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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.35  Belo Horizonte jan./dez 2019  Epub 15-Jun-2019

https://doi.org/10.1590/0102-4698188848 

Artigos

NARRATIVAS E PRÁTICAS DE GOVERNAMENTALIDADE: A PERSPECTIVA DO DOCENTE SOBRE O ALUNO COM DEFICIÊNCIA

HELENA VENITES SARDAGNA1  *
http://orcid.org/0000-0002-6175-9542

TATIANE DE FRAGA FROZZA1  **
http://orcid.org/0000-0002-9174-0762

1 Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, Osório, RS, Brasil.


RESUMO:

Este trabalho analisa as narrativas de docentes originadas em uma escola pública da região Litoral Norte do Rio Grande do Sul, sobre processos de inclusão escolar de alunos com deficiência. Empregando o conceito foucaultiano de governamentalidade como ferramenta metodológica, questionou-se como está sendo produzido o sujeito aluno com deficiência, a partir das narrativas de nove docentes atuantes em sala de aula, no Ensino fundamental, e que relações podem ser estabelecidas com as técnicas de condução desses sujeitos, enquanto práticas de governamentalidade. Foram analisados formulários de encaminhamento dos alunos com deficiência ao atendimento educacional especializado (AEE); instrumentos avaliativos (pareceres descritivos) dos alunos com deficiência matriculados na instituição pesquisada, e entrevistas semiestruturadas com os docentes daqueles alunos. Evidencia-se a efetivação das ações inclusivas na escola, no fortalecimento do imperativo da inclusão, reforçando a instituição escolar que opera como uma maquinaria a serviço do Estado governamentalizado, disseminando condutas almejadas por seus docentes.

Palavras-chave: Atendimento educacional especializado; Narrativas; Governamentalidade

ABSTRACT:

This article analyzes the narratives of educators from a public school in the North Coast region of Rio Grande do Sul about the school inclusion processes of students with disabilities. Employing the Foucauldian concept of governmentality as an analytical tool, the study questioned how students with disabilities as subjects are being produced. The study was based on the narratives of nine educators working in a classroom in a primary school. The narratives are pertinent to the relations that can be established from the management techniques of these subjects in practices of governmentality. The following documents were analyzed: the referral forms recommending students with disabilities be moved to the specialized educational service (AEE), evaluation instruments (descriptive opinions) of students with disabilities enrolled in the research institution, and semi-structured interviews with the teachers of those students. The results demonstrate the effectiveness of inclusive actions in schools during the strengthening of the imperative of inclusion, reinforcing the school institution that operates as a machinery to the governmentalized state, and disseminating behaviors sought by its teachers.

Keywords: Specialized educational attendance; Narratives; Governmentality

INTRODUÇÃO

De algumas décadas para cá, nota-se que a inclusão escolar tem sido um imperativo nas políticas públicas educacionais brasileiras, com a justificativa de que assim se está assegurando o direito igualitário da escola para todos. O Plano Nacional da Educação (PNE), que estabelece as diretrizes da educação brasileira para a década de 2014-2024, apresenta na sua Meta 4 a seguinte diretriz:

Universalizar, para a população de quatro a dezessete anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados. (BRASIL, 2014, p. 55)

O plano acima citado demonstra a preocupação dos dispositivos do Estado governamentalizado com a escolarização da sua população de alunos com deficiência. Compreende-se que o imperativo da inclusão e as mudanças pelas quais passou a concepção da pessoa com deficiência não são situações naturais de evolução da sociedade, mas algo pensado e estabelecido por meio de táticas de governamento e condução de condutas.

Conforme Mazzota (2011), a preocupação com a educação de pessoas com deficiência surge primeiramente na Europa, no século XVIII, no contexto da escola obrigatória - momento em que a sociedade moderna estava no auge da busca pela padronização das massas. Segundo Sardagna (2013), ao se criarem padrões para que todos acompanhem essas escolas, emerge o problema da educação das pessoas com deficiência, sendo preciso criar serviços e instituições para estas que até então eram alvo somente do olhar médico. Esses acontecimentos contextualizam o surgimento da educação especial.

No contexto histórico do início do século XX, localizam-se as pedagogias corretivas (VARELA, 1996) - que muito lembram o indivíduo a corrigir, de Foucault (2002) -, baseadas na correção do anormal e apoiadas pela educação obrigatória para os indivíduos com deficiência. A ciência médica e suas especialidades, juntamente com a pedagogia da época, estruturariam a correção, de maneira institucionalizada (escola e família), aos sujeitos anormais.

O anormal - o outro da alteridade deficiente, como ressalta Skliar (2003) - foi persuadido, desde que deixou de ser morto ou negado pela sociedade da Idade Média, a deixar de ser esse outro, sendo manejado para que se aproximasse ao máximo da normalidade/mesmidade, sofrendo as intervenções da norma que o identificava, classificava, controlava e lhe atribuía o seu lugar devido. Esses acontecimentos marcaram a identidade deficiente, que se mostra incômoda, faltante, curiosa e negativa.

Além disso, tais acontecimentos também foram criando as condições para que a invenção da deficiência e suas práticas fossem pouco a pouco se estabelecendo. Nesse contexto é que se constituem preocupações do Estado em provocar modificações sutis na forma de conduzir as massas, (re)conduzindo a maneira como é percebida a pessoa com deficiência ao longo do tempo. Foucault (2001) aponta que, entre os séculos XVI e XVIII, percebe-se uma nova maneira de governar a população, não só pontuada na questão religiosa ou monárquica, mas em algo mais ardiloso e estruturado (racionalidade a qual nomeou “a arte de governar”).

Segundo Foucault (2001), a arte de governar e a forma como é conduzida a população a fazer o que se quer que faça levam-nos a compreender as táticas e estratégias que são utilizadas para tal finalidade. A governamentalidade é explicada por Foucault (2001) como sendo uma forma de poder exercida por diferentes aparelhos do Estado (por exemplo, instituições e escolas), que visam à economia política e utilizam como estratégia de governo os dispositivos de segurança.

O interesse na população - em controlá-la, vigiá-la e antever as possíveis intempéries que poderiam ocorrer, assim como intervir para que determinados fenômenos sociais fossem controlados - foi denominado por Foucault (2008) como biopolítica: a tecnologia do poder governamentalizado que aparece no século XVIII, apresentando foco na administração dos corpos e na gestão da vida humana.

A emergência da inclusão escolar no Brasil é um marco na década de 1990, advinda de políticas públicas que, primeiramente, aparecem em um âmbito internacional e passam a ser um imperativo também em nível brasileiro (BRASIL, 1996). Mazzota (2011) destaca que a Lei nº 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, significava “um importante caminho” no tocante aos direitos dos alunos com deficiência, visto que o que existia até então estava em “declarações” vagas, sem ser exercida de fato a legalidade desses direitos.

Incluir indivíduos que até então se encontravam à margem de inúmeras tentativas de integração escolar não ocorre de forma natural, tampouco é resultado do olhar benevolente daqueles que se usam da lei como um dispositivo de governamento.2 É um processo político que resulta de lutas e de tensionamentos por parte de grupos de representações sociais, que defendem os direitos da pessoa com deficiência, mas também por órgãos de controle internacionais, por meio de declarações e convenções mundiais.

São essas práticas que vão, pouco a pouco, preparar as condições para que a inclusão escolar da população com deficiência apareça como um imperativo nas políticas públicas educacionais da contemporaneidade, trazendo como justificativas a seguridade do direito igualitário da escola para todos, conduzindo as práticas e relações humanas.

Associadas a esses imperativos tratados pelas políticas públicas educacionais, os quais surgem em forma de decretos e leis de inclusão escolar, estão narrativas que percebem a inclusão benevolente. Foucault (2001, p. 284) esclarece que “no caso da teoria do governo não se trata de impor uma lei aos homens, mas de dispor as coisas, isto é, utilizar mais táticas do que leis, ou utilizar ao máximo as leis como táticas”. Envolvidos nos dispositivos da governamentalidade estão os sujeitos com deficiência para os quais se dirigem as políticas de inclusão, que de modo algum podem ficar fora do jogo do Estado para manter o controle sobre os indivíduos e a economia.

Nesse contexto, é pertinente o conceito foucaultiano de governamentalidade como ferramenta que analisa as narrativas dos educadores de uma instituição pública de educação básica, localizada em um município de pequeno porte na região Litoral Norte do Rio Grande do Sul, no cruzamento do campo conceitual da governamentalidade e das narrativas.

Nessa perspectiva, buscou-se compreender como está sendo produzido o sujeito aluno com deficiência, a partir das narrativas dos educadores atuantes em sala de aula, e que relações podem ser estabelecidas com as técnicas de controle de conduta desses sujeitos, enquanto práticas de governamentalidade.

Como materiais de análise, o estudo elencou: a) os formulários de encaminhamento; b) os instrumentos avaliativos (pareceres descritivos) dos alunos com deficiência atendidos no espaço denominado Sala de Recursos Multifuncional (SRM), onde é ofertado o AEE; c) entrevistas semiestruturadas com os mesmos professores que encaminharam seus alunos com deficiência para o AEE. Para tal, elaborou-se um roteiro de entrevista que auxiliou na condução dessas interlocuções.

Os dados gerados a partir dos documentos e das entrevistas foram denominados de narrativas, entendidas não como verdades, mas como forma de expressão de experiências vividas pelos docentes participantes da pesquisa. Conforme Nicolazzi (2004), a narrativa não se conclui em um ponto, mas indica direções.

Com base nas narrativas dos educadores, foi possível conhecer os movimentos e as concepções que foram compondo a compreensão do sujeito aluno com deficiência, a constituição sob a lógica do imperativo da inclusão escolar, assim como as práticas de governamentalidade evidenciadas nesses movimentos. Ao considerar narrativas, leva-se em conta que:

(...) a narrativa trata daquilo que jamais pode ser verificado, calculado e alocado em gráficos estatísticos - que é tanto impossível de ser objeto de uma constatação quanto emanar de um eu que se respeita e se declara demais. Narra-se, assim, aquilo que é impossível de se objetivar. (MIZOGUCHI, 2015, p. 6)

Foram entrevistados nove educadores que atuaram em sala de aula com alunos com deficiência, sendo três educadores de alunos que estavam nos anos iniciais do ensino fundamental e seis que estavam atuando com turmas dos anos finais. O caráter da entrevista semiestruturada foca-se na possibilidade de questionar, dentro de uma estrutura de perguntas que não sejam fixas, dando ao pesquisador, segundo Marconi e Lakatos (2002), liberdade de sondar as diferentes razões emitidas pelo entrevistado.

A instituição participante na pesquisa está localizada em um bairro que apresenta população de baixa renda, composta basicamente por moradores que trabalham no comércio ou na construção civil. A instituição possui 469 alunos matriculados, entre os quais nove alunos com deficiência e cinco sob investigação. No quadro de educadores efetivos e contratados constam 34, divididos nos anos iniciais e nos anos finais do ensino fundamental.

Buscou-se contextualizar e analisar as práticas identificadas pelas narrativas, relacionando-as ao contexto situado no campo biopolítico, no qual os processos inclusivos são entendidos como exercício de poder que funcionam como estratégias de governar.

O CAMPO CONCEITUAL: PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

O AEE como serviço de apoio à inclusão

Acompanhando os dispositivos legais que asseguram o acesso dos alunos com deficiência à rede regular de ensino, encontramos um campo repleto de decretos, pareceres, notas técnicas e leis que têm a finalidade de regulamentar e orientar as redes de ensino quanto ao atendimento educacional especializado. Este deve ser ofertado aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, dentro do âmbito escolar, nas Salas de Recursos Multifuncionais.

A política inclusiva, inserida num contexto de imperativo da inclusão escolar, regula a população de alunos com deficiência, que estão ou não na rede regular de ensino, e administra a posição ocupada por esses alunos, configurando-se em movimentos de gestão da vida humana, como na perspectiva da biopolítica.

Compreende-se que as leis da política inclusiva estão relacionadas aos dispositivos que regulam a vida e as práticas dentro das escolas, o que, por sua vez, acaba por regular a população de alunos com deficiência de modo geral. A biopolítica centra-se na população e na regulação da vida e dos pequenos corpos - corpos individuais e maleáveis, passíveis de regulação disciplinar por meio do biopoder (FOUCAULT, 2008).

O poder sobre os corpos assume duas dimensões que, em um primeiro momento (no século XVIII), aparecem apartadas, como indica Foucault (1999). Desse modo, o biopoder surge primeiramente como técnica de poder disciplinar investido no corpo dos sujeitos; num segundo momento, o interesse volta-se para o corpo da população e as possíveis regulações da vida global.

O conceito foucaultiano da biopolítica também é importante para relacionar as políticas inclusivas, enquanto práticas sob o imperativo da inclusão escolar, compartilhando com Lopes (2009, p. 111) que “a inclusão, via políticas de inclusão escolares, sociais, assistenciais e de trabalho, funcionam como um dispositivo biopolítico a serviço da segurança das populações”.

Compreendendo as práticas de inclusão escolar como um dispositivo biopolítico de segurança que regula a população, em que as leis nessa lógica são percebidas como mecanismos de um dispositivo, torna-se relevante trazer o conceito de prática segundo Foucault, uma vez que esse vocábulo apresenta diferentes perspectivas de entendimento. As práticas regulam e organizam o que os sujeitos são e fazem, inseridos no momento histórico que os constitui, exercendo as formas de racionalidade do que fazem.

Conforme Castro (2009), o conceito de prática evidenciado nas obras de Foucault se refere ao conjunto de regras - a racionalidade dada num determinado tempo e espaço - que definem as condições de exercício do que se quer enunciar, criando mecanismos necessários para nos produzir e conduzir nossas condutas.

A legislação, enquanto dispositivo que assegura as práticas de inclusão, possibilita que se evidenciem as diretrizes aos sistemas de ensino, especialmente, no caso do presente estudo, o serviço de atendimento educacional especializado, compreendido como um apoio à inclusão. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, enfatiza:

O atendimento educacional especializado identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. (BRASIL, 2008, p. 16)

Os dispositivos legais, a partir dessa Política, são formulados e reformulados com o intuito de garantir o acesso e a permanência dos alunos com deficiência, transtorno global do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no ensino regular, assim como a sua frequência no turno inverso à escolarização, para participar do atendimento educacional especializado. Conforme o Artigo 1º das Diretrizes Operacionais para o AEE, previstas na Resolução 4/2009:

[...] os sistemas de ensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos. (BRASIL, 2009)

A referida Resolução ainda orienta, no seu Artigo 5º, que o AEE deve ser ofertado, prioritariamente, na Sala de Recursos Multifuncional da própria escola ou em outra escola de ensino regular, no turno inverso à escolarização, não substituindo as classes regulares (BRASIL, 2009). Seguindo a cronologia da emergência da inclusão escolar e pontuando o AEE como um serviço de apoio dentro da instituição escolar, temos ainda o Decreto 7611/2011, que dispõe sobre o atendimento educacional especializado, preconizando, no Artigo 1º, incisos V e VI:

(...) V - oferta de apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar a sua efetiva educação;

VI - adoção de medidas de apoio individualizadas e efetivas, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena. (BRASIL, 2011)

Ainda analisando o Decreto 7611/2011, o Artigo 2º determina que o AEE deva estar voltado para a diminuição das barreiras impostas, dentro das instituições de ensino regular, à escolarização dos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Porém, para que a captura desses alunos com deficiência pelo AEE se efetive, faz-se necessário o seu encaminhamento pelo docente que está em sala de aula. Essa tática se evidencia na legislação, quando analisamos as atribuições do educador do atendimento educacional especializado.

Art. 13. São atribuições do professor do Atendimento Educacional Especializado: I - identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recursos pedagógicos, de acessibilidade e estratégias considerando as necessidades específicas dos alunos público-alvo da Educação Especial; II - elaborar e executar plano de Atendimento Educacional Especializado, avaliando a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade; III - organizar o tipo e o número de atendimentos aos alunos na sala de recursos multifuncionais; IV - acompanhar a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade na sala de aula comum do ensino regular, bem como em outros ambientes da escola; V - estabelecer parcerias com as áreas intersetoriais na elaboração de estratégias e na disponibilização de recursos de acessibilidade; VI - orientar professores e famílias sobre os recursos pedagógicos e de acessibilidade utilizados pelo aluno; VII - ensinar e usar a tecnologia assistiva de forma a ampliar habilidades funcionais dos alunos, promovendo autonomia e participação; VIII - estabelecer articulação com os professores da sala de aula comum, visando à disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos e de acessibilidade e das estratégias que promovem a participação dos alunos nas atividades escolares (BRASIL, 2009, p. 3)

A identificação dos alunos com deficiência pelo docente do atendimento educacional especializado passa pelos encaminhamentos, que são a descrição detalhada de aspectos do aluno, observados pelo professor em sala de aula, como linguagem, desenvolvimento cognitivo/aprendizagem, desenvolvimento psicomotor, sociabilidade/afetividade e meios sociais/família. Esse documento foi elencado como relevante para o estudo, uma vez que traz a produção de um aluno não aprendente, que difere da norma estabelecida naquele espaço/tempo e priorizada pelo professor.

A legislação aqui elencada apresenta o AEE como um serviço de apoio à inclusão escolar, mas também estende os outros pontos de apoio para que se efetive o que almejam esses dispositivos biopolíticos. Entre os pontos de apoio apontados na legislação, estão as articulações do docente da Sala de Recursos Multifuncional com os professores de sala de aula, a disponibilização de recursos pedagógicos, estratégias e orientações para a efetiva participação desse aluno em sala de aula, ou a captura desses alunos para o AEE por meio do preenchimento dos formulários de encaminhamento.

Para compreender como vem sendo produzido o sujeito aluno com deficiência a partir das narrativas dos educadores atuantes em sala de aula, foram analisados esses formulários de encaminhamento para o AEE, como parte integrante do material levantado, visto que apresentam a maneira como o educador da sala de aula descreve o sujeito aluno com deficiência nos seus diferentes aspectos. Dessa forma, percebem-se nos processos de inclusão escolar as técnicas de condução da massa educadora, utilizadas pelo Estado governamentalizado.

OPERAÇÕES DA GOVERNAMENTALIDADE NA BIOPOLÍTICA

Numa visão sintética da forma de governar, de controle e vigilância, como esclarece Foucault (2001, p. 281), “quando o Estado é bem governado, os pais de família sabem como governar suas famílias, seus bens, seu patrimônio, e por sua vez os indivíduos se comportam como devem”.

Esse aporte histórico em Foucault (2001) é necessário para que se possa compreender como se deu a visão do que é governar e ser governado. Esta passou da preocupação com o território e a propriedade, na Idade Média, deslocando-se para a gestão dos homens e sua relação de consumo/subsistência com o território e a propriedade, no século XVI.

Desde então, a família esteve na ótica privilegiada do governo, passando por diferentes problematizações, conduções e localizações na arquitetura da arte de governar, mas recebeu seu lugar estratégico com a descoberta de que a população deve ser público-alvo dos dispositivos de governamentalidade, como explica Foucault (2001).

Nesse sentido, compreende-se que a família passa a ser um instrumento de manobra, não mais visto como o principal, mas agora com lugar privilegiado, pois é a partir dela que serão feitas as intervenções à população.

A população aparece, portanto, mais como fim e instrumento do governo que como força do soberano; a população aparece como sujeito de necessidades, de aspirações, mas também como objeto nas mãos do governo; como consciente, frente ao governo, daquilo que ela quer e inconsciente em relação àquilo que se quer que faça. (FOUCAULT, 2001, p. 289)

Como uma forma de conduzir a população, com táticas e estratégias que são utilizadas para tal finalidade, a governamentalidade é assim explicada por Foucault:

1 - conjunto instituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.

2 - a tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros - soberania, disciplina, etc. - e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.

3 - o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2001, p. 291-292)

O presente artigo utiliza mais especificamente o primeiro item da definição de Foucault sobre governamentalidade, sem, no entanto, desconsiderar os outros, visto que o objeto em estudo está implicado com instituições, técnicas e regulamentações, permeados por relações de saber-poder, visando à segurança da população (no caso desta análise, da pessoa com deficiência).

Conforme Foucault (1999), a partir do século XVII, aparecem duas formas diferentes de gestão da vida humana e poder sobre a vida. A primeira foca no indivíduo, no corpo docilizado e no interesse pela sua utilidade econômica, assegurada pelos procedimentos de poder disciplinar. A segunda surge no século XVIII e, segundo o autor:

(...) centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma biopolítica da população. (FOUCAULT, 1999, p. 131 - grifo do autor)

Essa nova maneira de administrar a vida, centrada num primeiro momento no corpo individualizado e posteriormente na massa da população, como aborda Foucault (1999), configura as mudanças vivenciadas pelos indivíduos com deficiência: da morte como vontade do soberano ao interesse do poder disciplinar e controle da população.

A biopolítica emerge como gestão global da vida e passa a administrar também os sujeitos com deficiência, os quais, pelo imperativo da inclusão escolar, não podem ficar fora do jogo neoliberal.3 A instituição escolar assume papel importante no poder disciplinar do corpo, como espaço que torna dócil, modela e torna hábil, ao mesmo tempo em que potencializa a ação do biopoder.

Trata-se de um poder que incide sobre o coletivo dos sujeitos (para sua segurança), ao criar controles reguladores, como as políticas inclusivas, com seus desdobramentos - isto é, suas estratégias, como os serviços de apoio e as articulações realizadas para tanto, a exemplo dos encaminhamentos dos alunos para o AEE.

Compreendendo a instituição escolar como uma maquinaria do Estado governamentalizado, que dissemina as condutas de governamento dos sujeitos por ela governados, tornou-se relevante a análise dos encaminhamentos à Sala de Recursos Multifuncional. Esse material de análise consta de registros e narrativas feitas pelos professores participantes, a partir do exercício de comparação dos alunos em sala de aula, diferenciação quanto à aprendizagem, exclusão, homogeneização e apresentação dos sujeitos alunos com deficiência para o serviço de apoio.

O biopoder opera na administração dos corpos, fabricando o sujeito desejado, disciplinado, docilizado e sujeitado pelas práticas de governamentalidade. Foucault (1987, p. 164) enfatiza que “esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar de disciplinas”. Essa noção de poder disciplinar, com foco no indivíduo, está relacionada à noção de biopoder, com foco na população.

Conforme Canguilhem (2002, p. 67), “as constantes se apresentam com uma frequência e um valor médios, em um determinado grupo, que lhes confere valor de normal, e esse normal é realmente a expressão de uma normatividade”. A normalização emerge do coletivo dos sujeitos: não é pensada previamente, mas é produzida quando os dados estatísticos, por exemplo, criam um padrão que é considerado normal. Para o autor (p. 63), “uma forma específica normal seria o produto de uma normalização entre funções e órgãos cuja harmonia sintética não é oferecida gratuitamente e sim conseguida em condições definidas”.

Na lógica do biopoder, os sujeitos docentes que potencializam os processos normalizadores também se encontram atravessados pelas táticas de governamentalidade. Nesse sentido, ao agirem em meio às práticas que dirigem as condutas, respondem ao enredo da norma que é criada na malha discursiva, fortalecendo a teia de jogos de poder. Nesse cenário, a escola assume papel importante enquanto maquinaria de governamento dos sujeitos. Os encaminhamentos desses alunos reforçam padrões estabelecidos pela lógica neoliberal e se aliam ao Estado para as práticas de governamento, tanto dos sujeitos alunos, quanto dos outros docentes da instituição escolar.

A racionalidade neoliberal opera diferentes ideias políticas e econômicas, que induzem o desejo nas pessoas de permanecer no jogo, por meio da competitividade. Como refere Rech (2013), o aluno que se encontra em situação de inclusão passa a tomar para si uma nova identidade, voltada para a produção e o sentimento de utilidade que assume para com a sociedade em que vive. As práticas de controle de conduta, existentes entre docente e aluno, reforçam esse sentimento de utilidade e produtividade, pois esses alunos passam a responder às relações de poder-saber que lhe estabelecem a norma e a média.

O exercício de análise dos encaminhamentos enviados à Sala de Recursos Multifuncional, bem como dos instrumentos de avaliação e das transcrições das entrevistas, permitiu compor os seguintes eixos analíticos, os quais são descritos e analisados na seção seguinte: O AEE como prática normalizadora e Políticas inclusivas e o aluno com deficiência: controle e regulação de condutas.

PRÁTICAS DE GOVERNAMENTALIDADE A PARTIR DAS NARRATIVAS SOBRE O ALUNO ENCAMINHADO PARA O AEE

A amostra de docentes escolhida para submissão à entrevista semiestruturada obedeceu ao critério de ter trabalhado em sala de aula na instituição participante, no ano de 2015, tendo encaminhado algum aluno para o AEE. Esse critério possibilitou o recolhimento dos documentos necessários ao estudo, assim como o acesso aos dados pertinentes de um ano letivo completo. Foram entrevistados docentes que atuaram nos anos iniciais e finais do ensino fundamental, em sala de aula, tendo alunos com deficiência na turma em que ministraram aulas.

Os documentos analisados constaram de encaminhamentos por escrito, que descreveram os aspectos referentes ao desenvolvimento do aluno com deficiência, observados pelo professor de sala de aula (documento entregue pelo docente que atua na Sala de Recursos Multifuncional aos professores de sala de aula); pareceres pedagógicos, que são emitidos no final de cada trimestre, sendo o instrumento avaliativo assegurado por lei como forma de avaliar a aprendizagem dos alunos com deficiência; além da entrevista semiestruturada.

Os eixos foram organizados após uma análise dos documentos, sendo recorrente nos dados analisados a ênfase das narrativas no comportamento e na aprendizagem. O foco no comportamento pode ser relacionado às práticas normalizadoras mobilizadas pelos serviços de apoio da escola, como o AEE. Já as narrativas no eixo da aprendizagem denotam uma intencionalidade de tornar os alunos com deficiência produtivos, como uma resposta às exigências das táticas de governamento que operam nas práticas escolares, constituindo-as.

Para preservar a identidade dos entrevistados, foi feito uso de pseudônimos para identificá-los nas citações da sua entrevista.4 No total, são nove professores: três dos anos iniciais e seis dos anos finais do ensino fundamental. Os professores dos anos iniciais serão nomeados da seguinte forma: (a) 1º ano - Maria, (b) 2º ano - Luiza, (c) 4º ano - Áurea. Os professores dos anos finais, que atuam do 6º ao 9º ano, serão nomeados por João, Roberto, Vânia, Verônica, Karen e Antônia.

A entrevista foi concedida em 2016; porém, os participantes narram suas práticas em 2015. Quando se trata de informação das entrevistas, o dado foi identificado com o pseudônimo do participante, acompanhado do ano de 2016; quando se refere às narrativas dos documentos, foi identificado com o pseudônimo, seguido do ano de 2015.

O AEE COMO PRÁTICA NORMALIZADORA

Ao analisar os pareceres, os formulários de encaminhamento e a transcrição das entrevistas semiestruturadas, referentes aos alunos com deficiência matriculados na instituição participante, no ano de 2015, foi possível verificar os dados e localizá-los em duas direções: a aprendizagem e o comportamento (controle disciplinar do corpo). Essa recorrência aparece nos dados coletados, em que a norma é comportamental e focada no aluno aprendente.

Conforme Lopes (2009), a norma parte de um modelo que precisa ser seguido, resultando na homogeneização e na minimização do que é diferente. A docente Maria (2015) apresentou a seguinte descrição do aluno no formulário de encaminhamento ao AEE, quanto às questões comportamentais: “o aluno não consegue se concentrar e prestar atenção, inicia as atividades, mas não persevera” (MARIA, 2015).

Durante a entrevista semiestruturada, a professora Karen (2016), ao ser questionada, sobre os fatores analisados pelo professor, quando este encaminha um aluno para o AEE, elencou, entre outras falas, o seguinte:

(...) presto atenção também naquele aluno que apresenta dificuldades de seguir normas disciplinares, porque a escola precisa destas normas para o bom convívio de todos, senão o professor não consegue organizar as aulas nem os alunos. (KAREN, 2016 - grifo nosso)

As preocupações com questões comportamentais também estavam presentes nos instrumentos avaliativos (pareceres), como colocou a docente Antônia (2015) em sua descrição do aluno. Ela enfatizou que “nos momentos de assistir filmes, ouvir histórias, explicações de matéria nova, apresenta um pouco de inquietação , mas com uma conversa, logo se acalma” (ANTÔNIA, 2015 - grifo nosso).

O poder disciplinar do corpo apareceu nas narrativas do aluno inquieto, que não aceita ordens e combinados - ou ainda, o aluno que não realiza as atividades propostas. Essas informações apontaram alunos que fogem da norma comportamental estabelecida pelos corpos dóceis, como coloca Foucault (1999), que não se permitem ser submetidos, utilizados ou aperfeiçoados.

A instituição escolar opera sobre a lógica disciplinar dos corpos, de modo que os alunos, desde pequenos, são submetidos a comportar-se como o modelo apresentado pelo docente: quietos, sentados, que só respondem quando o professor lhes dá a palavra, aceitam as atividades que lhes são impostas e sem questionar. A prática do poder disciplinar tenta homogeneizar e trazer os alunos com deficiência para dentro do jogo neoliberal, facilitando o processo de governamento exercido pelo professor.

A norma apareceu introjetada na descrição dos docentes quando estes se referiam ao aluno com deficiência. Para tal análise, foi utilizada a lógica de que a inclusão educacional é um dispositivo de segurança que regula a população (nesse caso, a população de alunos com deficiência), e os professores posicionam-se tanto como agentes de poder disciplinar, quanto como agentes que se utilizam das táticas do biopoder.

Os pareceres apresentaram alunos que se encontravam com déficit de aprendizagem, em defasagem com o conhecimento, e necessitando estar sempre prestando contas do que aprenderam. Os documentos analisados informavam para esses alunos que sua dívida continuava crescente, cobrando maior interesse e atenção em sala de aula. Segundo Fabris (2009), o aluno com deficiência passou a ser um endividado no processo de escolarização, confinado e controlado, porém sem limites concretos.

Em um dos formulários de encaminhamento, a docente Áurea (2015) trouxe o seguinte relato:

(...) o aluno não tem copiado e não realiza as atividades em sala de aula, não demonstra interesse pelas mesmas, até mesmo as mais simples e diferenciadas, dificultando assim observação do seu desenvolvimento cognitivo e aprendizagem. (ÁUREA, 2015 - grifo nosso)

A mesma narrativa foi localizada no instrumento avaliativo, o parecer, em que a professora Vânia (2015) descreveu a aprendizagem do aluno da seguinte forma:

(...) consegue copiar palavras simples, mas não reconhece as letras e não consegue fazer leitura destas letras e nem palavras. Ás vezes reconhece as letras que compõem o seu nome, tenta escrever sem copiar de algum lugar, porém, escreve as letras desordenadamente com exceção das letras inicial e final. Soletra as vogais, possuindo ainda dificuldade em reconhecer as letras . Faz a contagem até dez, porém, não estabelece a relação número/numeral. (VÂNIA, 2015 - grifo nosso)

A análise da transcrição da entrevista da docente Karen (2016) mostrou a mesma preocupação com a defasagem da aprendizagem do aluno, enfatizando que “quando encaminho o aluno para o AEE, é porque já observei em sala de aula a dificuldade de concentração e aprendizagem. Aquele aluno que não consegue reter o conhecimento” (KAREN, 2016 - grifo nosso).

A aprendizagem estava presente nas narrativas, elencando o que o aluno aprendeu e o que não consegue realizar. Apareceram ainda informações relativas à necessidade de o professor auxiliar estar presente na execução das atividades, dando a entender que o aluno só é capaz de produzir conhecimento por intermédio do outro.

A professora Karen (2015) relatou, no formulário de encaminhamento para o AEE, a seguinte situação quanto à execução das atividades: “o aluno não tem independência na realização das tarefas, precisa ser supervisionado(KAREN, 2015).

A transcrição da entrevista da docente Áurea (2016) apresentou a importância do professor auxiliar em sala de aula. Quando lhe foi perguntado sobre os serviços de apoio na escola, ela respondeu:

(...) a escola tem os serviços de apoio da sala multifuncional, da oficina pedagógica e dos auxiliares que ficam com a criança na sala. Sem eles [os professores auxiliares] não seria possível trabalhar com aquele aluno. Eles ajudam muito quando tem aluno incluído na sala de aula. (ÁUREA, 2016 - grifo nosso)

A professora Antônia (2015) descreveu a aluna no parecer, quanto à realização das atividades em sala de aula, da seguinte forma:

A aluna se mostra resistente ao participar das aulas; pois não realiza atividades em grupo nem expões suas ideias assim como suas vontades. Só diz o que pensa, sua vontade para a professora auxiliar, só realiza atividades individuais e com auxílio. (ANTÔNIA, 2015 - grifo nosso)

O parecer descritivo, assim como os outros instrumentos de avaliação, são valores que expressam de maneira qualitativa o processo de aprendizagem; entretanto, configuram-se também como uma estratégia de vigilância e controle dos corpos, assegurando que esses alunos não saiam do jogo de regulação.

Conforme Fabris (2009, p. 53), os pareceres descritivos “são instrumentos que auxiliam no governamento dos sujeitos”, portanto, fortalecendo o exercício do biopoder, pois tem nesses alunos com deficiência a sua população-alvo.

As narrativas encontradas nos documentos analisados descreveram alunos que, mesmo estando em sala de aula, apresentavam dificuldades de relacionar-se com os colegas, estando incluídos no espaço, mas excluídos das relações que os cercavam. A docente Vânia (2015), ao relatar o aluno no seu instrumento avaliativo (parecer), fez a seguinte colocação: “a aluna não se integra com a turma nem com a professora regente” (VÂNIA, 2015 - grifo nosso).

A presente preocupação com o relacionamento e a inclusão dos alunos com deficiência apareceu no formulário de encaminhamento da professora Luiza (2015), que descreveu ao docente da Sala de Recursos Multifuncional a seguinte situação quanto à socialização: “a aluna não interage com todos os alunos , mas conversa com eles quando a procuram na sua mesa” (LUIZA, 2015 - grifo nosso).

A professora Karen (2015) apresentou na sua entrevista a importância que dá à socialização e interação do aluno com deficiência na sala de aula. Quando foi indagada sobre os aspectos que possibilitam o desenvolvimento do aluno com deficiência no seu processo de aprendizagem, relatou que “a principal delas é a socialização. O aluno interagindo com os colegas sente-se acolhido e não discriminado e consequentemente seu aprendizado se desenvolve de acordo com suas limitações” (KAREN, 2015 - grifo nosso).

A recorrência desse relato evidenciou o movimento dos docentes para que todos estejam incluídos, mostrando que estes estão sendo conduzidos por práticas e discursos de governamento, que os convocam para identificar e buscar alternativas para a participação desses alunos no imperativo da inclusão, por meio da socialização com os seus pares em sala de aula. O AEE, nessa lógica de governamento, surgiu como prática de normalização, agindo sobre o controle dos corpos, auxiliando na produção de sujeitos aprendentes e produtivos no espaço escolar.

POLÍTICAS INCLUSIVAS E O ALUNO COM DEFICIÊNCIA: CONTROLE E REGULAÇÃO DE CONDUTAS

Após análise dos dados coletados na entrevista semiestruturada, nos formulários de encaminhamento ao atendimento educacional especializado e nos instrumentos de avaliação (pareceres), foi possível evidenciar dois movimentos: o AEE como serviço de apoio à inclusão e práticas de governamentalidade na biopolítica.

As narrativas dos docentes apresentaram sua compreensão sobre o imperativo da inclusão escolar, por meio do entendimento da legislação existente, possibilitando verificar como as práticas de governamentalidade e normalização, que foram elencadas como um dos eixos de organização dos dados, aparecem nessas narrativas.

Na entrevista, a educadora Áurea (2016) relata, quando questionada sobre a legislação que prevê a educação inclusiva:

(...) as leis que me recordo agora são a LDB, Salamanca, Constituição Federal e os PCNs. Todas elas falam que toda criança com deficiência tem que estar matriculada no ensino regular , como sendo um direito de todos. (ÁUREA, 2016 - grifo nosso)

Essa situação é verificada na descrição do educador João (2015): ao preencher o formulário de encaminhamento ao atendimento educacional especializado, coloca, no aspecto do desenvolvimento cognitivo: “a aluna tem melhorado bastante com as tarefas e atividades desenvolvidos de forma adaptada, visto que este é um direito da aluna e é desta forma que tem sido trabalhado com ela” (JOÃO, 2015 - grifo nosso).

Ao analisar os instrumentos avaliativos, é possível encontrar no relato da educadora Vânia (2015) a afirmação de que “a aluna acompanha o conteúdo proposto aos demais através de atividades diferenciadas que permitem sua melhor compreensão, dentro de suas possibilidades” (VÂNIA, 2015 - grifo nosso).

Os dados trazidos pelas narrativas dos educadores, ao serem analisados com as ferramentas foucaultianas, evidenciam que o governamento opera de forma eficiente na regulação das condutas dos educadores. Um dos enfoques das recorrências é o imperativo da “educação para todos”, como um direito, o que permite analisar como os educadores encontram-se atravessados por esse imperativo e sentem-se engajados no controle das condutas de seus alunos, para dar conta do que esse imperativo lhes traz como verdade.

A narrativa romantizada da inclusão escolar é comentada por Rech (2013) como sendo o resultado de “estratégias de sedução”, que, com intuito de tornar verdadeira essa inclusão, fazem com que a população se sinta mobilizada e comprometida com essa verdade, sendo massa de manobra útil no governamento de condutas.

Ao se apresentarem emaranhados na teia do discurso da inclusão, os educadores colocam-se como peças essenciais na efetivação da inclusão escolar, produzindo nas suas narrativas as práticas de normalização e regulação que utilizam para tal finalidade. Todavia, esses educadores também são produzidos em meio às mesmas práticas de governamento que seus alunos - práticas essas que os constituem, seduzidos pelo imperativo da inclusão escolar.

No tocante aos serviços de apoio existentes na escola, os educadores referiram a Sala de Recursos Multifuncional e os trabalhos do AEE como serviços de apoio preparados para receber os alunos com deficiência, o que evidencia relações de poder e saber que instituem o espaço especializado por excelência. Esse dado aparece no excerto da educadora Maria (2015), que observa, na ficha de encaminhamento para o AEE, o seguinte destaque: “o aluno [XXX] necessita do atendimento especializado para que consiga desenvolver a sua aprendizagem” (MARIA, 2015 - grifo nosso).

A educadora Antônia (2015), ao se referir à importância da escola (que aqui pode compreender também os seus serviços de apoio), apresenta no seu relato do instrumento de avaliação (parecer), a seguinte afirmação: “neste trimestre a aluna mostrou-se pouco presente nas aulas, visando que a escola possui um papel fundamental no seu processo de aprendizagem” (ANTÔNIA, 2015 - grifo nosso).

Ao ser questionado na entrevista sobre a importância do AEE e dos serviços de apoio para a aprendizagem do aluno incluído, o educador Roberto (2016) traz a seguinte resposta: “a importância do AEE passa por uma mudança de vida e no próprio comportamento do aluno dentro da escola” (ROBERTO, 2016 - grifo nosso).

Os educadores conduzem suas práticas estando constituídos dentro da lógica de governamentalidade. Assim, na tentativa de responder ao imperativo da inclusão escolar, veem no AEE o apoio necessário para trazer os alunos com deficiência ao jogo da normalização. Segundo Lopes (2009, p. 117):

(...) nas operações de normalização - que implicam tanto trazer os desviantes para a área da normalidade, quanto naturalizar a presença de tais desviantes no contexto social onde circulam -, devem ser minimizadas certas marcas, traços e impedimentos de distintas ordens.

As políticas inclusivas, compreendidas nesta análise como um dispositivo biopolítico, aparecem nas narrativas dos educadores como uma verdade incontestável. Da mesma forma, o AEE, assegurado igualmente pela legislação, é percebido pelos educadores da instituição como serviço de apoio relevante à efetivação da inclusão escolar, pois, ao ser encaminhado para esse atendimento especializado, o aluno com deficiência passa a ser normalizado e controlado, minimizando a sua anormalidade e tornando-o o mais próximo possível da média esperada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo surgiu das inquietações vivenciadas dentro do espaço escolar, materializando-se na pergunta norteadora de todo o estudo: como está sendo produzido o sujeito aluno com deficiência, a partir das narrativas dos educadores atuantes em sala de aula, e que relações podem ser estabelecidas com as técnicas de controle de conduta desses sujeitos, enquanto práticas de governamentalidade?

A partir da pergunta norteadora, foram elencados os materiais a serem estudados, zelando para que estes fossem capazes de satisfazer os anseios da questão central. Ao utilizar os instrumentos avaliativos (pareceres), as fichas de encaminhamento ao atendimento educacional especializado (AEE) e as entrevistas com os educadores, foi possível visualizar os dados como narrativas sobre os sujeitos alunos com deficiência, matriculados na instituição escolar participante.

Percebendo a escola como uma maquinaria a serviço do Estado governamentalizado, o imperativo da inclusão escolar foi compreendido como uma estratégia biopolítica de regulamentação da vida e o controle e regulação de condutas centrada na lógica da governamentalidade. Foram utilizadas as noções foucaultianas de biopolítica e de governamentalidade para análise dos dados coletados nos materiais referidos.

O exercício de análise desses materiais possibilitou organizar os dados recorrentes em dois eixos: O AEE como prática normalizadora e políticas inclusivas e O aluno com deficiência: controle e regulação de condutas. O arranjo do estudo, a partir das narrativas dos educadores, evidenciou práticas de normalização dos alunos com deficiência, regulamentadas pelas políticas inclusivas que operam como dispositivo biopolítico de controle da população de tais alunos matriculados na instituição.

O atendimento educacional especializado encontra-se implicado nessa trama discursiva da governamentalidade e, ao articular sua prática com os educadores da instituição, auxilia na produção de sujeitos regidos pela norma comportamental com enfoque na aprendizagem.

É possível evidenciar como os movimentos de regulação da população e controle de riscos estão operando dentro da instituição participante, onde a normalização dos corpos inicia na identificação, no esquadrinhamento e na exclusão que ocorre dentro das salas de aula, pelo educador que ali está.

O encaminhamento do aluno para o AEE intensifica a prática normalizadora do aluno com deficiência. O objetivo central foca-se no controle de riscos: de não aprender, de não se autogerir, de não adquirir autonomia suficiente para entrar no jogo produtivo e permanecer nele.

A partir das narrativas dos educadores, foi possível perceber a preocupação centrada no poder disciplinar e na aprendizagem dos alunos com deficiência. Essas formas de produção de sujeitos também produzem maneiras de conduzir o outro, segundo normas que agem sobre os corpos dos alunos, sobre os educadores e sobre as instituições.

As práticas de governamentalidade aparecem na preocupação efetiva quanto à aprendizagem, deixando visível o quão engajados e seduzidos estão os educadores na trama discursiva da governamentalidade inclusiva. A legislação, como um dispositivo biopolítico, assegura tais práticas dentro do espaço escolar e traz maior confiabilidade ao imperativo da educação inclusiva. Essa teia de regulação e controle de condutas facilita os jogos de interesse do mundo produtivo.

Os diversos movimentos de aprendizagem dos conceitos e destes como ferramentas analíticas, o estudo da legislação vigente, assim como o apanhado histórico e literário da temática contribuíram para a problematização e a inquietação que originou o estudo. Essa análise se faz relevante, pois coloca o caráter produtivo das práticas inclusivas em relação aos alunos com deficiências e seus educadores, uma análise necessária para o campo de conhecimento ao qual se destinou.

Historicamente a escola foi aperfeiçoando práticas de condução dos comportamentos dos alunos, sob padrões de normalidade. Aqueles que escapam desses padrões são alvos dos serviços especializados. As práticas contemporâneas evidenciam que foram sendo constituídas outras normalidades, pautadas pelos modos de vida, atravessados também pelo mercado, onde ninguém fica de fora.

A inclusão se inscreve nesse contexto e os serviços de apoio pedagógico podem reforçar a condução dos sujeitos para modos de vida compatíveis com essa lógica. Contudo, estudos como o que se propõe nesse artigo, podem promover reflexões locais para a construção de outras possibilidades de operar na escola, sem pretensões generalistas, que implicam o envolvimento do corpo docente, os alunos e a comunidade.

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2 O termo governamento foi proposto por Veiga-Neto (2005), para resolver o duplo sentido na tradução da palavra governo, presente nas obras de Michel Foucault. Sugere que o termo governamento seja utilizado quando se quer denominar o ato ou ação de governar e dirigir a conduta.

3 Trata-se de entender tanto o liberalismo quanto o neoliberalismo como conjunto de práticas que constituem formas de vida, cada vez mais conduzidas para princípios de mercado e de autorreflexão, em que os processos de ensino/aprendizagem devem ser permanentes. O mercado é entendido como uma forma de definir e limitar as ações de governo, fazendo com que este se coloque e se justifique diante da população e diante dos públicos que se formam no interior dela (LOPES, 2009, p. 108).

4 Os excertos das narrativas serão descritos em itálico para diferenciar das citações.

Recebido: 07 de Dezembro de 2017; Aceito: 21 de Novembro de 2018

Contato: Rua Campos nº 136 - Bairro Primavera, Novo Hamburgo|RS|Brasil, CEP 93.340-590

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Doutora em Educação. Professora Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Professora do curso de Pedagogia na UERGS. Líder do Grupo de Pesquisa Educação e Processos Inclusivos (GPEPI). E-mail:<helena-sardagna@uergs.edu.br>.

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Especialista em Atendimento Educacional Especializado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS). Integrante do Grupo de Pesquisa Educação e Processos Inclusivos (GPEPI). E-mail:<tatianefrozza@yahoo.com.br>.

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