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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.35  Belo Horizonte jan./dez 2019  Epub 25-Jul-2019

https://doi.org/10.1590/0102-4698170841 

Artigos

AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: CAMINHOS PARA A PERMANÊNCIA E O PROGRESSO ACADÊMICO DE ESTUDANTES DA ÁREA DAS CIÊNCIAS EXATAS1

GUILHERME HENRIQUE GOMES DA SILVAI 
http://orcid.org/0000-0002-4166-2663

I Universidade Federal de Alfenas, Instituto de Ciências Exatase Programa de Pós-Graduação em Educação, Alfenas, MG, Brasil.


RESUMO:

Este estudo aborda a questão do acesso e da permanência de estudantes pertencentes a grupos sub-representados no ensino superior. Seu propósito é compreender aspectos que contribuem para a permanência e o progresso acadêmico de estudantes beneficiados por ações afirmativas de cursos das ciências exatas. Utilizando-se de uma abordagem qualitativa, os dados foram produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas com estudantes de cursos superiores de exatas de duas universidades federais brasileiras, ingressantes por meio de ações afirmativas. Para a organização e análise dos dados, utilizaram-se ferramentas da análise de conteúdo, tendo como perspectiva teórica o inquérito crítico. A análise respaldou-se em um amplo referencial e forneceu indícios para compreender aspectos significativos da trajetória dos estudantes, os quais podem ser resumidos em cinco temas: preparação acadêmica inicial; integração social; integração acadêmica; o papel do corpo docente e elementos que transcendem o espaço pedagógico.

Palavras-chave: Permanência; Integração Social e Acadêmica; Microagressões; Equidade; Educação Matemática

ABSTRACT:

The purpose of this work is to understand factors that contribute to the retention and academic progress of students in science, technology, engineering, and mathematics (STEM) programs available at universities through affirmative action policies. Using a qualitative research approach, the data were obtained from semi-structured interviews with affirmative action students and faculty in STEM programs at two federal Brazilian universities. Data were organized and analyzed using content analysis and the theoretical perspective of critical inquiry. This process was supported by a broad framework and provided clues to understanding significant factors in the university trajectory of these students, which can be summarized in five themes: initial academic preparation, social integration, academic integration, the role of the teaching staff, and issues beyond pedagogy.

Keywords: Social and Academic Integration; Retention; Microaggressions; Affirmative Action; Mathematics Education.

INTRODUÇÃO

No âmbito do ensino superior, existe um grande corpo de teorias e pesquisas que tem explorado os possíveis fatores que contribuem para a permanência do estudante na universidade (Nora, 1993; Terenzini et al., 1994; Tinto, 1975, 1988, 1997, 2003, Tinto; Pusser, 2006). Na década de 1970, Vincent Tinto elaborou um modelo para o processo de integração do estudante dentro de sistemas acadêmicos e sociais de instituições de ensino superior (Tinto, 1975). Tinto buscava compreender como a interação social e acadêmica afetava a permanência do estudante na universidade. Seu trabalho possibilitou a abertura de uma nova área de inquérito para a Educação em nível superior e influenciou grande parte das pesquisas subsequentes nessa área. Para Tinto, ao se matricularem na universidade, os estudantes trazem atributos formais e informais, desenvolvidos no âmbito familiar e educacional, os quais influenciam as metas, compromissos, força de trabalho e lugar na sociedade do estudante. Após o ingresso, esse background bem como as novas experiências formais e informais que adquire ao longo do percurso universitário influenciam consideravelmente sua integração com a instituição, tanto do ponto de vista social quanto acadêmico. Segundo Tinto, tal nível de integração tem um impacto significativo sobre as metas e objetivos do estudante e pode afetar diretamente sua decisão de persistir ou não no curso, principalmente quando surgem adversidades. Dessa forma, Tinto sugere que a permanência do estudante é um resultado direto de sua integração com as experiências adquiridas ao longo da trajetória universitária.

Posteriormente, Tinto expandiu seu modelo, incluindo um processo de três estágios: separação, transição e incorporação (Tinto, 1988). Por meio de um paralelo com a teoria antropológica social de Van Gennep, Tinto comparou o movimento de um indivíduo de um grupo para outro em sociedades tribais com a saída de estudantes de seus lares e sua incorporação na nova comunidade universitária. O estágio de separação refere-se ao abandono do estudante de seus hábitos e padrões de associações anteriores. Para que o aluno se considere parte da comunidade universitária, ele deve abandonar, de alguma maneira, suas comunidades precedentes. Após essa separação, o estudante passa por um estágio de transição, no qual precisa aprender a lidar com a tensão de sair de um contexto familiar enquanto ainda não compreendeu as características do ambiente universitário ou mesmo não se integrou completamente a ele. Por fim, no estágio de incorporação, o estudante adquire as competências necessárias para se tornar um membro efetivo da nova comunidade. Tinto afirma que neste estágio o estudante, de certa forma, torna-se um novo indivíduo. Segundo Tinto (1988), o estudante enfrenta muitos tipos de dificuldades neste último estágio. Por exemplo, a falta de integração social e acadêmica pode levá-lo a não se separar de associações anteriores, não concretizando a transição para a nova comunidade. Isso pode contribuir para que o estudante não tenha o progresso necessário e abandone o curso.

Nas últimas décadas, o modelo de Tinto tem sido criticado, revisado e aprimorado por vários pesquisadores (Bean; Eaton, 2000; Cabrera et al., 1999; Rendon; Jalomo; Nora, 2000; Tierney, 1999). Tierney (1999) e Yosso et al. (2009), por exemplo, destacam que o modelo não considera a maneira como estudantes pertencentes a grupos sub-representados experienciam o clima racial do campus. Segundo esses autores, quando esses estudantes ingressam em universidades que estão fora de sua comunidade imediata, raramente desfrutam de um mesmo nível de “ajuste” ao novo ambiente, como o fazem seus colegas. Além disso, para sobreviverem e resistirem ao racismo com que se depararam, utilizam todos os recursos culturais oriundos de suas comunidades. O estágio de separação do modelo de Tinto marca a ruptura física, emocional e social dos estudantes com suas comunidades de origem quando iniciam sua transição para a universidade, assumindo que aqueles pertencentes a grupos sub-representados seriam prontamente acolhidos e equitativamente recompensados por assimilarem os objetivos da vida universitária, fato esse que geralmente não ocorre.

Mesmo com divergências, há um consenso entre as pesquisas de que a integração social e acadêmica, bem como determinadas práticas institucionais, impacta significativamente a vontade do estudante de permanecer na universidade. Além disso, muitos estudos têm se preocupado em discutir aspectos que contribuem (e também intervêm) na permanência de estudantes tradicionalmente sub-representados na universidade (geralmente pertencentes a grupos racial e/ou etnicamente minoritários, e/ou socioeconomicamente vulneráveis e de “primeira geração”), discutindo suas estratégias formais e informais de sobrevivência material e acadêmica no campus, além de práticas institucionais que impactam em seu progresso universitário (Santos, 2009; Solórzano; Ceja; Yosso, 2000; Terenzini et al., 1994).

Quanto a este último tópico, algumas pesquisas discutem, especialmente, especificidades de cursos superiores da área de exatas, corroborando argumentos referentes à importância da integração social e acadêmica, mas destacando a existência de aspectos particulares demandados por essa área (Foltz; Gannon; Kirschmann, 2014; Hrabowski; Maton, 2009; Hurtado et al., 2010; Museus; Liverman, 2010; Palmer; Maramba; Dancy, 2011; Seymour; Hewitt, 2000). Assim, este artigo busca ampliar tais discussões para o cenário universitário brasileiro, o qual se encontra em um momento de expansão das oportunidades de acesso para estudantes pertencentes a grupos tradicionalmente sub-representados, principalmente após o fomento de políticas de ações afirmativas, em diversas instituições. Tal inserção tem exigido desafios para a universidade, os quais se relacionam com questões ligadas à permanência e ao progresso acadêmico desses alunos.

No âmbito da Educação Matemática, em particular, novas possibilidades e desafios são demandados, por exemplo, a oportunidade de se pensar em formas diferenciadas de produção científica a partir da entrada de grupos que até então estavam fora da universidade e de se discutir, de alguma maneira, questões que já se mostravam desafiantes para a instituição antes mesmo de tal inserção, relacionadas, principalmente, aos altos índices de reprovação e desistência das disciplinas de matemática desses cursos. Dessa maneira, refletir sobre essas questões mostra-se um ponto importante para a educação superior brasileira, principalmente pelo fato de que as pesquisas nessa temática geralmente têm privilegiado comparativos de desempenho entre os grupos de estudantes beneficiados e não beneficiados por ações afirmativas (Cavalcanti, 2015; Mendes Junior, 2014; Pinheiro, 2014; Velloso, 2009) ou aspectos atrelados à questão da sobrevivência material no campus (Bello, 2011; Heringer, 2014; Paixão et al., 2012). Contudo, existem outros fatores que afetam diretamente a permanência do estudante pertencente a grupos sub-representados na universidade (Silva; Skovsmose, 2019), sendo que, para muitos deles, a Educação Matemática pode trazer contribuições importantes.

METODOLOGIA E MÉTODOS

Este artigo discute resultados de uma pesquisa que buscou compreender de que forma a Educação Matemática poderia contribuir para a permanência e progresso acadêmico de estudantes beneficiários de ações afirmativas em cursos superiores da área das ciências exatas. Utilizando-se de uma abordagem qualitativa, os dados aqui discutidos foram produzidos a partir de entrevistas semiestruturadas com 21 estudantes de cursos das áreas de engenharia e matemática de duas universidades federais brasileiras (UFA e UFB, pseudônimos). Do total, 13 estudantes eram do gênero masculino e 8 do gênero feminino. Todos haviam completado pelo menos um ano de curso e haviam feito todo o ensino médio em escolas públicas de ensino. Além disso, 10 estudantes autodeclaram-se negros, 10 brancos e um indígena. Ademais, 6 ingressaram pela reserva de vagas com base em renda, 4 com base em raça, 7 com base em ambos, renda e raça e 4 por terem estudado na rede pública, independentemente de renda. Essa divisão segue a Lei de Cotas, ação afirmativa utilizada em todas universidades federais brasileiras (Brasil, 2012).

As entrevistas foram feitas individualmente, gravadas em áudio e posteriormente transcritas, com autorização dos participantes.2 Além disso, foram feitas notas em um caderno de campo. Os dados foram suplementados por entrevistas com gestores e docentes desses cursos, além da revisão de documentos oficiais sobre programas institucionais de apoio financeiro e pedagógico de ambas as universidades. Para a organização e análise dos dados, utilizaram-se ferramentas da análise de conteúdo, tendo, como perspectiva teórica, o inquérito crítico (Apple; Au; Gandin, 2011; Crotty, 1998). O inquérito crítico se preocupa com relações de poder e opressão, questionando valores e suposições, desafiando estruturas convencionais, engajando-se em questões sociais e expondo as forças de hegemonia e opressão existentes na sociedade. As pesquisas com essa perspectiva geralmente buscam desafiar mais do que compreender; ler uma situação em termos de conflito e opressão mais do que em termos de integração e comunidade; discutir mudanças mais do que aceitar o status quo. Na perspectiva do inquérito crítico, a pesquisa não é vista como uma parte discreta de uma ação que, alcançado seu objetivo, se encerra. Na verdade, assume-se que em toda ação ou situação modificada devemos criticar nossas suposições novamente. Dessa forma, o inquérito crítico emerge a partir de um projeto contínuo, que envolve reflexão e ação (Crotty, 1998).

A análise foi feita de forma contínua, mediante leituras e releituras, possibilitando a familiarização e imersão nos dados. Inicialmente, palavras-chave foram enfatizadas, destacando a sequência exata em que apareciam nos dados transcritos. O intuito foi o de buscar ideias, pensamentos e conceitos que se repetiam ao longo dos dados, contribuindo para o surgimento das primeiras ideias e insights. Depois desse processo, códigos foram construídos por meio de possíveis conexões entre as palavras-chave e nomeados de acordo com o contexto em que se inseriam. Posteriormente, de acordo com as relações entre os diferentes códigos, foram construídas categorias. Evidentemente, esse processo não ocorreu de forma linear. Conforme a análise se desenvolvia, categorias eram construídas, modificadas e descartadas, em um movimento constante de “ir e vir”. Finalmente, as categorias que se conectavam por similaridade, ou que poderiam ser discutidas em conjunto, foram agrupadas em temas. A discussão dos resultados dessa análise foi respaldada em um amplo referencial teórico e forneceu subsídios para compreender aspectos significativos da trajetória universitária dos estudantes no que tange à permanência e progresso na instituição. Esses aspectos foram resumidos em cinco temas: preparação acadêmica inicial; integração social; integração acadêmica; o papel do corpo docente e elementos que transcendem o espaço pedagógico.

PREPARAÇÃO ACADÊMICA INICIAL

Tradicionalmente, a matemática tem funcionado ao longo dos anos como um gatekeeper para a educação superior e para os melhores empregos, criando uma distribuição desigual de renda, de habilidades e de poder (Moses; Cobb Junior, 2001; Stinson, 2004). Por questões fortemente relacionadas à raça, gênero, etnia, religião, idioma e classe social, uma variedade de grupos tem sido excluída dos contextos sociais nos quais há predominância da matemática. Para Moses e Cobb Junior (2001), a alfabetização matemática pode abrir portas que foram bloqueadas. Segundo os autores, o domínio de conhecimento matemático de alto nível pode contribuir para modificar a situação de vida desses estudantes, pois trabalha em favor da superação das desigualdades sociais, visto que poderiam acessar universidades e cursos prestigiados e, consequentemente, ocupar postos importantes de tomada de decisão. Além disso, instrumentalizar os estudantes com a matemática possibilita que tenham ferramentas para se moverem na sociedade, bem como tenham seus horizontes futuros ampliados.

Não há dúvidas de que Moses e Cobb Junior estão corretos, apesar de ter em mente que outros fatores estejam envolvidos no que tange à superação de desigualdades sociais. Mas, é claro, não dominar a matemática tem se mostrado fortemente ligado com questões de estratificação.3 Os resultados da pesquisa discutida neste artigo trazem indícios de que estudantes beneficiários de ações afirmativas veem a matemática como um desafio em seu percurso acadêmico. Ela não foi uma barreira para o acesso, mas impactava diretamente suas vidas na universidade, “selecionando” os escolhidos para bolsas de pesquisa e extensão e “filtrando” aqueles que continuariam nos cursos, funcionando como o que Moses e Cobb Junior chamam de gatekeeper.

Assim, principalmente no início da trajetória na universidade, este estudo traz evidências da existência de um sentimento de despreparo dos estudantes ingressantes por ações afirmativas em relação às disciplinas de matemática. Esse fato foi ainda mais evidente quando se comparavam com colegas egressos de escolas particulares. Mesmo os que estudaram em escolas públicas consideradas de alta qualidade, como centros federais de ensino médio e técnico e colégios de aplicação de universidades públicas, afirmaram que não se sentiam preparados para enfrentar as disciplinas iniciais dos cursos, como Cálculo I e Geometria Analítica. Mesmo aqueles que fizeram cursinhos preparatórios alegaram que o trabalho com a matemática havia sido muito rápido e resumido e que apenas os auxiliou a melhorar o desempenho no processo seletivo da instituição. Como apontam Seymour e Hewitt (2000), esse sentimento de despreparo inicial tem um peso muito negativo na permanência do estudante no curso, pois prejudica profundamente sua autoconfiança. Um estudante, olhando para trás e refletindo sobre suas experiências do primeiro ano letivo, colocou esse ponto da seguinte forma:

Carlos: “Nas primeiras disciplinas, que são Cálculo I e Geometria Analítica, parte destes que eram de escolas melhores já vieram com a ideia inicial meio que pronta, então não tinham tanta dificuldade. Então com eles parecia que não era assim, tipo, começa a matéria e eles se assuntam. Porque, por exemplo, matrizes e sistemas lineares eu tinha visto muito por cima no ensino médio. No cursinho, também. Aliás, eu nunca estudei sistemas lineares nem no cursinho nem no ensino médio. Esse pessoal viu muito isso no ensino médio. Daí chegou aqui e em Geometria Analítica foi a matéria que a diferença foi gritante entre os cotistas que vieram de escolas públicas “normais’’e os não cotistas que vieram de escolas boas, pelo menos que eu percebi. Quando chegou em Cálculo II, que era algo novo para todo mundo, daí não teve conversa. Todo mundo se “ferrou” mesmo. Nas primeiras disciplinas, foi grande a diferença. Tive amigos que tinham visto derivada no cursinho. Então não assustaram no começo. Eu sempre fui muito bem na escola. Então foi até uma decepção, porque chega aqui e só toma “porrada’ no começo”.

Carlos estava no terceiro ano de engenharia mecânica da UFA e havia ingressado utilizando as ações afirmativas com base em renda. Assim como outros que participaram da pesquisa, afirmou que o impacto inicial causado pela matemática gerava muitas desistências nas disciplinas e que muitos colegas, beneficiários de ações afirmativas, as abandonaram após a primeira avaliação. Claro que isso não acontecia apenas com alunos que ingressaram pelas ações afirmativas. Apesar disso, como mostra o recorte da entrevista acima, muitos estudantes tinham a sensação de que os colegas que haviam estudado na rede particular de ensino lidavam melhor com a situação turbulenta do início do curso. Contudo, também tinham a percepção de que os alunos da escola pública que persistiam e superavam as dificuldades relacionadas com as disciplinas de matemática nesse início de curso se “igualavam” aos demais. Essa sensação também apareceu em entrevistas com docentes desses cursos. Apesar disso, um fato que se destacou foi que, independentemente da forma de ingresso, existe um discurso, entre os docentes que lecionam disciplinas da matemática, de que a maioria dos estudantes ingressa despreparada na universidade. Uma percepção comum entre os docentes entrevistados foi capturada pelo seguinte comentário de Anderson, docente das engenharias da UFB:

Anderson: Houve uma época em que o próprio vestibular não permitia a entrada desse aluno. Mas com a expansão do sistema universitário está existindo justamente a presença deste aluno na comunidade universitária. Este aluno está de fato totalmente perdido, porque, apesar de ter passado a primeira barreira, que cobra algo que ele não possui, a segunda barreira, que é a permanência, faz com que a vida dele seja totalmente infernal aqui dentro. A diferença de cultura praticada no ensino médio é muito diferente da cultura praticada aqui na universidade. Por conta disso, se verifica que, independentemente se o aluno entrou por cotas ou não, quase todos os alunos têm dificuldades enormes em disciplinas da área da matemática.

Como apontou Anderson, a transição entre a matemática do ensino médio e a do ensino superior é vista como um obstáculo. Para estudantes de grupos sub-representados, essa transição tende a ser ainda mais difícil, porque ir para a faculdade geralmente não faz parte das expectativas e da tradição de suas famílias. Dessa forma, além das habituais dificuldades relacionadas com as disciplinas que todos os alunos enfrentam, cursar a universidade apresenta desafios adicionais para esses estudantes, ligados às múltiplas transições em relação a aspectos acadêmicos, sociais e culturais (Terenzini et al., 1994). Em outras palavras, ao ingressar no ensino superior, o novo estudante deve “descobrir as rotinas, as evidências, as regras, os novos códigos da universidade” (Coulon, 2017, p. 1243). Para Coulon (2017), estudantes que não conseguem se afiliar nesse novo mundo podem se direcionar ao fracasso. Para que essa transição seja bem-sucedida, Coulon afirma que os ingressantes precisam aprender seu oficio de estudante. Em particular, os resultados da pesquisa discutida neste artigo mostram que, para diversos estudantes, o sentimento de despreparo inicial também pode relacionar-se com essa transição.

Os universitários que participaram da pesquisa estavam matriculados em cursos muito concorridos e precisaram de altas notas no exame de seleção para ingressaram nas instituições. Mesmo assim, carregavam um sentimento de despreparo frente aos conteúdos de matemática. Alegaram que sua trajetória na universidade teria sido menos dura se estivessem participando de um curso “de base”, que retomasse os conteúdos básicos para as disciplinas iniciais de matemática logo que ingressaram no ensino superior. Isso levanta uma questão importante: a universidade deve se preocupar em desenvolver competências e habilidades relacionadas com a matemática que (teoricamente) o estudante deveria saber quando se matriculou na instituição? O fato é que algumas universidades têm se preocupado com essa questão, desenvolvendo os chamados “cursos de nivelamento” de matemática, os quais, muitas vezes, geram embates no meio universitário. Por um lado, professores alegam que esse tipo de ação não deve ser feita na universidade. Por outro lado, os estudantes enfatizam a importância dessas ações.4

O sentimento de despreparo acaba influenciando de forma mais ou menos evidente a vida dos estudantes beneficiados por ações afirmativas em cursos da área das ciências exatas. O mesmo poderia ser dito sobre as reprovações no período inicial do curso. Apesar disso, esses fatores não levaram os estudantes que participaram da pesquisa a abandonar a universidade. Claro que a maioria estava com o curso em andamento quando as entrevistas foram realizadas. Os estudantes indicaram questões significativas que, até aquele momento, estavam contribuindo para seu progresso na instituição, muitas das quais estavam relacionadas à sua integração social e acadêmica na universidade.

INTEGRAÇÃO SOCIAL

Como mencionado, diversas pesquisas apontam que o nível de integração social e acadêmica do estudante está fortemente associado à sua permanência na universidade (Swail; Redd; Perna, 2005; Terenzini et al., 1994; Tinto, 2003). E essa integração importa ainda mais durante o primeiro ano de curso, influenciando de forma significativa a aprendizagem e o esforço do estudante para continuar na universidade (Tinto, 1997; Tinto; Pusser, 2006). A integração social está ligada ao nível que os estudantes acreditam ter estabelecido relacionamentos significantes com seus pares e com a comunidade universitária (Nora, 1993; Pascarella; Terenzini, 1983). Assim, a atmosfera e o clima no campus, refletidos na maneira como a instituição trata e auxilia o estudante e pela natureza positiva de suas relações com os outros, é importante para sua autoestima e confiança (Swail; Redd; Perna, 2005). Para estudantes pertencentes a grupos sub-representados, problemas emocionais, pessoais e familiares, adicionados a sentimentos de isolamento, não adaptação e discriminação tornam-se fortes barreiras para a permanência, barreira essas que, geralmente, costumam ser ignoradas pelas instituições (Santos, 2009; Solórzano; Ceja; Yosso, 2000; Torres, 2003).

Em especial nos cursos da área das ciências exatas, Foltz, Gannon e Kirschmann (2014) realizaram uma pesquisa com estudantes pertencentes a grupos sub-representados de uma universidade dos Estados Unidos. Segundo os pesquisadores, a integração social desses estudantes apareceu de diversas formas e, corroborando as pesquisas, foi apontada como fundamental para a permanência nos cursos. Dentre os possíveis caminhos para essa integração, Foltz e colegas deram grande destaque à troca de experiências entre estudantes que dividiam a moradia universitária. De acordo com os pesquisadores, esse relacionamento criou um sentimento de in it together ao longo da vida universitária dos estudantes.

Vários dos participantes da pesquisa discutida neste artigo residiam na moradia fornecida pela universidade. A maioria deles havia ingressado utilizando a reserva de vagas baseada em renda e raça. Por exemplo, Malcon e Tiago, dois estudantes de engenharia mecânica da UFA, dividiam a moradia com mais três colegas, que também estavam em cursos de exatas e haviam ingressado mediante ações afirmativas. Todos eram de cidades distantes da UFA e raramente viajavam para visitar seus familiares. Dessa forma, criaram uma relação de identificação entre si do tipo familiar. Além do suporte acadêmico, encontravam apoio mútuo em momentos difíceis e de pressão, principalmente na época de provas. Repartiam materiais acadêmicos, como fotocópias e livros, e também compartilhavam alimentos.

Portanto, o apoio mútuo entre os pares mostrou-se um ponto fundamental para que esses estudantes pudessem vencer muitos dos obstáculos que encontram ao longo da vida universitária. Isso pode ser ainda mais evidente para aqueles estudantes de famílias com menos renda. Como destaca Swail, Redd e Perna (2005), o desenvolvimento dessas relações entre os estudantes pode ajudá-los a atenuar as primeiras semanas traumáticas e oferecer suporte mútuo ao longo de todo o curso. Além disso, esse estudo traz indícios de possíveis contribuições dos projetos de extensão universitária para fomentar a integração social de estudantes beneficiários de ações afirmativas. Por exemplo, Manoel, um estudante do quarto ano de engenharia mecânica da UFA, ingressante pelas ações afirmativas raciais, relatou sua experiência de três anos em um projeto de extensão de aerodesign da seguinte maneira:

Manoel: Você botava a mão na massa, construía alguma coisa. Quando eu ingressei na universidade, a maioria dos finais de semana eu ficava no projeto, sabe, aí tinha a equipe e você fazia várias coisas juntos, saíamos juntos e tal. Era bem bacana. Fazia a relação meio familiar, principalmente pra mim, que era de longe. Era meio cansativo na verdade ficar toda semana com aquela obrigação de ir lá construir uma parte do avião e tal. Mas, de certa forma, era muito legal. Teve um peso na minha permanência. Eu não sei se seria diferente se eu não tivesse participado, não sei se a motivação seria diferente, mas hoje eu posso dizer que foi essencial, para eu ficar aqui no curso, ter me envolvido nesse projeto nos meus três primeiros anos.

Muitos alunos que participaram da pesquisa estavam envolvidos em algum projeto: estudantes de engenharia engajaram-se em projetos de elaboração e construção de carros elétricos e aeromodelos para competição; estudantes de matemática, ciência e tecnologia e de engenharias trabalharam como professores e tutores de matemática em cursinhos comunitários preparatórios para o vestibular, direcionados para estudantes da rede pública de ensino e de baixa renda; estudantes de engenharia mecânica e engenharia de materiais se envolveram em projetos de robótica; estudantes de engenharia elétrica participaram de projetos que incentivavam alunas do ensino médio a ingressar na área das ciências. Enfim, o engajamento ocorreu de diversas formas e em projetos variados, mas a fala dos estudantes foi semelhante: desenvolveram relações de amizade duradouras com os colegas e os professores do projeto. Como apontam algumas pesquisas, essas relações são fundamentais para que o estudante permaneça na universidade, pois, além do suporte mútuo, contribui para a criação de um sentimento de pertencimento à instituição (Seymour; Hewitt, 2000; Swail; Redd; Perna, 2005; Thomas, 2002).

Outro ponto diz respeito ao envolvimento em organizações culturais/étnicas. Estudos mostram que a participação de estudantes de grupos sub-representados nessas organizações colaboram significativamente na redução do sentimento de isolamento e alienação que muitos adquirem quando ingressam no ensino superior, principalmente na transição entre o ensino médio/trabalho e a universidade. Além disso, esse envolvimento favorece a identificação do indivíduo como membro da instituição, o apoio e fortalecimento do grupo e também funciona como um ponto de enfrentamento contra situações de racismo e preconceito existentes no campus (Hall, 1999; Santos, 2009; Terenzini et al., 1994; Yosso et al., 2009). A UFA possui um núcleo de estudos afro-brasileiros e um centro de convivência indígena. Com exceção de uma estudante indígena do curso de engenharia agrícola, nenhum dos outros 14 estudantes dessa instituição, que participaram da pesquisa, havia se engajado em atividades dessas organizações. Muitos até as desconheciam. Mediante entrevistas com professores, coordenadores de cursos e com membros dessas organizações, aparentemente estudantes de cursos da área das ciências exatas envolvem-se muito pouco nesse tipo de atividade. Compreender o porquê desse não envolvimento poderia ser importante quando discutimos a questão da permanência do estudante beneficiado por ações afirmativas que ingressam em cursos superiores desta área, principalmente quando compreendemos a importância da integração social para sua trajetória universitária.

INTEGRAÇÃO ACADÊMICA

A integração acadêmica está ligada ao desenvolvimento de afiliações com o ambiente acadêmico universitário tanto dentro quanto fora da sala de aula. Essa integração envolve o nível de relacionamento e conexão do estudante com o corpo docente, com a equipe pedagógica e com os colegas, mas de uma natureza acadêmica (Nora, 1993; Pascarella; Terenzini, 1983). Além disso, o nível de participação do estudante em diferentes programas da vida universitária, como programas de pesquisa, projetos institucionais, monitorias e tutorias acadêmicas, atendimentos especializados, entre outros, também pode ser considerado parte da integração acadêmica.

Segundo Foltz, Gannon e Kirschmann (2014), a integração acadêmica possui um peso significativo no progresso de estudantes de cursos de exatas, pertencentes a grupos sub-representados. Foltz e colegas mostraram que programas de tutoria e suporte acadêmico, bem como o envolvimento em programas de pesquisa, foram fatores determinantes no progresso dos estudantes que participaram de seu estudo. Esse fato é corroborado neste estudo. Por exemplo, em relação aos projetos de pesquisa, tradicionalmente chamados nas universidades brasileiras de “iniciação científica”, os estudantes apontaram a conexão entre conteúdos de matemática estudados nas disciplinas e o tema pesquisado como um elemento importante para seu progresso acadêmico. Além disso, o fato de estarem engajados nesses projetos propiciou experiências acadêmicas que dificilmente teriam visto durante as disciplinas do curso, contribuindo, até mesmo, para que adquirissem autonomia nos estudos. Segundo Swail, Redd e Perna (2005), a conexão entre teoria e prática do mundo real propiciada pela participação nesses projetos, traz implicações positivas para a permanência do estudante, enquanto o deixa mais preparado para o mercado de trabalho e para seguir na pós-graduação. José, um estudante de engenharia mecânica da UFA, ingressante por ações afirmativas com base em renda, destacou como foi importante para sua formação o fato de ter participado de um projeto de iniciação científica logo no início de sua graduação. Contudo, apontou que, principalmente devido às reprovações no início do curso, muitos perdem essa oportunidade, já que a nota média global do estudante influencia diretamente nos que são escolhidos para participar de um projeto:

José: Eu acho que a iniciação científica é aquele ponto da faculdade que você pode escolher o que você quer. As disciplinas obrigatórias não tem como você fugir delas. E já a iniciação é o lugar onde você deseja e quer aprofundar o conhecimento em algo. Eu creio que é uma atividade que é, assim, não tinha que ser uma coisa obrigatória de todo mundo fazer, mas seria tão bom se todo aluno tivesse a chance de fazer uma iniciação científica, mesmo tendo alguma reprovação, mesmo com problemas de notas, porque, às vezes, para a iniciação científica os professores gostam de pegar só os alunos que têm um IRA [índice de rendimento acadêmico] muito bom. Então eu acho que não devia ser restrito, mas sim se a pessoa quer fazer iniciação científica, independente de qualquer coisa, nem que seja voluntário ou algo assim, mas tinha que ter alguma chance de fazer, porque foi um crescimento muito bom para mim.

Pesquisas mostram que os estudantes da área das exatas possuem maiores chances de progredir na universidade se participarem de projetos de iniciação científica logo no início dos cursos (Foltz; Gannon; Kirschmann, 2014; Lopatto, 2004). Em contrapartida, pesquisas também mostram que os estudantes pertencentes a grupos sub-representados tendem a participar menos dessas ações em relação a outros estudantes (Hurtado et al., 2007; Hurtado et al., 2010). Diversos motivos podem contribuir para isso. Hurtado et al. (2010) apontam que a questão financeira é um deles. Diferentemente de seus colegas, estudantes pertencentes a grupos sub-representados geralmente precisam se preocupar com assuntos diversos, geralmente relacionados com a sobrevivência material no campus (Santos, 2009). Além disso, o início “turbulento” na universidade, comumente associado às reprovações nas disciplinas de matemática, pode influenciar essa participação, pois diminui as chances de ingressarem em algum projeto, principalmente nos que oferecem bolsas e auxílios financeiros. Claro que não são apenas estudantes beneficiados por ações afirmativas que enfrentam dificuldades acadêmicas no início do curso. Como mencionado, professores entrevistados relataram que a questão da reprovação era um problema geral, independentemente da forma de ingresso do estudante. Apesar disso, os estudantes que participaram da pesquisa, salvo poucas exceções, foram unânimes em relação ao despreparo inicial nas disciplinas de matemática como a principal dificuldade no percurso acadêmico.

Existem muitas possibilidades para o desenvolvimento de ações voltadas para a integração acadêmica do estudante. Como aponta Tinto (1997), o compromisso institucional com essa questão é a primeira e mais importante condição para que o estudante permaneça na universidade. Muitas instituições desenvolvem programas institucionais que visam colaborar para isso. Por exemplo, criam programas de desenvolvimento acadêmico, tutoria, grupos de estudo, mentoria, centros étnicos, suporte financeiro etc. Essas ações são extremamente importantes para os estudantes, principalmente no primeiro ano de universidade (Swail; Redd; Perna, 2005; Tinto; Pusser, 2006). Para estudantes beneficiários de ações afirmativas, essas ações podem fazer a diferença entre persistir e desistir. A UFA e a UFB desenvolveram alguns programas que eram frequentados por estudantes que participaram da pesquisa. Ambas as instituições implementaram, por exemplo, um programa de aconselhamento que ajudava os alunos a montar sua grade horária e a criar “agendas” de estudo. A UFB tinha uma equipe especializada de psicólogos e pedagogos que organizavam workshops e cursos de inserção universitária, além de incentivar o corpo docente a se tornarem tutores de estudantes calouros. Ainda, essas instituições possuíam setores especializados para lidar com questões ligadas às ações afirmativas, oferecendo suporte e auxílios financeiros. Os estudantes entrevistados que participaram de alguma dessas ações apontaram-nas como positivas para seu progresso nos cursos.

Não há dúvidas de que a instituição pode e deve colaborar para a integração social e acadêmica do estudante de uma forma geral. Além disso, um olhar especial deve ser direcionado àqueles estudantes que estão ingressando por meio de ações afirmativas. Geralmente, estes estudantes não encontram orientações necessárias em seu contexto familiar e precisam de um suporte da instituição. Assim, a instituição desempenha um papel ímpar para que as políticas de ações afirmativas não se resumam ao acesso à universidade, mas, sim, a um ciclo que envolve acesso, permanência e formação. Quanto mais a universidade contribui para a completude desse ciclo, mais ela colabora para que as desigualdades sociais, econômicas e de sub-representação nos setores de tomada de decisão da sociedade sejam combatidas. Não obstante, há outros fatores que podem influenciar diretamente a integração social e acadêmica do estudante. Os resultados desse estudo trazem indícios de que o corpo docente pode ser um deles, desempenhando um papel de importância singular em relação à permanência e progresso acadêmico desses estudantes.

O PAPEL DO CORPO DOCENTE

Foltz, Gannon e Kirschmann (2014) mostraram em seu estudo que a integração acadêmica propiciada mediante as conexões estabelecidas com o corpo docente foi um aspecto ao qual estudantes pertencentes a grupos sub-representados deram grande ênfase. Os autores afirmaram que os estudantes se identificaram com um membro do corpo docente que os influenciou tanto no compromisso com as disciplinas do curso quanto no progresso acadêmico. Corroborando o trabalho de Foltz e seus colegas, os resultados desse estudo mostram que estudantes beneficiados por ações afirmativas atribuem grande peso à sua permanência e progresso acadêmico na universidade, devido ao relacionamento positivo que tiveram com algum membro do corpo docente. Os estudantes que tinham professores “mais próximos” durante as disciplinas iniciais de matemática apontaram este fato como extremamente importante, enfatizando que conseguiram progredir mais facilmente nas disciplinas e que elas foram mais bem aproveitadas por eles, visto o suporte e incentivo que recebiam de seus professores, tanto dentro quanto fora da sala de aula. Por exemplo, o estudante Jonas destaca esse ponto. Jonas era beneficiário de ações afirmativas com base em raça e renda, matriculado no curso de engenharia civil da UFA:

Jonas: Na matemática, por exemplo, tem dois professores que constantemente eu converso com eles e, assim, se eu tiver alguma dúvida, eu tenho a liberdade de passar na sala deles e dizer “olha, professor, eu não sei como fazer esse exercício, por onde eu posso começar?” (...). Pelo menos com esses dois professores, eu tenho um bom relacionamento. E isso motiva você a continuar na disciplina, eles não me olhavam como se eu fosse “burro” ou coisa do tipo. Eu sempre passo lá e converso com eles. Há uma relação de proximidade, sabe? Se eu quero estudar algo diferente, eles me orientam, são abertos pra conversar.

Esse tipo de relacionamento faz com que os estudantes se sintam “aceitos” em sua nova comunidade e oferece sinais de confirmação de que eles podem ter sucesso na universidade (Terenzini et al., 1994). Além disso, o contato mais próximo com membros do corpo docente pode ultrapassar questões acadêmicas, manifestando-se em formas de conversas formais e informais sobre carreira, pesquisa e sobrevivência na universidade. Principalmente para estudantes que são os primeiros de suas famílias a ingressar no ensino superior, a universidade exige do aluno um tipo de transição cultural (Terenzini et al., 1994). Professores mais próximos e sensíveis a essas questões podem desempenhar um papel significativo nessa transição. Os resultados deste estudo trazem indícios que corroboram para esse fato. O professor universitário, e em especial de cursos da área das ciências exatas, possui um papel que vai além dos conteúdos pedagógicos trabalhos em sala de aula. Ter a consciência dessa influência positiva torna-se importante para contribuir para a permanência dos estudantes ingressantes por ações afirmativas, que, como mencionado, geralmente são os primeiros de suas famílias a ingressar na universidade.

Para Tinto e Pusser (2006), a aprendizagem do estudante é uma parte importante de seu progresso na universidade, e o cerne dessa aprendizagem está nas relações dentro da sala de aula, sendo essa uma porta de entrada para o seu subsequente envolvimento em comunidades acadêmicas e sociais. Mas é claro que ela também acontece fora da sala de aula, a partir das relações do estudante com o meio acadêmico e social da universidade. Em relação ao corpo docente, a pesquisa discutida neste artigo traz evidências da existência de práticas que atuaram positivamente para a integração do estudante, relacionadas com o engajamento com algum membro do corpo docente, como a proximidade e o apoio em fatores extrapedagógicos. Apesar disso, este estudo também indica a existência de ações que podem trabalhar no sentido oposto. Embora muitos participantes tenham feito menções positivas referentes a atitudes de seus professores, também houve diversas situações que trabalharam negativamente na vontade do estudante em persistir no curso. Por exemplo, a estudante Maria, da UFA, destacou algumas possíveis situações dessa forma, as quais também foram relatadas por outros estudantes ao longo das entrevistas. Maria era uma estudante indígena do curso de engenharia agronômica da UFA, ingressante por meio de vestibular indígena:

Maria: Como eu te falei sobre os professores, eles são muito fechados. Em relação ao meu curso, não tem nenhum professor que chega assim, pelo menos nas exatas, e diz “ah, você está com dificuldades, passa lá na minha sala em tal horário que a gente vê o que vai fazer, vamos tentar sanar suas dúvidas, suas dificuldades”. Em dois anos, nenhum professor fez isso. Os de Cálculo, Botânica e outras matérias, é como se você estivesse assim, eles veem assim, os estudantes que entram é como se todos tivessem feito um cursinho. Então, “vou passar matéria porque já sei que o aluno não vai ter tanta dificuldade”. Grande parte que entra na universidade é de escola particular. O ensino na escola particular é bem mais, como se diz, puxado, (e o aluno) mais preparado do que um aluno que vem de um ensino público sem cursinho, de zona rural. Então a dificuldade é muito grande. O professor dá a matéria, e você tem que “rebolar” pra passar. Eu tentei, paguei professor particular, alguns amigos ajudavam, mas não tive nenhum respaldo de professor, nenhum.

Além disso, diversos estudantes relataram situações em que, de uma forma mais ou menos indireta, professores tiveram atitudes e comportamentos negativos ligados a seus conhecimentos matemáticos. Por exemplo, certas posturas de alguns professores das disciplinas de matemática muitas vezes revelaram uma atitude de superioridade. Ainda, estudantes destacaram situações em que o aparente não domínio de determinado conteúdo matemático, que, teoricamente, deveriam saber, colocou-os em situações de muito desconforto e intimidação, como pode ser visto no recorte da entrevista com Aurélia, ingressante por ações afirmativas com base em renda, do curso de engenharia elétrica da UFA:

Aurélia: O único tratamento diferente é pelo que você sabe. Então, às vezes, você é meio que “desclassificado” pelos professores como “aluno burro”. É aquele aluno que o professor nem dá muita confiança, porque acha que ele não vai crescer na universidade, não vai dar motivo de orgulho depois. Não por ser cotista, mas pelo motivo de não saber algumas coisas que ele [professor] acha essencial e que você já deveria ter aprendido.

Geralmente, de forma inconsciente, certas atitudes de membros do corpo docente podem prejudicar a integração acadêmica do estudante, contribuindo para que este se sinta isolado e intimidado para interagir com colegas ou com os próprios docentes, assumindo um papel de inferioridade relacionado ao seu nível de conhecimento matemático. Como diversas pesquisas apontam, principalmente no primeiro ano, estudantes de cursos da área das ciências exatas que possuem professores mais próximos e mais sensíveis com suas necessidades acadêmicas têm melhores chances de permanecer e progredir na universidade (Foltz; Gannon; Kirschmann, 2014; Hrabowski; Maton, 2009; Swail; Redd; Perna, 2005; Tinto; Pusser, 2006). Assim, o progresso do estudante na universidade é uma empreitada de todos, administradores e docentes, e não é simplesmente um reflexo de seus próprios atributos individuais, habilidades e motivações.

ALÉM DO PEDAGÓGICO

Os resultados deste trabalho trazem indicações de que, de uma forma muito similar, estudantes ingressantes por ações afirmativas em cursos superiores da área das ciências exatas, independentemente do tipo de reserva de vaga utilizada, possuem preocupações e anseios ligados à sua preparação acadêmica inicial para enfrentar as disciplinas de matemática, atribuem grande ênfase a aspectos relacionados à integração social e acadêmica e são influenciados por atitudes positivas e negativas do corpo docente durante sua trajetória universitária. Além disso, adotam estratégias de sobrevivência acadêmica nas disciplinas de matemática em caminhos muito semelhantes. Por exemplo, muitos alunos apontaram que constantemente utilizavam a internet para assistir a videoaulas de conteúdos das disciplinas de matemática, como Cálculo I e II, Geometria Analítica, Álgebra Linear, entre outras, frequentemente utilizando os computadores e internet da instituição. Em outra estratégia, estudantes buscam, ao longo do curso, apoio especial de um ou dois colegas, geralmente também beneficiários de ações afirmativas, desenvolvendo uma relação de suporte mútuo no que tange a estudo dos conteúdos das disciplinas de matemática. Recorrentemente, esses estudantes também utilizavam estratégias de “cooperação” e “polarização” (Santos, 2009). Na primeira, organizavam-se em grupos de estudos heterogêneos, formados por beneficiários e não beneficiários de ações afirmativas. Na segunda, os estudantes partilhavam os estudos em grupos formados apenas por estudantes beneficiários de ações afirmativas, considerados iguais em termos raciais, econômicos ou de origem. O objetivo era o de desenvolver atributos para sobreviver no meio acadêmico e enfrentar as disciplinas de matemática

Entretanto, existem elementos que interferem na permanência e no progresso do estudante que ultrapassam aspectos pedagógicos. Segundo Hall (1999), o clima institucional e fatores não cognitivos geralmente são mais importantes para determinar o progresso de estudantes pertencentes a grupos sub-representados na universidade do que para outros estudantes. Os resultados desta pesquisa corroboram esse fato. Além disso, mostram que, dependendo do tipo de reserva de vagas utilizada pelos estudantes, diferenças muito acentuadas surgem em relação aos elementos não pedagógicos, principalmente em relação às estratégias de sobrevivência material na universidade, às experiências relacionadas com microagressões e às atitudes e posicionamentos frente às ações afirmativas.

As universidades públicas federais brasileiras utilizam a reserva de vagas como uma política de ação afirmativa de ingresso, por meio das seguintes categorias: ampla concorrência; estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a 1,5 salários mínimos; estudantes de escolas públicas com renda familiar inferior a 1,5 salários mínimos; estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a 1,5 salários mínimos, autodeclarados pretos, pardos ou indígenas; estudantes de escolas públicas com renda familiar inferior a 1,5 salários mínimos, autodeclarados pretos, pardos ou indígenas (Brasil, 2012). Neste trabalho, foram entrevistados estudantes beneficiados por ações afirmativas distribuídos nas quatro últimas categorias. Entre os que ingressaram pela reserva de vagas com base em renda e raça ou com base apenas em renda, a sobrevivência material no campus era um dos fatores que afetavam consideravelmente suas vidas na universidade. Este fato foi ainda mais evidente na UFA. Os alunos da UFB alegaram que a instituição oferecia um bom repertório de auxílios, e todos os entrevistados recebiam algum auxílio do tipo financeiro. Além disso, a maior parte deles recebeu, pelo menos por um, ano uma Bolsa Permanência mensal no valor de R$ 400,00. Esse é um auxílio oferecido pelo Ministério da Educação (MEC) para estudantes que ingressaram em universidades federais por ações afirmativas. Os estudantes da UFA alegaram que os cursos de engenharia da instituição não se encaixavam nos padrões exigidos5 pelo MEC e por isso esse auxílio não poderia ser solicitado por eles. Na UFA, estudantes de famílias de baixa renda recebiam auxílio-alimentação, moradia e um auxílio-atividade no valor de R$ 180,00 mensais no primeiro ano do curso. Quando não conseguiam alguma bolsa de iniciação científica ou de extensão, viam-se em uma situação complicada. Como a família geralmente não tinha condições de enviar dinheiro, e os cursos eram em período integral, alguns trabalhavam nos finais de semana ou então tentavam concentrar as disciplinas em um único período, para trabalhar no outro. Mas nem sempre isso era viável. Dessa forma, esses estudantes passavam por situações muito “estressantes” e precisavam gastar muita energia com questões relacionadas ao aspecto financeiro. O recorte da entrevista com Ricardo, do curso de engenharia de materiais da UFA, resume esse sentimento:

Ricardo: Olha, eu acredito que uma das principais dificuldades nossas é a questão financeira ainda. A universidade dá um repasse muito baixo pra pagar aluguel, por exemplo, e eu tenho que tirar a outra parte do meu bolso. Isso acaba pesando. Eu acho que ela deveria dar um auxílio maior nessa questão. E eu acho muito discriminatório também somente nos cursos que você tem uma carga horária maior poder ganhar aquela bolsa permanência do Governo Federal. Eu acho que, assim, não querendo relevar o pessoal que faz medicina e esses cursos, mas a gente estuda muito mais do que cinco horas por dia. É complicado a gente conseguir a nossa permanência aqui por causa disso. Minha família não tem condição de me ajudar. Eu vejo meus amigos lá na minha cidade, eu falo pra eles tentarem entrar em uma universidade pública, mas eles falam que, mesmo que consigam passar, não têm como se manter aqui.

Hurtado et al. (2007) afirmam que, se comparada com outros estudantes, a trajetória daqueles pertencentes a grupos sub-representados no ensino superior é mais prejudicada na universidade por conta de preocupações financeiras. Tinto e Pusser (2006) enfatizam que essa situação leva os estudantes a gastar mais tempo para se graduarem no curso, pois necessitam trabalhar em horários alternativos para conseguirem recursos. Foi o caso de muitos estudantes que participaram da pesquisa, principalmente aqueles que ingressaram pelas ações afirmativas com base em renda.

Outro ponto que ultrapassa questões pedagógicas diz respeito às microagressões existentes no contexto universitário. Microagressões são formas mais ou menos sutis de insultos e ofensas verbais (ou não verbais), com desfeitas de grau hostil, depreciativo e negativo, direcionadas contra indivíduos por questões fortemente relacionadas à raça, gênero, etnia, classe social, local de origem, idioma etc., muitas vezes praticadas de forma inconsciente pelos agressores, e que causam um profundo impacto na vida dos agredidos (Minikel-Lacocque, 2013; Solórzano; Ceja; Yosso, 2000; Sue et al., 2007). Estudantes que ingressaram pela reserva de vagas com base em critérios raciais e étnicos relataram diversos casos envolvendo microagressões raciais e étnicas, fato que passava despercebido por aqueles que utilizaram outro tipo de reserva de vaga. Estes últimos afirmaram que nunca haviam visto, ouvido ou mesmo presenciado nenhum ato discriminatório na universidade. Isso pode acontecer devido à sutilidade das microagressões, corroborando o fato de que indivíduos brancos geralmente são inconscientes de sua existência. Microagressões relacionadas agênero também faziam parte da rotina de estudantes do gênero feminino em cursos predominantemente masculinos, como o caso das engenharias. Os recortes das entrevistas a seguir exemplificam estas questões:

Malcon: Uma vez, durante uma prova, a sala foi dividida. Era prova de álgebra linear. Daí um aluno errou de sala e entrou na nossa, depois que a prova tinha começado. Ele estava meio perdido e se assustou quando viu que não era a turma dele. O pessoal deu risada, e ele saiu meio sem graça. Daí o professor virou e falou: “ele deve ser cotista”, tipo desprezando, como se cotista fosse algo bizarro, sei lá, como se fosse inferior, sei lá, tivesse algum problema. Aí eu lá do fundo, levantei a mão e disse: “professor, como é que é? Não entendi por que você falou isso. Eu sou cotista, o que você quer dizer com isso?”. Daí metade da sala continuou rindo, e um menino lá, abastado, cheio de dinheiro, levantou a voz e disse: “ah, ele não gostou da brincadeira”. Eu disse: “não gostei mesmo, o cara se referiu ao menino ali só porque ele estava meio perdido, então quer dizer que os cotistas são tudo perdidos, meio sem rumo. Eu sou cotista, então sou sem rumo?”. Aí o professor disse: “é melhor a gente voltar pra prova porque tem gente que não gostou da brincadeira”. Eu não gostei mesmo, fiquei muito irritado. Eu fiquei muito irritado. Nem consegui fazer a prova.

Silvana: “Em relação aos colegas de turma, sempre havia piadas na formação de grupos para trabalho, do tipo: “tem que ter menina para fazer a capa, para escrever a introdução”. Obviamente, depois de um tempo, percebe-se quais são os alunos aplicados e que têm bom desempenho, aqueles com os quais se deseja fazer trabalho em grupo, independentemente do gênero. O grande problema é que no início, quando ninguém se conhece, por ser mulher, você não tem a mesma credibilidade para as atividades da área de exatas, é preciso provar constantemente sua capacidade. (...) Posso dizer que as implicações psicológicas e também no rendimento acadêmico não são tão grandes como quando o problema acontece por parte dos professores. E isso ocorre bastante. Alguns professores não disfarçam que realmente consideram que uma menina não é capaz de ser engenheira. Já ouvi comentários do tipo: “Mulher tem dificuldade com visão 3D, difícil ir bem em desenho técnico e projeto”; “Fala para algum dos meninos te explicar essa passagem, você não entendeu o problema porque não tem uma abordagem tão racional quanto de homem”; “Mulher que presta engenharia está procurando marido”. Esses comentários influenciam e muito na autoestima das estudantes, e algumas chegam mesmo a acreditar que não têm capacidade para o curso.

Os resultados desta pesquisa trazem evidências de que as microagressões experienciadas pelos estudantes ocorreram tanto nas relações estudante-estudante quanto estudante-professor. Como apontam diversas pesquisas, a constante exposição a esse tipo de insulto pode se tornar um fator negativo para a permanência e desempenho acadêmico, pois interfere negativamente na integração social e acadêmica, bem como no clima racial do campus, levando muitos estudantes a trocar de universidades ou simplesmente desistir de seus cursos (Minikel-Lacocque, 2013; Rollock, 2012; Solórzano; Ceja; Yosso, 2000; Silva; Powell, 2016). Nessa perspectiva, além da pressão das disciplinas, de um sentimento de despreparo inicial em relacão à matemática e da falta de recursos financeiros para sua sobrevivência material no campus, esses estudantes precisam administrar questões relacionadas com microagressões raciais, étnicas e de gênero em seu cotidiano na universidade.

Por fim, outro ponto no qual os dados mostraram divergências, dependendo do tipo de reserva de vaga utilizada pelos estudantes beneficiários de ações afirmativas, diz respeito a certas atitudes frente às próprias ações afirmativas. De forma geral, os estudantes mostravam-se amplamente favoráveis à adoção de critérios diferenciados para o acesso à universidade, levando em conta tanto aspectos sociais quanto raciais. Muitos afirmaram que jamais teriam ingressado em uma instituição pública sem as ações afirmativas. Contudo, mesmo entre os estudantes que ingressaram por ações afirmativas, houve aqueles que não concordavam com a utilização de critérios raciais. Esses utilizaram apenas o critério de estudar na escola pública para ingressar na universidade. Apoiavam o uso de ações afirmativas para estudantes da escola pública e baixa renda, mas eram contrários quando o assunto raça era levado em conta. Adriana foi uma destas estudantes. Adriana era do curso de engenharia mecânica da UFA, ingressante por ações afirmativas por ter estudado na rede pública. Na verdade, Adriana fez seu ensino médio em uma escola federal de educação. Seus pais possuíam nível superior e bons empregos, fornecendo todo o suporte financeiro para que ela pudesse sobreviver na universidade:

Adriana: Eu concordo com as ações afirmativas até certo ponto. Eu acho que cotas para ensino médio... o sistema é bacana, mas não corrige o problema. O problema está lá no ensino fundamental, não no ensino médio. Agora, cota pra negro eu sou contra. Eu acho que o mérito é pra todo mundo. Eu tenho parentes negros que não se abalaram por conta do preconceito e acho que, se as pessoas se abalassem, não tinham tantos bons exemplos no nordeste, de gente que se esforçou e foi melhor do que muita gente branca que passou. Acho que, a partir do momento que você vira e fala “ah, não tem raça no ser humano”, mas você cria a cota, você está criando uma hipocrisia na sociedade, então eu acho que isso está errado. Eu acho que você tem que seguir uma linha. Não, não tem raça. Então a gente vai ter que melhorar o básico, que é onde a maioria das pessoas tem acesso, pra depois elas terem a mesma classificação na universidade. Mas acho que cota é emergencial, e não efetiva.

Apesar de ser beneficiada por uma política afirmativa, Adriana discordava de todas aquelas que considerassem raça como critério, exemplificando uma postura que se encaixa na perspectiva chamada por Rawls (2003) de “intuicionismo”, entendida como uma variedade de princípios fundamentais que podem entrar em conflito, oferecendo diretrizes contrárias em casos semelhantes. Mesmo pertencendo a um grupo tradicionalmente sub-representado na universidade pública brasileira, que são estudantes egressos do ensino básico público, Adriana, e pelo menos mais um estudante que participou da pesquisa, vinham de uma família com boas condições financeiras, eram provenientes de famílias com tradição em frequentar o ensino superior e não faziam parte de grupos étnica ou racialmente sub-representados. Isso mostra que, mesmo com todo o esforço, as ações afirmativas ainda podem beneficiar estudantes que, do ponto de vista racial e social, têm sido os principais frequentadores das universidades públicas brasileiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados deste trabalho sugerem que a permanência e o progresso acadêmico do estudante beneficiado por ações afirmativas são temas complexos. Em especial, consideramos que as pesquisas no âmbito da Educação Matemática não podem agir com neutralidade frente a essa complexidade. Particularmente, este artigo enfatiza alguns elementos que podem contribuir nessa temática e que se mostraram relacionados com a preparação acadêmica inicial, integração social e acadêmica, envolvimento do estudante com o corpo docente e em programas institucionais, bem como o peso de questões que ultrapassam o pedagógico, como aspectos financeiros e ligados às microagressões. Além disso, em outros trabalhos (Silva, 2016a; Silva, 2017), discutimos possibilidades de engajamento da Educação Matemática tanto na dimensão de ingresso quanto na dimensão de permanência das ações afirmativas, apontando para possíveis formas de compreender as especificidades educacionais demandadas por essas políticas e também os desafios que elas têm imposto para a prática docente universitária relacionada à matemática e à educação matemática.

Em particular, um exemplo de tal especificidade pode ser observada no que tange às próprias microagressões. Como já destacado, microagressões em termos de raça, etnia e gênero se mostraram corriqueiras no cotidiano dos estudantes que participaram do estudo, mesmo após terem vencido preconceitos e barreiras para o acesso à universidade. Contudo, em muitas situações, elas não se apegaram a esses termos, tampouco na forma de ingresso dos estudantes, mas mostraram-se ligadas ao nível de conhecimento matemático que possuíam. Como destacamos, determinadas posturas de alguns professores muitas vezes expuseram uma atitude de superioridade, por meio de ofensas sutis e nebulosas. Outras vezes, manifestaram-se sob formas mais diretas e propositadas de insultos. Diversos estudantes destacaram situações em que o aparente não domínio de determinados conteúdos matemáticos, considerados “básicos” na visão da matemática universitária, colocou-os em situações de desconforto e intimidação. Em outras situações, diretamente (de forma consciente ou não) professores e colegas consideraram que as perguntas ou questionamentos dos estudantes eram “infantis” ou mesmo “triviais” para a disciplina. Consideramos que microagressões desse tipo podem contribuir para o isolamento dos estudantes, pois podem se sentir intimidados para interagir durante a aula, assumindo um papel de inferioridade por uma aparente falta de conhecimento matemático. Tais microagressões podem, até cooperar para que os estudantes fiquem com a sensação de que realmente não deveriam estar naquele curso, naquela universidade, pois sentem que não possuem o repertório acadêmico necessário para tanto e que não são capazes de enfrentar esse obstáculo.6

Por fim, é importante ressaltar que, mesmo de forma lenta, as ações afirmativas estão mudando o padrão das universidades brasileiras, tornando-as mais diversificadas tanto do ponto de vista socioeconômico quanto racial, étnico e cultural (Ristoff, 2014). Tal diversidade foi apontada como um fator positivo pela maior parte dos participantes da pesquisa. Muitos, contudo, tinham a sensação de que a quantidade de negros e indígenas em suas turmas ainda era muito pequena. Segundo Ristoff (2014), apesar de a porcentagem de estudantes brancos ter diminuído e a de negros ter aumentado, como um todo, o ensino superior brasileiro ainda é um contexto majoritariamente formado por estudantes brancos e com renda mais elevada. Malcon e Tiago, por exemplo, afirmaram que eram os dois únicos negros de sua turma de engenharia mecânica. Eles haviam ingressado em 2013, após a aprovação da Lei de Cotas. Relataram que não viam a mesma diversidade que existia no campus se refletir no “bloco das exatas”. Isso reforça a necessidade da manutenção dessas políticas no contexto universitário brasileiro. Possivelmente, será preciso que mais gerações desses estudantes acessem, permaneçam e concluam a universidade para que tal sub-representação seja mitigada nesse contexto. Assim, este trabalho aponta para a necessidade de que as discussões em torno das políticas afirmativas ultrapassem questões simplesmente ligadas ao acesso a níveis mais elevados de educação e que se preocupem com formas de tornar mais efetivas a permanência e o progresso acadêmico desses estudantes na instituição.

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1Este trabalho fez parte de uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP -, no âmbito do convênio com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES -, processo n. 2014/05584-3.

2Com o intuito de preservar a identidade dos participantes, os nomes que aparecem neste texto são fictícios.

3Veja-se, por exemplo, Silva (2016b).

4Sobre este tópico, veja-se a discussão em Silva (2016c) e Silva (2017).

5 Para ter direito a concorrer à bolsa permanência, o estudante deve, entre outros fatores, possuir renda per capita familiar igual ou inferior a um salário mínimo e meio e deve estar matriculado em um curso de graduação com carga horária média superior ou igual a cinco horas diárias. Na UFA, apenas os cursos de medicina, fisioterapia e terapia ocupacional se encaixam neste último critério.

6Veja-se Silva (2016c) e Silva e Powell (2017) onde essa questão é mais bem debatida.

Recebido: 20 de Outubro de 2016; Aceito: 14 de Março de 2019

Contato: Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), Departamento de Matemática, Rua Gabriel Monteiro da Silva, n. 700, Centro, Alfenas|MG|Brasil. CEP 37.130-001

GUILHERME H. G. DA SILVA - Doutor em Educação Matemática pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), campus de Rio Claro-SP. E-mail:<guilherme.silva@unifal-mg.edu.br>.

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