INTRODUÇÃO
O texto tem como propósito compreender o lugar do Instituto Central de Ginástica de Estocolmo (GCI)2 no cultivo e na divulgação de um método ginástico - a ginástica sueca ou a ginástica de Ling.3 Intenta, também, mostrar, desde o Instituto, as maneiras como viaja até o Brasil e como, em terras brasileiras, vai aparecendo e se transformando.
Compreender a construção, transformação e circulação da ginástica de Ling, por meio de uma instituição, o GCI, se alinha a uma perspectiva historiográfica que altera o olhar para o objeto, observando-o “por dentro”. Inspirados em Revel (1998), poderíamos dizer, “ajustando a escala de análise”. O zoom é acionado para procurar a trajetória singular, vislumbrando perceber, nos métodos ginásticos, os sujeitos e as peculiaridades que marcaram sua construção e transformação. Sair de uma posição de olhar “de cima”, para uma posição que nos permita olhar “por dentro”. Revel (1998) afirma que escolher uma escala de observação, variando a objetiva, não significa apenas aumentar ou diminuir o tamanho do objeto, mas modificar sua forma e sua trama. No Brasil, a abordagem microanalítica nos estudos brasileiros tem sido um investimento relativamente recente na historiografia da Educação Física, apenas por volta de duas décadas. Mais ainda se pensarmos no tema da ginástica e de sua história.
Segundo Melo (1999), podemos perceber diferentes fases pelas quais caminharam o contar da história da Educação Física no Brasil. As primeiras fases se caracterizam pela ausência de recortes específicos de objetos, vinculando-se a periodizações políticas amplas e traçadas em longos marcos temporais, pela restrição no uso das fontes, pela preocupação no levantamento de datas, nomes e fatos e pautadas na experiência de grandes expoentes. Historiadores como Fernando de Azevedo (1920), Inezil Penna Marinho (1958) e Jair Jordão Ramos (1982), são os principais nomes dessas primeiras fases.
No que se refere à ginástica, preocupavam-se com a apresentação dos sistemas europeus, vislumbrando definir aquele a ser considerado mais adequado ao Brasil. Abordavam-na a partir da generalização dos métodos, sem preocupação com os diferentes sujeitos e as singularidades que marcaram a história da ginástica em diferentes lugares, inclusive no Brasil.4 Em geral, eram defensores da prática da ginástica sueca nas escolas, considerando seu valor educativo. É o que podemos perceber, por exemplo, no trecho de autoria de Fernando de Azevedo:
D’entre todas as escolas, que se propõem alcançar o alvo a que deve tender toda educação physica escolar, nenhum por certo sobreleva ao methodo de Ling na observação das leis physiológicas, na scientifica urdidura de todo o systema e em fructos imediatos. [...] Êste método, incontestavelmente o melhor sob o ponto de vista pedagógico, é chamado a suprir no sistema de educação uma grave lacuna que antes do século XIX os governos e os particulares deixavam em aberto [...]. (AZEVEDO, 1920, p. 149-150)
É certo que, com o tempo, o “contar” na Educação Física foi se refinando e mobilizando metodologias do campo da história. Movimento não linear e tateante, onde é possível perceber avanços no que se refere aos aspectos historiográficos, mas ainda sinalizam problemas de ordem metodológica, como a dispensa de fatos, datas e nomes em contraposição à centralidade que esses aspectos apresentavam nos períodos anteriores.5
É importante destacar as obras de Carmem Lúcia Soares (1990) e Silvana Vilodre Goellner (1992), as quais fazem avançar a narrativa da e sobre a Educação Física, e particularmente da ginástica, ao tramá-la a partir de problemas bem delineados no tempo passado, ao mobilizarem fontes documentais e dialogarem com o arcabouço teórico do campo da História.
Passadas duas décadas dos escritos de Melo (1999), percebemos uma reconfiguração do campo historiográfico. Taborda de Oliveira (2007) indica que se por um lado esse movimento de renovação historiográfica da Educação Física apresentou avanços significativos tanto nos aspectos qualitativos e quantitativos, por outro é preciso que essa renovação esteja continuamente atenta e reflexiva aos temas eleitos, aos recortes de objetos, às definições de problemas, ao uso das fontes e aos diálogos teóricos.
Percebe-se que o diálogo com a chamada História Cultural que tão fortemente floresceu no campo da História, de maneira ampla, e na História da Educação, de maneira mais específica, também impactou os estudos sobre a História da Educação Física. Os trabalhos de pesquisa que tematizam a ginástica passam a tomá-la como objeto cultural, e, do ponto de vista metodológico, a operar com um recorte temporal definido internamente ao problema/objeto, priorizando os sujeitos e suas práticas, não desconsiderando as datas, nomes e fatos e os inserindo de forma orgânica na proposta de estudo. Podemos citar os estudos de Góis Junior (2013; 2015); Melo e Peres (2014, 2016); Puchta (2015); Soares (2000, 2015), Gleyse, Dalben e Soares (2013); Quitzau (2016); Quitzau e Soares (2016); Jubé (2017); Moreno (2001, 2015); Soares e Moreno (2015); Romão e Moreno (2018); Baía, Bonifácio e Moreno (2017); e Avelar (2018).6
Esses estudos, ao elegerem trajetórias de sujeitos, de instituições, ao elegerem determinados livros, manuais, jornais ou revistas - não só como fonte, mas também como objetos de pesquisa - revelam o movimento de “ajuste da objetiva”, permitindo sofisticar o olhar para os mesmos, refinando o olhar mais “por dentro” e menos “por cima”.7
Ao buscarmos pesquisas que tematizam a ginástica, para além das fronteiras do Brasil, esse movimento também é percebido em diferentes países. Podemos citar, em Portugal, Carvalho e Correia (2015); na França, Sarremejane (2006), Andrieu (1988, 1999), Bui-xuân e Gleyse (2001); na Suécia, Ljunggren (2011), Lundvall (2015); na Argentina, Scharagrodsky (2011); e no Uruguai, Giménez (2011), entre outros.8 No conjunto de esforços empreendidos pela comunidade acadêmica internacional, essas pesquisas realizam um movimento de pensar a ginástica, conectando o micro e o macro, para percebê-la como elemento de uma educação do corpo requisitada em diferentes lugares, por diferentes sujeitos e com diversas motivações. Como dissemos, novas tramas vão sendo possíveis a partir do ajuste das objetivas.
Nas pesquisas empreendidas no âmbito do Grupo de Estudo e Pesquisa em História da Ginástica (GEPHGI),9 do qual os autores desse artigo são membros, tem-se realizado o esforço de “fechar a objetiva” para estudar a ginástica, elegendo sujeitos, manuais e instituições, os quais tiveram papel singular na construção dessa prática em diferentes países. Podemos citar os estudos de Moreno (2016), Baia (2018), Romão (2018), Martini (2018), Cabral (2017), Avelar (2018), Bonifácio (2018), Faria (2016) e Santana (2017).
É nesse movimento coletivo de pesquisa que foi possível construir a hipótese, já anunciada em outros trabalhos,10 de que o GCI se torna o epicentro da ginástica de Ling no mundo, divulgando o método e fazendo-o viajar além das fronteiras suecas. Estudar, pois, essa instituição, que tanto cuidou do legado “sagrado” de seu precursor, o qual deveria ser defendido de qualquer ameaça, construindo, por anos, ações nessa direção, pareceu-nos imprescindível.11 Rastrear e compreender o Instituto como lugar de cultivo da educação do corpo, como lugar de guarda e preservação do método de Ling, como lugar de divulgação dessa prática no mundo e, particularmente, no Brasil, mostrou-se um percurso de pesquisa potente.
O INSTITUTO CENTRAL DE GINÁSTICA: LUGAR DE REFERÊNCIA PARA A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
Importante personagem na criação do Instituto Central de Ginástica, em Estocolmo, foi Pehr Henrik Ling.12 Nascido em 15 de novembro de 1776, na Suécia, teve sua atuação com a ginástica marcada pela sua passagem pela Dinamarca onde residiu por cinco anos.13 Em Copenhagen, frequentou aulas com Nachtegall (1777-1847), que marcariam, posteriormente, seu retorno à Suécia e sua dedicação à ginástica até 1839, momento de sua morte.14 Nachtegall já havia começado a formar professores de ginástica para o exército e para as escolas (PEREIRA, s/d). Ling, inspirado no trabalho do dinamarquês, planejava abrir em Estocolmo uma escola de formação de professores de ginástica para toda a Suécia.
Em 1813, Ling instala-se em Estocolmo, para atuar como professor de esgrima na Academia Militar, em Karlberg, região norte da cidade de Estocolmo.15 Paralelamente a esse trabalho, o sueco propõe à Comissão de Educação do governo um projeto de treinamento físico para jovens, por meio da ginástica. Com apoio formal de Esaias Tegnér, da Universidade de Lund,16 o Estado aprovou a proposta de Ling, e passou a reunir as condições necessárias para a criação do Instituto Central de Ginástica de Estocolmo.17

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IMAGEM 1 Instituto Central de Ginástica de Estocolmo, em 1900
O Instituto foi inaugurado em 1814, ocupando inicialmente salas adaptadas de prédios antigos que haviam abrigado uma fundição de canhão. Permaneceu nesse espaço toda sua trajetória, recebendo subsídios do governo real ao longo dos anos, o que possibilitou ampliar os espaços e suas atividades.18 Foi construído na região central da cidade.19 Sua denominação, Central, fazia referência à função de centralizar a formação do professor de ginástica em todo país, e no período em que se denominou Royal, marcava também o caráter estatal do mesmo. Vale lembrar que para tornar-se professor de ginástica nas escolas públicas na Suécia, obrigatoriamente deveria ter sido formado no Instituto. O mesmo valia para atuar como médico-ginasta: a licença concedida pelo Conselho de Saúde era condicionada aos estudos no GCI20 (POSSE, 1891).
Ao ar livre, a estrutura do Instituto comportava uma quadra triangular pavimentada (seção A) e um pátio de cascalho na parte traseira (seção B). As seções C e D tinham três andares de construção, abrigava a casa do diretor, de alguns professores e funcionários e, no térreo, camarins. A seção E estava destinada à ginástica médica, tendo um segundo andar ocupado por biblioteca, sala de leitura, duas salas de aula, sala para uso dos alunos e sala para armazenamento das coleções de anatomia. A seção F abrigava os camarins masculinos. As seções G e H, construídas em dois andares, comportavam na parte inferior, um amplo espaço para ginástica escolar e esgrima. Na parte superior, duas salas para a ginástica médica (atividade para aqueles que pagavam pelo tratamento), espaço de ginástica escolar e salas de aula. A seção I era destinada aos exercícios práticos de anatomia. Oposto a essa, a seção J, destinada aos aparelhos de ginástica. As seções referentes à letra K eram destinadas à guarda de pertences das pessoas que frequentavam o Instituto (LEONARD, 1923).

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IMAGENS 3 Espaços para ginástica no Instituto Central de Ginástica de Estocolmo, em 1900
A organização do Instituto era realizada por um conselho, composto por um diretor e três outros membros, dos quais um deveria ser militar, outro professor e um médico21 (LEONARD, 1923). Essa composição guarda relação com a crença de Ling, de que ginástica deveria ter lugar na educação, na medicina (prevenção e cura) e na defesa nacional. Ling foi o primeiro diretor, permanecendo no cargo de 1813 até 1839, momento de sua morte (HOLMSTRÖM, 1949). Outros diretores foram indicados na sequência e, quase sempre com mandatos duradouros.
Ling atuou sozinho até 1818, quando recebe Gabriel Branting, médico, para atuar como segundo professor do estabelecimento. Branting havia estudado na maior Faculdade de Medicina da Suécia à época, o Karolinska Mediko-Kirurgiska Institut. Havia sido aluno de Ling no Instituto em seu primeiro ano de funcionamento, sendo seu assistente na Academia Militar de Karlberg. Ao longo de sua trajetória, dedicou-se ao aperfeiçoamento dos fundamentos médicos da ginástica.22 Ling depositava muita confiança em Branting, transferindo gradualmente a responsabilidade da instrução teórica e prática, tornando-o figura central na continuação do trabalho do idealizador (LEONARD, 1923; PEREIRA, S/d).
Em 1829, Carl August Georgii inicia sua trajetória como professor no Instituto. Assim como Branting, Georgii era muito respeitado por Ling e foi um dos responsáveis por continuar seu trabalho. Uma de suas principais contribuições foi a finalização e publicação da principal obra de Ling, Gymnastikens allmänna grunder,23 em parceria com P. J. Liedbeck24 (PEREIRA, S/d, 309-310; HAGELIN, 1995).
Hjalmar Fredrik Ling, filho do P. H Ling, que havia estudado no Instituto, iniciou em 1843 sua atuação como professor e responsável pelo desenvolvimento da ginástica educativa. Seu trabalho tornou possível a adequação da ginástica de Ling nas escolas suecas. Inspirado na obra do pai, Hjalmar criou novos aparelhos adaptados às necessidades da escola e ampliou as possibilidades de exercícios, permitindo que grande quantidade de alunos pudesse se exercitar ao mesmo tempo. Também sistematizou os exercícios mais adequados em grupos - de acordo com as especificidades e a progressão. Essa realização foi fundamental para a organização de lições para meninas e meninos em idade escolar, de diferentes idades e com graus de habilidades distintos (LEONARD, 1923; PEREIRA, S/d). Dedicou-se, portanto, de forma contundente, no tema da ginástica pedagógica. É dele a autoria dos inúmeros desenhos de formas e movimentos da ginástica educativa - uma coleção de figuras de acordo com o efeito no organismo, em diferentes classes, como eram os planos de seu pai.
Branting, Georgii e Hjalmar não apenas reproduziram saberes e práticas, mas atuaram no aperfeiçoamento do seu método. Lindroth (1979) afirma que a tarefa dos seguidores não foi tranquila - Ling não deixou escritos sobre a ginástica de forma a auxiliar a continuação de seu trabalho. Para o autor, a forte marca filosófica em Gymanastikens allmanna grunder, torna a obra não muito clara.25 Assim, muito do que se atribui a Ling tem a mediação, marca das experiências, que Branting e Georgii estabeleceram com o precursor, resultado do convívio de décadas.26

Fonte: Adaptado de Pereira (S/d) e Leonard (1923).
QUADRO 2 Primeiros continuadores do trabalho no GCI
Em 1900 e 1901, o corpo de instrução do Instituto incluía um professor principal e um segundo professor em cada um dos três departamentos; duas professoras, uma delas em Higiene e outra em Medicina-ginástica; professores extras, homens e mulheres, num total de quinze pessoas.27 Esses professores eram responsáveis pela oferta de três cursos para o sexo masculino que formavam instrutores para o exército, professores de ginástica e médicos-ginasta. Para as mulheres, havia um curso único com duração de dois anos.28 O Instituto funcionava durante todo o dia, com a formação e a presença de alunos de escolas e pacientes que necessitavam ginástica médica. Cerca de 500 crianças frequentavam o GCI diariamente. As aulas para esse público serviam para treinamento dos alunos em formação. Em cada sala, os alunos eram subdivididos em pequenos grupos, sob a supervisão dos alunos do GCI. Para diversos autores, essa era uma das qualidades do trabalho do Instituto: a possibilidade de vivência prática do ensino da ginástica (LEONARD, 1923; POSSE, 1891).

Fonte: https://www.gih.se/Bibliotek/Om-biblioteket/Foton-ur-arkivet/Barngymnastik/Barngymnastik-1/
IMAGEM 5 Provável aula com alunos da escola elementar Klara, no GCI, em 1893

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/Category:Gymnastiska_Centralinstitutet#/media/File:Lektion _i_anatomi_vid_Gymnastiska_Centralinstitutet_Stockholm_kvinnliga_kursen_1891-1893_gih0124.jpg
IMAGEM 6 Aula de Anatomia com alunas no GCI (1891-1893)
Durante o primeiro ano, não importava o curso, os alunos tinham aulas comuns de (1) anatomia; (2) fisiologia da circulação e dos órgãos de nutrição e respiração; (3) teoria da ginástica educativa, incluindo posições, movimentos, comandos, lições e progressões; (4) ginástica militar e (5) teoria da esgrima. Somada às aulas teóricas, desde o primeiro ano do curso, havia instrução prática de ginástica educativa e esgrima (PEREIRA, S/d; LEONARD, 1923; POSSE, 1891).
No segundo ano, os alunos, além daquelas matérias teóricas citadas (agora mais amplas e profundas), tinham ainda (1) cinesiologia e (2) teoria da ginástica médica. No terceiro ano, os alunos tinham a oportunidade, ainda, de auxiliar no tratamento do grande número de pacientes que visitam o Instituto (PEREIRA, S/d; LEONARD, 1923; POSSE, 1891).
Uma vez formados, os professores ainda estavam sob supervisão do Instituto. Toda a ginástica sueca ministrada nas escolas era minuciosamente controlada pelo GCI. Segundo Posse (1891), o diretor do GCI tinha como um dos deveres fiscalizar a instrução da ginástica em todo o país, viajando de cidade a cidade. Professores poderiam ser afastados dos estabelecimentos escolares caso fossem considerados inaptos para o ensino do método. Para o autor, essa supervisão garantia a excelência do ensino da ginástica e a uniformidade no método.29
Percebe-se assim, que, lentamente, ao longo do tempo, o Instituto foi, intensa e extensivamente, assertiva e organizadamente se consolidando. Estruturou seu espaço físico de forma a poder colocar em prática sua proposta de tornar a ginástica uma matéria transversal para todas as crianças e jovens da Suécia. Além disso, colocou-se como o lugar de referência para a proposta de educação do corpo do povo sueco. Apostar na formação de professores de ginástica foi uma das estratégias fundamentais para dar conta de tal empreitada, investindo nos cursos, na especialização e na formação teórico-prática.
DESDE ESTOCOLMO: ESTRATÉGIAS DE DIVULGAÇÃO DA GINÁSTICA SUECA
Como vimos, o GCI teve um papel fundamental no processo de circulação das ideias de Ling e vai se constituindo como centro irradiador do método. Na Suécia fez o método se expandir e daí o fez “viajar” de diferentes modos, e em diferentes épocas, pelo mundo. Nessa viagem, a ginástica racional vai sofrendo alterações ao longo do tempo, mas, sempre, sob observação rigorosa de seus princípios.
O Instituto foi tornando-se, como já dito, o epicentro da ginástica sueca no mundo. Tomou para si a responsabilidade de estudo, de continuação e de divulgação do método de Ling. Um forte traço missionário marcava os partidários da ginástica sueca, os quais viajavam ao estrangeiro para difundi-la, e propagar as ideias sagradas do precursor (LJUNGGREN, 2011; MORENO, 2015). Das ações que mais contribuíram para sua divulgação foi, sem dúvida, sua política de “intercâmbio”. Em 1913 chegou a ter 142 estrangeiros (GRUT,1913).30 O Instituto enviava representantes para outros países e recebia missões de estudiosos e pesquisadores estrangeiros que ali iam e retornavam aos seus países publicando relatórios e tratados que serviram de referência em todo o mundo. Destacam-se aqui as obras de Demeny (1901) e Lefebure (1903,1905).
É perceptível, acessando os anuários de ginástica do GCI, como o registro do espraiamento da ginástica lingiana pelo mundo era uma preocupação. Estados Unidos, França, Inglaterra, Portugal, Bélgica, Japão, Índia, e muitos países da América do Sul, em diferentes épocas, ou receberam professores formados no Instituto, ou enviaram missões para lá realizarem cursos.31

Fonte: Riksföreningens för Gymnastikens Främjande Arsbok, 1934
IMAGENS 7 Ginástica sueca pelo mundo - A: Romênia, B: India holandesa, C: Grécia, D: Brasil, E: China, F: Japão
Poderíamos destacar, ainda, o esforço do Instituto em estar presente nos espaços internacionais de trocas de experiências, nas “zonas de contato” (PRATT, 1999). O Congresso Internacional de Educação Física de Paris de 190032 e de 191333 são exemplos.
VESTÍGIOS DA GINÁSTICA SUECA NO BRASIL
No Brasil, a prática da ginástica, e particularmente a sueca, já ocupava os discursos nas teses e tratados médicos, os quais ressaltavam o “novo método”, como eficiente e adequado. Podemos perceber esse fato no parecer do Dr. Rego Cesar sobre o livro de Schenström (1876), nos Annaes brasilienses de Medicina (1876)34 e também nas obras de intelectuais e políticos, como, por exemplo, o famoso parecer de Rui Barbosa de 188335 no qual vai ressaltar o exemplo da Suécia no que diz respeito à ginastica escolar e militar.
Entretanto, não foi de imediato que ela passou a ser tema ou ganhou espaço para ser lida/vista também por pessoas que não frequentavam espaços políticos e acadêmicos, mas obviamente alfabetizadas e que tinham acesso aos jornais.
No Brasil, em 24 de julho de 1892, uma extensa reportagem, de folha inteira, publicada no Jornal do Commercio, periódico do Rio de Janeiro, e três meses depois republicada no Jornal A ordem(22/10/1892), de Minas Gerais, chama a atenção para o método de ginástica que, tendo sido criado na Suécia, alcançou resultados inimagináveis naquele país. O artigo expõe, minuciosamente e em linguagem acessível, as características da ginástica sueca, sua concepção por Ling, a criação do Instituto de Ginástica de Estocolmo e seu funcionamento. Ao longo do texto, o articulista vai tentar mostrar como a ginástica sueca é adequada, pelas suas características harmoniosas, pelo caráter democrático, pela sua simplicidade, por ser pouco acrobática, por ser natural e exigir pouco esforço, dar ênfase na respiração, ser higiênica. Também por requerer amplitude nos movimentos e ter ação lenta e progressiva, por ser uma ginástica de atitudes, e ser fortemente inspirada em sentimento de estética e de harmonia. Além disso seria mais apropriada às mulheres. O artigo é uma defesa e um convite para a adoção da ginástica racional de Ling.36
É na última década do século XIX que a ginástica sueca começa a ocupar, lentamente, as páginas de jornais e revistas, como podemos observar no gráfico a seguir:37

Fonte: Hemeroteca Digital (Biblioteca Nacional)
GRÁFICO 1 Quantidade de reportagens de Ginástica sueca em periódicos por ano
Além da quantidade, que aumenta significativamente, há um outro aspecto a ser ressaltado, que é a questão da linguagem. Podemos tomar os jornais, como um lugar sintomático que, em via de mão dupla, reverbera em suas páginas o que é tema da cultura, ao mesmo tempo em que produz essa cultura. Se tomarmos a linguagem (entendida como a incorporação de termos e expressões) como um dos “sintomas” de que algum fenômeno está sendo incorporado à cultura de um tempo e de um lugar, chama a atenção, por exemplo, como a expressão “ginástica sueca”, ou simplesmente “a sueca” vai sendo incorporada na linguagem cotidiana e não só na especializada. A expressão vaza do “discurso competente”, e chega aos jornais destinados às crianças, aos encartes direcionados ao público feminino, às crônicas e contos. Seja para se referir a uma prática corporal, seja usada como sinônimo de disciplina, a palavra/expressão vai sendo mobilizada como se fosse comum e todos a entendessem.38
Imaginar, portanto, como foi possível que a ginástica sueca ganhasse tal visibilidade nos jornais brasileiros, é, de alguma forma, pensar nos caminhos que essa prática seguiu, desde Estocolmo, para chegar ao Brasil.
Nossas pesquisas apontam que, aqui, a ginástica sueca ganhou visibilidade, sobretudo, através de três modos: (1) no discurso de intelectuais em defesa do método,39 (2) na vulgarização desse saber pelos manuais de ginástica e (3) na circulação de sujeitos. Dos três modos, a ginástica racional comportou alterações do pensamento matricial - por isso, compreender os modos de sua divulgação, suas transformações e permanências é importante.
Sobre a escrita de manuais, sabemos que houve um potente processo de produção de materiais que vulgarizaram o saber sobre a ginástica sueca. Um farto conjunto de impressos, com características de manuais, foi produzido em língua portuguesa. É notável o esforço de professores, mas também de militares e médicos, em escrever e divulgar a ginástica sueca, num esforço de sistematização e aplicação de sua prática. A ideia era de que os professores necessitavam de material em língua portuguesa que os auxiliassem.
Os manuais tinham um formato bastante convidativo. Um impresso simples, pequeno, objetivo, organizados em lições fáceis de aplicar, com uma rasa fundamentação teórica e uma sistematização de lições práticas contendo muitos desenhos que facilitavam sua compreensão. Os manuais didáticos cumpriam um papel importante de circulação e apropriação dos conhecimentos sobre a ginástica, já que se fazia necessário simplificá-la, considerando o excesso de detalhes em sua execução e os pormenores para sua prática.40
No Brasil, embora a historiografia tenha dado pouca atenção aos sujeitos que para nossas terras vieram, viajando desde Estocolmo, e o papel que cumpriram na divulgação dessa prática, é certo que vieram e que aqui cumpriram, ocupando diferentes lugares, papel importante em sua divulgação. Talvez, um pouco mais tardiamente do que em outros países, já que esse movimento se deu mais fortemente a partir dos anos 20 do século XX.
Embora não haja uma relação mecânica entre o deslocamento desses sujeitos e o incremento da ginástica sueca no mundo, nem no Brasil, prestar atenção nos sujeitos, perseguirmos suas trajetórias, é, de alguma forma, fechar a objetiva, encarnando a história. Como lembra Ângela de Castro Gomes (1993), as ideias em circulação, “não andam sozinhas pelas ruas”, são mediadas por um agente. Mesmo que a circulação de saberes, nesse caso da ginástica, tenha percorrido diferentes e inusitados caminhos que passam, como já visto, pela tradução de materiais, publicação de manuais, espaços de encontros e contatos, sujeitos serviram de mediação para o trânsito desses saberes.
É o caso, por exemplo, de Fritjof Detthow e de outros sujeitos que em terras brasileiras aportaram. Em 1919, jornais anunciam o recebimento de um telegrama41 sobre a vinda de uma comitiva de professores suecos para dar aulas em São Paulo. Há também anúncios42 que mostram que nessas terras havia professores, desde as primeiras décadas do século XX, formados no Instituto e trabalhando com ginástica sueca. Mme. Will, Mme. Ester Leo, Sven Kellander, Artur Linderdahl, Mme. Maria Grushka são alguns dos nomes que aparecem nas fontes.
Fritjof Detthow nasceu em 1886, na cidade de Ulricehamm, Suécia. Torna-se militar e atua nos quadros do exército sueco até 1918 quando passa à reserva, com a patente de capitão. Tendo estudado e se formado no GCI de 1913 a 1917, Fritjof vem em 1919 para o Brasil, contratado pelo Estado de São Paulo “para implantar a ginástica sueca nas escolas”.43
Na cidade paulista instala-se com a esposa e os dois filhos e passa a trabalhar para a Directoria Geral de Instrucção Pública (depois Diretoria Geral do Ensino), como assistente técnico de Educação Física,44 recebendo vencimentos da Secretaria do Interior do Estado de São Paulo.45 Seu vínculo com a Directoria o envolve em diversas ações: inquéritos sobre as escolas paulistas realizado em 1931,46 cursos ao professorado paulista sobre ginástica sueca e teoria da ginástica ao longo dos anos 1920 e 30, envolvimento com a III Conferência Nacional de Educação em 1929, entusiasmo na organização do I Congresso Brasileiro de Educação Física, entre outras importantes ações. Ao longo do tempo, esse vínculo permitirá a Detthow estabelecer contatos com importantes instituições, como o Departamento de Educação Física do Estado de São Paulo,47 com a Escola Superior de Educação Física48 e também com educadores importantes. Há indícios de uma potente rede de sociabilidade frequentada por ele, notadamente do campo educacional paulista. No ensino escolar, o professor sueco vai atuar em locais de grande visibilidade: na Escola Normal Caetano de Campos, onde atua como professor e onde há muitos registros de suas ações.49
Em diversas entrevistas que concede aos jornais, Detthow ressalta a experiência que a Suécia teve na implantação da ginástica e da educação física, a importância do GCI nessas ações e na formação de professores. Sua presença e vínculo com o campo educacional geram alterações importantes nas escolas paulistas no que tange ao ensino da ginástica, baseando-se no sistema sueco: adoção de fichas individuais, turmas organizadas por aptidão, habilidade e condição orgânica.50

Fonte: Correio de São Paulo, nº 165, 23 de Dezembro de 1932
IMAGEM 8 Frijtof divulga seu projeto de Educação Física nas escolas de São Paulo
Concomitantemente ao seu trabalho com o Estado, o sueco dá aulas particulares de ginástica sueca. Os inúmeros anúncios publicados em jornais de São Paulo, já a partir de 1921, além de depoimentos, demostra que o professor monta uma sala com aparelhagem do sistema sueco de ginástica.51 Há também anúncios de professores particulares “formados por Frijtof Detthow”.52 Há notícias de que atuou em diversos festejos da Sociedade escandinava e de outras instituições de caridade, ensaiando danças e números de ginástica sueca.53 No final dos anos 1920, adquire o Instituto Jaguaribe, importante instituição que atendia à elite paulistana, oferecendo, entre outras atividades, ginástica sueca médica.54
Durante esse tempo, Fritjof vai também escrever, não só em jornais, mas também em revistas do campo educacional, no Brasil e no exterior: na Revista de Educação (órgão da Diretoria Geral do Ensino de São Paulo),55 na Revista Escuela Moderna(Espanha)56 e na revista Monitor (Argentina)57 encontram-se artigos do professor sueco. Há também o registro de artigos em revistas da área cultural como a Revista Vanitas,58 mundana e ilustrada, que indica artigos de Detthow.
O levantamento de fontes realizado até aqui indica que Fritjof Detthow desfrutou de um importante reconhecimento em São Paulo e desenvolveu um trabalho de divulgação e inserção da ginástica sueca bastante vigoroso. Ressalta-se que ao longo desse tempo há registros de viagens que realizou às terras de Ling para atualizar-se e ter notícias do avanço da ginástica racional a fim de partilhá-las no Brasil. Essas viagens, registradas em jornais, tiveram o apoio do governo de São Paulo, inclusive comissionando o professor para as viagens.59
Detthow atuou também no escotismo,60 foi tradutor (chegou a publicar o romance de Madame Dupret, Éramos Seis, em sueco)61 e ainda se envolveu com equipes de escavações científicas durante, sobretudo, fins da década de 1930 até a década de 1940. Ao longo desse tempo, nunca perdeu o vínculo com o governo sueco, representando-o em festividades, condecorações e atos oficiais.62
Fritjof Detthow viveu um período de muitas transformações no Brasil, de um modo amplo, e em São Paulo, particularmente. Foram tempos turbulentos que envolveram mudanças tanto no terreno político (embates locais, revoltas e o envolvimento com a Segunda Guerra), cultural (alterações de hábitos e costumes) e no campo educacional (destaca-se a reforma da educação nos anos 20).63 O professor atravessou também um período de muitas transformações do próprio sistema sueco, que também se modernizava, flertando com novas técnicas menos rígidas e também com o esporte.
CONCLUSÃO
A pesquisa realizada permitiu perceber o intenso e extenso trabalho que o Instituto de Ginástica de Estocolmo imprimiu para educação dos corpos. Ao longo do tempo, os precursores da ginástica sueca, realizaram grandes investimentos no intuito de estruturarem um lugar, um método e uma formação de professores que pudesse ser referência para os cuidados físicos sobre o corpo. Esses cuidados, também, resvalaram sobre a moral e os costumes, afinal, educar o corpo pela ginástica era educar também sua vontade.
Certos de que tinham encontrado “o” método eficaz para educar o corpo, cultivá-lo e preservá-lo com boa saúde, o Instituto se colocou também como lugar de ressonância da ginástica sueca. Era preciso espalhar a notícia para o mundo: fazer com que a ginástica pudesse ser praticada por toda a gente, nos mais diversos lugares.
Vimos que ginástica lingiana que chega e circula no Brasil (mas também em outros lugares do mundo), precisa ser tomada como objeto cultural, como uma prática que não nasce nem permanece pura e que, em sua circulação, por meio de mediadores, carrega uma dimensão transformativa (GRUZINSKI, 2001). Assim, a ginástica sueca que Fritjof Detthow traz ao Brasil e trata de divulgar e implantar, guarda profundas relações e permanências com àquela aprendida no Instituto, ao mesmo tempo que, no contato com um novo caldo cultural e político, se transforma. O novo lugar, agora vivenciado pelo sueco, decerto impactaram suas ideias sobre educação do corpo e ginástica.
Consideramos que os resultados desse conjunto de pesquisas desenvolvido, permitem lançar luz sobre a história da educação dos corpos, da educação física e também sobre a história da educação no Brasil. Permitem perceber o processo de internacionalização de saberes e práticas, uma complexa trama que envolveu a tradução, a apropriação, a transformação, a reinvenção de métodos europeus em suas viagens até chegar a terras brasileiras. Nesse sentido, o material empírico mobilizado, corrobora com a ideia, já apontada por inúmeras teorias, de que nesse trânsito houve, em via de mão dupla, trocas, aprendizados, apropriações e reinvenções.