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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. Rev. vol.34  Belo Horizonte  2018  Epub 10-Jan-2018

https://doi.org/10.1590/0102-4698172761 

Artigos

DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL EM COMUNIDADES DE APRENDIZAGEM DOCENTE

Vanessa Moreira Crecci1  *

Dario Fiorentini1  **

1Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP), Campinas- SP, Brasil


RESUMO:

Neste artigo, temos por objetivo relacionar projeções de desenvolvimento profissional e de profissionalidade a diferentes tipos de comunidades de aprendizagem docente. Para tanto, realizamos uma discussão a partir da descrição de diferentes modos de organização dessas comunidades. Em seguida, discorremos sobre as características subjacentes às comunidades fronteiriças, nas quais pesquisadores, professores e futuros professores trabalham de modo colaborativo, sem a regulação da universidade ou da escola. Ao final desta discussão, conclui-se que, por mais que as metodologias sejam aparentemente inovadoras, tornam-se necessárias avaliações dos processos formativos e reflexões cuidadosas sobre os aspectos subjacentes às comunidades de aprendizagem docente.

Palavras-chave: Desenvolvimento profissional; Comunidades de aprendizagem docente; Comunidades fronteiriças; Profissionalidade

ABSTRACT:

This article aims to relate the concepts of professional development and professionalism projections to different kinds of teacher learning communities. In order to do so, we address a discussion based on descriptions of different ways of organizing these communities. Then we convey the subjacent features of borderland communities in which researchers, teachers, and future teachers work in collaborative ways without any regulations set by the university or the school. The end of the discussion shows that, although the methodologies seem innovative, it is worthwhile to conduct systematic evaluations of the careful formative and reflection processes that are concerned with the subjacent aspects of teaching learning communities.

Keywords: professional development; teacher learning communities; borderland communities; professionalism.

Introdução

Em uma tentativa de tornar a prática dos professores o foco dos processos formativos, em diversos países - tais como Brasil, Estados Unidos, Canadá, Chile, Nova Zelândia, Inglaterra, Portugal, China - a constituição de comunidades de aprendizagem docente tem sido incentivada. Neste contexto, observamos que as experiências de desenvolvimento profissional possibilitadas pela participação em diferentes tipos de comunidade de aprendizagem docente, aumentam a cada ano. Processos formativos embasados em iniciativas tais como: lesson study, self-study, pesquisa-ação, pesquisa da própria prática, tendem a induzir a constituição desses espaços. Começa-se, então, a analisar as características e os pressupostos subjacentes dessas comunidades.

Neste cenário nota-se que as comunidades são motivadas e iniciadas por modos muito diferentes de compreensão sobre o que significa para o professor “saber mais” e “ensinar melhor” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002). Considera-se que as formas como as comunidades de aprendizagem docente se organizam projetam modos variados de desenvolvimento profissional, possibilitando a produção de modos diversos de ser/estar na profissão.

Neste artigo, temos por objetivo relacionar projeções de desenvolvimento profissional e de profissionalidade a diferentes tipos de comunidades de aprendizagem docente. Para, tanto, realizamos uma discussão com base em diferentes significações de comunidades de aprendizagem docente, profissionalidade e desenvolvimento profissional. Para, em seguida, discorremos sobre as características subjacentes às comunidades fronteiriças, nas quais pesquisadores, acadêmicos e futuros professores trabalham de modo colaborativo.

Comunidades de Aprendizagem Docente e suas adjetivações

As comunidades de aprendizagem docente têm recebido diferentes nomenclaturas: comunidades de prática, comunidades investigativas, comunidades de professores, comunidade de aprendizado profissional etc. Se não bastassem essas variadas adjetivações, a polissêmica palavra “comunidade” pode ser usada para designar uma série de coletivos, espaços físicos (ex. comunidade carente) ou grupos (ex. étnicos ou religiosos). Embora muito usado em outros campos, como na linguística, na filosofia, na sociologia e na antropologia, “o termo comunidade é relativamente novo na literatura tradicional sobre formação docente, desenvolvimento profissional e mudança educacional” (COCHRAN-SMITH e LYTLE, 2002, p. 2462, tradução nossa). Subjacente a esse termo há uma variedade de sentidos atribuídos por estudiosos de diferentes campos científicos.

No campo da filosofia, Chaui (1994, p. 377) entende uma comunidade como “um grupo ou uma coletividade onde as pessoas se conhecem, tratam-se pelo primeiro nome, possuem contatos cotidianos ‘cara a cara’, compartilham os mesmos sentimentos e ideias e possuem um destino comum”. Para a autora, o tempo na comunidade possui um ritmo lento, as transformações são raras e, em geral, causadas por um acontecimento externo que as afeta. De forma antagônica, a sociedade é uma coletividade internamente dividida em grupos e classes sociais, na qual há indivíduos isolados.

Grossman, Wineburg e Woolworth (2001) apontam que a associação entre a ideia de comunidade e uma vida coletiva harmoniosa atravessa religiões, tradições culturais e filosóficas, em que os indivíduos trabalham coletivamente para o bem comum.

Discutindo o uso dessa concepção idealizada da filosofia, Abbagnamo (2012) destaca que o conceito de comunidade inclui conotações que pouco se prestam ao uso objetivo, pois parece claro que não existe nenhuma comunidade pura e nenhuma sociedade pura:

{...} e que a necessidade de fazer uma distinção nesse sentido não é sugerida pela observação, mas pela aspiração a um ideal. Portanto, ao ser utilizado pelos sociológicos posteriores (SIMMEL, COOLEY, WEBER, DURKHEIM e outros), esse significado foi sofrendo transformações, até assumir o uso corrente na sociologia contemporânea, de distinção entre relações sociais de tipo local e relações de tipo cosmopolita, distinção puramente descritiva entre comportamentos vinculados à Comunidade restrita em que se vive e comportamentos orientados ou abertos para uma sociedade mais ampla. (ABBAGNAMO, 2012, p. 192)

De acordo com os estudos de Cochran-Smith e Lytle (2002), na teoria literária o termo “comunidade interpretativa” tem sido usado por Stanley Fish, ao se referir a uma rede de pessoas com perspectivas semelhantes de significados, enquanto, na sociolinguística, a expressão “comunidade de fala” tem sido empregada por antropólogos em referência a grupos de pessoas que se engajam em contextos específicos. Na revisão que realizam, as autoras também apontam as “comunidades discursivas”, que se caracterizam como agrupamentos de leitores e escritores que se tornam redes de citações e alusões.

No campo da educação, as autoras ressaltam que a ideia de comunidade tem sido usada de diferentes modos na teoria e na pesquisa e que, nas ciências sociais, o termo denota grupos de pessoas envolvidas em determinados tipos de trabalho ou atividade, ligadas por um propósito comum. Nessa perspectiva, os membros da comunidade, em geral, constroem significados e partilham signos e ideias sobre o empreendimento em que estão engajados. Perspectiva semelhante foi cunhada por Wenger (2001), que identificou três características básicas do que se constitui como comunidades de prática: o compromisso mútuo, uma prática conjunta e o interesse comum que une os membros participantes.

A partir das características básicas apontadas por Wenger (2001) como constituintes das comunidades de prática, Fiorentini (2009) analisou um grupo colaborativo de professores que ensinam matemática. Para o autor, o compromisso mútuo reside na participação nas práticas conjuntas de reflexão e investigação sobre a prática de ensinar e aprender matemática nas escolas (interesse comum). Segundo Fiorentini (2010), a participação, na perspectiva de Wenger (2001), compreende o processo pelo qual os sujeitos de uma comunidade compartilham, discutem e negociam significados sobre o que fazem, falam, sentem, pensam e produzem conjuntamente. Dessa maneira, participar em uma comunidade de prática significa engajar-se na atividade própria da comunidade como membro atuante e produtivo. Isso implica apropriar-se da prática, dos saberes e dos valores do grupo.

De acordo com Imbernón (2009), uma comunidade de prática de formação docente permanente seria um grupo de professores e professoras que intercambiam, refletem e aprendem mutuamente sobre sua prática. A comunidade pode ser considerada formativa, se os professores que dela participam são capazes de elaborar uma cultura própria no seio do grupo, e não apenas reproduzem de forma padronizada a cultura social ou acadêmica dominante.

Tendo em vista que a concepção de Wenger (2001) dispõe acerca de uma proposição analítica de práticas cotidianas - escolares ou não escolares - em seu sentido mais amplo, compreendemos que, para além de propor comunidades de prática, fazem-se necessárias a qualificação e a análise desses espaços e das práticas emergentes nessas comunidades.

Grossman, Wineburg e Woolworth (2001), considerando experiências realizadas em escolas, também discutem o desenvolvimento profissional de professores em comunidades. Para os autores, as comunidades devem ser presenciais e propiciar momentos de diálogo e de confiança, propiciando o olhar para os múltiplos contextos que implicam o trabalho dos professores. Reconhecem ainda que os grupos precisam constituir uma história conjunta, configurando-se como uma “comunidade de memória” na qual os membros tecem “narrativas constitutivas” do grupo. Participar de uma comunidade, de acordo com esses estudos, envolve acordar e discordar de forma democrática.

Aprofundando as discussões sobre comunidades e formação docente, Hargreaves (2010) preocupa-se em qualificar objetivos de comunidades de aprendizagem profissional e destaca que já há um reconhecimento da importância do desenvolvimento desses espaços em livros, programas de treinamento e guias. Mas essas comunidades podem tanto aumentar a capacidade de reflexão dos professores, como ter por objetivo exclusivo elevar a pontuação dos alunos em testes, muitas vezes em detrimento de seu letramento. Por essa razão, Hargreaves identifica e analisa diferentes versões de comunidades de aprendizado profissional em dois subgrupos: (1) comunidades de contenção e controle e (2) comunidades de empowerment1. No primeiro grupo, estão as comunidades que embasam suas práticas visando ao controle dos professores e da prática docente, enquanto, no segundo grupo, se incluem aquelas que engajam o coletivo em tomadas de decisões relacionadas às práticas escolares.

Diferentes perspectivas sobre comunidades de aprendizagem docente

Quanto às comunidades de aprendizagem docente, Cochran-Smith e Lytle (2002)assumem que estas se referem tanto a um espaço intelectual quanto um grupo particular de pessoas e, algumas vezes, um espaço físico. Neste sentido, comunidades são configurações intelectuais, sociais e organizacionais que apoiam o crescimento profissional contínuo dos professores, possibilitando oportunidades para os docentes pensarem, conversarem, lerem e escreverem sobre seu trabalho diário, incluindo os seus contextos sociais, culturais e políticos de forma planejada e intencional. No entanto, de acordo com os estudos de Cochran-Smith e Lytle (2002), três ideias principais sobre o conhecimento do professor, a aprendizagem docente e a prática profissional coexistem mundialmente na política educacional, na pesquisa e na prática e são invocadas, por agentes diferentemente posicionados, para justificar abordagens muito diversas, afim de melhorar o ensino e a aprendizagem por meio de comunidades.

Cochran-Smith e Lytle (1999, 2002) explicam que tais ideias podem ser simplificadas a partir da função que elas teriam em relação à prática ou ao trabalho do professor em ensinar e aprender e que expressamos, ainda com base nas autoras, da seguinte forma: produção/aprendizagem de conhecimentos PARA, NA e DA prática de ensinar e aprender.

Na concepção de aprendizagem PARA a prática de ensinar e aprender, especialistas constroem conhecimentos que são ensinados aos professores que devem aplicá-los em suas práticas. Já na segunda concepção, pressupõe-se que a aprendizagem e os conhecimentos sejam construídos NA prática, isto é, de maneira tácita mediante reflexão da própria prática pelo professor. Sobre a terceira concepção, destaca-se que não há uma separação entre conhecimento prático e o formal ou teórico. Deste modo, supõe-se que o conhecimento que os professores precisam para ensinar bem é produzido quando os mesmos tomam sua própria prática como contexto de investigação ou análise e como instrumento de interpretação e análise, conhecimentos produzidos por outros especialistas.

Segundo Cochran-Smith e Lytle (1999), essa terceira concepção pressupõe que o conhecimento que os professores devem ter para ensinar bem emana da investigação sistemática sobre o ensino, sobre seus estudantes e sobre o aprendizado desses. E pode ser construído coletivamente em comunidades locais, desde que não isoladas de outras mais amplas, como é o caso da comunidade acadêmica. Adiante, discutimos cada uma dessas três perspectivas em relação ao desenvolvimento profissional, profissionalidade e papel do formador. Para, então, discorrer sobre perspectivas subjacentes as comunidades fronteiriças, nas quais se encontram pesquisadores, acadêmicos e futuros professores.

Cabe, inicialmente, destacar que para fins de discussão, relacionamos as três perspectivas de aprendizagem de Cochran-Smith e Lytle (1999, 2002) ao desenvolvimento profissional e a profissionalidade docente. Entretanto, apesar desta diferenciação, a significação das comunidades ocorre mediante processo de interação entre elas e os sujeitos. Por isso, assim como Cochran-Smith e Lytle (1999) alertam sobre a relação das concepções de conhecimento e de aprendizagem do professor, destacamos que nenhuma das iniciativas de desenvolvimento profissional {...} deve ser considerada exemplar de uma concepção ou sua realização como “tipo puro”. Ao contrário, cada uma delas reflete o que entendemos ser as ideias dominantes que animam a iniciativa (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999, p.253). É nessa perspectiva que Cochran-Smith (apud FIORENTINI e CRECCI, 2016) destaca que as comunidades têm sido chamadas de diversas maneiras

{...} comunidades de aprendizagem profissional, comunidades investigativas, comunidades de aprendizagem docente. Mas seus nomes não nos dizem como elas operam e não são boas ou ruins por si sós. Depende do que acontece dentro dessas comunidades e quais são as perguntas que fazem e tentam responder. Mas a forma como essas comunidades são implementadas, por vezes, são estruturas vazias, e todos os tipos de coisas podem acontecer nessas comunidades, algumas delas positivas e outras não (FIORENTINI; CRECCI, 2016, p. 518).

Na maioria dos casos, as características subjacentes às comunidades de aprendizagem docente não estão explícitas e, muitas vezes, os responsáveis pela gestão dessas práticas não se propõem a questionar seus próprios pressupostos nem o modo como eles interferem em suas decisões e iniciativas. O modo como os processos formativos acontecem, muitas vezes, são naturalizados no seio das instituições.

Profissionalidade e Desenvolvimento Profissional para a Prática

Nas últimas décadas, pesquisas internacionais e nacionais passaram a criticar perspectivas de desenvolvimento profissional embasadas em processos de aprendizagem individual, o que levou à solicitação e ao reconhecimento de uma perspectiva de aprendizagem em comunidades de aprendizagem docente. À primeira vista, apenas a modificação nas estruturas das práticas de desenvolvimento profissional garantiria alterações substanciais, porém, atualmente, há diferentes concepções e práticas de desenvolvimento profissional, mesmo quando ocorrem em comunidades (HARGREAVES, 2010).

Cochran-Smith e Lytle (2009) sugerem que o conceito de comunidade de aprendizagem docente se tornou muito comum e que tal popularidade tem levado a novas e importantes oportunidades para professores aprenderem uns com os outros, mas também à proliferação de iniciativas altamente diretivas.

Numa perspectiva de desenvolvimento profissional para a prática, ter acesso aos conhecimentos formais e saber mais conteúdo, teorias educacionais e estratégias concebidas por especialistas, possibilita aos professores ensinar melhor. Essa visão conduz a comunidade de aprendizagem docente a promover conhecimentos, a ajudar os professores a se desenvolverem profissionalmente, acessar e implementar esses conhecimentos - enfim, a traduzir e colocar em prática o que adquirem de especialistas de fora da sala de aula (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002).

A prática docente prevista nessas comunidades envolve o uso adequado e competente de conhecimentos adquiridos a priori (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999). Logo, a profissionalidade do professor deve ser iluminada pelas teorias acadêmicas e pelos conhecimentos sistematizados pela comunidade acadêmica:

A ideia aqui é que a prática competente reflete o “estado da arte”; isto é, professores muito habilidosos têm conhecimento profundo de suas disciplinas e das estratégias de ensino mais eficazes para criar oportunidade de aprendizado para seus alunos. Os professores aprendem este conhecimento através de várias experiências de formação que dão acesso à base de conhecimento. (COCHRAN-SMITH; LYTLE, p. 254, 1999)

Nessa perspectiva, os professores são usuários aptos e não geradores de conhecimentos (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999), admitindo que a sua ação se resume à aplicação de decisões tomadas por especialistas.

Morgado (2005, p. 34) identificou esse modo de projeção da docência como profissionalidade técnica: prevê um professor que “aplica as regras que derivam do conhecimento científico, para se atingirem determinados fins predefinidos”. Parte-se da premissa de que “as regras técnicas devem orientar a ação do sujeito. Ensinar resume-se à mera aplicação de normas e de técnicas derivadas de um conhecimento especializado” (p. 35). E os professores se limitam a “práticas meramente reprodutivas, utilizadas para que os estudantes concretizem os objetivos que guiam o seu trabalho” (p. 38).

Quando professores são envolvidos em comunidades que têm por objetivo aprender coletivamente estratégias e técnicas para a melhoria do desempenho de alunos em testes externos, conforme identificou Hargreaves (2010), tais comunidades de desenvolvimento profissional adotam a perspectiva de conhecimento PARA a prática. Embora possam existir comunidades investigativas que considerem os resultados dos testes, estas precisariam ter uma perspectiva crítica, sistemática e ligar os testes a contextos amplos.

Ao participar de práticas de desenvolvimento profissional enfocadas na compreensão do professor como técnico e aplicador de conhecimentos gerados por especialistas, é provável que esse profissional encontre dificuldades para “abordar e resolver os dilemas imprevisíveis e as situações conflituosas com que se depara no decurso da ação educativa” (MORGADO, 2005, p. 40). Por essa razão, passou-se a vislumbrar outras concepções de profissionalidade docente, como o professor reflexivo, que discutiremos no próximo subitem.

Profissionalidade e Desenvolvimento Profissional na prática

Quando a aprendizagem e o conhecimento dos professores ocorrem na prática, pressupõe-se que os conhecimentos sejam construídos de maneira tácita. São esses os conhecimentos mais importantes para o exercício da profissão. Para aprimorar o ensino e para que os professores se desenvolvam profissionalmente nesta perspectiva pragmática, é preciso trabalhar em comunidades com outros professores, “para melhorar, tornar explícito e articular o conhecimento tácito embutido na experiência e na sábia ação de profissionais competentes” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002, p. 2464). Presume-se que os professores aprendam quando refletem sobre boas práticas: escolhem estratégias, organizam rotinas de sala de aula, tomam decisões, criam problemas, estruturam situações e reconsideram as próprias realizações (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999).

A prática dos professores é compreendida como uma artesania, de modo que a profissionalidade docente se constrói mediante reflexão NA prática: “os professores competentes sabem, na medida em que é expressado ou veiculado na arte da prática, nas reflexões do professor sobre a prática, nas investigações sobre a prática e nas narrativas sobre a prática” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999). Ensinar é compreendido, nessa perspectiva, como um processo de

{...} agir e pensar sabiamente na imediatez da vida em sala de aula: tomar decisões em fração de segundos, escolher entre maneiras alternativas de transmitir conteúdo, interagir apropriadamente com estudantes, e selecionar e focar dimensões específicas dos problemas da sala. Para fazer isto, professores excepcionais se baseiam na experiência da prática ou, mais precisamente, nas suas experiências e ações prévias, bem como em suas reflexões sobre tais experiências. (COCHRAN-SMITH; LYTLE, p. 262, 1999)

Se, na perspectiva anterior, os professores eram usuários do conhecimento, nesta são “entendidos como os designers e arquitetos desta ação” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, p. 262, 1999). Essas ideias encontram ressonância na compreensão de Schön acerca do professor como profissional reflexivo. Sua profissionalidade se constrói mediante esse processo de reflexão na ação, em que

{...} um professor reflexivo permite-se ser surpreendido pelo que o aluno faz. Num segundo momento, reflete sobre esse fato, ou seja, pensa sobre aquilo que o aluno disse ou fez e, simultaneamente, procura compreender a razão por que foi surpreendido. Depois, num terceiro momento, reformula o problema suscitado pela situação; talvez o aluno não seja de aprendizagem lenta, mas, pelo contrário, seja exímio no cumprimento das instruções. Num quarto momento, efetua uma experiência para testar a sua nova hipótese; por exemplo, coloca uma nova questão ou estabelece uma nova tarefa para testar a hipótese que formulou sobre o modo de pensar do aluno. Este processo de reflexão-na-ação não exige palavras (SCHÖN, 1992, p. 83).

Essa perspectiva de desenvolvimento profissional, baseado na reflexão, gerou algumas críticas. Em primeiro lugar, reconhece-se que houve um uso excessivo da palavra “reflexão” relacionada à formação docente, o que, segundo Morgado (2005), muitas vezes não resultou em experiências concretas, tendo na maioria dos casos se convertido em uma expressão de slogan e vazia de conteúdo. Em segundo lugar, os estudos de Schön foram criticados por não terem concebido “um modelo que abarcasse a mudança institucional e/ou social, centrando-se apenas em torno de práticas individuais” (MORGADO, 2005, p. 48).

Atualmente temos visto nos Estados Unidos, bem como em outros lugares, questionamentos sobre a qualidade dos programas de formação inicial de professores (COCHRAN-SMITH et al., 2012). Ganham força propostas que focam o desenvolvimento profissional dos professores exclusivamente nas comunidades escolares, sem interlocuções substanciais com a comunidade acadêmica. Nesses espaços, em geral, os formadores têm como função organizar os espaços de formação para que os professores conversem sobre suas questões. Muitas vezes, a postura é mais de escuta das discussões e de estímulo do que de negociação de formas outras de desenvolvimento de práticas de ensinar e aprendizagem.

Profissionalidade e Desenvolvimento Profissional da prática

A terceira abordagem diz respeito à aprendizagem e aos conhecimentos DA prática, na qual se supõe que seja gerado o conhecimento que os professores precisam para ensinar bem, quando tratam suas salas de aula e escolas como locais para investigação intencional, ao mesmo tempo em que tomam os conhecimentos produzidos por outros como material gerador para investigação e interpretação:

{...} o conhecimento emerge do entendimento conjunto de professores e outros que estão comprometidos com observação e documentação sistemáticas, e de longo prazo, dos estudantes e de seu processo de atribuir significados. Para gerar conhecimento que dê conta de múltiplas camadas de contexto e múltiplas perspectivas de significado, os professores dependem de um largo espectro de experiências, e de sua história intelectual, dentro e fora das escolas. (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 1999, p. 278).

Assume-se, então, que os professores aprendem e se desenvolvem profissionalmente “quando geram conhecimentos locais da prática através do trabalho em comunidades investigativas para teorizar e construir seu trabalho conectando ao contexto social, cultural e político” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2002, p. 2465).

Assume-se, assim, que o professor aprende e se desenvolve profissionalmente mediante participação em comunidades que adotam como prática a investigação sistemática e intencional do ensino e da aprendizagem. Nesse caso, a comunidade investigativa deve ser espaço para problematizar os múltiplos aspectos que envolvem a docência. Cochran-Smith e Lytle (1999, p. 279) compreendem que,

quando o trabalho em comunidades se baseia no conhecimento da prática - seja o trabalho referente à pesquisa do professor, pesquisa-ação ou investigação dos praticantes, o objetivo não é a pesquisa nem a produção de “descobertas”, como é geralmente o caso das pesquisas de universidades. Ao contrário, o objetivo é a compreensão, a articulação, e, ao final, a transformação das práticas e das relações sociais de forma a trazer mudanças fundamentais nas salas de aula, escolas, distritos, programas e organizações profissionais.

Como finalidade, as comunidades assumem a responsabilidade “apaixonada em relação ao aprendizado dos estudantes, de suas chances na vida, e em relação a uma transformação das políticas e estruturas que limitam o acesso dos estudantes a estas oportunidades” (ibidem).

Neste contexto, a profissionalidade docente se baseia em uma postura investigativa e crítica. Em uma relação política com a profissão, há aumento da responsabilidade em relação às comunidades em que os professores estão envolvidos. A premissa desta abordagem é que os professores podem gerar conhecimento e aprendizado de forma colaborativa em comunidades locais. Podem constituir posturas críticas em relação a teorias concebidas fora de seus contextos, alterando as relações de poder entre escolas e universidades.

Nestas comunidades investigativas, as experiências de desenvolvimento profissional perpassam por questionamentos sobre as práticas de professores e formadores e de sistematização delas. Práticas investigativas em comunidades investigativas permitem aos professores e aos formadores planejar atividades a serem realizadas em sala de aula, desenvolver material didático, escrever narrativas sobre os modos de ensinar e aprender, compartilhar atividades desenvolvidas, realizar estudos sobre questões emergentes da prática pedagógica, (re)significar a literatura da área etc.

Em comunidades investigativas, os professores e formadores trabalham de modo colaborativo para transformar disciplinas e o currículo; examinar criticamente os conteúdos e as avaliações, bem como atuar como leitores críticos e conscientes consumidores de materiais e programas; além de desenvolver abordagens válidas para identificar e interpretar uma série de resultados educacionais significantes (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2009).

Os membros buscam e constroem novos conhecimentos, ao examinarem os modos de ensinar e aprender nas escolas. Cochran-Smith e Lytle (2009)apontam que, nas últimas décadas, muitas discussões têm debatido se ensinar é ou não é uma profissão e se os professores podem ou não ser legitimamente considerados profissionais. Para as autoras, professores já são profissionais, ainda que muitos não acreditem que possam ser assim considerados, ou mesmo que estejam empregados em condições de trabalho opressivas. São profissionais envolvidos em atividades diárias, relacionais e incertas, que acontecem sob condições de mudanças constantes. Os autores ressaltam a necessidade de uma nova noção de prática profissional na educação e concebem o construto que chamam de postura investigativa.

A partir dessa noção, reconhecem a capacidade intelectual coletiva dos professores e apontam que, inseridos em comunidades investigativas, eles assumem a postura investigativa em relação ao conhecimento e à sua prática. As autoras propõem que os professores vão além de realizar uma pesquisa esporádica em um determinado período: sugerem que desenvolvam um modo de ser docente investigativo.

Para isso, discorrem sobre quatro aspectos relacionados à ideia de postura investigativa: 1) concepção de conhecimento local em contextos globais; 2) visão ampliada da prática; 3) comunidades investigativas como meio ou mecanismo primário para adotar uma teoria da ação; e 4) justiça social.

Sobre o primeiro aspecto, Cochran-Smith e Lytle (2009) destacam que, ao teorizar a concepção de postura investigativa, querem unir, não dividir, o conhecimento local e os contextos globais, pois reconhecem que o conhecimento local gerado pelos professores em comunidades investigativas pode ser resposta para questões amplas, que afetam outros professores.

O segundo aspecto, a visão de prática ampliada, “abrange a aprendizagem dos estudantes, bem como as investigações contínuas dos estudantes, professores e líderes nos aspectos da construção dos conhecimentos social, cultural, intelectual, relacional e político” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2009, p. 143). A partir dessa concepção de prática, para as autoras, “a investigação do professor tende a mudar as supostas dicotomias entre investigação e prática, entre ser um professor e ser um pesquisador” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2009, p. 147).

Sobre o terceiro aspecto, Cochran-Smith e Lytle (2009) apontam que, mediante a participação em comunidades investigativas, os professores têm a possibilidade de constituir o que chamam de “teoria de ação”, que não envolve apenas indivíduos, mas também coletividades. Nesse sentido,

{...} os propósitos e funções essenciais das comunidades investigativas são os de fornecer contextos ricos e desafiadores para a aprendizagem do professor ao longo de sua vida profissional, bem como disponibilizar locais produtivos capazes de vincular as comunidades de educadores aos grandes esforços de mudanças, tanto nacionalmente como internacionalmente. (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2009, p. 148)

Por fim, como quarto aspecto da postura investigativa, consideram que, ao participarem de comunidades investigativas, os professores “estão trabalhando a favor e contra o sistema - um processo em curso, partindo do interior, problematizando hipóteses fundamentais sobre os propósitos do sistema educacional existente” (COCHRAN-SMITH; LYTLE, 2009, p. 154). Neste sentido, o propósito final da investigação como postura - sempre e em todos os contextos - é aprimorar a aprendizagem do aluno e as suas chances na participação e contribuição para uma sociedade diferente e democrática.

Desenvolvimento Profissional em Comunidades Fronteiriças

Fiorentini (2013) identificou três tipos básicos de comunidades investigativas: escolares, acadêmicas e fronteiriças. Segundo o autor, as comunidades investigativas acadêmicas, por serem monitoradas/governadas institucionalmente pela universidade, podem ser endógenas (voltadas aos seus problemas teóricos, sem vínculo com as práticas escolares), colonizadoras das práticas escolares, ou colaborativas. Por sua vez, as comunidades investigativas escolares, por serem governadas a partir do território escolar, também podem ser endógenas, abertas à colaboração e parceria da universidade, ou serem colonizadas pela universidade, a qual assume o papel de transmitir e inculcar os saberes acadêmicos. E, sobre as fronteiriças, destaca que possuem, normalmente, mais liberdade de ação e de definição de uma agenda própria, sem serem monitoradas institucionalmente pela escola ou pela universidade, esse, portanto é um espaço

(...) livre e, por isso também de perigo, de transgressão do instituído, de aventuras na construção e problematização do conhecimento. Elas podem reunir interessados de comunidades diferentes que definem suas agendas de estudo e trabalho, podendo ser também investigativas. Tendo em vista as diferentes origens de seus participantes, os encontros tendem ser entremeados por narrativas de acontecimentos que ocorrem nas comunidades de origem de cada um. Entretanto, o que se produz e se aprende nessa comunidade tem forte impacto na vida pessoal e profissional de cada participante (FIORENTINI, 2013, p. 157).

No caso das comunidades fronteiriças, não estamos falando de limites que separam dois territórios diferentes entre si. Estamos falando, na verdade, do espaço fronteiriço que se forma no encontro de dois mundos diferentes. Mesmo a noção de fronteira, tal como conhecemos como sendo o limite entre dois territórios diferentes, pode ser problematizada.

Segundo Zientara (1989), o termo fronteira “indicava a parte do território situada in fronte, ou seja, nas margens” (p. 307). Destaca, assim, que a noção de fronteira como sendo a separação entre duas regiões é equivocada. Para o autor, “as fronteiras separam comunidades humanas, mas podem também determinar um novo gênero particular” (ibidem). Nesse sentido, as populações que “vivem em uma zona de fronteira dão origem a uma comunidade fundada em interesses particulares, mantêm entre elas, do lado de cá e do lado de lá da fronteira, uma intensa comunicação; vivem frequentemente de contrabando” (ZIENTARA, 1989, p. 309).

Anzaldúa (1987) aponta que esse lugar entre as fronteiras se constitui como um espaço indeterminado criado pelo resíduo emocional de um limite. Para a autora (ibidem), esse espaço está em um constante estado de transição. Clandinin e Rosiek (2006), ao tomarem por base a ideia de Anzaldúa, compreendem os espaços fronteiriços como não sendo claros ou límpidos, mas borrados por regiões que se sobrepõem e se fundem. Algumas perspectivas da geografia, também, compreendem o espaço fronteiriço como indefinido, com dinâmicas próprias:

São espaços nos quais o local e o internacional se articulam, estabelecendo vínculos e dinâmicas próprias, construídas e reforçadas pelos povos fronteiriços. Neles estão presentes as identidades e as culturas nacionais de cada um dos países envolvidos, que constroem, reelaboram e constituem uma outra cultura e identidade diferenciada, capaz de recriar um novo lugar, com aspectos regionais. São regiões que não respeitam as barreiras existentes, já que há ação e interação dos agentes fronteiriços, estimulando dinâmicas fronteiriças informais (SOUZA, 2009, p. 106 - 107).

Ao discutir as fronteiras das comunidades de prática, Wenger (2001) também destaca que essas não podem ser compreendidas como isoladas do mundo, uma vez que “suas histórias não são internas, mas de articulação com o resto do mundo” (p. 135). De acordo com pesquisador, é a partir da participação e coisificação2em comunidades de práticas que se pode contribuir para a descontinuidade de limites. Concebe, ainda, a ideia de objetos de fronteira, aqueles trazidos por diferentes comunidades para organizar a conexão em uma única comunidade. Bem como, concebe o conceito de intermediários (brokering), pessoas que levam elementos de uma prática a outra, ou seja, os objetos de fronteira.

Segundo Wenger (2001), um objeto de fronteira não é necessariamente um artefato ou uma informação codificada, “um bosque pode ser um objeto de fronteira em torno do qual os excursionistas, os interessados madeireiros, os ecologistas, os biólogos e os proprietários organizam suas perspectivas e buscam maneiras de coordená-las” (ibidem, p. 140). Por sua vez, os intermediários podem estabelecer novas conexões entre comunidades de prática, facilitar a coordenação e acordar as perspectivas, quando bons corretores podem inclusive promover “novas possibilidades de significados” (ibidem, p. 142).

Assim, podemos relacionar o mapa desses espaços fronteiriços à ideia do aberto e conectável em todas as suas dimensões, “desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social” (DELEUZE e GATARRI, 1996, p. 22).

Mas o que dizer sobre o desenvolvimento profissional e a profissionalidades em um espaço fronteiriço? Fiorentini e Carvalho (2015) apontam que nesse tipo de comunidade não há os que ensinam e os que aprendem, todos ensinam e todos aprendem, a partir de seus horizontes. Cada um tem seu próprio horizonte. Na figura abaixo, a comunidade fronteiriça está disposta entre a escola e a universidade, não sendo regulada por nenhum dos dois contextos, uma vez que tem suas próprias normativas.

Figura 1 Entre dois mundos, Comunidade Fronteiriça 

Nas comunidades fronteiriças há, portanto, encontro de culturas institucionais, sobretudo, das culturas escolares e acadêmicas. Mas há, também, o encontro de experiências subjetivas que ocorre através das histórias de vidas, narradas por cada um de seus participantes, constituídas em diferentes cenários de práticas.

Sztajn et. al. (2013), com base em Wenger (1998), analisam o desenvolvimento profissional como encontro de fronteira entre professores e formadores. Mediante a análise do trabalho de campo realizado em encontros de formações de professores dos anos iniciais, os pesquisadores concluíram que professores e formadores retornam, para suas comunidades de origem, modificados pela experiência da fronteira. Nesse sentido, para eles

(...) encontros de fronteira permitem que os membros da comunidade examinem e, potencialmente, mudem, as maneiras pelas quais eles experimentam e pertencem as suas comunidades. Mais importante, participantes envolvidos em comunidades diferentes, que estão envolvidos em encontros de fronteira, negociam e significam através da fronteira e dentro de suas comunidades originais (ibidem, p. 204).

Crecci (2016) analisou a participação de educadores matemáticos (professores, pesquisadores e formadores) em uma comunidade fronteiriça denominada Grupo de Sábado (GdS). Em seu estudo, concluiu que os participantes narram suas experiências vividas em diferentes espaços relativos às suas vidas pessoais e profissionais, tecem outras experiências e produzem diferentes compreensões sobre o ensinar aprender matemática. As reverberações decorrentes da participação nessa comunidade fronteiriça se evidenciam nos próprios modos de ser/estar como educadores matemáticos, destacando-se a postura problematizadora e investigativa sobre a própria prática, sobre as políticas públicas que a condicionam e também sobre as possibilidades e os limites dos conhecimentos científicos, curriculares e didáticos pedagógicos tanto da própria escola como de outros contextos.

As reverberações, também, são evidenciadas pelas constituições de outras comunidades, pelas sistematizações, teorizações e publicações dos participantes, as quais ajudam a promover mudanças: na prática de ensinar aprender matemática nas escolas, tornando-a mais exploratória, problematizadora e inclusiva, sobretudo para estudantes das escolas públicas; na formação inicial e continuada de professores de matemática, motivando-os a serem estudiosos e investigativos em comunidades docentes; na formação de novos pesquisadores, com destaque para a pesquisa sobre a própria prática.

Em 2009 (FIORENTINI, 2009) analisou com base na concepção de excedente de visão de Bakhtin (2003), o encontro de professores da escola básica com acadêmicos nessa mesma comunidade - Grupo de Sábado. Por um lado, a partir das experiências constituídas no ambiente escolar, os professores (re)significam as teorizações advindas da academia.

(…) os professores da escola básica, desde a formação do grupo, têm negociado significados e perspectivas com os formadores e os acadêmicos da universidade sobre questões da prática pedagógica em matemática e do trabalho docente nas escolas públicas no contexto atual. Embora os porta-vozes da academia tragam ao grupo questões que ajudam a produzir estranhamentos e problematizações à prática dos professores da escola básica, estes, ao tomarem como referência seus lugares nas escolas, manifestam um excedente de visão sobre os acadêmicos, por possuírem um saber de experiência relativo ao ensino da matemática nas escolas públicas e privadas. Além disso, conhecem as condições de produção do trabalho docente nessas escolas, vislumbrando o que é possível ou não realizar na prática escolar, que geralmente não conhecem por dentro - isto é, experiencialmente - a complexidade de ensinar matemática na escola atual (FIORENTINI, 2009, p. 234 - 245).

Por outro lado, quando os acadêmicos se encontram com professores da escola básica, imprimem um excedente de visão em relação aos professores da escola básica, relacionado aos aportes teórico-científicos

(…) oriundos das ciências educativas e, em particular, dos estudos acadêmicos em educação matemática -, interpretações e compreensões que os primeiros estabelecem sobre práticas, experiências e saberes dos segundos. Penso, porém, que o maior excedente de visão dos acadêmicos seja o domínio dos processos metodológicos de pesquisa e a problematização ou desnaturalização das práticas escolares vigentes (FIORENTINI, 2009, p. 235).

Nessas comunidades fronteiriças, tanto professores quanto acadêmicos, dão indícios de “construção e desenvolvimento de uma profissionalidade docente, interativa e reflexiva” (FIORENTINI, 2009, p. 251). Ao narrar sua própria experiência dentro de uma dessas comunidades que conta com a presença de formadores, pesquisadores e professores, Cochran-Smith (2013) destaca que esses são espaços importantes, onde essas diferentes comunidades podem aprender juntas e gerar conhecimento em um movimento emergente. Nas experiências que tem participado, os membros dessas comunidades investigativas são incentivados a se engajarem em estudos da própria prática, self-study, pesquisa-ação e outras formas de investigação.

Algumas palavras finais

Por mais que as metodologias sejam aparentemente inovadoras, tornam-se necessárias avaliações sistemáticas e reflexões cuidadosas sobre os aspectos das comunidades de aprendizagem docente. A burocratização das instituições impõe aos formadores e aos professores rotinas que, muitas vezes, impedem reflexões sistemáticas sobre os objetivos finais de suas práticas.

Cochran-Smith (apud FIORENTINI; CRECCI, 2016) nos alerta que as comunidades podem ser chamadas de diversas maneiras, mas que tais nomenclaturas não nos dizem como elas operam, nem revelam se podem ser consideradas boas ou ruins por si sós. Logo, é necessário observar o que acontece dentro dessas comunidades e quais perguntas se fazem dentro delas. Em síntese, parece-nos que a forma como as comunidades são implementadas, por vezes, acaba por constituir espaços em que todos os tipos de coisas podem ocorrer.

Desse modo, apesar de os espaços serem constituídos a partir de certos pressupostos, não é possível prever as aprendizagens e as compreensões de seus participantes nem a forma como constituirão suas trajetórias nessas comunidades. Isso não significa dizer que devemos relativizar os modos como esses espaços são constituídos ou achar que não há nada a ser feito, uma vez que dependerá da disposição de cada envolvido. Pelo contrário, considerando que não temos total controle de quais serão as relações que formadores e professores estabelecerão nessas comunidades, é preciso cuidar para a constituição de ambientes nos quais todos tenham condições de se expor e de dar a ver suas subjetividades. Nestes ambientes, torna-se possível a emergência de diferentes excedentes de visão.

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1Sem tradução literal, a palavra empowerment significa o fato de coletivos se engajarem em tomadas de decisões.

2Por coisificação, o autor significa a forma concreta à experiência, como por exemplo, escrever um livro, criar um método, etc. (WENGER, 2001).

Recebido: 29 de Novembro de 2016; Aceito: 13 de Abril de 2017

Contato: Faculdade de Educação da Unicamp, Rua Bertrand Russell, 801, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Campinas|SP|Brasil, CEP 13.083-865

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Doutora em Educação, Professora colaboradora do Mestrado Profissional da Faculdade de Educação da Unicamp. E-mail:<vancrecci@gmail.com>.

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Doutor em Educação, Professor da FE/Unicamp. E-mail:<dariofiore@unicamp.br>.

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