram: o Album de Araraquara (1915); o Album de Rio Preto (1918-1919); o Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto (1927-1929); o Album de Mirassol (1900-1925) e o Album de Mirassol (1929). Tal seleção se deu tanto em função do espaço geográfico escolhido, a Araraquarense, quanto em decorrência do período de publicação: as primeiras décadas do século XX. O recorte cronológico proposto ocorreu em função das datas das publicações do material e em relação ao processo de expansão/ocupação das zonas pioneiras paulistas, ocorrido até os anos de 1950. Tal processo, conforme demonstrou Monbeig (1984), dos anos de 1950 em diante, avançou para outros sertões: Paraná, Mato Grosso e Goiás.5

Os álbuns, se observados em conjunto, misturam grande número de fotografias sobre a região - os moradores, os ofícios, as fazendas, os animais, as plantações, os melhoramentos urbanos, os prédios antigos ou em construção, a dita evolução da Araraquarense, enfim - e em menor recorrência, estatísticas, balanços comerciais, poesia, propaganda, informação, história, memória, uma espécie de nascente colunismo social, que desponta de um diversificado número de gêneros discursivos.

Em meio aos diferentes assuntos tratados, sobressaem temáticas que evidenciam os signos do progresso em curso: melhoramentos urbanos (água, calçamento, rede de esgotos, entre outros); engenharia e arquitetura (monumentalidade dos edifícios em construção, traçados de ruas ou cidades onde antes havia mata nativa, por exemplo); personalidades regionais e estaduais (profissionais liberais, fazendeiros, políticos, mulheres e crianças representantes dos grupos mais abastados); trabalhadores em geral (alfaiates, tipógrafos, comerciantes, lavradores, etc.); educação formal da população do interior do Estado (grupos escolares e ginásios, escolas normais, técnicas e rurais, professores e alunos).

Conforme definição de Carvalho e Lima (1997, p. 19), pesquisadoras dos álbuns da capital do Estado,

O álbum é um tipo de publicação iconográfica na qual são aglutinadas, segundo um arranjo específico, fotografias que pretendem representar diversos aspectos da cidade. Trata-se de um tipo de publicação no qual a imagem visual é predominante e assume um papel ativo na construção de sentidos, articulando-se ao invés de submeter-se aos textos e legendas.

No interior do Estado, as imagens neles publicadas adquiriram, ao longo do tempo, um caráter documental inequívoco, pois são tidas por parte da comunidade da Araraquarense como testemunhos do que realmente aconteceu no passado. São reimpressas nos jornais locais nas datas comemorativas, decoram as paredes de supermercados e bares, compõem documentários sobre a história das cidades e afins.

À luz das proposições de Chartier (2007), pensamos a materialidade dos álbuns (física e discursiva) como suportes e tais suportes como elementos centrais da significação pretendida, qual seja: a Araraquarense seria o espaço em que a tradição dos velhos bandeirantes estava sendo ressignificada mediante empenho de modernização levada a cabo pelos pioneiros do século XX (fazendeiros, médicos, farmacêuticos, professores, políticos, letrados). Tanto da materialidade do álbum quanto da mensagem que eles constroem, extraímos, pois, a reiteração de um trabalho árduo de autoafirmação dos homens e mulheres daquele rincão. Não por acaso, são fragmentos das conferências proferidas pelo jurista baiano Ruy Barbosa na cidade de São Paulo, em 1909, emoldurados por ricas figuras de flores, que abrem o Album de Araraquara.

À época, Barbosa era autoridade moral inconteste, um intelectual polímata que também partilhava do regime de verdade em franca construção no período: aquele que associava a figura dos paulistas aos predicados de bravura, audácia e coragem. Uma ideologia que, além de coligar o habitante do Estado a uma espécie de raça privilegiada em relação aos demais cidadãos brasileiros, promovia o apagamento da presença das etnias africanas em sua formação. Assim observamos no excerto em questão:

Nessa epopéa da tuba épica, viu urdir o mundo novo a estirpe dos paulistas, filhos intractraveis do cruzamento entre o gênio europeu e a energia americana, de uma constituição à prova do medo e uma atividade inaccessivel ao cansaço.

[...] Aqui retinem agóra todas as forjas do progresso e os rumores do porvir se orchestram na symphonia heroica da esperança; dirse-ia que das entranhas da terra se escuta o sentir da energia creadora em ondas sucessivas, sente-se o crescer da força, a exuberância da seiva, o amoro da vida, na intumecencia dos seios mysteriosos que debruçam para o berço das raças predestinadas.6

Sem exceção, esse tipo de relato épico sobre os habitantes de São Paulo foi encontrado em todos os suportes analisados. É o caso, por exemplo, do exemplar de Rio Preto (1918-1919), cuja abertura é escrita, em tom dramático, pelo advogado Oiticica Lins. A morte e a desventura espreitam o paulista. O herói, no entanto, não esmorece diante das agruras cotidianamente enfrentadas. Antes disso, alimentase delas e segue adiante. “Quem quer passar além do Bojador, tem que passar além da dor”, diria Pessoa sobre os desbravadores portugueses. “Lá vão eles, os sertanistas valentes e ousados, sob perigos a fazelos pensar na morte sem lhes entibiar, comtudo, a alma de ferra, em busca do Desconhecido! nos relata Oiticia Lins, sobre os pioneiros do sertão”.7 E acrescenta: “Longas caminhadas, dias braseados por um sol adusto, tacteando na solidão, vadeando rios e galgando outeiros, sem norte, sem directriz, pés a sangrar nos pedrouços duros, sedentos e famintos, padecendo mil tormentos [...]”.8

De fato, talvez um dos pontos comuns mais significativos depreendidos da leitura conjunta dos álbuns seja a identificação do desejo dos seus artífices em “dar a ver” a si mesmos e as regiões das quais faziam parte - para fazer saber dos louvores épicos que atravessavam a ação e a percepção do sujeito daquele período. Além disso, outra característica peculiar é o acento romântico, iluminista, que acreditava na superação da barbárie por intermédio das Letras.

Observamos que os discursos de fundação são semelhantes, assim como o tom épico depreendido. Parte-se da constatação de uma falta de registro, de conhecimento histórico e de educação para justificar a confecção dos álbuns, tidos como “definitivos” pelos seus escritores porque representariam espécie de “certidão de nascimento” das municipalidades. Um corpo de acabamento, de suposta transparência, que se movimenta no modo da certeza em crenças sociais e aspirações de vida confirma-se de um álbum para outro e no intervalo entre eles.

O fazendeiro Cândido Brasil Estrela, da cidade de Mirassol, por exemplo, justificava a empreitada da publicação do álbum daquela cidade justamente em função da necessidade de publicizá-la.9 O político de Rio Preto Adolpho Guimarães Corrêa, por sua vez, exaltava a publicação do Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto (19271929) visando constituir a verdade dos fatos, conforme acreditavam os escribas positivistas da época.

É o município de Mirasol a gemma da comarca riopretana. Mostra-nol-o eloquentemente quer as suas terras de primeira ordem, feracissimas, tanto para o café como para todo gênero de cereais, arroz, feijão, milho, etc, quer a sua marcha vertiginosa na larga e formosa estrada do progresso.10

Não admira, assim, que as nossas cidades quase todas tenham sempre escapado a todo interesse histórico. Faltam-lhes pesquisadores pacientes, investigadores, que fixem os seus factos e tradicções.11

Somos afastados definitivamente, pelo modo de dizer e o que é dito nos álbuns, de um sujeito contingente ou da contingência da história: tudo é definitivo, tudo é acabado. Se isso acontece, é bom lembrar que estávamos num tempo em que os levantamentos estatísticos oficiais ainda eram precários; e, para além das simbologias envolvendo as narrativas em questão, dos álbuns emergem compilações de dados até então inéditas, atas de fundação, depoimentos dos primeiros colonizadores, fotografias primitivas e “relatos pitorescos”. Esses se constituem numa reunião de vestígios históricos dos tempos de fundação daquelas cidades, independentemente das questões valorativas já expostas. Assim já intuía o famoso advogado e político santista Vicente de Carvalho ao comentar, a convite, a publicação do Album de Araraquara:

Temos o gosto algum tanto roceiro de preocupar-nos demais com a vida de outrem, e pouquíssimo, descuidadamente, com a nossa. Entretanto, a nossa terra e a nossa vida não são assim desinteressantes, sobretudo para nós. Cuidemos delas que vale a pena.12

Conforme observamos, a confecção dos álbuns revela uma necessidade de reconhecimento partilhada. Por isso, postulamos que essa forma de registro - álbuns - deve ser vista como estratégia: econômica, já que seus autores visavam atrair investimentos para os locais que publicitavam; política, pois notabilizavam a administração pública local e estadual; ideológica, já que propagavam uma série de valores àquela época em voga; e, sobretudo, social, pois proporcionavam distinção e reconhecimento para os indivíduos e famílias que os constituíam.

Não por acaso, os álbuns são majoritariamente objetos belíssimos, confeccionados em capa de couro, decorados com desenhos art nouveau, impressos em papel couché, compostos por textos históricos que se iniciam adornados por espécies de iluminuras medievais ressiginificadas em pleno sertão paulista no século XX. Assim, eles buscavam idealmente representar a totalidade de uma dada realidade. Nasceram para ser a síntese gloriosa de um tempo/espaço.

Observamos, entretanto, que, se tais álbuns compõem uma totalidade característica de um gênero textual próprio, erigido em torno de temática, composição e estilo bastante reconhecíveis para o leitor de ontem e de hoje, conforme caminho clássico de análise textual proposto originalmente por Bakthin (2009), eles também guardam particularidades entre si. Aqueles produzidos em zona de colonização mais antiga, como Araraquara e São José do Rio Preto, por exemplo, são mais densos e elaborados, tanto em termos de conteúdo quanto em relação ao acabamento. Os de Mirassol são menos refinados, mas não por isso menos épicos, o que acreditamos denotar o índice de colonização recente do lugar.

Na impossibilidade de esmiuçar as particularidades de cada um deles no espaço deste artigo, optamos por trazer à luz no item a seguir apenas o Album de Araraquara 1915, referência para as elites daquelas plagas. Selecionamos ainda esse álbum como exemplar do gênero, pois acreditamos que ele sintetiza, numa espécie de “justa medida” clássica, a composição, a temática e o estilo observados nos demais suportes. Nada parece estar em excesso naquele objeto cultual - como é o caso dos álbuns de São José do Rio Preto - nem em escassez, como observado nos exemplares de Mirassol.13

A cidade era um verdadeiro entreposto geográfico, pois era lá que se dava a baldeação de passageiros da Estrada de Ferro Paulista para a Araraquarense e vice-versa; comercial, pois muitos produtos que não eram encontrados nas cidades e vilas dos confins podiam ser adquiridos na “morada do sol”; e, principalmente, cultural, visto que os progressos daquela cidade eram tidos pelos ilustrados do sertão como exemplares para as demais localidades, particularmente no que

dizia respeito ao universo educacional.14

O ALBUM DE ARARAqUARA: MATERIALIDADE E CONTEúDO

Esse artefato mede 22 cm de altura e 31,5 cm de largura, e é composto por 404 páginas. Destaque-se que a grande maioria das fotografias presentes é assinada por LEMMI ou Photo Pèrez: muitas delas apresentam a identificação de ambos numa mesma imagem. Não sabemos, todavia, se LEMMI (nome de um fotógrafo?; de um estúdio?) era um profissional itinerante ou residente na região. Seu nome não consta nos anúncios do álbum, nem no índice dos profissionais da “photographia” da cidade.

Nesse índice, deparamo-nos apenas com os nomes de Fratelli Ziccardi e Monteiro & Garcia. Descobrimos que Monteiro & Garcia se apresentavam no mercado como “sucessores” de F. Pèrez (Photo Pèrez), profissional residente em Araraquara desde 1895, com estúdio instalado na rua São Bento, nº 17. Mas não conseguimos associar Fratelli Ziccardi ao trabalho de LEMMI, apesar de aventarmos tal hipótese. Outra conjectura é a de que Monteiro & Garcia (Photo Pèrez) adquiriram os clichês originais de LEMMI - e acrescentaram posteriormente a assinatura Photo Pèrez. Sobre este último estúdio, Kossoy (2002) nos informa que Felemon Perez trabalhou no interior paulista no final do século XIX, anunciando seu ateliê como Photographia Central. Em sua carte de visite, noticiava os endereços profissionais de São Carlos do Pinhal e da sucursal Araraquara.

O álbum foi tecido em capa de couro marrom, com letras inscritas em cor preta e dourada, adornadas por flores e ramos art nouveau que, por sua vez, entrelaçam a figura do prédio da câmara municipal (FIGURA 1). A imagem também aparece reproduzida no interior do álbum (FIGURA 2) contendo elementos suprimidos da composição da capa: alguns transeuntes, mastro para hasteamento da bandeira, árvores simetricamente podadas - e que não deixam de sugerir a realização do gesto de domínio: o homem sobre natureza selvagem. Na imagem, veem-se uma construção à esquerda e uma árvore à direita, e ambas se tornam diminutas no resultado final da composição: isso, em função do ponto de vista adotado pelo fotógrafo na execução da imagem.

Observamos, à luz dos ensinamentos de Kossoy (2001) e de Carvalho e Lima (1997; 2009), que o ponto de vista do autor, ou seja, a posição da tomada da cena na fotografia original (FIGURA 2) foi a do close ligeiramente ascensional e diagonal, colaborando para o efeito de monumentalidade pretendido sobre o prédio da Câmara. A ética e a estética da monumentalidade encontram-se, portanto, até no olhar sobre o mundo, tal qual apresentado na fotografia. O fato de o fotógrafo isolar o prédio numa tomada pontual, em detrimento das coisas circundantes, colabora para a construção de uma cidade que se erige a partir de novos marcos urbanos de referência, que, neste exemplo, é o referido prédio. Não por acaso, ao sermos cravados no espaço de comunhão dos artífi ces do álbum, emparelhamo-nos à grande parte dos membros do Partido Republicano Paulista (PRP).

Além disso, seguindo um padrão visual observado por Carvalho e Lima (2008, p. 94) nos álbuns da capital, também no exemplar do interior paulista notamos uma tendência geral nas fotografias observadas “em que o motivo sofre pouquíssimas distorções ou fragmentações. Procura-se evidenciar de maneira clara e sem ambiguidades o tema tratado”: afi nal, trata-se de um suporte que apresenta a ilusão de documentar a realidade tal qual ela se apresenta. Simulacros - no caso dos álbuns, simulacro de uma realidade fundada no ideal do equilíbrio, da justa medida - para que se tenha a ilusão de que eles não ocultam nada, mas dizem tudo.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 1 Capa do Album de Araraquara, editado no ano de 1915, de onde sobressaem elementos propagandísticos que buscavam identificar a urbe ao progresso e ao gosto refinado: construção neoclássica entrelaçada em desenhos de inspiração art nouveau 

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 2 Fotografia original da Câmara Municipal de Araraquara, executada por LEMMI (assinatura à esquerda) numa composição em close ligeiramente ascensional e diagonal. Destaque-se, ainda, a moldura que adorna a imagem, inserida posteriormente por Antonio M. França, organizador do álbum 

A escolha do prédio da Câmara para ilustrar a capa do álbum não poderia ser aleatória - como nada o é, nos álbuns, já que partimos do princípio de que o olhar daquele que elaborou tais documentos, seja um grupo reunido por ideais comuns, categoriza o mundo. Um mundo que, feito como enunciado verbo-visual cumpre-se na realização de uma meta certeira: alardear o épico do sertão paulista num viés político. Foi justamente a edilidade municipal quem fi nanciou a publicação. Organizado e ilustrado por Antonio M. França, editor da cidade de São Paulo que vivia da impressão de álbuns, almanaques e da “compra e venda de quaisquer artigos, de informações, etc.”, conforme informado na seção de propagandas da obra; e, editado por João Silveira, o álbum teve como seu maior artífi ce Bento de Abreu Sampaio Vidal, então presidente da Câmara.

Muito possivelmente o organizador preparou o álbum a partir das fotografi as de LEMMI e Photo Pèrez que já circulavam individualmente, num processo muito comum na produção dos primeiros álbuns paulistas, conforme identifi cado por Lima (1993). Segundo a autora, os clichês produzidos pelos primeiros fotógrafos em atividade no Brasil eram rotineiramente comprados pelos editores, donos de livrarias e gráficas, para a composição dos álbuns ilustrados, o que acabou colaborando decisivamente para a massificação da fotografia nos séculos XIX e XX. Não espanta que o visual oriente o verbal - o que caracteriza o teor da composição dos álbuns, que não se basta verbalmente apenas. Mas o verbal tem presença forte e decisiva.

É Bento de Abreu quem narra a história de Araraquara ao longo das 54 páginas iniciais recorrendo, segundo garantia, às autoridades competentes no assunto: ao viajante Saint-Hilaire, que, em 1818, registrou sua passagem pelo Estado de São Paulo e é o responsável pela célebre definição dos habitantes daquelas plagas como “raça de gigantes”;15 ao Diccionario Geographico do Imperio do Brasil, escrito por Millet de Saint-Adolphe, impresso em Paris, em 1845, e fonte de referência para inúmeras obras escritas posteriormente sobre a História do Brasil, tais como as de Caio Prado Jr., Câmara Cascudo e Florestan Fernandes, entre outros (IPEA, 2014);16 e à não menos famosa Genealogia Paulistana, de Luiz Gonzaga da Silva Leme, obra publicada em nove volumes, entre os anos de 1903 e 1905. Na genealogia, o autor identifica, em mais de duas mil páginas, as origens e relações de parentesco das famílias tidas como as mais expressivas para a povoação do Estado, tais como os Lara, os Prado, os Penteado, etc. Também constam na compilação os parentes próximos ou distantes de Bento de Abreu: os Sampaio, os Arruda e os Botelho.17

Mas é a representação clássica de Saint-Hilaire o ponto de partida da escrita de Bento de Abreu, o cenário em que se desenrola a sua narrativa sobre a região.

Quando conhece-se por experiência quantas fadigas, privações e perigos perseguem ainda hoje o viajante que percorre esses longínquos paizes, e se tem lido em detalhes as excursões intermináveis dos antigos paulistas, sente-se uma espécie de estupefacção, e como que se é obrigado a reconhecer que estes homens pertenciam á uma raça de gigantes.18

Expoente ilustrado das elites paulistas de então, Bento de Abreu desempenhou diversos papéis ao longo de sua vida pública.19 Foi rico fazendeiro não apenas em Araraquara, pois igualmente fundou vilas e cidades no processo de ocupação capitalista de outras terras do Estado, como é o caso de Marília, por exemplo. Também foi político atuante na região de Araraquara, além de benemérito, patrono de ginásio, faculdade, santa-casa, teatro, asilo e orfanato. No entanto, independentemente dos seus inegáveis méritos individuais, Vargas (2000) demonstrou que foram igualmente as redes de sociabilidade das quais dispunha que o ajudaram a garantir o sucesso das iniciativas capitalistas no interior paulista. Segundo a autora, Abreu “era membro de uma extensa família de comerciantes, banqueiros e cafeicultores, tradicionalmente ligada à política estadual e nacional” (VARGAS, 2000, p. 46).

É justamente a fotografia feita desse personagem a primeira a ser reproduzida no álbum (FIGURA 3). Executada por LEMMI, em composição clássica de estúdio, apresenta características muito comuns na retratística do período, conforme demonstrado por Carvalho e Lima (2009): meio corpo e rosto em rotação para a esquerda, ausência completa de sorriso, vestimentas claramente escolhidas para a ocasião especial do retrato, rigidez da pose. Segundo as autoras, as fotografias se tornaram instrumento central na construção da autorrepresentação social dos homens públicos do finissecular XIX/ XX, assim como as pinturas haviam sido nos séculos anteriores. Com a diferença do barateamento do serviço dos fotógrafos em relação ao dos pintores - e consequente disseminação do hábito entre diversos segmentos da população de se retratar.

Isso não parece ser questão para Abreu, impecável em suas vestes, bigode e postura, aparentemente muito à vontade no cargo de “presidente da Câmara Municipal”, conforme informado na legenda.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 3 Bento de Abreu Sampaio Vidal, líder político de Araraquara e idealizador do álbum 

O álbum arquitetado por ele e seu grupo segue um modelo de organização perceptível também nos outros exemplares analisados, com poucas variações. Inicia-se com apresentação que, no caso específico desse suporte, denomina-se “Carta aos editores”, consistindo numa apreciação crítica de Vicente de Carvalho sobre a importância da obra “necessária e urjente”, resultante do “esforço digno de imitação” dos seus artífices.20 Ainda na abertura da obra, temos o célebre trecho de Ruy Barbosa, já citado anteriormente, também emoldurado em flores sob o título de “Os paulistas”.21 Segue-se o “Estudo Historico e Geographico da cidade e município de Araraquara”, escrito por Bento de Abreu.22

Em seguida, deparamo-nos com o mapa de Araraquara, as fotografias dos políticos e administradores locais, o balanço financeiro da cidade no ano de 1913 e uma série de fotografias de tamanhos variados (20 x 15 cm; 18 x 13 cm; 10 x 13 cm) que buscavam registrar os sinais de progresso e civilidade da urbe: do paço municipal e do interior do gabinete do prefeito e da Câmara, compostos por “mobilia, tapeçaria, bronzes, fornecidos pelo Lyceu de Artes e Ofícios de S. Paulo (eguaes aos da Camara dos Deputados)”, conforme informado pela legenda; e das primeiras páginas dos impressos locais O Popular, O Araraquarense e Jornal do Commercio.

A crença na imprensa como veículo civilizador, signo inconteste do “alto grau de civilização dos povos”, como se dizia à época, é tema sobejamente reconhecido no campo da História da Educação e justifica a reprodução das primeiras páginas dos periódicos locais no início do álbum - e justamente no encadeamento das fotografias sobre o poder municipal.

Na sequência, o leitor tem acesso a uma série de dados, textos e, sobretudo, imagens: da Igreja Católica local (vigário e irmandades), Santa Casa de Misericórdia, Araraquara College e grupo escolar, Cia Estrada de Ferro Araraquara, Teatro Municipal e do Polytheama de Araraquara, Banco de Araraquara, Usina do Chibarro e da subestação de Américo Braziliense, Empreza de Eletricidade de Araraquara, jardins públicos e Centro da cidade; Correio, Justiça (juiz de direito, promotor, juízes de paz, tabeliães, escrivães, delegado), clube, bandas (Carlos Gomes e Lyra Araraquarense), matadouro, estatísticas agrícolas e zootécnicas e sociedades beneficentes (portuguesa e italiana).

Ainda em continuidade, da página 63 a 111, somos apresentados à compilação feita por Bento de Abreu sobre os “Varões Antigos de Araraquara”. Em nota explicativa, ele nos informa que os textos e fotografias reproduzidos no álbum já haviam sido publicados no jornal O Popular. Informa também que os subsídios para sua escrita haviam sido fornecidos por pessoas das famílias dos retratados ou copiados integralmente da Genealogia Paulistana, de Silva Leme.23

Trata-se de informação significativa, porque remete ao ambiente de circulação do álbum: leitores dos jornais, leitores do álbum. O Popular, por exemplo, se autodesignava “o diário mais antigo, de maior tiragem e de maior circulação na zona”, visto que havia sido fundado em 1898, e era um “orgam do Partido Republicano”. Publicado diariamente, esse impresso teve a primeira página reproduzida integralmente no álbum, e, ao lê-la, nos aproximamos das estratégias de divulgação dos artífices daquele documento, bem como das relações, nem sempre pacíficas e cordiais, dos autores - de álbuns ou de jornais.

É preciso escrever ainda umas linhas a respeito do “Album” porque o seu digno editor, sr. Antonio M. França, não dispensa para a sua obra um clichê de O POPULAR e faz questão que nesse numero se fale de seu “Album”. Mas para que? O jornal vale por si, pelo seu passado - não é imodéstia dizê-lo - na cidade e na zona, pelas dedicações que o tem amparado, pelas amizades que se orgulha de possuir [...]. O POPULAR não carecia, pois, de ser perpetuado indefinidamente no archivo gráfico do “Album”. Nem o “Album” precisava para se impor à estima e admiração de todos, da fotografia do jornal. Mas, em definitiva, uma obra auxiliará a outra [...].24

O Araraquarense, por sua vez, autoproclamado “semanário literário e noticioso”, também destacava em primeira página reproduzida no álbum a publicação da “grande obra” identificando tal iniciativa como “um grande melhoramento de ordem moral” para toda a coletividade. Por meio da notícia dada pelo periódico e reduplicada no álbum, chegamos mais próximos daqueles que o idealizaram, ou seja, dos membros do Partido Republicano Paulista: todos diretamente envolvidos com a administração municipal. Os redatores do jornal afirmavam que não citariam os nomes dos responsáveis pela publicação daquele suporte, mas que, no entanto,

[...] os nomes dos ilustres srs. Bento de Abreu Sampaio Vidal e Major Dario Alves de Carvalho, não podem passar despercebidos, pelo muito que tem feito pelo adiantado deste pedaço do torrão paulista; e mais do que estas palavras, o atestam os votos de sinceridade de cada munícipe que vê nos dois cavalheiros citados as mais fortes columnas que sustentam o progresso de Araraquara.25

Finalmente, da página 112 a 117, são elencados os “Fazendeiros do Município de Araraquara” e designados, ao lado dos nomes, os números de pés de café de suas propriedades, bem como são apontados estes dados: a estação ferroviária mais próxima (Araraquara, Santa Lucia, Américo Braziliense, etc.); a lista completa do “Commercio, Industria e Profissões da cidade; as informações, textos e fotografias sobre o “Districto de Paz de Santa Lucia”, “Districto Policial de Americo Braziliense”, “Districto de Paz de Rincão”, “Districto de Paz de Nova Paulicéa”, seguidos de 124 páginas ricamente ilustradas referentes às fazendas da região.

A propriedade rural que abre a série sobre as fazendas é a de Bento de Abreu Sampaio Vidal, localizada no distrito de Santa Lucia. O álbum se encerra com os anúncios dos profissionais liberais em atividade no município e distritos (médicos, advogados, engenheiros, agrônomos, dentistas e solicitadores), do comércio local (oficinas, hotéis, estabelecimentos de beneficiamento de arroz e café, casas tipográficas, carpintarias, armazéns, etc.) e, finalmente, com um índice geral da obra.

Assim como nos outros álbuns analisados, no impresso de Araraquara a temática educacional obteve amplo relevo, visto que a educação era tomada à época como terreno ideal para o cultivo da moralidade política, da ordem, do asseio e do comprometimento social de todos os brasileiros em torno da causa comum do progresso da nação. Sobretudo, tal temática sustenta-se como espaço para a concretização das utopias de engrandecimento do país via racionalidade técnica.

Centro de rotação do “redemoinhar brasileiro”, conforme expressão feliz de Carlos Monarcha (2009, p. 65), a educação se confirmou como palavra de ordem para muitos grupos sociais que atuaram na esfera pública nas primeiras décadas do século XX, quer fossem comunistas, anarquistas, feministas ou republicanos radicais. Foi particularmente alardeada pelos membros das elites ilustradas nacionais, independentemente se mais liberais ou conservadoras, como a principal maneira de alavancar o avanço do país, conforme vimos observando nos escritos daqueles que se debruçaram sobre o assunto (CARVALHO, 1989; HILSDORF, 2003; MONARCHA, 2009).

A EDUCAçÃO FOTOGRAFADA: SUjEITOS E INSTITUIçõES

Há tempos Rosa Fátima de Souza demonstrou que as fotografias escolares se tornaram gênero muito comum na virada dos séculos XIX/XX, justamente no vórtice de disseminação do enorme valor social adquirido pela educação na sociedade brasileira. A autora analisou a potencialidade desse tipo de vestígio do passado para as pesquisas no campo da História da Educação, examinou: as fotos de classe produzidas, sobretudo, com fins comerciais e voltadas para o consumo da família dos alunos; os edifícios escolares, estampados em fotos encomendadas pelos poderes públicos e destinadas à publicidade das ações administrativas; fotos também dos professores, dos alunos, dos patronos das solenidades, bem como aquelas feitas dos rituais escolares, arquitetadas como forma de registro ou de recordação (SOUZA, 2000; 2001).

Apesar de não trabalhar diretamente com álbuns, a autora, em diálogo com Solange Ferraz de Lima (1993), já indicava, no início dos anos 2000, que a temática escolar é um dos motes fotográficos mais recorrentes nos álbuns ilustrados do período, compondo, juntamente com trilhos, indústrias e jardins, entre outros, um dos célebres atestados do idealizado progresso em curso, conforme queriam crer os artífices desse tipo de artefato. Não por acaso, Souza (2001) menciona que, em 1908, foram fotografados todos os grupos escolares do Estado e, em 1929, foi editado o Album de Edifícios Escolares do Estado de São Paulo.

Tais afirmações vêm ao encontro daquilo que vimos observando na presente pesquisa: a temática é destacada em todos os suportes analisados, enquanto toma corpo um modo próprio de habitar o mundo, no limiar entre a educação escolar e os movimentos da sociedade - na expressão de mundo acabada nesses álbuns, que apresentam homem e mundo num viés próprio. No caso do Album de Araraquara, em especial, há proeminência do Araraquara College e do grupo escolar, bem como das escolas isoladas, denotando a preocupação do poder público local em evidenciar tanto as iniciativas destinadas à educação popular (grupo e escolas) quanto à formação das elites regionais (Araraquara College).

No caso do College, Souza (2013, p. 3) nos informa que ele foi criado pela Câmara Municipal, em 1911, e teve a construção do prédio concluída em 1913, começando a funcionar efetivamente em 1914 (cursos primário, secundário e preparatório). O ginásio seguia as diretrizes do Mackenzie College de São Paulo, e, segundo a autora, sua criação pode “ser vista como mais uma estratégia das elites locais de modernização da cidade”. É justamente o aspecto monumental do prédio, coadunado aos projetos em voga, que observamos na foto de LEMMI (FIGURA 4; 20 x 15 cm). Essa monumentalidade cria o corpo semântico do ator social convocado nesses álbuns, enquanto se delineia um horizonte supostamente equilibrado, como o são os perfis dos fotografados. Tudo está no lugar, nada está posto na ordem do inacabamento, como pudemos verificar nas fotos anteriormente elencadas, a que segue esta:

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 4 Araraquara College, ginásio construído pela prefeitura da cidade e que seguia as diretrizes pedagógicas do Mackenzie College de São Paulo 

A arquitetura escolar típica do período, em dois pavimentos repletos de janelas para a correta entrada do sol e circulação de ar, conforme os preceitos higiênicos de então, é capturada num instante de vida e movimento: dos jovens no horário da entrada ou saída das aulas, da bandeira nacional tremulando ao vento da “morada do sol”, das janelas aqui fechadas, ali entreabertas, denotando o ir e vir de professores e alunos nesse local que proporcionaria, conforme informado, “vantagens ás famílias desta zona, pois que, para a educação dos seus filhos, já não precisam recorrer aos grandes centros, muitas vezes prejudiciais”.26

Não por acaso observamos no anúncio do ginásio a presença de um valor bastante comum naqueles tempos: o ruralismo, ou seja, a crença de que a vida nas grandes cidades poderia degenerar o cidadão “de bem”, sendo que o oposto ocorreria com os moradores do campo ou mesmo com os habitantes das cidades menores (corpo e mente sãos, protegidos da “neurastenia” das aglomerações urbanas).27 A opção pelo close em ligeira diagonal é a mesma observada no registro da Câmara Municipal (FIGURA 2). Aqui, todavia, o autor também está num andar elevado (sacada de algum prédio em frente?; segundo pavimento?) - para que a vista ganhe em extensão e abrangência do olhar, sem que se percam o equilíbrio e o centro do que é observado: o majestoso prédio.

É o mesmo LEMMI quem retrata um dormitório do ginásio (FIGURA 5, canto inferior direito, 10 x 15 cm) com suas camas racionalmente dispostas e simetricamente arrumadas, testemunhando a ordem e o asseio necessários às “regras de hygiene escolar”, conforme anunciado. Um corpo classicamente acabado segundo ideais próprios àquele contexto aninha-se na foto, emparelhada a outra, que segue reproduzida. Sobreposta à imagem do dormitório, observamos uma fotografia que visa documentar um momento de sala de aula (FIGURA 5, canto superior esquerdo, 9 x 15 cm). Esta não tem autoria, e possivelmente foi recortada pelo editor para a montagem final realizada.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 5 Aspectos internos do Araraquara College 

Causa estranheza na imagem da sala de aula o fato de os alunos, de ambos os sexos, estarem olhando para a frente sem que lá esteja um professor. Ele estaria no fundo do recinto, auxiliando o fotógrafo na composição? Ou foi suprimido da cena final, no ato da montagem? Independentemente dos caminhos de construção da página, interessa destacar os motivos da modernidade educacional que se queria evidenciar na sobreposição de fotografias escolares: a coeducação dos sexos, o aparente interesse dos alunos pelo assunto abordado, o mobiliário especificamente escolar, os materiais claramente educacionais, a racionalidade dos espaços e a organização interna da escola, todas práticas em implantação nos estabelecimentos que adotavam as “pedagogias novas” em circulação no período.

LEMMI e Photo Pérez são também os responsáveis pelo clichê do grupo escolar de Araraquara. O prédio foi construído em 1903, pelo governo do Estado, exclusivamente para funcionar como escola, conforme podemos observar na arquitetura neoclássica evidenciada, tendência muito difundida e ressignificada no Brasil por Ramos de Azevedo desde as últimas décadas do século XIX (WOLFF, 2010). No registro feito pelo grupo, temos uma tomada claramente diagonal e ascensional (FIGURA 6, 13,3 x 10 cm) num padrão de registro semelhante ao da Câmara Municipal.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 6 Grupo Escolar de Araraquara 

São as imagens do “sertão do sertão”, ou, melhor dizendo, daquelas regiões que estavam sendo habitadas naquele exato momento de execução e confecção do Album de Araraquara, que nos dão a dimensão da importância adquirida pela temática escolar no imaginário dos homens daquele tempo e espaço. Elas não nos falam abertamente de riqueza, prosperidade e racionalidade científica, como é o caso da imagem feita do grupo escolar, ícone já cristalizado na cultura visual dos homens daqueles tempos. Não nos contam, também, sobre os ventos das modernidades educacionais, que sopravam sobre os filhos dos bem nascidos da “morada do sol” e região, conforme observado nas montagens do College. Pelo contrário, elas nos comunicam uma utopia em estado incipiente de construção: em palmos de terras ou em alqueires recentemente ocupados.

No intuito de propagar o desenvolvimento do “districto de paz de Santa Lucia” e de “Americo Braziliense”, por exemplo, loteados por Bento de Abreu e seus pares, deparamo-nos com um conjunto de oito imagens, cuja população fotografada era calculada em “10.000 almas” e “500 no povoado”, no caso de Santa Lucia; e “8.000 almas, sendo 700 na povoação”, no caso de Américo Braziliense. Dos oito retratos sobre tais localidades, cinco se detêm sobre o universo escolar, reproduzindo os prédios e as classes (alunos e professores).

A colonização, o domínio do homem sobre o mundo natural e a força para o trabalho que os letrados do sertão se empenhavam por documentar e divulgar estavam personificados, afinal, naquelas fotografias - e por meio de um mundo sensivelmente construído, como compete à fotografia, cuja plasticidade chega perto do leitor pelo canal da sensibilidade.

Logo na primeira foto, a de Santa Lucia (FIGURA 7, 15,5 x 21 cm), deparamo-nos com rara sobreposição de representações emolduradas. A menor, à esquerda, do largo da estação ferroviária (6 x 15 cm), aparece em tomada panorâmica que denuncia o caráter de conquista ainda incipiente do lugar. À direita, em maior destaque, observamos o edifício da escola pública (10 x 15 cm), registrado na mesma perspectiva dos demais prédios públicos do álbum (diagonal, ascensional).

Já a vista pontual da escola de Américo Braziliense (FIGURA 8, 13 x 17,5 cm) nos revela a existência de público dominantemente masculino e com alunos de idades diversas. Juntamente com a imagem de Santa Lucia, avulta a simplicidade das instalações, se comparadas aos “templos de civilização” necessariamente urbanos perscrutados inicialmente por Souza (1998), e posteriormente por tantas outras pesquisas desenvolvidas no âmbito da historiografia da educação brasileira.

Três personagens estão presentes na referida foto, no canto à direita, mas definitivamente eles não fazem parte da composição da cena: um menino que brinca ao rés do chão, de costas para o fotógrafo, e dois adultos alheios ao registro. Um deles, aliás, em flagrante análogo a inúmeras outras representações visuais sobre o trabalhador rural do Brasil e do mundo - dos caipiras de Almeida Jr. aos camponeses de JeanFrançois Millet; das ilustrações do Jeca, de Lobato, aos trejeitos cômicos e hiperbólicos de Amacio Mazzaropi: roupa rústica para o trabalho duro na lavoura, chapéu de palha nas mãos, que se mantêm próximas à cabeça, insinuando o ato de enxugar o suor do rosto num momento de pausa para o descanso ou para um “dedo de prosa” com um conhecido.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 7 Santa Lucia 

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 8 Américo Braziliense 

As fotografias de LEMMI sobre as escolas de Santa Lucia e Américo Braziliense (FIGURA 7 e 8) descortinam construções modestas, sem ostentação, mas cujo equilíbrio se mantém como modo de presença - das casas e do ator social envolvido. Em Santa Lucia (FIGURA 7), observamos a existência de duas entradas laterais, possivelmente destinadas para meninos, aqui posando com seu professor; e meninas, representadas pelas duas alunas à direita. Ambas as construções se erigem sob um chão de terra batida já dessemelhante daquele dos paralelepípedos do grupo de Araraquara, com suas cercas apartando o prédio da escola do restante da comunidade e vice-versa, e jardins decorativos (FIGURA 6).

Além das “almas” escolares de tais comunidades, desperta o interesse científico o rastro de solidariedade humana, naquilo que este sentimento comporta de potência para a identificação do eu com um outro posto no mundo, num tempo/espaço diverso, tão díspares do aqui e do agora daquele que perscruta. Há a sugestão de uma solidariedade afetuosa especialmente estimulada por esse processo de “interrupção do tempo e, portanto, de vida” ocasionado pela sucessão de escolhas dos fotógrafos e editores (temas, angulação, tonalidade, enquadramento, molduras, etc.), ao construírem uma fotografia (e um álbum), que seleciona e evidencia uma “realidade”, conforme o filtro cultural adotado pelos seus produtores. Juntamente com o traço épico do corpo do ator social envolvido, uma paixão da serenidade rastreia as fotos, que se cumprem na luminosidade garantida, nos contornos conservados, como se o mundo não fosse instável.

Boris Kossoy (2001, p. 44) nos autoriza a pensarmos desse modo, ao se referir ao instante que nos mobiliza no presente e permaneceria para sempre descontínuo e isolado na bidimensão de papel, construído pelo olhar dos fotógrafos e editores, caso não nos debruçássemos sobre ele com um olhar inquisidor.

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 9 Escola Masculina de Santa Lucia 

Fonte: Album de Araraquara, 1915

Figura 10 Escola Feminina de Santa Lucia 

Fonte: Album de Araraquara, 1915.

Figura 11 Classe de Américo Braziliense 

Os corpos eretos, em posição frontal, privilegiam o mundo povoado por humanos que nos encaram nessas imagens. Clareza, equilíbrio, simetria de forças: a justa medida clássica - nada falta nem está em excesso -, eis o ideal educacional que subjaz às próprias poses. Vemos, enquanto isso, e vemos claramente, como pedem a estética e a ética desses textos plásticos, e vemos nas fotografias das classes (FIGURAS 9 e 10, 10 x 19,5 cm; FIGURA 11, 12,5 x 17 cm) a diversidade étnica existente no sertão paulista, com a presentificação dos migrantes e imigrantes nas escolas da região. Aliás, há o registro de um dos únicos negros presentes não apenas nessa foto, mas em todo o álbum (FIGURA 9). O olhar generalizante, que busca a transparência, flagra a opacidade que constitui o discurso dos álbuns - opacidade enquanto conflitos sociais, silenciados, embora. Observamos, ainda, a rudeza e a desigualdade da vida naquelas estradas da Araraquarense, num momento em que muitas “almas” posam descalças para a foto oficial, enquanto outras já exibem suas botas e sapatinhos de couro (FIGURAS 9 e 10).

Assistimos, ainda, em meio às calças curtas dos meninos e aos vestidos e laçarotes simples ou adornados das meninas, a resquícios de um tempo que findava inexoravelmente e no qual um garoto (filho de imigrante?) ainda podia usar uma veste que indefinisse seu gênero, tal qual criança europeia da Idade Moderna celebrizada por Ariès (1981) (FIGURA 11, primeira fileira à esquerda). Notamos, igualmente, a padronização no registro: crianças enfileiradas em bancos para que todos possam ser captados, professores no centro ou no canto, reproduzindo na pose para a foto a própria hierarquia existente dentro da escola, conforme intuiu Souza (2001). LEMMI parece ter instruído os mestres para não olharem diretamente para a câmera, e sim para que mirassem um horizonte cheio de promessas vindouras.

Nessa visibilidade educacional selecionada para constar no Album de Araraquara, vemos alunos e professores aparentemente bastante convencidos da gravidade e importância da situação, como atestado nas poses e na organização dos corpos fotografados. No caso dos pequenos, eles estão nas escolas da região, são o futuro paulista e o exemplo do trabalho hercúleo de construção em curso naquelas plagas - assim o discurso das fotos quer nos fazer crer, em consonância com o álbum em geral. No caso dos professores, civilizadores daquela população, confirmam-se como os corpos dos “sacerdotes”, dos “cidadãos abnegados”, dos “missionários do saber”.

Quanto às “pequenas almas”, apresentam-se uns sujeitos ou mais ou menos assustados e sofridos. Mãos abertas sobre as coxas, no caso dos que estão sentados, reforçam o controle suposto pela situação a que estavam expostos - tirar foto e viver para ela. Algumas delas entrelaçadas, no caso das meninas; estiradas rigidamente ao lado do corpo, para os que estão em pé. Elas poderiam estar mesmo espalmadas, nos contando sobre o disciplinamento dos corpos em plena execução no registro. Na classe de Santa Lucia (FIGURA 9), um deles foge ao padrão, encara a máquina e cruza os braços. Talvez ainda não tenha idade e instrução suficiente para ter vergonha de seus pés descalços. Na imagem de Américo Braziliense (FIGURA 11), dois dos mais velhos esboçam um sorriso. Todos humanamente eternizados pelo álbum - e sujeitos/objetos de empreitada que visava legitimar projetos, hierarquizações, gostos e grupos sociais.

Entendemos que destacar os sujeitos, instituições e práticas educacionais da região foi a eficaz estratégia adotada pelas elites do período. Uma estratégia tão ou mais eficiente para o intento de se dar a ver desses grupos do que os outros ensejos de comprovação da idealizada modernização em curso. Tão ou mais simbólico do que ratificar a existência de ruas com calçamento e jardins públicos arborizados, clínicas médicas equipadas com aparelhos ultramodernos ou mesmo fazendas repletas de imigrantes produzindo centenas de milhares de pés de café, era destacar a concretude das iniciativas educacionais. Dar a ver a educação demonstraria, afinal, a retidão e empenho daqueles que agiam para o “bem comum”, independentemente dos interesses partidários, econômicos e ideológicos dos próprios idealizadores do álbum (como o discurso quer fazer crer numa estratégia de persuasão própria ao gênero “álbuns” das cidades emergentes do sertão). Daí a urgência em avultar romanticamente, edulcorar aquele retalho de um tempo-espaço marcado pela direcionalidade dos álbuns, colocando o vivido acima da cotidianidade dos homens. Por isso, o ator acaba por encarnar-se epicamente como sujeito que se cumpre segundo grandes feitos, num ufanismo que não dá lugar ao inacabamento e à contingência.

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1Artigo resultante de estágio de pós-doutorado desenvolvido na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), no âmbito do Grupo de Pesquisa Intelectuais da educação: formação, ideias e ações. Pesquisa financiada pelo CNPq e FAPEMIG.

2Utilizamos aqui a palavra sertão conforme compreendido pelos homens da época: região distante das grandes cidades, espaço geográfico ainda pouco explorado economicamente, terra desconhecida, local a ser civilizado.

3A exceção é o artigo de Airton José Cavenaghi, São José do Rio Preto fotografado: imagética de uma experiência urbana (1852-1910)”, publicado na Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 46, 2003. Nele, o autor analisa uma série de fotografias impressas nos álbuns da cidade que narram a sua fundação - mas não os toma efetivamente como objeto de pesquisa.

4O álbum, considerado um “signo ideológico”, logo uma unidade de sentido que contempla o exterior no seu próprio interior (BAKTHIN, 2009), também é concebido como um discurso atravessado pelo interdiscurso, conforme uma Análise do Discurso (AD) de linha francesa (MAINGUENEAU, 2005).

5Destaque-se que se desconhece a publicação de álbuns ilustrados na região dos anos de 1930 em diante. Possivelmente eles inexistem, visto que o rastreamento efetuado nos arquivos públicos e particulares das cidades da região, bem como as entrevistas realizadas com memorialistas e historiadores locais, indicam apenas os cinco exemplares em tela. Uma das hipóteses para o arrefecimento dessa iniciativa tipográfica na Araraquarense a partir dessa década é a de que as edições e suplementos comemorativos dos jornais diários locais, publicados especialmente nas datas de aniversário dos municípios, passaram a cumprir parcialmente, e a um custo menor, a função de propagandear o processo civilizatório em curso. Trata-se, entretanto, de outro gênero textual portador de materialidade e periodicidade diversa. Vale notar que Carvalho e Lima (2008) observaram movimento semelhante na capital. Entre 1887 e 1920, desvelaram a existência de doze álbuns dedicados à cidade. Nas décadas de 1930 e 1940, apenas três. No início dos anos 1950, possivelmente em função das comemorações do 4º centenário da fundação da cidade, encontraram sete.

6BARBOSA, Ruy. Album de Araraquara, 1915.

7Conforme informações coletadas pelo historiador Lelé Arantes, Fernando Oiticica da Rocha Lins nasceu em Alagoas, em 1889. Filho de desembargador e governador do Estado, formouse em Direito na Faculdade São Francisco. Mudou-se para Rio Preto na década de 1910 e lá ficou até 1920, quando se transferiu definitivamente para o Rio de Janeiro. Na capital, associouse a Vital Brazil e trabalhou no Instituto fundado pelo cientista em 1919 (ARANTES, 2010).

8LINS, Oiticica. Album de Rio Preto, 1918-1919.

9Candido Brasil Estrela era fazendeiro, filantropo, dono de jornais e revistas em diversas cidades da região araraquarense. Morou a maior parte de sua vida em Mirassol e, assim como Bento de Abreu (personagem que conheceremos mais adiante neste artigo), fundou cidades, derrubou florestas e loteou bairros inteiros pelos sertões paulistas.

10ESTRELA, Candido Brasil. Album de Mirassol, 1900-1925.

11CORRÊA, Adolpho Guimarães. Album Ilustrado da Comarca de Rio Preto, 1927-1929. O mineiro Adolpho Guimarães Correa era tenente-coronel, advogado e político em São José do Rio Preto. Foi prefeito daquela cidade entre 1908 e 1914.

12CARVALHO, Vicente. Album de Araraquara, 1915. A paginação dos álbuns é inexistente ou descontínua e heterogênea. O Album de Araraquara, por exemplo, apresenta páginas com numeração arábica e romana. Mas a maioria delas está sem numeração.

13As especificidades de cada um dos álbuns ilustrados do interior paulista foram investigadas no âmbito de pesquisa de pós-doutoramento, realizada junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo ao longo de 2015, e serão publicadas em livro.

14Era hábito, no início do século XX, os órgãos de imprensa inventarem alcunhas para as cidades paulistas. São José do Rio Preto, por exemplo, recebeu o apelido de “princeza do sertão”, Araraquara, de “morada do sol” (CAMPOS, 2004, 2009).

15Tais obras serviriam de referência não apenas para a narrativa de Bento de Abreu sobre Araraquara, mas para boa parte da historiografia paulista produzida sob os auspícios do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, fundado em 1894, e da Universidade de São Paulo nos seus primórdios, particularmente por intermédio das obras do professor catedrático Alfredo Ellis Jr. de História da Civilização Brasileira, como é o caso emblemático de Raça de Gigantes: a civilização no planalto paulista, estudo da evolução racial anthroposocial e psychicologica do Paulista dos seculos XVI, XVII, XVIII e XIX, e das mesologias physica e social do planalto paulista. São Paulo: Editorial Helios, 1926 (MAHL, 2001; FERREIRA; MAHL, 2011).

16SAINT-ADOLPHE, Millet. Diccionario Geographico do Imperio do Brasil. Paris: J. P. Aillaud, 1845.

17SILVA LEME, L. G. Genealogia Paulistana. São Paulo: Duprat & Comp., 1904.

1SAINT-HILAIRE apud VIDAL, Bento de Abreu Sampaio. Album de Araraquara, 1915, p. 13.

19Assim como Bento de Abreu, pelo tom, estilo e conteúdo da escrita, Rui Barbosa e Oiticica Lins, bacharéis de diferentes envergaduras no campo intelectual brasileiro, também poderiam ser tributários da narrativa de Saint-Hilaire.

20CARVALHO, Vicente. Album de Araraquara, 1915.

21BARBOSA, Ruy. Album de Araraquara, 1915.

22ABREU, Bento. Album de Araraquara, 1915.

23SILVA LEME, L. G. Genealogia Paulistana. São Paulo: Duprat & Comp., 1904.

24O Popular, 28 jun. 1914, p. 1 apud Album de Araraquara, 1915, p. 14.

25O Araraquarense, 28 maio 1914. Dario Alves de Carvalho era prefeito municipal. Conforme dados informados pelo jornal O Araraquarense, também participaram ativamente de comissão organizadora estes membros do diretório regional do PRP: José Trajano Marcondes Machado, Epaminondas França e Carlos Necke.

26Album de Araraquara, 1915, p. 22.

27A neurastenia é um tipo de distúrbio psiquiátrico comum nos diagnósticos médicos do período. Caracteriza-se pela exaustão física, irritabilidade e depressão. Uma das causas exógenas seria o excesso de trabalho e de estímulos provenientes do cotidiano das grandes cidades.

Recebido: 14 de Abril de 2016; Aceito: 07 de Novembro de 2017

Contato: Av. João Naves de Ávila, 2121, Santa Mônica, Sala 1G130, Uberlândia|MG|Brasil, CEP 38.408-100

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Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp - Araraquara). Professora associadada da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Professora Permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGED) e Tecnologias, Comunicação e Educação (PPGCEUFU). Líder do Grupo de Pesquisa História da Educação e História Regional (UFU - USP, Ribeirão Preto). E-mail: <raqueldiscini@uol.com.br>.

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