Este dossiê da Educação em Revista, periódico do Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGE/FaE/UFMG), reúne artigos escritos por convidados do 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global, além de dois outros textos de pessoas que estiveram bastante envolvidas na organização desse evento na UFMG.

O 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global ocorreu entre 28 de abril e 1º de maio de 2018, no Centro de Atividades Didáticas I (CAD I) do Campus da Pampulha da UFMG, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

A ideia de organizar a 2ª Freire Global Conference na UFMG, mesmo com todas as dificuldades conjunturais - econômicas e políticas - vividas no Brasil, à época, foi dar continuidade a esse evento na esperança de que ele aconteça novamente em outras partes do mundo. O 1º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global (International Conference Paulo Freire: The Global Legacy) aconteceu em 2012, na cidade de Kirikiriroa (ou Hamilton, nome dado pelos colonizadores europeus), na Nova Zelândia, graças à ideia do Professor Michael Peters, da Universidade de Waikato (ou The University of Waikato).

Como o evento ainda não havia sido novamente organizado depois de 2012, entramos em contato com o Professor Michael Peters e lhe pedimos autorização para darmos continuidade à ideia que ele teve de organizar a “Freire Global Conference”. Ele prontamente nos respondeu e nos autorizou a seguir com o nosso desejo.

Porém, quando decidimos finalmente organizar a 2ª Freire Global Conference na UFMG, ainda não imaginávamos o que aconteceria no Brasil em outubro de 2018 - mês das eleições presidenciais no país. Não passava por nossas cabeças que uma onda conservadora levaria a extrema direita ao poder por meio do voto direto! Na verdade, como sabemos, o resultado dessas eleições representa a consolidação do golpe político, parlamentar, jurídico, midiático e sexista iniciado em maio de 2016 no Brasil. Ainda assim, não podíamos prever que, cinco meses após a realização do nosso evento, se elegeria presidente da República Federativa do Brasil um candidato que traria em seu programa de governo, “BRASIL ACIMA DE TUDO. DEUS ACIMA DE TODOS” (disponível na página eletrônica www.tse.jus.br), uma proposta para a área de Educação para “expurgar” a “ideologia (sic) Paulo Freire” das escolas e das instituições brasileiras de formação de professores. E, segundo o mesmo programa, “Um dos maiores males atuais [da educação brasileira] é a forte doutrinação” (sic).

Ironicamente, parece que Paulo Freire já tinha uma resposta para o lamentável contexto atual que vivemos no Brasil. Nos anos 1990, ele respondeu aos neoliberais que proclamaram o fim das ideologias, bem como o fim das classes sociais e da luta de classes, afirmando que “só é possível destruir ideologias ideologicamente” (^{FREIRE, 1997}, p. 188; tradução livre; grifo nosso). Ele argumentou que “As ideologias de esquerda e de direita ainda estão bastante vivas, mas é necessário que os direitistas defendam que as ideologias já não existem, de modo a aumentar o poder da direita” (FREIRE, 1997, p. 84; tradução livre). Freire também respondeu ao discurso pragmático neoliberal que alega não existir futuro para além do capitalismo. Ele escreveu:

O triunfo do capitalismo e proclamação do fim do socialismo, na verdade, apenas reforça, de um lado, a perversidade do capitalismo e, de outro, mantém vivo o sonho socialista, se ele for purificado, com sacrifício e dor, de sua distorção autoritária. Assim, reafirma-se a dependência necessária entre socialismo e democracia, à luz do fracasso do socialismo autoritário e do mal intrínseco do capitalismo, que é insensível para o sofrimento das maiorias exploradas (FREIRE, 1997, pp. 136-137; tradução livre).

Freire também afirmou que “o sonho das maiorias populares, hoje, é o socialismo como a marca da democracia popular. O ponto fundamental não é acabar com a democracia, mas aperfeiçoá-la; e ter não o capitalismo, mas sim o socialismo, como sua inspiração” (FREIRE, 1997, p. 137; tradução livre). Finalmente, ele insistiu que “Forjar a unidade entre democracia e socialismo é o desafio que nos inspira [...]. O futuro é um problema, uma possibilidade; ele não é inexorável” (FREIRE, 1997, p. 137; tradução livre).

Sendo assim, o “sonho das maiorias populares” foi reafirmado durante o 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global na UFMG. Vieram a Belo Horizonte aproximadamente 800 educadoras/es de todas as partes do país e de todos os continentes do planeta! Tivemos aqui participantes da África do Sul, Argentina, Austrália, Cabo Verde, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Índia, Israel/Palestina, México, Moçambique, Noruega, Portugal e Uruguai. Entre as/os brasileiras/os, destaca-se também a participação de 125 alunas/os do curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FIEI/FaE/UFMG), dos povos Guarani, Maxacali, Pataxó, Pataxó Hã Hã Hãe e Xacriabá.

Nesses quatro dias, vivemos intensamente muitas coisas que, para muitos de nós, foram inesquecíveis e transformadoras! Para sermos coerentes com a práxis freiriana, a programação cultural, rica e diversa, foi assumida não apenas como parte integrante da programação geral do evento, mas como o seu eixo - não um apêndice ou um mero entretenimento, como acontece na maioria dos eventos acadêmicos e científicos. Tambor de Família, Anjos D’Rua, Centro de Danças Luana Campos, Grupo de Pesquisa “Cultura do Barro”, Russo APR - “Coletivo Terra Firme”, Cordéis do Cafundó, Dóris, Olubatá Percussão Étnica, Guilherme Cordel, Pretas em Movimento, “Lá da Favelinha” e Afoxé Bandarerê enriqueceram o nosso evento com suas belíssimas apresentações e intervenções. Além disso, sob coordenação do grupo de pesquisa MUTUM/FaE/UFMG, foram exibidos filmes de curta metragem durante a 2ª Freire Global Conference e houve o lançamento do documentário “Ocupa FaE” sobre o movimento de ocupação da Faculdade de Educação da UFMG pelos estudantes em 2017. A exposição “Teatro da Verdade”, desenvolvida pelo Processaber do Espaço do Conhecimento da UFMG, também aconteceu ao longo de todo o Congresso. As apresentações culturais, assim como todas as demais atividades do programa do nosso evento tinham uma clara intencionalidade política.

Sendo assim, o 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global foi aberto com atividades culturais: o cortejo das Guardas de Moçambique e do Congo Treze de Maio de Nossa Senhora do Rosário e os rituais das/os nossas/os alunas/os do FIEI/FaE/UFMG.

A Professora Nita Freire, viúva de Paulo Freire, foi a Presidente de Honra do 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global. A Professora Nita já havia sido convidada para ser a Presidente de Honra da 1ª Freire Global Conference, na Nova Zelândia. Ao dar continuidade ao evento, a mantivemos como Presidente de Honra, claro. Além da presença na cerimônia de abertura do evento, Nita participou de uma sessão “Diálogos”, no dia 29 de abril, pela manhã, e contribuiu com este dossiê com o texto que subsidiou a fala dela durante o evento.

A conferência de abertura foi proferida pelo Professor Emérito da UFMG, Miguel Arroyo. Intencionalmente, convidamos professores “da casa” (e não estrangeiros geralmente vindos de países do assim chamado “primeiro mundo”) para proferirem as conferências de abertura e de encerramento do evento. A conferência de encerramento ficou a cargo da Nilma Lino Gomes, Professora Titular da Faculdade de Educação da UFMG. Os demais convidados brasileiros e os estrangeiros participaram das sessões “Diálogos” que aconteceram na segunda metade das manhãs dos dias 29 e 30 de abril e 1º de maio. O texto que subsidiou a palestra do Professor Arroyo durante o 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global está também entre os artigos deste dossiê! Por motivos de força maior, infelizmente, o texto da Professora Nilma não pode fazer parte desta coletânea. Os demais convidados também foram chamados a enviar seus textos, mas apenas o fizeram os professores Francisca Pini, Guillermo Williamson, Oscar Jara e Sérgio Haddad.

A Professora Gloria Ladson-Billings, uma das organizadoras deste dossiê, também foi convidada para participar de uma sessão “Diálogos”da 2ª Freire Global Conference, porém, infelizmente, ela não conseguiu viajar para o Brasil. A Professora Gloria queria muito ter vindo a Belo Horizonte para participar do evento. Gloria conheceu Paulo Freire pessoalmente em Palo Alto, na Califórnia, quando ela fazia o doutorado na Universidade de Stanford. Ela ficou muito triste com o problema que acabou a impedindo de viajar. Convidá-la para juntar-se a nós para organizar este dossiê, foi uma maneira que encontramos para compensar um pouco essa frustração.

Ainda sobre a programação do 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global, após a cerimônia e a conferência de abertura, o evento teve continuidade, na primeira metade das manhãs dos dias 29, 30 de abril e 1º de maio, com a participação em oficinas e minicursos. Foram oferecidos 20 oficinas e minicursos! Destacaram-se os minicursos de saberes tradicionais: “Alfabetizar cantando”, “O Tehey e o Uso do Território” e “Um currículo a partir do calendário sociocultural” ministrados, respectivamente, pelos Professores Kanatyo Pataxó, Liça Pataxó e Diana Xacriabá, da Escola Indígena Pataxó Muã Mimatxi e a oficina “Do Quilombo com Q para o Kilombo com K: relação dialógica entre temas históricos e atos-limite” oferecida pelas educadoras da Comunidade Kilombola Morada da Paz, Território de Mãe Preta, no Rio Grande do Sul.

Uma outra novidade nesse evento, ainda coerente com a práxis freiriana, foi a forma de apresentação de trabalhos. Os trabalhos aprovados pelo Comitê Científico Internacional foram apresentados em mesas literalmente redondas em que a/o coordenadora/coordenador, as/os autoras/es dos papers e demais pessoas interessadas sentaram-se ao redor dessas mesas para a apresentação e discussão dos textos. Essa forma de apresentação de trabalhos foi considerada por muitos como mais democrática, mais interativa e mais participativa do que os modos tradicionais de comunicação nos eventos acadêmicos brasileiros.

É importante também registrar que todas as propostas de trabalho foram enviadas ao 2º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global apenas na forma de resumo expandido (máximo de cinco páginas) e submetidas em um dos seguintes “temas geradores”: 1. “A leitura do mundo precede a leitura da palavra”; 2. Cartas freireanas; 3. Denunciar e anunciar; 4. Pedagogias dos Oprimidos; 5. Reinventando Paulo Freire; 6. Para ir além de Paulo Freire.

Por fim, também coerente com a práxis freiriana, aconteceu ao longo dos quatro dias da 2ª Freire Global Conference, a “Freira UAI” - Projeto de Extensão na área de Economia Popular Solidária da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG.

Ao final do evento, tivemos a excelente notícia de que a Freire Global Conference terá mesmo continuidade - como mencionamos anteriormente, esse era um dos principais propósitos da organização desse evento em Belo Horizonte! O 3º Congresso Internacional Paulo Freire: O Legado Global acontecerá, em setembro de 2020, na cidade de St. Louis, nos Estados Unidos.

Desejamos uma boa leitura do Dossiê Paulo Freire: O Legado Global e esperamos que ele nos ajude a refletir sobre o legado da obra do Patrono da Educação brasileira para a construção de um mundo mais justo, mais fraterno e mais humano.