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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. Rev. vol.34  Belo Horizonte  2018  Epub 10-Jan-2018

https://doi.org/10.1590/0102-4698169376 

Artigos

A SUBJETIVIDADE DO PROFESSOR E SUA EXPRESSÃO NAS AÇÕES E RELAÇÕES PEDAGÓGICAS1

THE TEACHERS’ SUBJECTIVITY AND ITS EXPRESSION IN ACTIONS AND PEDAGOGICAL RELATIONS

Maristela Rossato1  *

Jonas Filippe Matos1  **

Ribanna Martins de Paula1  ***

1Universidade de Brasília (UnB), Brasília-DF, Brasil


RESUMO:

O objetivo do artigo é analisar como está constituída a subjetividade de professores expressa por meio das ações e relações pedagógicas vivenciadas no cotidiano da escola. A pesquisa foi metodologicamente orientada pela Epistemologia Qualitativa, visando estabelecer um olhar complexo e sistêmico sobre o tema. Utilizou-se como recursos de investigação o Complemento de Frases e a Entrevista com 05 (cinco) professores de ensino Médio e Superior. A partir dos resultados da pesquisa, foi possível identificar que a subjetividade do professor, que se expressa em suas ações e em suas relações pedagógicas, está constituída por meio de processos e formações que sinalizam para o reconhecimento da importância das experiências vividas, o enfrentamento de desafios como fator de mudança, a busca constante da atualização do conhecimento, a consciência dos próprios limites, a preocupação com o bem-estar do outro e a consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes.

Palavras-chave: Subjetividade; Sujeito; Ações e relações pedagógicas

ABSTRACT:

The objective of the research is to investigate how teachers constitute their subjectivity expressed in their actions and pedagogical relations identified as subjects in the teaching process. The research was methodologically guided by the Qualitative Epistemology with the objective to set a complex and systemic view about the theme. Sentence complement and interviews with five teachers from high school and university levels were used as methodological research tools. It was possible to understand that the subjectivity of the teachers as an expression of his/her actions and pedagogical relationships embodies important elements taken from their living experiences. The way they faced challenges as a changing factor in their lives, their constant need for updating knowledge, the awareness of their own limits, the concern about the well-being of the other and the consciousness of their professional action in their students’ lives are some of these elements.

Keywords: Subjectivity; Subject; Actions and Pedagogical relations

Introdução

A constituição da subjetividade do professor tem sido, por vezes, relegada a um segundo plano ou mesmo ignorada no cotidiano escolar e nos processos de formação inicial e continuada. Compreender como a subjetividade se constitui e se expressa nas ações e relações pedagógicas do professor possibilita colocar em evidência elementos que extrapolam o conceito de ‘prática pedagógica’ - concebida tradicionalmente como conjunto de atividades a serem desempenhadas no exercício da profissão docente. O objetivo do artigo é analisar como está constituída a subjetividade de professores expressa por meio das ações e relações pedagógicas vivenciadas no cotidiano da escola.

O conceito de ações e relações pedagógicas, desenvolvido no contexto de nossas investigações sobre a subjetividade do professor, objetiva ir além da compreensão de prática pedagógica, por reconhecermos que esta pode contribuir com uma cultura de esvaziamento da complexidade envolvida no processo ensinar e aprender, a exemplo do recorrente desejo de professores, de modo especial em cursos de formação, de receberem modelos de práticas que possam ser executadas em sala de aula. A nosso ver, esse comportamento evidencia profissionais que, por vezes, pouco se reconhecem como sujeitos capazes de agirem e de se relacionarem de modo criativo e autoral.

A preocupação com a formação de profissionais que atuam em áreas de desenvolvimento humano tem sido um desafio no âmbito acadêmico. Formosinho (2009, p. 7) chama a atenção para o trabalho de formação em “profissões que trabalham com pessoas em contato interpessoal direto, sendo essa interação o próprio processo e parte significativa do conteúdo da intervenção profissional”. Para além da instrumentalização desses profissionais, a constituição da subjetividade dos mesmos também faz parte desse processo, servindo de nutriente para as ações e relações pedagógicas em curso.

É preciso considerar que todo fazer é exercido por um ser. Compreender e gerar conhecimentos que possibilitem investir nesse ser tem sido um grande desafio das pesquisas. Autores como Mitjáns Martínez (2006), Tacca (2006), Scoz (2011), Charlot (2012) também enfatizam que se deva ampliar a compreensão da formação dos professores, colocando em pauta a constituição subjetiva, sempre em movimento, o que possibilitaria conceber a própria formação como um evento promotor de desenvolvimento desse professor. Para além do exercício de uma prática em sala de aula está a constituição subjetiva que mobiliza as escolhas, as ações e relações do professor.

Na literatura, o conceito de prática pedagógica foi marcado por compreensões diversas e, muitas vezes, acabou contribuindo para que, na percepção de alguns professores, ficasse restrito à prática de reproduzir e disseminar conhecimento (MARQUES, 1998). Superar esse equívoco é o desafio que nos colocamos ao longo de nossas pesquisas e discussões. Pimenta (1996, p. 75) já, há duas décadas, destacava que o “professor não é uma atividade burocrática para a qual se adquire conhecimentos e habilidades técnico-mecânicas”, mas sua ação deve ir além, desenvolvendo conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que “possibilitem permanentemente irem construindo seus saberes-fazeres docentes a partir das necessidades e desafios que o ensino, como prática social, lhes coloca no cotidiano” (id). Na mesma época, Gauthier (1998, p. 70) chamava a atenção para a “aquisição de uma personalidade no plano profissional, isto é, uma maneira socializada de ser, pensar e agir, ou seja, o profissionalismo”. Outra contribuição importante, nessa perspectiva, foi apontada por Tardif (2002, p. 20) ao revelar que o “saber herdado da experiência escolar anterior é muito forte, que ele persiste através do tempo”, sendo necessários investimentos que reconfigurem essas experiências no processo de formação, viabilizando a produção de novos sentidos subjetivos nas ações e dinâmicas relacionais da escola.

Na atualidade, outros autores têm seguido essa linha de pensamento aliando-se à importância do reconhecimento da subjetividade do professor, implicando, inclusive, em reconceber o processo formativo. A compreensão apresentada por Castro, Alves-Mazzotti & Maia (2013, p. 20) é uma síntese à qual coadunamos em nossas pesquisas, no reconhecimento da complexidade e da não-neutralidade da história.

As ações diárias não são resultado da neutralidade do ser. O cotidiano se apoia num movimento complexo pelo qual os objetos, que norteiam as comunicações e condutas, vão sendo modelados. As profissões são fruto de um saber próprio, de valores, normas, modelos, símbolos que estão associados àquela profissão. O fazer profissional do professor não é diferente.

Bergamaschi & Almeida (2013, p. 38), ao abordarem a formação docente por meio de experiências que possibilitam revisitar o passado para construir o presente, destacam: “Lembrar não é reviver, mas refazer, repensar, construir com imagens e ideias de hoje as experiências do passado”. Emerge nas reflexões apresentadas pelos autores a dimensão subjetiva do professor, constitutiva de suas ações e relações pedagógicas. O papel da história na formação dos professores - história pessoal e história da Educação - revela que passado, presente e futuro coexistem em diálogo, sendo o mote da constituição do sujeito histórico. “A ilusão mistificadora de que o presente se projeta em direção ao futuro de uma forma quase incontrolável retira dos indivíduos e dos grupos a potência e a responsabilidade de agirem como sujeitos históricos” (ALVES, 2012, p. 288). O passado sobrevive no presente e os tempos, para cada indivíduo, são subjetivados de modos diferentes. Para d’Ávila (2013) a construção do professor passa pela relação com os outros e seus grupos de pertencimento, mas também pelas representações construídas sobre ser professor, devendo ser a construção de uma identidade docente o objetivo principal dos cursos de formação.

Um olhar menos pragmático da ação do professor foi reconhecido também por Matos & Hobold (2005, p. 305) ao anuir que “o processo educativo é constituído por momentos de troca e de crescimento pessoal e profissional”. Ainda nessa linha de pensamento, Coelho (2015), referindo-se à formação dos professores, evidencia a necessidade de distanciamento dos modelos positivistas que pautaram a vida do mesmo até chegar à universidade, dando lugar a uma epistemologia que amplie a construção do conhecimento, numa perspectiva complexa.

Nessa perspectiva, aprendizagem e desenvolvimento decorrem, portanto, de uma compreensão não compartimentadora da construção do conhecimento, que exige relações, indagações, proposições em uma epistemologia complexa bastante diversa daquela que foi desenvolvida pela tradição científica moderna. Nesse processo, verdades se tornam questionamentos, estados passam a ser momentos de uma dinâmica processual, generalizações dão lugar a singularidades e sujeitos, agentes ativos que negam neutralidades (COELHO, 2015, p.173).

O professor precisa reconhecer-se e ser reconhecido em sua possibilidade de se expressar como sujeito, por meio de ações e relações pedagógicas conscientes, intencionais, críticas e comprometidas com o trabalho que desenvolve. Nesse sentido, em nossos estudos, abandonamos o termo ‘prática pedagógica’, como recorrente na literatura, e adotamos o termo ‘ações e relações pedagógicas’ por acreditarmos que o trabalho do professor não pode ser concebido de modo restrito a uma prática, pois, além de remeter a uma desconfiguração da amplitude da ação, pode restringir e despolitizar as possibilidades de expressão do professor como sujeito.

Para que se possa entender o complexo processo de constituição da subjetividade do professor, de modo especial a expressão do sujeito nas ações e relações pedagógicas, é preciso um olhar cuidadoso para a dinâmica histórico-relacional deste professor, evidenciando os movimentos subjetivos produzidos nas ações e relações pedagógicas. A pesquisa foi orientada por questões, a saber: como a vida pessoal direcionou as escolhas profissionais; como a formação acadêmica conduziu as escolhas pedagógicas; como as experiências profissionais foram construindo o modelo pedagógico de atuação no presente. Estas questões objetivaram entretecer o tempo, num processo de presentificação do passado, ou seja, compreender como os sentidos subjetivos produzidos em experiências vividas no passado desse profissional, bem como as expectativas que ele tem em relação ao seu futuro, estão no desenho metodológico da ação e das relações do professor no tempo presente.

A Subjetividade na perspectiva cultural-histórica

Na Teoria da Subjetividade de González Rey (1976-2016) está, predominantemente, o aporte teórico que constituiu a base da pesquisa desenvolvida, por ser uma teoria que visa compreender a subjetividade a partir do valor da cultura e da história das produções subjetivas do indivíduo, possibilitando conceber o professor em seus processos singulares. Para o autor, o caráter cultural-histórico está no reconhecimento da multiplicidade de espaços sociais em que são desenvolvidas as práticas sociais, sendo que a produção subjetiva gerada nessas experiências “se organizam subjetivamente na configuração psíquica das pessoas que se relacionam com elas, bem como na organização subjetiva dos diferentes espaços em que essas práticas têm lugar” (GONZÁLEZ REY, 2013, p. 262). A Teoria da Subjetividade contém aportes para a compreensão da psique como um sistema dinâmico, complexo e em constante movimento e o sujeito como resultado das ações e relações, muitas vezes tensas e contraditórias, estabelecidas na dinâmica que vivenciam entre subjetividade social e subjetividade individual.

Partindo da compreensão de que “qualquer experiência humana é constituída por diferentes elementos de sentido que, procedentes de diferentes esferas da experiência, determinam em sua integração o sentido subjetivo da atividade atual” (GONZÁLEZ REY, 2003, p. 127), podemos inferir que os sentidos subjetivos que constituíram, e ainda constituem, o professor tem origem multidimensional, caracterizando-se permanentemente como sentidos subjetivos constituidores e modificadores desse sujeito.

O desenvolvimento constitutivo da subjetividade do professor é resultado da complexidade relacional vivenciada em sua trajetória de vida onde passado e futuro dialogam permanentemente com o presente na tensão dos consensos e contradições entre a subjetividade individual - resultado do seu processo histórico de produção subjetivas - e a subjetividade social - produzida nos diferentes grupos de pertencimento como família, a própria escola, religião, amigos, etc. O movimento da subjetividade foi estudado anteriormente por Rossato (2009), destacando que os sentidos subjetivos produzidos no confronto, tenso e contraditório, com o outro, e a reconfiguração subjetiva gerada por esses novos sentidos subjetivos, estão na base das mudanças e do desenvolvimento da subjetividade.

Os sentidos subjetivos constituem-se de forma dinâmica, por vezes até contraditórias, nas ações e relações que mobilizam a dinâmica simbólico-emocional do indivíduo. Esses sentidos constituem o modo como as experiências configuram-se subjetivamente, a exemplo da própria profissão. A profissão como uma configuração subjetiva, é uma construção dinâmica que, ao mesmo tempo em que contribui para a produção de novos sentidos subjetivos, é movimentada por eles num processo recursivo. Nesse sentido, a profissão como uma configuração subjetiva constitui o que tradicionalmente chamamos de identidade do professor.

A identidade do professor apresenta-se como uma construção/reconstrução de si, que cria espaço para o professor reconhecer o seu passado em vista de seu presente sem deixar de lado seu futuro (SCOZ, 2011). As configurações subjetivas, como instâncias organizadoras dos sentidos subjetivos, constituem unidades abertas, em movimento, em permanentes vínculos entre si, modificando-se diante das emoções produzidas na vida do sujeito (GONZÁLEZ REY, 2003). As vivências familiares e pessoais, as experiências profissionais e acadêmicas geram continuamente emoções permeadas pela história desse sujeito e pelo universo simbólico da própria profissão, como resultado das crenças, valores, representações produzidas na e pela cultura. É nesse movimento simbólico-emocional que são produzidos os sentidos subjetivos de ser professor que constituem sua identidade profissional, pensada aqui como uma configuração subjetiva que, ao mesmo tempo em que é fluida, pode também ser resistente às mudanças.

A identidade profissional, como uma configuração subjetiva constituída pelos sentidos subjetivos produzidos nas ações e relações pedagógicas, não é uma unidade isolada, mas pertencente ao complexo conjunto de configurações subjetivas que constituem a subjetividade. As configurações subjetivas estão em permanente mobilidade nesse diálogo temporal materializado no presente, seja participando da produção de novos sentidos subjetivos ao revisitar o passado, seja, via imaginação, se projetando no futuro. As configurações subjetivas, entendidas como microssistemas organizadores dos sentidos subjetivos, são concebidas em movimento contínuo, rompendo com a cristalização da subjetividade e posicionando o sujeito em um contínuo devir, numa integração complexa entre passado, presente e futuro.

As ações e relações pedagógicas são espaços e tempos dialógicos mobilizados e, ao mesmo tempo, mobilizadores da produção de sentidos subjetivos, numa dinâmica simbólico-emocional, entretecidos pela dinâmica da vida pessoal, acadêmica e profissional do professor. Os sentidos subjetivos produzidos nas ações e relações pedagógicas são sempre permeados por outros sentidos subjetivos, produzidos fora do espaço e do tempo da escola. O professor não é um executor de uma prática, é um ser complexo que tem suas ações e relações pautadas pelo modo como está constituída sua subjetividade naquele momento, podendo constituir-se e expressar-se de modo distinto diante de experiências que gerem novas produções subjetivas.

Na Teoria da Subjetividade de González Rey, a compreensão do sujeito é marcada pela possibilidade premente de ação e intencionalidade e, nesse sentido, reconhecemos a necessidade de evidenciarmos um sujeito com possibilidades intencionais e ativas de enfrentar e reagir no confronto com a subjetividade social, de tomar decisões próprias, com autonomia e independência.

A constituição do sujeito é um processo entretecido à natureza dos sentidos subjetivos produzidos nas ações e relações vividas ao longo da vida. A dinâmica simbólico-emocional - base dos sentidos subjetivos - produzida pelo sujeito vai abrindo as portas para novas e contínuas produções nas ações e relações vividas pelas pessoas. O sujeito é presente, mas também é passado e é futuro num contínuo de existir e vir a ser em que as configurações subjetivas, ao mesmo tempo em que apresentam certa estabilidade estão reconfigurando-se continuamente ante os novos sentidos subjetivos produzidos. A constituição do sujeito é resultado de uma produção permanente, recursiva e complexa de sentidos subjetivos nas ações e relações que passam a constituir o sistema de configurações subjetivas, ao mesmo tempo em que também é mobilizada por elementos já constituídos nesse sistema.

Reconhecer-se como sujeito no processo de ensino implica em expressar-se de modo criativo, dinâmico, consciente e, principalmente, autoral. Para González Rey (2004, p. 21), “o sujeito é a pessoa viva, ativa, presente, pensante, que se posiciona, processos através dos quais produz sentido subjetivo no próprio curso da atividade”. O professor, ao expressar-se como sujeito está revelando a condição de mobilizar produções subjetivas diferenciadas, que podem ser tensas e contraditórias, mas que são resultado de uma mobilização simbólico-emocional gerada nas e pelas ações e relações vividas no cotidiano escolar.

Evidenciamos que muitos professores ainda encontram dificuldade de se reconhecerem nesse nível de expressão do sujeito no processo de ensino e, é pensando na formação desses professores, que temos desenvolvido nossas pesquisas. Em linhas gerais, temos buscado compreender como os professores, em seus processos formativos, mobilizam o próprio desenvolvimento da subjetividade de modo a ampliarem a produção de sentidos subjetivos em relação aos processos de ensinar e aprender e, no caso em que é possível identificar esse movimento da subjetividade, como ela constituiu-se ao longo da vida, foco principal do presente artigo. A importância e o impacto da subjetividade, para além da construção de uma identidade profissional nas ações e relações pedagógicas do professor, tem sido um dos principais objetos de estudo de nosso grupo de investigação.

Metodologia

A pesquisa foi desenvolvida inspirada pela metodologia construtivo-interpretativa, fundamentada na Epistemologia Qualitativa desenvolvida por González Rey (2002, 2003, 2005, 2013, 2014) que possui como premissas orientadoras o caráter construtivo e interpretativo do conhecimento destacando o papel ativo do pesquisador e de sua base teórica, a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico pelas possibilidades que o caso individual tem de se entretecer com as novas construções teóricas e a compreensão da pesquisa como um processo de comunicação e diálogo, premissa fundamental para a expressão livre dos participantes da pesquisa.

A análise aqui apresentada é resultado das informações produzidas com cinco professores que tiveram suas ações e relações pedagógicas qualificadas como expressões de um sujeito no processo de ensino. A análise das informações seguiu o modelo construtivo-interpretativo, com a construção e reconstrução de indicadores formulados pela tessitura das informações produzidas a partir das entrevistas e complemento de frases, além de interpretação fundamentada na Teoria da Subjetividade.

A seleção dos participantes foi, por conveniência, realizada por meio dos resultados da atividade Memórias da Educação Escolar com estudantes de graduação. Inicialmente eles foram convidados a relatarem suas memórias escolares, de modo especial, em relação aos professores que consideravam haverem tido grande impacto no processo de aprendizagem e desenvolvimento dos mesmos. Ainda como parte do processo de seleção dos participantes, os relatos dos estudantes foram analisados e, dentre estes, identificado professores que apresentavam ações e relações pedagógicas compatíveis com a definição de sujeito, conforme proposto por González Rey (2003), descrito anteriormente. Posteriormente iniciou-se o contato com os professores e foram apresentados os objetivos da pesquisa e realizado o convite para participarem do processo de produção das informações.

Os instrumentos, descritos a seguir, foram realizados com o objetivo de investigar como o professor, em sua trajetória de vida, vai constituindo sua subjetividade permeada pelos sentidos subjetivos produzidos nas experiências vividas, configurando-o no professor atual. Dois instrumentos fizeram parte da pesquisa, a saber:

  • Complemento de Frases. Instrumento criado por González Rey e Mitjáns Martínez (1989), com o objetivo de identificar elementos que possam expressar a constituição da subjetividade individual. A quantidade e os indutores podem variar. Na pesquisa, foram utilizados 77 indutores curtos, diretos e indiretos. A seguir podemos ver alguns indutores indiretos: (1) Eu gosto de... (2) O tempo mais feliz... (3) Gostaria de saber... (4) Eu aprendo... (5) Lamento... Ao longo do instrumento foram introduzidos também alguns indutores diretos, mais próximos aos objetivos da pesquisa, como: (11) Sou um professor... (19) Não esqueço da aula quando... (48) Gosto quando o aluno... (57) A sala de aula... (ROSSATO, 2009). Nesse instrumento, a expressão deve ser livre, com a primeira ideia que ocorrer ao participante.

  • Entrevista semiestruturada. Instrumento apoiado em indutor não escrito, que possibilitou a expressão de informações singulares, ao passo que contribuiu para complementar a discussão das demais informações produzidas. Os participantes foram convidados a relatarem histórias de vida que reconheciam terem produzidos impactos em sua constituição profissional, sendo elas tanto da vida pessoal, acadêmica e profissional. As entrevistas foram gravadas e transcritas posteriormente.

A análise das informações é um processo recursivo em que construção e interpretação se retroalimentam. A seguir, apresentamos os procedimentos de análise que foram realizados.

  • Primeira leitura sistemática e reflexiva das informações produzidas na realização dos instrumentos, destacando processos e formações da subjetividade individual dos professores, confrontados com a base teórica dos pesquisadores;

  • Construção de indicadores preliminares da subjetividade individual dos professores, confrontados com a base teórica dos pesquisadores;

  • Segunda leitura sistemática e reflexiva das informações produzidas e análise da relevância dos indicadores preliminares para o objetivo proposto, confrontados com a base teórica dos pesquisadores, produzindo hipóteses sobre como está constituída a subjetividade de professores expressa por meio das ações e relações pedagógicas vivenciadas no cotidiano da escola.

  • Construção de campos de inteligibilidade, a partir das hipóteses produzidas. Os campos de inteligibilidade nos permitem conceituar novas áreas do real que se materializam na produção teórica sem, contudo, se esgotarem em momento algum.

A metodologia de construção e análise das informações utilizada na pesquisa possibilitou produzir alguns indicadores da subjetividade do professor no momento atual de sua vida, a partir dos eventos que reconheceu como constituidores do profissional que é hoje. Vale ressaltar, entretanto, que o objetivo não foi desenvolver uma correlação de causa e efeito, fato e ação, na vida pedagógica do professor, mas identificar como o professor, em sua trajetória de vida, foi constituindo sua subjetividade, permeada pelos sentidos subjetivos produzidos nas experiências vividas ao longo de sua carreira, de modo a configurá-lo no professor atual.

Descrição e análise das informações

A partir da análise das informações produzidas na pesquisa, como descrito na metodologia, foi possível construir novos campos de inteligibilidade relativos à constituição da subjetividade do professor, a saber: reconhecimento da importância das experiências vividas; enfrentamento de desafios como fator de mudança; busca constante da atualização do conhecimento; consciência dos próprios limites; preocupação com o bem-estar do outro; consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes.

Os novos campos de inteligibilidade não têm a pretensão de se constituírem em generalizações, mas, tão somente, gerarem aberturas para a produção de novas compreensões no processo da pesquisa. A seguir, apresentamos o relato da análise construtivo-interpretativa das informações produzidas com os cinco professores (nomes fictícios) que fizeram parte da pesquisa, destacando as contribuições para compreensão da constituição da subjetividade dos professores.

No caso da professora Apolônia, as informações produzidas contribuíram na abertura de alguns novos campos de inteligibilidade de modo mais contundente, sendo que os demais foram registradas de modo secundário no processo das análises. O reconhecimento da importância das experiências vividas se destacou na análise das informações expressas pela professora. Em suas manifestações, em vários momentos, recorreu à sua história de vida revelando tanto momentos vividos na condição de aluna, quanto de sua escolha profissional. “O tempo mais feliz foi aquele que escolhi ser professora” (Frase 2); “Na escola eu era dedicada” (Frase 7); “Meus estudos são a minha vida” (Frase 24); “A sala de aula é um grande aprendizado” (Frase 42). Em sua entrevista, encontramos outras informações os que contribuíram nessa construção. Ao ser questionada sobre o que foi necessário para ter se tornado a profissional que era naquele momento, responde: “Amor pela educação, ou seja, quando fazemos o que gostamos nos tornamos bons na profissão que escolhemos” (Entrevista). Outro campo de inteligibilidade que foi construído com contribuições da professora Apolônia, foi o enfrentamento de desafios como fator de mudança, por meio de seus relatos de como se esforça diariamente para ser reconhecida em seu papel de educadora e que, apesar da desmotivação e das contradições que enfrenta na escola, a superação de tais desafios não é algo inalcançável. Destacamos: “Diariamente me esforço para ser reconhecida” (Frase 17); “Sempre quis dar aula em várias escolas ao mesmo tempo” (Frase 21). “A superação não é algo inalcançável” (Frase 39). Na entrevista, a professora relata: “Um professor também deve filtrar as situações do dia a dia para não interferir negativamente na sua profissão”. Tal disposição para o enfrentamento de desafios evidencia uma abertura às mudanças e produção de sentidos subjetivos que se relacionam também à outro campo de inteligibilidade produzido a partir das análises das informações: consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes. Ao ser questionada acerca do que é essencial a um professor, a professora responde que “amar sua profissão, pois lidamos com a vida e, bem ou mal, ajudamos na formação dos cidadãos” (Entrevista). Essa consciência também pode ser evidenciada em seu receio de parar de atuar na vida escolar, pois não consegue ver sua vida fora da sala de aula. Para ela, ensinar ganha sentido quando começamos a ver resultados. “Meu maior medo é parar de atuar na vida escolar” (Frase 6); “Sofro quando não interfiro como queria na vida dos alunos” (Frase 9); “Proponho-me a ser responsável com meus compromissos” (Frase 29); “Me sinto impotente quando meus alunos não obtêm resultados” (Frase 37). De modo secundário, as informações produzidas com a professora Apolônia contribuíram também na construção de outros campos de inteligibilidade, como: busca pela atualização do conhecimento, consciência dos próprios limites e preocupação com o bem-estar do outro.

No caso da professora Bruna, também foi possível encontrar um predomínio de indicadores mais orientados ao reconhecimento da importância das experiências vividas, ou seja, a importância das experiências vividas ao longo da vida e como essas experiências a constituíram profissionalmente. Ao ser questionada em relação a sua escolha de profissão e quais fatores mais a influenciaram, a professora afirma que o fato de ter crescido em um ambiente familiar que favoreceu a escolha pela profissão, o desejo de sua mãe, e a influência de sua irmã, que sempre a convidara para brincar de ‘escolinha’ foram fatores determinantes de sua escolha “Minha mãe sempre quis ter uma filha professora e ainda tive o apoio de minha irmã [...] Com ela ensinando, brincávamos de escolinha em casa, costume que herdei. Quando fui para escola, com 7 anos de idade, já sabia escrever o meu nome e reconhecia a maioria das letras do alfabeto” (Entrevista). A importância dada às experiências vividas pode ser evidenciada também em outro momento, quando afirma que “as pessoas que, de alguma forma, interagiram comigo desde a minha entrada na escola como estudante, até me formar normalista e, posteriormente, os colegas de trabalho e alunos que tive ao longo da carreira foram importantes neste processo” (Entrevista). Afirma, ainda, que seus estudos a prepararam e possibilitaram que se tornasse a profissional que é hoje. Outro campo de inteligibilidade que teve contribuições das informações produzidas pela professora Bruna foi a consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes. “Educação dura toda uma vida e fazer parte da educação de alguém é fazer parte da vida desta pessoa” (Entrevista); “Durante as aulas gosto de conversar com os alunos” (Frase 42); “Gosto quando o aluno demonstra satisfação, entende o que eu falo” (Frase 48). De modo secundário, as informações produzidas com a professora Bruna contribuíram também na construção de: enfrentamento de desafios como fator de mudança e busca pela atualização do conhecimento.

A professora Cecília, por sua vez, também contribuiu para a construção de campos de inteligibilidade, como: reconhecimento da importância das experiências vividas e o enfrentamento de desafios como fator de mudança. Estes puderam ser evidenciadas quando ela se refere à mudança de profissão de uma atividade burocrática para a atividade docente, seus benefícios e os desafios que emergiram dessa experiência. Ao referir-se à mudança de profissão, afirma: “Escrever documentos e ter uma rotina maçante me trazia desconforto. A escola tem uma dinâmica peculiar. Nenhum dia é igual ao outro. [...]. Essa profissão também me ensinou muito, tanto para o crescimento pessoal, como na criação dos filhos. Se tornou um suporte de valor na questão familiar” (Entrevista). Podemos perceber como as escolhas do sujeito, em sua vida profissional, influenciam e são fatores de mudança e desenvolvimento em outras áreas de sua vida. Podemos ilustrar com passagens como: “Fracassei na tentativa de melhorar a visão dos colegas com relação ao compromisso com a educação” (Frase 9); “Considero que posso melhorar sempre meu trabalho” (Frase 27); “Proponho-me a melhorar todos os aspectos todos os dias” (Frase 40); “O passado nos alerta para o futuro” (Frase 45). Outro campo de inteligibilidade que foi construído com expoentes contribuições da professora Cecília foi a preocupação com o bem-estar do outro, podendo ser exemplificado em passagens como: “Minha preocupação principal é dar o melhor durante as aulas, pois os alunos merecem” (Frase 14); “Eu prefiro dar boas aulas a cumprir conteúdo” (Frase 22); “Acredito que minhas melhores atitudes aparecem no resultado que os alunos atingem. Seja no trabalho, no vestibular ou apenas pessoal” (Frase 24). A busca constante pela atualização do conhecimento e a consciência dos próprios limites também tiveram contribuições da professora Cecília a partir de posicionamentos que revelam seu desejo de aprender como algo constante, que a possibilidade de melhorar as suas ações e relações pedagógicas a acompanha ao longo de toda a vida e que a participação em novos projetos a fazem crescer.

O professor Dâmaso, ao inferir que o papel do educador é favorecer o desenvolvimento, tanto pessoal quanto profissional do estudante, e que faz isso ao tentar trazer o conteúdo da matéria para o seu cotidiano, evidencia elementos relativos à preocupação com o bem-estar do outro e consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes. Nesse sentido, podemos também destacar da manifestação do professor, a necessidade de “haver compromisso tanto do educador quanto do educando, pensando principalmente no respeito mútuo” (Entrevista). Também reconhece o papel do outro em seu processo de aprendizagem ao afirmar que “Na escola eu aprendo mais do que ensino” (Frase 7); “Algumas vezes acho que poderia mais” (Frase 12); “Durante as aulas eu gosto de refletir” (Frase 42). Outra contribuição do professor Dâmaso inscreve-se na consciência dos próprios limites que pode ser exemplificado pela afirmação de que “o professor não sabe tudo, ao mesmo tempo em que ensina, ele aprende” (Entrevista); “Fracassei ao desistir” (Frase 10); “Minha principal preocupação é não me sentir útil” (Frase 25); “Considero que posso ser melhor sempre” (Frase 31); “Diariamente me esforço para ser melhor” (Frase 32). Ao considerar que pode sempre melhorar nas suas ações e relações pedagógicas, demonstra não somente a consciência do impacto que sua ação profissional possui na vida dos seus estudantes, movimentando seus sentidos subjetivos, mas também a consciência da importância de suas experiências acadêmicas, sinalizando, de modo secundário, o reconhecimento da importância de sua trajetória de vida.

No caso do professor Emílio, as informações produzidas ao longo da pesquisa também contribuíram na construção de campos de inteligibilidade na compreensão da constituição da subjetividade dos professores, dentre os quais, destacou-se o enfrentamento de desafios como fator de mudança e a busca constante pela atualização do conhecimento que podem ser exemplificados a partir de expressões como: “Diariamente me esforço para cumprir meus objetivos” (Frase 25); “Farei o possível para conseguir melhorar sempre” (Frase 33); “Proponho-me a melhorar” (Frase 35); “Esforço-me para melhorar” (Frase 40); “Incomoda-me quando falam que eu não consigo” (Frase 45). Ao longo da entrevista o professor relatou iniciativas que toma, no contexto da escola, para manter-se atualizado e estar à frente das novidades que podem contribuir com seu trabalho. “A gente pode até improvisar algumas coisas [...], mas não pode só ficar restrito a isso. Eu mesmo comprei um data show pra mim quando surgiu e aí eu queria usar data show todo momento, eu preparava e dizia ‘eu não vou mais usar quadro’, mas o alunos enchem o saco, não gostam de aulas expositivas a todo o momento, mas ajuda bastante. Tem que diversificar” (Entrevista). Ao ser questionado sobre como descreveria suas ações e relações pedagógicas, o professor Emílio responde que a modifica no decorrer do ano, que não é algo gravado em pedra, mas sim algo que ele tenta adaptar à vida dos estudantes, ao cotidiano, inspirado pelo modelo pedagógico que experimentou quando ainda estava no Ensino Médio e que o motivou a entrar para a área de Licenciatura contribuindo, assim, na construção de outro campo de inteligibilidade, agora relativo ao reconhecimento da importância das experiências vividas. “Vamos imaginar o seguinte: quando eu comecei a dar aulas [...] naquela época não existia internet ainda, o sistema de ensino era baseado em livros e o conhecimento estava mais centrado no professor. [...]. Hoje ele é um facilitador, ele não pode ser mais aquele detentor do conhecimento. Então, isso para quem saiu da minha geração para essa nova geração sofre esse choque, um choque de gerações” (Entrevista). As manifestações do professor demonstram, assim, uma abertura ao novo, guiada e motivada pelas experiências do passado, mas sempre abertas à atualização e modificações das ações e relações pedagógicas, levando em conta o desenvolvimento e a aprendizagem dos seus estudantes. Para o professor Emílio, o professor não seria alguém que guia o estudante por todos os passos do processo de aprendizagem, mas sim alguém que indica o caminho. Sua busca pela atualização do conhecimento, de novas expressões pedagógicas, de se aproximar do estudante revela uma preocupação com o bem-estar dos mesmos tendo consciência da sua ação profissional. Além dos aspectos relacionados diretamente à aprendizagem curricular, o professor destaca que uma boa relação afetiva ajuda no processo pedagógico. “Se você tem um bom diálogo, uma boa afetividade, isso facilita muito o aprendizado” (Entrevista); “Sou um professor divertido” (Frase 8); “Ensinar ganha sentido quando vejo o resultado dos alunos” (Frase 10); “Durante as aulas eu gosto de sorrir” (Frase 34); “Penso que os outros são boas pessoas” (Frase 43).

Os campos de inteligibilidade apresentados anteriormente expressam a complexidade constitutiva da subjetividade individual dos professores presente em suas ações e relações pedagógicas no espaço-tempo da escola que atuam no presente. O reconhecimento da importância das experiências vividas foi um campo de inteligibilidade construído com as contribuições dos cinco professores pesquisados, seguida pelo enfrentamento de desafios como fator de mudança e consciência de sua ação profissional na vida dos estudantes que foi construído pelas contribuições de quatro professores. A busca constante pela atualização do conhecimento e a preocupação com o bem-estar do outro foram campos de inteligibilidade construídos com as informações de três professores participantes da pesquisa. Por fim, a consciência dos próprios limites foi construída a partir das contribuições de dois professores participantes da pesquisa.

Considerações Finais

Este artigo teve por objetivo analisar como está constituída a subjetividade de professores que foram identificados e qualificados como sujeitos no processo de ensino tendo como referências as ações e relações pedagógicas vivenciadas e expressas no cotidiano escolar. As ações e relações pedagógicas materializadas no presente são a expressão da história individual de cada professor, com suas tensões, contradições, conquistas, perdas e aprendizagens que vão constituindo e, ao mesmo tempo, sendo constituídas pelo modo como o ser professor está configurado subjetivamente. Essa é uma relação altamente complexa e em contínuo movimento: o caráter histórico da produção subjetiva se expressa no presente e essa relação vai desenhando e redesenhando novos modos de produção subjetiva nas ações e relações pedagógicas. O sujeito representa o momento presente, resultado da confluência das configurações subjetivas constituídas em sua história, produzidas no confronto entre a subjetividade social e a subjetividade individual. Os sentidos subjetivos produzidos nas experiências vividas ao longo da trajetória de vida constituem a base simbólico-emocional que promove a integração do passado com o presente e, também, com o futuro.

As análises das informações possibilitaram a construção de novos campos de inteligibilidade sobre a constituição da subjetividade do professor, podendo contribuir tanto para compreender a natureza diversa das ações e relações pedagógicas, reconhecidas como expressão da subjetividade do professor, quanto para estruturar processos formativos que objetivem oportunizar experiências para além da instrumentalização profissional, mas que também sejam capazes de movimentar a subjetividade do professor, seja na formação inicial ou continuada.

Em relação aos campos de inteligibilidade, em primeiro lugar, damos destaque ao reconhecimento da importância das experiências vividas por parte de todos os professores que integraram a pesquisa, coadunando com a escolha dos mesmos pelos estudantes, por expressarem-se como sujeitos em suas ações e relações pedagógicas. Reconhecer o valor das experiências vividas é reconhecer-se como um sujeito histórico, constituído pela história de suas ações e relações em múltiplos espaços sociais de pertencimento. Reconhecer o valor das experiências vividas representa continuar produzindo sentidos subjetivos no presente, reconhecendo - mesmo sem ter consciência desse processo - que a produção simbólico-emocional gerada pela experiência anterior continua permeando as configurações subjetivas e participando das novas produções subjetivas de forma complexa e dinâmica. A análise das informações possibilitou identificar que as experiências vividas ao longo da trajetória de vida, nos mais diversos espaços sociais, mobilizam a produção de sentidos subjetivos que, de forma complexa, são constituidores da subjetividade individual do professor. Dessa forma, podemos afirmar que os processos de formação precisam fazer, intencionalmente, esse movimento de revisitar o passado com olhares fundamentados teoricamente, por exemplo, gerando, com isso, a possibilidade de novas produções simbólico-emocionais.

Em segundo lugar, damos destaque a outro campo de inteligibilidade que a análise das informações nos possibilitou construir: reconhecimento dos desafios enfrentados cotidianamente como fatores de mudança. Esse processo implica numa abertura para viver intensamente cada nova experiência, enfrentando e reconhecendo a riqueza da imprevisibilidade das ações e relações vividas cotidianamente. A produção de sentidos subjetivos não é intencional e nem pode ser controlada, mas estar aberto a viver novas experiências funciona como potencializador do movimento da subjetividade, revelando um professor que reconhece que é no confronto entre a subjetividade individual e social que ele vai se constituindo como sujeito. A dinâmica simbólico-emocional está se reorganizando permanentemente, dando margem para que, continuamente, novos sentidos subjetivos sejam produzidos, mesmo quando a experiência vivida é similar à outras já vividas. É nesta necessidade de se reconhecer em si mesmo, de produzir novos sentidos subjetivos em relação à sua atuação profissional, que o professor é capaz de se modificar, apoiando-se em suas experiências acadêmicas, profissionais e pessoais. É possível estabelecer que os sentidos subjetivos do professor podem e são construídos a partir das relações tensas e contraditórias nas quais cada professor se encontra cotidianamente, e que a partir dos sentidos subjetivos que constrói, ele se modifica e se transforma. Suas ações e relações evoluem e se adaptam, não são imutáveis, mas se desenvolvem em conjunto com os sentidos subjetivos do outro.

A consciência de como as próprias ações e relações podem impactar na vida dos estudantes constitui o terceiro campo de inteligibilidade produzido no decorrer das análises das informações. Ser consciente de suas próprias ações é um dos atributos definidos na Teoria da Subjetividade ao explicitar a constituição do sujeito, produtor de sentidos subjetivos. Ser consciente sobre algo não nos possibilita controlar a própria produção subjetiva, mas nos possibilita agir com intencionalidade. Essa consciência, também é a consciência de que o outro, nesse caso, o próprio professor, pode ser um agente mobilizador de experiências que oportunizem a produção de novos sentidos subjetivos pelo estudante no curso de sua vida. O professor não controla a produção subjetiva dos estudantes, mas, ao oportunizar relações dialógicas, por ser consciente dos seus desdobramentos, está abrindo espaços de expressão, de autoria, de produção, de pertencimento, dinamizando as experiências de vida como espaços/tempos de produção de sentidos subjetivos. Vale destacar que os sentidos subjetivos são mobilizados a partir do envolvimento emocional nas experiências vividas, o que pode não ocorrer em situações automatizadas e desprovidas de relações dialógicas.

O quarto campo de inteligibilidade refere-se à busca pela atualização constante do conhecimento. O professor, sendo conhecedor de seus limites, coloca-se sempre em movimento, na busca de novas aprendizagens que enriqueçam suas ações e relações pedagógicas no cotidiano da escola e dos desafios impetrados por cada nova turma de estudantes. Os professores participantes da pesquisa evidenciaram fortemente o movimento contínuo que fazem em busca de atualização que os possibilita enfrentar os desafios cotidianos da escola. Trata-se não somente de uma atualização que os instrumentalize, mas também, aliado ao enfrentamento de desafios como fator de mudança, de novas produções subjetivas, uma vez que o conhecimento é um dos conteúdos da dimensão simbólica que constitui os sentidos subjetivos. O conhecimento, juntamente com crenças, valores, representações, constituem a base mais simbólica das unidades simbólico-emocionais que são movimentadas nas experiências vividas. A aquisição de novos conhecimentos, tanto para professores quanto para estudantes, havendo envolvimento emocional, pode constituir-se como potencializador de novas produções subjetivas e até da expressão de novos comportamentos decorrentes dessas novas aquisições e produções, nunca como resultado direto, nem linear, nem imediato, mas como resultado de como essa nova experiência vai mobilizar e ser mobilizada pelo sistema de configurações subjetivas já constituídas.

O quinto campo de inteligibilidade - preocupação com o bem-estar do outro - representa reconhecer que o outro, no caso, o professor, é capaz de mobilizar produções subjetivas que favoreçam as experiências de aprendizagem escolar. Expressa-se, por meio desse campo de inteligibilidade, a consciência de que o desenvolvimento do estudante pode ser mobilizado ou estagnado, a depender das ações e relações estabelecidas pelo professor. A produção subjetiva do outro não pode ser prevista nem controlada, mas a oferta de oportunidades qualificadas de experiências de aprendizagem escolar favorece a produção de dinâmicas simbólico-emocionais diferenciadas das que o estudante vivencia em outros espaços sociais.

Por fim, vale destacar os limites nesse processo, expresso pela consciência profissional do professor. A escola é um dos múltiplos espaços sociais de circulação dos estudantes e o que ali expressam é resultado do processo de produção de sentidos produzidos em outros espaços, presentificados na escola. O reconhecimento dos limites do alcance das ações e relações pedagógicas, por parte do professor, é o reconhecimento de que o estudante também é um sujeito produtor de sentidos subjetivos permeados pela complexidade do seu sistema de configurações subjetivas.

Como contribuições desse artigo, podemos destacar as possibilidades de pensarmos em novos processos de formação de professores, reconhecendo a necessidade de investir em experiências formativas que mobilizem processos de reconfigurações subjetivas. O profissional que atua em áreas do desenvolvimento humano, além de exercer sua profissão, também está em desenvolvimento. O desafio lançado no início desse texto, de romper com a ideia de ver o trabalho do professor como o mero exercício de prática pedagógica, embora reconheçamos que muitos autores tenham discutido e ampliado esse conceito, conforme apresentado por Machado (2005), ganha maior consistência ao final dessa discussão, tendo evidenciado alguns elementos da complexidade envolvida nas ações e relações do professor para além de uma prática.

Finalmente, é possível destacar como os processos e formações subjetivos abriram caminhos para maiores discussões sobre a formação do professor envolvendo os aspectos pessoais, acadêmicos e profissionais. Nosso desejo é de que, ao invés de encararmos a formação como somente algo pragmático e metódico, possamos desenvolver um processo que possibilite a constituição e a expressão do sujeito no contexto de suas ações e relações pedagógicas.

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1Declaramos que as abordagens e os instrumentos metodológicos utilizados obedeceram aos procedimentos éticos estabelecidos para a pesquisa científica em Ciências Humanas. Declaramos que não foram omitidas informações relativas a órgãos e/ou instituições financiadores.

Recebido: 16 de Setembro de 2016; Aceito: 03 de Fevereiro de 2017

Contato: Maristela Rossato, Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia Escolar, e Desenvolvimento. ICC-Sul, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Asa Norte. Brasília|DF|Brasil, CEP 70.910-900

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Doutor em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Professor Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde. Membro do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, escolarização e desenvolvimento humano. E-mail:<maristelarossato@gmail.com>.

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Graduado em Letras pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UnB. E-mail:<fmatos.wlf@gmail.com>.

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Graduada em Letras pela Universidade de Brasília (UnB). Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Linguística/UnB. E-mail:<ribanna.neuhaus@gmail.com>.

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