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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.35  Belo Horizonte jan./dez 2019  Epub 15-Maio-2019

https://doi.org/10.1590/0102-4698214079 

Artigos

A EDUCAÇÃO COMO PRÁTICA DE LIBERDADE: UMA PERSPECTIVA DECOLONIAL SOBRE A ESCOLA

EDUCATION AS A PRACTICE OF LIBERTY: A DECOLONIAL PERSPECTIVE ABOUT SCHOOL

LÚCIA HELENA ALVAREZ LEITEI  *
http://orcid.org/0000-0002-2494-1679

BÁRBARA BRUNA MOREIRA RAMALHOII  *
http://orcid.org/0000-0001-5679-4004

PAULO FELIPE LOPES DE CARVALHOIII  ***
http://orcid.org/0000-0001-9129-6887

I Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte, MG, Brasil.

II Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Belo Horizonte, MG, Brasil.

III Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil.


RESUMO:

A escola brasileira carrega a herança de nosso passado colonial, que impôs a cultura e o conhecimento de povos dominantes a identidades que se expressavam de forma distinta e, por isso, não eram reconhecidos como legítimos. Sob essa perspectiva, a atuação da escola muitas vezes resultou na destruição de culturas e saberes; revelando a violência dessa instituição. Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire denuncia tal realidade e propõe, como forma de ruptura, uma Educação para a Liberdade. Em 1989, Aníbal Quijano cria o termo ‘colonialidade’, para denunciar que a dominação presente nos sistemas coloniais perdura mesmo com o fim das colônias. Para ele, os padrões de poder, de saber e de ser são impostos pela lógica europeia, capitalista, ‘nortecentrada’. Como Freire, Quijano propõe o rompimento com esta colonialidade, apontando para uma perspectiva decolonial, que se encontra com a educação como prática da liberdade, revelando que outra educação é possível.

Palavras-chave: Educação Colonial; Pedagogia do Oprimido; Perspectiva Decolonial

ABSTRACT:

The Brazilian school carries the legacy of our colonial past, which imposed the culture and knowledge of a dominant people to identities that were expressed in a different way and, therefore, were not recognized as legitimate. From this perspective, the school’s operation often resulted in a destruction of cultures and knowledge; revealing the violence of this institution. In Pedagogy of the Oppressed, Paulo Freire denounces this reality and proposes, as a rupture, an Education for Freedom. In 1989, Aníbal Quijano creates the term “coloniality”, to denounce that the domination, present in the colonial systems. continues even after the end of the colonies. For him, the standards of power, knowledge and being are imposed by the European logic, capitalist, “north centered”. Like Freire, Quijano proposes a break with this coloniality, pointing to a decolonial perspective, likewise education as a practice of freedom, revealing that another education is possible.

Keywords: colonial Education; Pedagogy of the Oppressed; Decolonial Perspective

INTRODUÇÃO

A escola é, certamente, uma instituição privilegiada no que diz respeito à centralidade que ocupa em nossa sociedade. É esse o espaço que, segundo a legislação brasileira, todas as crianças e jovens, dos quatro aos dezessete anos, de norte a sul do país, devem frequentar diariamente (Brasil, 2013). A escola brasileira, entretanto, carrega a herança de nosso passado colonial, que impôs a cultura e o conhecimento de povos dominantes a outros povos e culturas que se expressavam de forma distinta e, por isso, não eram reconhecidos como legítimos. A atuação da escola, dentro dessa lógica, muitas vezes, significou a destruição de culturas de povos tradicionais e dos saberes oriundos desses povos, revelando a violência da escola hegemônica brasileira, que hierarquizou e inviabilizou conhecimentos e sujeitos, sob o manto da meritocracia. Mas esse processo de deslegitimação de “outros” saberes, para além do europeu, feito pela escola, sofreu resistências de coletivos que se sentiam excluídos desse processo, bem como denúncias de educadores, como Paulo Freire, que, com sua obra Pedagogia do Oprimido, revelou a violência de uma educação bancária que “coisificava” sujeitos e anulava sua voz e seu saber.

Seguindo Paulo Freire, Quijano e outros intelectuais latino-americanos denunciavam a colonialidade do poder do saber e do ser, revelando que o fim do período colonial na América Latina não significou o fim do colonialismo, já que seus traços persistiram ao tempo, chegando até os dias de hoje. É essa persistência da cultura colonial que Quijano chama de colonialidade. Tanto Quijano como Paulo Freire não só denunciam essa realidade de opressão: eles propõem uma ruptura com tal modelo, através de práticas decoloniais, nas palavras de Quijano, ou práticas libertadoras, na visão freireana.

Dessa forma, esses autores apontam caminhos trilhados pelos coletivos latino-americanos, e, especificamente, os Movimentos Sociais brasileiros que não se submetem ao lugar de subalternidade a eles destinados, demonstrando, com suas práticas insurgentes, que outro mundo é possível.

COLONIALISMO E COLONIALIDADE

A expressão ‘colonialidade’ foi cunhada por um grupo de intelectuais latino-americanos, entre eles, Aníbal Quijano, que fazem parte do coletivo denominado Modernidade/Colonialidade (M/C), assim caracterizado por Ballestrin:

Assumindo uma miríade ampla de influências teóricas, o M/C atualiza a tradição crítica de pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a ‘opção decolonial’ - epistêmica, teórica e política - para compreender e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva. (2013, p.13)

A expressão ‘decolonial’ é utilizada no âmbito deste coletivo, portanto, em referência a um conjunto de abordagens teóricas que têm emergência no final dos anos 1970 e início da década de 1980 e que descortinam “situações de opressão diversas” (CESAIRE, 1978, p. 90) geradas pela “dominação de uma raça sobre a outra” (Ibidem, p.19), enquanto desdobramentos do referido processo histórico vivido até o século passado.

Tratam-se, portanto, das narrativas de denúncia aos processos de colonização protagonizados pela Europa e às suas consequências para a histórica e atual conformação do sistema-mundo que se expressam, entre outros aspectos, sob os dualismos: cultos vs. incultos, civilizados vs. incivilizados; modernos vs. em estado de natureza, ou para utilizar os termos de Boaventura de Souza Santos, em Norte vs. Sul global.1

A dominação europeia sobre os demais povos do planeta pode ser compreendida em uma perspectiva histórica a partir de, pelo menos, dois aspectos. O primeiro diz respeito à formulação, pela própria Europa, da “ideia-imagem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado de natureza e culmina na Europa” (QUIJANO, 2005, p.122), de modo a naturalizar a subjugação das demais raças ou povos ao domínio europeu. Trata-se, portanto, da atribuição das diferenças existentes entre “Europa e não Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história do poder”. (Ibidem, ibidem).

Essa dominação, e a consequente subalternização dela derivada, se fundamentam também nas relações econômicas estabelecidas entre os europeus e o restante do mundo, uma vez que “a raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial” (Ibidem, ibidem, p.118). Nesse sentido, as abordagens decoloniais oferecem instrumentos a uma análise não apenas cultural, mas também econômica das desiguais relações de poder verificadas na sociedade.

Foi também esta lógica de dominação em relação aos demais povos que possibilitou a produção de uma narrativa eurocentrada de conhecimento que, por sua vez, desautorizava formas “Outras” de pensamento. Nessa perspectiva, os processos de colonização se justificavam pela “natural” soberania europeia não apenas em relação a outras raças, mas aos conhecimentos por elas produzidos. Assim, de acordo com Aníbal Quijano, foram os próprios processos de colonização protagonizados pela Europa, mais especificamente a ‘conquista’ das Américas, em função da subalternização das demais raças, que possibilitou a emergência do paradigma Moderno de sociedade.

Durante el mismo periodo en que se consolidaba la dominación colonial europea se fue constituyendo el complejo cultural conocido como la modernidad-racionalidad europea, que fue establecido como un paradigma universal de conocimiento y de relación entre la humanidad y el resto del mundo (QUIJANO, 2014).2

A noção de Modernidade, condição da qual seria o europeu a corporificação é, simultaneamente, constituída e constituinte desta diferenciação racial, podendo ser sintetizada sob o dualismo “estado de natureza vs. Civilidade”. Tal qual explicita Aníbal Quijano:

[...] ese es, sin duda, el momento inicial de lo que, desde el siglo XVII, se constituye en el mito fundacional de la Modernidad, la idea de un original estado de naturaleza en el proceso de la especie y de una escala de desarrollo histórico que va desde lo ‘primitivo’ (lo más próximo a la ‘naturaleza’, que por supuesto incluía a los ‘negros’, ante todo y luego a los ‘indios’) hasta lo más ‘civilizado’ (que, por supuesto, era Europa), pasando por ‘Oriente’ (India, China). (2000, p.7).3

São, portanto, três as dimensões da colonialidade resultantes dos processos de colonização historicamente vivenciados por povos feitos subalternos. A primeira delas diz respeito à colonialidade do poder e “es entendida como un patrón de poder global de relaciones de dominación /explotación / confrontación en torno al trabajo, la naturaleza, el sexo, la subjetividad y la autoridad” (RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 131). A outra diz respeito à colonialidade do ser e:

[...] se refiere a la dimensión ontológica de la colonialidad del poder, esto es, la experiencia vivida del sistema mundo moderno/colonial en el que se inferioriza deshumanizando total o parcialmente a determinadas poblaciones, apareciendo otras como la expresión misma de la humanidade. (Ibidem, p.155).4

E, finalmente, a terceira consiste na colonialidade do saber que constitui-se:

[...] en la dimensión epistémica de la colonialidad del poder, expresada en el establecimiento de unas jerarquizaciones de las modalidades de producción de conocimiento en las cuales la filosofía y la ciencias occidentales operan como los paradigmas que subalternizan otras modalidades de conocimiento. (Ibidem, p.136).5

No Brasil, como em outros países latino-americanos, resguardadas as especificidades, observa-se a persistência da colonialidade ainda nos dias de hoje. Desse modo, uma abordagem econômica de tal herança seria tão pertinente quanto um debate acerca de suas influências culturais. Para os fins deste artigo, entretanto, parece propício destinar uma maior atenção para a persistência colonial no campo do saber, mais especificamente, na educação formal.

A COLONIALIDADE DO SABER DENUNCIADA POR ANÍBAL QUIJANO

Como nos coloca Quijano (2005), é preciso, em primeiro lugar, não perder de vista a coexistência da educação formal e dos processos de colonização.

Ao ancorarem sua caravela na porção de terra que, no futuro, passaria a ser chamada de Brasil, os colonizadores escreveram uma espécie de ‘caderno de campo’, a Carta de Pero Vaz de Caminha, em que foram registradas as primeiras impressões daquele contexto. Entre muitos outros aspectos possíveis de serem tratados aqui, destacamos o modo de produção do Outro, especificamente dos povos autóctones, habitantes desta terra, enquanto exóticos, primitivos e despossuídos de cultura.

O documento consiste em um privilegiado registro do olhar do colonizador, que evidencia, sem eufemismos, o eurocentramento anteriormente mencionado neste texto. É o que expressa, entre outros, o pequeno excerto da Carta, qual seja: “(...) ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém”.

No campo educacional, a Carta de Pero Vaz configura uma espécie de autorização e, mais do que isso, explicitação da necessidade, novamente, a partir do olhar monocultural (Santos, 2010) do colonizador, de aculturação daqueles sujeitos, já que bárbaros e involuídos, de modo a se elevarem, num futuro, à ‘condição desenvolvida’ do europeu.

Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. (Carta de Pero Vaz de Caminha)

Desde então, a Europa, desfrutando da privilegiada posição de poder, constituiu-se numa espécie de ‘pedra de toque’ à produção, legitimação e difusão dos conhecimentos, não apenas no Brasil, como nas demais partes do planeta externas a este continente. Como afirma Quijano (2014, p.52):

[...] de la misma manera, no obstante que el colonialismo político fue eliminado, la relación entre la cultura europea, llamada también ‘occidental’, y las otras, sigue siendo una relación de dominación colonial. No se trata solamente de una subordinación de las otras culturas respecto de la europea, en una relación exterior. Se trata de una colonización de las otras culturas, aunque sin duda en diferente intensidad y profundidad segundo los casos. Consiste, en primer término, en una colonización del imaginario de los dominados. Es decir, actúa en la interioridad de ese imaginario. En una medida, es parte de él. Eso fue producto, al comienzo, de una sistemática represión no sólo de específicas creencias, ideas, imágenes, símbolos o conocimientos que no sirvieran para la dominación colonial global. La represión recayó, ante todo, sobre los modos de conocer, de producir conocimiento, de producer perspectivas, imágenes y sistemas de imágenes, símbolos, modos de significación; sobre los recursos, patrones e instrumentos de expresión formalizada y objetivada, intelectual o visual. Fue seguida por la imposición del uso de los propios padrones de expresión de los dominantes, así, como de sus creencias e imágenes referidas a lo sobrenatural, las cuales sirvieron no solamente para impedir la producción cultural de los dominados, sino también como medios muy eficaces de control social y cultural, cuando la represión inmediata dejó de ser constante y sistemática.6

Em diálogo com este padrão Moderno de conhecimento, do qual a Europa e os europeus “eram o momento e o nível mais avançados no caminho linear, unidirecional e contínuo da espécie” (Quijano, 2009, p.86) e, mais do que isto o modelo a seguir, surge a escolarização em massa.

Sob essa perspectiva, um primeiro aspecto a ser destacado é a função atribuída à escola universal no que tange às epistemologias. Segundo o imaginário social, à instituição escolar caberia a difusão dos conhecimentos acumulados pela sociedade a fim de que se perpetuem. No entanto, os saberes ali entendidos como fundamentais, há de se pontuar, derivam de uma seleção, sendo esta orientada por um padrão hegemônico de conhecimento, como afirma Boaventura de Sousa Santos:

O colonialismo, para além de todas as dominações porque é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma reflexão extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS, 2010, p. 23).

Porque difundidos como universais, esses conhecimentos apresentam-se como neutros e, portanto, desterritorizalizados. Uma concepção é combatida por esse mesmo autor em sua emblemática obra Epistemologias do Sul:

[...] a minha tese é a de que a cartografia metafórica das linhas globais sobreviveu à cartografia global das Amity Lines que separavam o velho mundo do Novo Mundo. A injustiça global está, de certa forma, ligada a injustiça cognitiva global. A luta pela justiça social global deve, por isso, ser também uma luta pela justiça cognitiva global. (Ibidem, p. 27).

Sob essa perspectiva, a educação formal tem, historicamente, sob a retórica do universalismo e da objetividade, não apenas difundido saberes e narrativas derivados do Norte global, como impossibilitado a emergência e/ou a visibilização de conhecimentos ‘Outros’. Assumindo, assim, essa instituição um relevante papel na perpetuação da colonialidade.

A criação da escola ‘universal’, deve-se destacar também, está relacionada à instauração da Modernidade e à construção do Estado Nação. E, sob esse intuito, a instituição nasce associada à ideia de ajudar os ‘não-humanos’ a se humanizarem e os cidadãos a constituírem-se ‘cidadãos da república’.

Nessa perspectiva, assim como as identidades nacionais se desenvolveram a partir da colonial e violenta imposição de uma homogeneidade racial justificada por uma inverídica concepção de igualdade entre os indivíduos, a escola também se desenvolve sob a ideia mítica de uma infância e uma adolescência homogêneas e desterritorializadas - nomeadas/inventadas inclusive como alunos, como abordado por Sacristán (2005) - que deveriam responder aos padrões, normas, atitudes e conhecimentos, a partir de um padrão de poder-saber.

Assim, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que a escola é aberta e oferecida para todos, ela também cumpre um papel de homogeneizar e padronizar conhecimentos, valores, culturas, economias e espaços. Essa foi a proposta por detrás do projeto de uma ‘escola pública igual para todos, direito de todos os cidadãos’. Não há, portanto, nesse projeto de educação, espaço para a defesa do direito à diferença e, assim, de uma cidadania para todos e para cada um. Ao contrário, nele é verificada uma imposição cultural, através da naturalização de um determinado perfil de grupo social: homem, branco, europeu, proprietário; o que revela a dimensão colonial da educação institucionalizada, perspectiva que é reiterada a partir da verificação das consequências causadas por este modelo: a exclusão e a discriminação dos grupos sociais que não coincidiam com o referido padrão, e assim, a perda do direito desses coletivos a uma educação que vá ao encontro de seus interesses e necessidades.

Dessa forma, a escola acolhe e inclui os estudantes oriundos das camadas populares, as crianças e jovens negros, indígenas, camponeses, moradores de ocupações urbanas numa proposta de ‘educá-los, de salvá-los, de aculturá-los, de civilizá-los’. E, ao mesmo tempo, ao submetê-los a uma cultura que não dialoga com sua experiência e realidade, ao obrigá-los a seguir padrões de racionalidade que não os seus, os leva ao fracasso e à exclusão dentro da própria escola.

A meritocracia ocupa um importante lugar neste projeto de educação. Isto porque é esse paradigma que, ao mesmo tempo, encobre as histórias de dominação e subordinação denunciadas pelas perspectiva decolonial; e que justifica os ‘fracassos’ escolares de determinados sujeitos e/ou coletivos sob a égide de que “tais foram incluídos no sistema educacional formal, mas não fizeram por merecer este lugar, não estando, portanto, aptos ou preparados para ele’’.

Em síntese, a universalização do acesso à educação formal responderia à demanda por igualdade e a meritocracia justificaria o fracasso das crianças e jovens das camadas populares que ascenderam à escola.

A EDUCAÇÃO BANCÁRIA DENUNCIADA POR PAULO FREIRE

No final da década de 1950 e início dos anos 1960, no Brasil, vários coletivos de camponeses, artistas, intelectuais e estudantes, começaram a fazer uma crítica ao modelo de desenvolvimento, de educação e de cultura existentes, denunciando o modelo elitista e excludente presente nas práticas educacionais e culturais. Assim, foram surgindo os Movimentos populares, como o MCP (Movimento de Cultura Popular), do qual Paulo Freire fazia parte, o MEB (Movimento de Educação de Base) ligado à Igreja Católica e o CPC (Centro Cultural de Cultura), ligado à UNE (União Nacional do Estudantes). Eles desempenharam um importante papel no sentido de denunciar a exclusão vivida pelos sujeitos das camadas populares e o autoritarismo e a opressão presentes no sistema de educação brasileiro.

Dentre os expoentes desses movimentos, Paulo Freire se tornou o mais conhecido. Seu livro Pedagogia do Oprimido, que completa cinquenta anos em 2018, foi traduzido em mais de trinta idiomas no mundo inteiro. Foi em 1958, no II Congresso Nacional de Alfabetização de Adultos, que Paulo Freire apresentou uma proposta que inaugura um olhar sobre o adulto que não está alfabetizado e seu processo de aprendizagem.

Até aquele momento, as campanhas de Alfabetização de Adultos, desenvolvidas no Brasil, tinham uma visão bastante negativa sobre esses sujeitos, que eram taxados de incapazes, ignorantes, fracassados. Paulo Freire apresenta, nesse congresso, o relatório: A Educação de Adultos e as populações marginais: o problema dos mocambos, revelando que esses adultos, apesar de não saberem ler e escrever, são sujeitos de conhecimento e de cultura, e que o problema está localizado na inadequação das propostas pedagógicas dirigidas a eles. Ele defende a tese de que quem fracassa é a escola que não consegue compreender que o educando é sujeito sociocultural e que todo processo de educação deve partir de sua realidade. Somente nessa perspectiva, defende Paulo Freire nesse Congresso, o processo de alfabetização será efetivo. Assim, ele desloca o problema da não-aprendizagem do sujeito para interação entre os saberes escolares e os saberes de experiência dos educandos. Também denuncia um modelo de educação bancária que oprime educadores e educandos, servindo, assim, à perpetuação de uma sociedade opressora.

Para Freire, o homem é um ser inacabado e, como tal, seu movimento é sempre o de buscar ‘ser mais’, mais humano (Freire, 2005). São as situações de opressão que o desumanizam, impedindo a sua liberdade. Nesse sentido, a opressão não é um destino, mas é historicamente construída, ainda que essa dimensão seja encoberta sob o manto do fatalismo, do ‘foi Deus que quis’. Problematizar essa realidade, desmascarar os mecanismos da subalternização só é possível através de uma educação libertadora, que não esteja sob o controle dos opressores. Enquanto ela estiver na mão destes, “o saber é uma doação dos que se julgam sábios aos que julgam nada saber” (Freire, 2005, p.67).

A Educação bancária é instrumento da opressão, já que o que pretende é a manutenção de uma realidade de subalternização através da inculcação do fatalismo e da submissão dos educandos. Como afirma Paulo Freire:

Na medida em que essa visão ‘bancária’ anula o poder criador dos educandos ou o minimiza, estimulando sua ingenuidade e não criticidade, satisfaz aos interesses dos opressores: para estes, o fundamental não é o desnudamento do mundo, a sua transformação. O seu ‘humanitarismo’, e não o seu humanismo, está em preservar a situação de que são beneficiários e que lhes possibilita a manutenção de sua falsa generosidade. (Freire, 2005, p.69).

Para alcançar essa manutenção, a educação bancária se vale de quatro estratégias, a saber: a conquista, a divisão, a manipulação e a invasão cultural.

A conquista, segundo Freire (2005), implica no estabelecimento de uma relação em que há um sujeito que conquista e um objeto que é conquistado. Por isso, na educação bancária, os sujeitos são transformados em objetos, são ‘coisificados’.

A divisão é outra estratégia fundamental para a manutenção da situação de opressão. Por isso, há a necessidade de se criar e aprofundar cisões entre os sujeitos, de modo a transformar o outro em ‘um inimigo a ser abatido’. No caso da educação bancária, a competição é sempre incentivada através de rankings entre escolas, de medalhas para os melhores alunos, de incentivo aos professores cujos alunos devem conquistar uma melhor performance. A escola se transforma em um grande espaço de competição.

A manipulação é a forma como as elites conseguem ‘convencer’ o povo de apoiar suas ações e aderir às suas causas. Através de promessas e engodos, vão sendo construídos pactos que imobilizam as camadas oprimidas, que acabam envolvidas em projetos que vão em direção contrária a seus interesses. Nesse processo, a mídia cumpre o papel fundamental de ‘vender’ sonhos e projetos dos opressores como se fossem para todos. Como afirma Freire (2005, p.169), “a manipulação, na teoria de ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem”.

Por fim, a invasão cultural tem a função de apagar, invizibilizar a cultura popular, impondo, ao povo, a cultura das elites como a única legítima. Para isso, é necessário desencadear um processo de inferiorização da cultura, dos saberes, das expressões que não sejam a das classes dominantes. Sobre esse processo, Freire afirma que:

Na medida que os invadidos vão reconhecendo-se ‘inferiores’ necessariamente irão reconhecendo a ‘superioridade’ dos invasores. Os valores destes passam a ser a pauta dos invadidos. Quanto mais se acentua a invasão, alienando o ser da cultura e o ser dos invadidos, mais estes quererão parecer com aqueles: andar como aqueles, vestir à sua maneira, falar a seu modo. (Freire, 2005, p.175).

Assim, com a invasão cultural, os oprimidos olham a realidade sob a ótica do opressor, não sob a sua ótica. E a escola, com sua educação bancária, acaba sendo um importante canal para a efetivação dessa invasão cultural.

Mas Freire destaca também que todo esse processo de dominação não é feito sem contradições e ambiguidades. Como afirmou Martins (1986), ao falar dos camponeses e da luta pela terra no Brasil:

A cerca só num sentido cerca a terra do índio e do pobre. Cerca, também, os direitos do proprietário, do fazendeiro, do capitalista. Cerca-os todos. Define o do pobre e o do rico. Mas, se o do pobre está dentro do que cercou o rico, então, ao fechar, a cerca abre. Pois, a cerca fala, também, sobre os direitos daquele que foi cercado, os direitos do índio, do posseiro, do pequeno agricultor. É nesse sentido que a cerca não fecha, abre: abre a consciência para o direito lesado, abre a luta pelos direitos, abre a luta contra o direito edificado sobre a injustiça. E mostra não só a injustiça do cercamento, da usurpação, da má e errada distribuição da riqueza construída sobre a fome do pobre; mas também a injustiça da justiça, das instituições do Estado, das leis. A foice que roça, que limpa, que faz a juquira, também tem aberto a cerca. A cerca cria o sentido político do corte do arame farpado e do direito implícito que ele carrega (MARTINS, 1986, 11).

Assim como a cerca abre, revelando o direito usurpado, também a educação bancária acaba por revelar que há saberes e conhecimentos populares que, apesar de vividos e valorizados pelos coletivos, não são reconhecidos pela escola, demonstrando o caráter elitista e excludente dessa instituição.

No Brasil, foram os Movimentos Sociais que denunciaram essa realidade, reivindicando o direito a ter direitos, entre eles, o direito a uma educação que respeite e valorize seus saberes.

A BUSCA POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL: ELEMENTOS DE UMA EXPERIÊNCIA

A conquista do direito à educação escolar reclamado pelos Movimentos Sociais, a partir da sua afirmação enquanto sujeitos de direitos, provoca uma mudança de paradigma que tensiona as concepções coloniais relativamente a esses atores e seus saberes. Mais do que isso, reivindica reconfigurações da escola a partir de suas identidades. Desse modo, em consonância à Gluz (2013), esses atores “ponen en cuestión lo público de las políticas educativas y lo público en el espacio de la escuela, y sostienen expresar lo público en tanto representan los intereses de los sectores populares y establecen mecanismos de debate y decisión colectivos” (p.86).

Diante dessa constatação, as discussões empreendidas por Arroyo (2004; 2012; 2014; 2015), reiteradamente provocam a escola pública a dialogar com os movimentos sociais no que diz respeito, entre outros aspectos, à ruptura dos olhares coloniais sobre os sujeitos a que se destina. Condição, em seu entendimento, para que esta instituição assuma uma função emancipatória em detrimento da colonialidade de que, tradicionalmente, tem se ocupado, conforme anteriormente discutido. Essa ruptura pode levar, na perspectiva do grupo Colonialidade/Modernidade, a uma pedagogia decolonial.

Catherine Walsh (2010, p.585) propõe que, ainda que não haja um estado nulo de colonialidade, é possível sim identificar práticas pedagógicas orientadas por “posturas, posicionamientos, horizontes y proyectos de resistir, transgredir, intervir, in-surgir, crear y incidir” e, portanto, decoloniais. Tratam-se de

[...] metodologias produzidas em contextos de luta, marginalização, resistência e que Adolfo Albán tem chamado de ‘re-existência’; pedagogias como práticas insurgentes que fraturam a modernidade / colonialidade e tornam possível outras maneiras de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir e viver-com (WALSH, 2013, p.19).

Nos termos de Palermo (2014), entre outros aspectos, são características das pedagogias decoloniais o reconhecimento dos sujeitos individuais ou coletivos silenciados para além dos discursos produzidos sobre eles, ou seja, a partir de suas próprias narrativas e culturas; bem como a afirmação do direito à diferença, de modo que seja ela, e não a homogeneização, a matriz orientadora das práticas pedagógicas.

Nessa perspectiva, diferentemente da construção colonial a que a história de nossa educação formal responde, uma educação que se pretenda tensionadora dos discursos de subalternização deve estar enraizada no território onde se localiza. E, portanto, questionando o universalismo e a própria neutralidade dessa instituição.

É nesta perspectiva que Paulo Freire propõe a sua Pedagogia do Oprimido. Um dos grandes tensionamentos trazidos pelo autor à instituição escolar diz respeito justamente à forma de olhar os educandos. Freire nos revela que esses educandos são sujeitos socioculturais e que trazem em sua bagagem ricos conhecimentos, muitas vezes invisíveis para a escola. Também nos ensina que:

[...] existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (...) Mas, se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens [...] (FREIRE, 2005, p. 90)

Com essa reflexão, ele nos revela que educação é sinônimo de formação humana, indicando que o processo educativo é muito mais amplo que o processo de escolarização. Com essa formulação, abre-se uma porta para que possamos olhar para além dos muros da escola, chegando até o território onde está localizada. E nesse território, é possível sentir a pulsação de saberes vividos, saberes de experiência feitos, no dizer de Paulo Freire. Saberes de homens e mulheres simples, do povo, que carregam tradições que foram passadas de geração em geração, muitas vezes através da oralidade e à revelia da escola. São pessoas como Ciço, camponês mineiro, que numa entrevista dada ao antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1980, p.8) deixa claro que educação não se restringe à escolarização:

“Inda ontem o senhor me perguntava da Folia de Santos Reis que a gente vimos em Caldas: ‘Ciço, como é que um menino aprende o cantorio? As respostas?’ Pois o senhor mesmo viu o costume. Eu precisei lhe ensinar? Menino tão ali, vai vendo um, outro, acompanha o pai, um tio. Olha, aprende. Tem inclinação prum cantorio? Prum instrumento? Canta, tá aprendendo; pega, toca, tá aprendendo. Toca uma caixa (tambor da Folia de Reis), tá aprendendo a caixa; faz um tipe (tipo de voz do cantorio), tá aprendendo cantar. Vai assim, no ato, no seguir do acontecido.Agora, nisso tudo tem uma educação dentro, não tem? Pode não ter um estudo. Um tipo dum estudo pode ser que não tenha. Mas se ela não sabia e ficou sabendo é porque no acontecido tinha uma lição escondida. Não é uma escola; não tem um professor assim na frente, com o nome ‘professor’. Não tem... Você vai juntando, vai juntando e no fim dá o saber do roceiro, que é um tudo que a gente precisa pra viver a vida conforme Deus é servido.”

Como disse Ciço, nas manifestações culturais populares, no trabalho feito, na conversa com a família há uma educação, ainda que não haja um estudo. A Educação para a Liberdade, ao reconhecer e legitimar esses sujeitos e seus saberes, abre espaço para uma prática dialógica. O diálogo, assim, é a base da pedagogia proposta por Paulo Freire, em contraposição ao monólogo presente na educação bancária, como ele mesmo revela:

O diálogo é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a razão por que não é possível o diálogo entre os que querem a pronúncia do mundo e os que não a querem; entre os que negam aos demais o direito de dizer a palavra e os que se acham negados deste direito. É preciso primeiro que, os que assim se encontram negados no direito primordial de dizer a palavra, reconquistem esse direito, proibindo que este assalto desumanizante continue (FREIRE, 2005, p.91).

Recuperar o direito de dizer sua palavra, de pronunciar o mundo, tem sido a luta travada pelos Movimentos Sociais brasileiros ao longo de nossa história. Lutando por serem reconhecidos como sujeitos de direito, os coletivos rompem com as pautas coloniais que lhes são impostas, desafiando poderes e transformando realidades. Nesse processo de luta, eles se educam e educam toda a sociedade. Travam uma luta contra toda forma de opressão: exploração econômica, racismo, homofobia, misoginia, revelando o caráter opressor e excludente da sociedade e questionando os pilares que a sustentam, como o patriarcado e a propriedade privada. As recentes ocupações, urbanas e no campo, apresentam um novo olhar sobre a propriedade da terra, fazendo-nos entender que terra é para quem trabalha nela e não para quem faz especulações financeiras com ela. Mas os Movimentos Sociais não se contentam apenas em denunciar. Eles também anunciam que outro mundo é possível, com práticas solidárias e emancipatórias como as vilas agroecológicas nos assentamentos e as creches e escolas comunitárias em ocupações.

No campo da educação escolar, os Movimentos começam a ‘ocupar’ escolas, tensionando seus currículos padronizados, suas práticas hierarquizadas, sua disciplina autoritária. Recolocam o debate da humanização das práticas e propõem novas formas de construir a instituição escolar, como espaço de cultura viva ligado ao território e controlado pelos sujeitos que dela fazem parte.

É isto que nos revela a experiência de uma creche comunitária, vinculada a um Movimento Social de luta por moradia, protagonista de uma ocupação urbana em Belo Horizonte, MG, e cujos dados a ela relativos, apresentados neste texto, foram construídos no âmbito de uma pesquisa de doutorado, atualmente em fase de finalização.7

Em diálogo com as discussões que vimos realizando neste texto, compreendemos que a história desta creche é sinal de uma educação decolonial, nas palavras de Quijano (2005; 2014), ou como prática de liberdade, segundo Freire (2005).

Conforme explicita Paula, uma das coordenadoras do Movimento Social a que a ocupação urbana e, portanto, a Creche se vinculam, a iniciativa surge enquanto resposta a uma demanda real das moradoras da ocupação, ambiente majoritariamente feminino (Silva et. al, 2014), que é a inexistência de espaços apropriados para o cuidado e educação das crianças, impossibilitando o trabalho de suas mães na construção da comunidade. Trata-se, portanto, de uma ‘solução’ concreta à sobrevivência da comunidade, mas, também conforme fica implícito no relato apresentado a seguir, de uma prática antipatriarcal que denuncia a injustiça de as mulheres terem suas ações limitadas naquele ambiente em função dos filhos.

“A creche nasce no início, bem no começo mesmo. Nos primeiros dias o Conselho Tutelar chegou na Ocupação e disse que se a gente não tivesse um abrigo seguro para colocar as crianças, eles iam voltar e levar todas as crianças embora. Isso significava acabar com a Ocupação, pois as mães não iam deixar levar os filhos embora, elas iriam preferir desistir da luta, grande parte. (...) Agora a necessidade dela na lona... são duas coisas que acontecem simultâneas, as mulheres ficavam só na cozinha, só na cozinha. E aí você vai pegar nome de mulher: ‘eu não posso ficar na segurança porque eu tenho que cuidar do meu filho. Posso ficar na cozinha, porque na cozinha eu posso ficar com ele e cozinhando’. Então a gente falou: ‘não, mulher tem que fazer de tudo! Vamos construir uma creche, a gente se reveza, a gente fica cada uma com o filho da outra e a gente vai ficar nas outras coisas’. Então foi essa luta e o conselho tutelar, a pressão do conselho tutelar. E aí a gente levanta um cômodo de alvenaria, cria um rodízio entre as mulheres e a creche é o nosso primeiro cômodo de alvenaria e ele vira um polo de resistência para além de abrigar as crianças, não é?!” (Entrevista com Paula, 30 anos, moradora da Ocupação Marielle Franco, em 22/11/17).8

A creche constitui-se ainda em um ambiente de resistência. O espaço foi coletivamente construído em resposta à tentativa de intervenção do Estado por meio do Conselho Tutelar que, em princípio, tem relação com a promoção da segurança das crianças, mas que, na leitura das moradoras, tratou-se também de uma tentativa de desarticulação do Movimento Social:

“Quando a gente entrou, que a gente fez a creche de lona, o Conselho Tutelar veio, e na época, o rapaz que era representante do Conselho Tutelar, ele veio e disse assim: ‘Olha, tem crianças aqui, que eu venho acompanhando e estão melhor aqui do que onde moravam’ - por causa da preocupação da gente que sempre foi da alimentação para os meninos, manter eles limpos, muito bem cuidados, mostra para a criança que ela é pobre, mas ela tem amor e não precisa faltar nada. (...) Mas só que, como eles queriam despejar a gente, da noite para o dia, esse cara tomou uma posição diferente, fez até um relatório, tentando prejudicar a gente. Aí, o que é que eles falaram? Que para não recolher as crianças, a gente tinha que construir um cômodo de alvenaria, aí, eles deram um tempo para construir esse cômodo. Só, que eles acharam, que a gente não ia ser capaz. E a gente construiu...” (Entrevista com Cíntia, 43 anos, moradora da Ocupação Marielle Franco, em 17/01/2018).

A dimensão da resistência é também evidenciada na medida em que aquele espaço se constitui, literal ou metaforicamente, em um abrigo, não apenas para as crianças atendidas, como para as suas famílias nos mais diversos momentos de construção da ocupação.

“[...] Então, chovia, a gente perdia a lona, foi época de chuva... chovia à noite, de madrugada… As famílias iam todas para creche. A gente ficava todos na creche até a chuva passar, pra correr com os trem tudo no dia seguinte. Era onde aconteciam as assembleias, as reuniões…” (Entrevista com Paula, 30 anos, moradora da Ocupação Marielle Franco, em 22/11/17).

A centralidade, mais do que isso, a organicidade da creche naquele contexto pode ser ilustrada pela própria liberdade de circulação da comunidade em seu interior. Fora do horário de atendimento das crianças, o local assume o status de ponto de encontro e de espaço de referência no desenvolvimento de atividades, especialmente daquelas vinculadas ao Movimento Social. Aos sábados pela manhã, por exemplo, é ali que se realiza o bazar para arrecadação de verbas para o funcionamento da Creche. Nos períodos da noite ou aos fins de semana, é em seu interior que se realizam reuniões e festividades. Um formato que é potente na medida em que representa uma educação quase sem muros e, portanto, de forma dialogada com o entorno, possibilitando uma proximidade quase visceral com a comunidade.

Além de constituir-se inspiração para a própria criação da Creche e orientação para formulação dos critérios de matrícula dos estudantes, o combate ao sexismo constitui um dos motes da educação das crianças naquele contexto. Não há, por exemplo, em seu espaço físico qualquer referência a cores ou personagens tradicionalmente vinculados a meninas ou meninos. Ademais, os brinquedos são coletivos não havendo qualquer cerceamento por parte das educadoras, no que diz respeito às questões de gênero, quanto às escolhas feitas pelas crianças.

“A gente não alfabetiza os meninos, mas a gente tenta ensinar do jeito que a gente acha que ensina. Então a gente ensina que não pode bater, a gente ensina que não pode xingar o colega, ensina a falar muito obrigado e a gente tenta sempre quebrar umas questões de padrão de gênero, sabe, tipo carrinho pro menino, boneca pra menina, isso a gente evita ao máximo.” (Entrevista com Laura, 23 anos, moradora da Ocupação Marielle Franco, em 11/11/17)

A educação infantil como direito é, sem dúvida, um valor naquele ambiente. Mães e educadoras reivindicam, junto ao poder público, a seguridade de acesso às escolas de Educação Infantil. Em maio de 2018, por exemplo, junto a um Movimento de mulheres, realizou-se a ocupação da Secretaria Municipal de Belo Horizonte reivindicando a reversão da medida adotada pelo município que reduzia a jornada escolar das crianças pequenas para meio período.9

Por outro lado, embora, em princípio, se constituísse em uma solução para muitas questões de ordem financeira, a municipalização da Creche, isto é, a sua vinculação ao Estado não era uma proposta positivamente avaliada naquele contexto. A partir da municipalização, as educadoras e crianças atendidas seriam selecionadas segundo os homogêneos e universais critérios do município, o que significaria a perda de sua autonomia pedagógica, o que levou o coletivo a rejeitar veementemente esta possibilidade.

A existência da Creche e a sua resistência a se municipalizar sinaliza para uma crítica à efetividade de uma educação universal, desterritorializada, colonial. O esforço cotidiano do grupo de mulheres envolvidos com a creche e do próprio Movimento Social a que se vincula é justamente o oposto, o de descolonizar a educação destas crianças, da construção de uma educação como prática de liberdade. Com as educadoras escolhidas pela comunidade e a participação dos moradores no cotidiano da creche, essa experiência coloca em xeque um modelo de escola pública que deveria ser igual para todos, mas que acaba por reproduzir e ocultar as desigualdades presentes em nossa sociedade. Em contrapartida, nos mostra que outra educação é possível, mais participativa, mais democrática mais sintonizada com o território.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das reflexões aqui realizadas, podemos compreender o processo histórico vivido por países latino-americanos, como o Brasil, que, durante longos anos, foram colônia de países europeus. O resultado desse processo foi a naturalização das relações de opressão, a partir da construção de uma dualidade entre barbárie e civilização. Como nos coloca Quijano:

O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e da sua história, isto é, ‘como o novo e ao mesmo tempo mais avançado da espécie’. (...) Se o conceito de modernidade refere-se única e fundamentalmente às ideias de novidade, do avançado, do racional-científico, laico, secular, que não as ideias e experiências, normalmente associadas a esse conceito, não cabe dúvida de que é necessário admitir que é um fenômeno possível em todas as culturas e em todas as épocas históricas. (...) Nesse sentido, a pretensão eurocêntrica de ser a exclusiva produtora e protagonista da modernidade, e que toda modernização de populações não europeias é, portanto, uma europeização, é uma pretensão eurocentrista e, além de tudo, provinciana. (QUIJANO, 2005, p.115-116)

Assim, foi possível a construção de uma narrativa que justificava a desigualdade não pela escravidão e opressão vivida, mas pelo simples fato de não serem europeus e, portanto, inferiores. E assim, na perspectiva colonizadora, a escola Moderna surge com a função de ‘educar’ os primitivos, ‘resgatando-os’ da sua condição de barbárie e conduzindo-os para a civilização, ou seja, para a cultura europeia. Uma escola que, sob o paradigma universalista inclusivo, acabou por tornar invisível saberes e expressões culturais, provocando o fracasso de estudantes que têm rosto, cor, raça: a grande maioria das crianças e jovens que fracassam na escola são pobres, negros, índios, camponeses, moradores de regiões menos favorecidas. Dessa forma, o fracasso escolar é justificado pela condição social e cultural dos sujeitos, e, portanto, justificado pela pobreza, os formatos e origens familiares e a falta de estímulo do meio cultural.

Esta narrativa é denunciada por Paulo Freire, quando afirma que a educação não é neutra, e também por Aníbal Quijano, quando nos mostra que o fim do período colonial não significou o fim do colonialismo, já que seus traços persistiram até os dias de hoje. Mas esses mesmos autores nos mostraram a força desses coletivos que, não aceitando o lugar de subalternização a eles destinados, ocuparam espaços públicos, construíram uma outra narrativa: libertadora, emancipatória, decolonial. Nesses contextos, portanto, a história única contada sob a ótica dos dominadores vai perdendo espaço para as múltiplas histórias de resistência negra, indígena, camponesa, construindo uma Pedagogia do Oprimido. Trata-se de, como afirma Arroyo (2012, p. 43)

[...] ocupar os espaços, os territórios, as instituições como escolas, universidades os ‘latifúndios do saber’ é uma pedagogia formadora que se contrapõe à histórica exclusão desses espaços, instituições de produção do conhecimento e da existência.

Experiências como a da Creche da Ocupação, entre outras, passam, então, a garantir o direito de crianças e jovens de camadas populares a conhecerem suas próprias histórias, de manifestarem suas tradições, de valorizarem sua cultura, de se descolonizarem e, portanto, libertarem-se.

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1 Há, entre os autores anticoloniais, especificamente aqueles vinculados ao pensamento decolonial e as epistemologias do sul um entendimento distinto sobre a permanência da herança colonial. Enquanto os primeiros formulam o conceito de colonialidade, os últimos, especificamente, Boaventura de Souza Santos (2010) defende que atualmente vive-se ainda o colonialismo, ainda que sob formatos distintos.

2 Durante o mesmo período em que se consolidava a dominação colonial europeia, foi se constituindo o complexo cultural conhecido como a modernidade-racionalidade europeia, que se estabeleceu como um paradigma universal do conhecimento e da relação entre humanidade e o resto do mundo. (QUIJANO, 2014).

3 Esse é, sem dúvida, o momento inicial do que, desde o século XVII, se constitui no mito fundante da modernidade, a ideia de um original estado da natureza no processo da espécie e de uma escala de desenvolvimento histórico que vai desde o primitivo (o mais próximo da natureza que incluía os negros, antes de tudo, e os índios) até o mais ‘civilizado” (que, claro, era Europa), passando pelo “Oriente”. (Índia, China). (2000, p.7).

4 Se refere à dimensão ontológica da colonialidade do poder, isto é, a experiência vivida do sistema mundo moderno/colonial no qual se inferioriza, desumanizando total ou parcialmente determinadas populações, aparecendo outras como a expressão mesma da humanidade. (Ibidem, p.155).

5 Na dimensão epistêmica da colonialidade do poder, expressa no estabelecimento de hierarquizações das modalidades de produção de conhecimento, nas quais a filosofia y as ciências ocidentais operam como os paradigmas que subalternizam outras modalidades de conhecimento. (Ibidem, p.136).

6 Da mesma maneira, não obstante ao fato de o colonialismo político ser eliminado, a relação entre a cultura europeia, chamada também ‘ocidental’, e as outras, segue sendo uma relação de dominação colonial. Não se trata somente de uma subordinação das outras culturas à europeia, numa relação exterior. Se trata de uma colonização das outras culturas, ainda que sem dúvida, em diferente intensidade e profundidade, segundo os casos. Consiste, em primeiro lugar, em uma colonização do imaginário dos dominados. Ou seja, atua na interioridade desse imaginário. Em certa medida, é parte dele. Isso foi produto, no início, de uma sistemática repressão não só de crenças específicas, ideias, imagens, símbolos ou conhecimentos que não serviram para a dominação colonial global. A repressão recaiu, em primeiro lugar, sobre os modos de conhecer, de produzir conhecimento, de produzir perspectivas, imagens e sistemas de imagens, símbolos e modos de significação; sobre os recursos, padrões e instrumentos de expressão formalizada e objetivada, intelectual ou visual. Foi seguida pela imposição do uso dos próprios padrões de expressão dos dominantes, assim como suas crenças e imagens referidas ao sobrenatural, as quais serviram não somente para impedir a produção cultural dos dominados, mas também como meios muito eficazes de controle social e cultural, quando a repressão imediata deixou de ser constante e sistemática.

7 Os dados apresentados neste texto compõem a pesquisa de doutorado: Educação e Pobreza: concepções e práticas (anti)coloniais a qual vem sendo desenvolvida desde o ano de 2016 no âmbito do Programa de Pós-Graduação: Educação e Inclusão Social da Faculdade de Educação da UFMG.

8 A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição a que se vincula e, conforme assegurado pelo Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), todos os nomes constantes neste arquivo são fictícios.

9 De acordo com a Lei 12.796/2013, a partir do ano de 2016, há a obrigatoriedade do atendimento de crianças com idades a partir de 4 anos no âmbito da Educação Infantil. Com vistas ao cumprimento da legislação, a Prefeitura de Belo Horizonte adotou como estratégia para ampliação do número de vagas o não atendimento das crianças de 4 a 6 anos em horário integral, decisão que resultou em um desafio para a organização das famílias.

Recebido: 14 de Setembro de 2018; Aceito: 05 de Maio de 2019

Contato: Rua Teixeira Mendes, 25, ap. 104, Bairro Santo Antônio, Belo Horizonte|MG|Brasil, CEP 30.380-170

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Professora associada do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação/FaE da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Pedagogia pela Universidade de Valencia - Espanha. Coordenadora do Grupo TEIA (Territórios, Educação Integral e CidadaniA) da FaE/UFMG. E-mail:<lualvarezleite@gmail.com>.

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Pedagoga, Mestre em Educação. Professora de Educação Básica - Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. E-mail:<bbramalho@gmail.com>.

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Licenciado em Geografia, Mestre em Educação. Professor de Educação Básica - Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais. E-mail:<pfelipegeo@gmail.com>.

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