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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.36  Belo Horizonte  2020  Epub 05-Jul-2020

https://doi.org/10.1590/0102-4698218268 

ARTIGO

FORMAÇÃO NA MICROPOLÍTICA ESCOLAR: POR UMA EDUCAÇÃO PARA ALÉM DO CONTEÚDO FORMAL

FORMATION ON SCHOOL MICROPOLITICS: FOR AN EDUCATION BEYOND THE FORMAL CONTENT

FORMACIÓN EN LA MICROPOLÍTICA ESCOLAR: POR UNA EDUCACIÓN MÁS ALLÁ DEL CONTENIDO FORMAL

1 Rede Municipal de Ensino de Esteio - RS, Brasil. rodrigo.a.colla@gmail.com


RESUMO:

O presente artigo apresenta um breve panorama da conjuntura atual da educação brasileira apontando também alguns desafios a serem superados. Discute a concepção de bildung (formação) na filosofia alemã, explorando suas articulações com conceitos bastante caros ao processo de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, o conceito de tato (bem como a defesa da formação estética) é utilizado a fim de subsidiar propostas que promovam dinâmicas de ensino-aprendizagem horizontais, participativas e que contemplem as múltiplas dimensões formativas. Busca, por fim, pensar em alternativas no âmbito da micropolítica da escola que contribuam com a criação de culturas formativas na educação desde uma formação para a sensibilidade e de uma postura autônoma dos educandos. A noção de autonomia preconizada na educação popular é resgatada (BRANDÃO, 1985) e a ela são incorporados traços formativos discutidos pelos teóricos que abordam o conceito de bildung (GADAMER, 1999; QUINTANA CABANAS, 1995; SUAREZ, 2005; WEBER, 2006).

Palavras-chave: Bildung; Educação e Cultura; Educação no Brasil; Formação; Educação Popular

ABSTRACT:

This article presents a brief overview of the current situation of brazilian education pointing also some challenges to be overcome. Discusses the concept of bildung (formation) in german philosophy exploring their connections to concepts very important to the teaching-learning process. In this sense, the concept of touch (as well as the defense of aesthetic formation) is used in order to subsidize proposals that promote teaching and learning dynamics that are horizontal, participatory and that contemplate the multiple formative dimensions. It searches, finally, think about alternatives in the micropolitics of school that contributes to create formative cultures in education provided by training for sensitivity and an autonomous posture of learners. The notion of autonomy advocated in popular education is redeemed (BRANDÃO, 1985) and is incorporated into it formative traits discussed by the theorists who approach the concept of bildung (GADAMER, 1999; QUINTANA CABANAS, 1995; SUAREZ, 2005; WEBER, 2006).

Keywords: Bildung; Education and Culture; Education in Brazil; Formation; Popular Education

RESUMEN:

El presente artículo presenta un breve panorama de la coyuntura actual de la educación brasileña apuntando también algunos desafíos a ser superados. Discute la concepción de bildung (formación) en la filosofía alemana explorando sus articulaciones con conceptos bastante importantes para el proceso de enseñanza-aprendizaje. En este sentido, se utiliza el concepto de tacto (así como la defensa de la formación estética) para subsidiar propuestas que promuevan dinámicas de enseñanza-aprendizaje horizontales, participativas y que contemplen las múltiples dimensiones formativas. Por último, busca pensar en alternativas en el ámbito de la micropolítica de la escuela que contribuyan con la creación de culturas formativas en la educación desde una formación para la sensibilidad y de una postura autónoma de los educandos. La noción de autonomía preconizada en la educación popular es rescatada (BRANDÃO, 1985) y a ella se incorporan rasgos formativos discutidos por los teóricos que abordan el concepto de bildung (GADAMER, 1999; QUINTANA CABANAS, 1995; SUAREZ, 2005; WEBER, 2006).

Palabras clave: Bildung; Educación y Cultura; Educación en Brasil; Formación; Educación Popular

INTRODUÇÃO

Propomo-nos, neste texto, a refletir sobre algumas implicações problemáticas da educação brasileira, historicamente decorrentes, que são desafios a serem enfrentados, como sugere Simon Schwartzman (2005). A contextualização do autor permite ter uma ideia do panorama geral da educação brasileira nos seus distintos níveis e situar dificuldades a serem superadas na contemporaneidade levando em conta a conjuntura histórica.

Reconhecemos que a solução de tais problemas, se é que se pode falar nesses termos, requer uma série de medidas complexas que envolvem políticas públicas e atores sociais, sendo estes profissionais da Educação ou não, num projeto conjunto de priorização da Educação no país. No entanto, neste texto assumimos outro desafio: o de, pensando no processo educativo desde o conceito de bildung (formação), buscar articular algumas estratégias horizontais para a constituição do que chamamos aqui de culturas formativas. Esta expressão deve ser considerada levando em conta a acepção das duas palavras que a integram nas tradições a que recorremos para conceber tal conceito. Cultura se refere ao processo por meio do qual o ser humano se forma em sua humanidade (Cf. BRANDÃO, 1985). Ela é produto do trabalho humano e condicionamento formativo dos indivíduos que nela são educados. Na expressão, a palavra é utilizada no plural a fim de defender a produção de microculturas, no âmbito da micropolítica escolar, que contribuam com a formação de culturas institucionais diversas, contraculturas, culturas marginais (se comparadas à cultura dominante). Estas poderiam estar a serviço do processo educativo potencializando, concomitantemente, mecanismos de diálogo e vias de produção da diferença passíveis de inspirar dinâmicas educativas variadas. A adjetivação “formativas”, por seu turno, deve ser entendida observando o significado do conceito de bildung, ou seja, uma formação que vise a cultivar harmonicamente a personalidade dos educandos e contemple as dimensões ética, estética, intelectual, social, ambiental, etc. Ao longo deste artigo, procuraremos fornecer elementos/princípios para a constituição de tais culturas.

O Plano Nacional de Educação (PNE), para o decênio 2014-2024 (BRASIL, 2014), estabelece metas e estratégias com um cunho bastante pragmático. Contudo, entendemos que as mudanças na macropolítica devem ser acompanhadas por transformações na micropolítica. É nesse sentido que nos propomos, com o intuito de repensar as práticas educativas e insuflar o nascimento de culturas formativas nas escolas, a discutir o conceito de bildung. Ou seja, não só as políticas públicas são passíveis de contribuir para melhorar a qualidade da Educação, mas também as relações interpessoais que possuem, invariavelmente, um viés político e são estabelecidas no processo de ensino-aprendizagem. No âmbito da micropolítica parece indispensável se pensar numa concepção de formação que desenvolva e exercite a autonomia dos sujeitos e, além disso, constitua, enquanto processo que alveja uma meta, uma via que potencie as capacidades dos educandos de interagirem com o mundo e com os outros de modo sempre aprendente, sensíveis ao teor educativo da experiência de estar-no-mundo. O significado do termo formação não pode se resumir à transferência de informações e técnicas, mas abarcar a criação de dinâmicas propícias para a autodescoberta dos estudantes num processo de autonomização e de ampliação do seu horizonte formativo.

Para dar conta da proposta que aqui nos dispomos a levar a cabo, este texto está organizado em três tópicos. O primeiro visa a contextualizar e a refletir sobre os desafios da educação brasileira se balizando em alguns aspectos presentes no PNE e à luz, sobretudo, dos estudos de Simon Schwartzman (2005). O segundo discute a noção de bildung (formação) procurando elucidar algumas de suas articulações com outros conceitos correntes no campo da Educação. Por fim, buscamos nos servir desse conceito para pensar em estratégias no âmbito da micropolítica que sejam concomitantes com as metas do PNE, isto é, que se realizem na política das relações cotidianas de sala de aula, nas trocas que se dão entre os atores da educação, objetivando uma atitude diante do currículo menos conteudista e informacional em prol de certo dinamismo formativo cuja substância é a própria cultura e as experiências de vida dos educandos. Onde cultura, entendida de modo mais amplo, pressupõe não neutralidade, mas “uma categoria ideológica e política”. (BRANDÃO, 1985, p.16).

EDUCAÇÃO BRASILEIRA: CONTEXTO E DESAFIOS

Segundo Simon Schwartzman (2005, p. 9), os principais problemas da educação básica no Brasil são “a má qualidade das escolas e a repetência”. Tomando como base dados de 2003, o autor refuta a crença corrente de que há falta de investimentos em Educação no país. Para ilustrar isso, afirma que o percentual do PIB brasileiro destinado à Educação (entre 5% e 5,5%) equivale ao de países desenvolvidos como Itália e Japão e supera o de países vizinhos como Chile e Argentina, que atingem resultados melhores em Educação Básica do que o Brasil.

Para citar um exemplo relativamente recente, em pesquisa2 realizada pela consultoria britânicaEconomist Intelligence Unit (EIU), que analisa a qualidade do sistema educacional de 40 países, o Brasil aparece em penúltimo lugar. Divulgada em novembro de 2012, a pesquisa foi encomendada pela Pearson, empresa fabricante de sistemas de aprendizado, e levou em conta notas obtidas em testes e qualidade de professores, dentre outros fatores. Nela, todos os países que Schwartzman (2005) utiliza, como exemplos para aferir os investimentos brasileiros em Educação, aparecem à frente do Brasil: Japão (4º), Itália (24º), Chile (33º) e Argentina (35º).

Por isso, Schwartzman (2005, p. 11) frisa que o que se precisa é “de uma nova geração de reformas que parta de um diagnóstico correto dos problemas e permita usar bem todo o investimento que já existe”. Todavia, o autor aponta para a necessidade de se ampliar os gastos em educação no Brasil para 7% do PIB (como no Canadá e nos Estados Unidos) e aumentar o custo por aluno no ensino básico sem diminuir os investimentos em ensino superior. Essa mesma meta está presente na proposta do PNE, que reivindica o aumento gradativo do investimento em Educação no país até que se atinja o patamar de 7% do PIB no quinto ano de vigência do plano (BRASIL, 2014). A Emenda Constitucional (PEC) 95/2016 (Cf. BRASIL, 2016), porém, inviabiliza a meta estipulada no PNE.

No Brasil, historicamente, o custo por aluno na educação pública é bem mais elevado no ensino superior. A implementação tardia no setor público de universidades, aliada à falta de investimento em educação básica, acaba por fundar uma tradição histórica de elitização do ensino superior, negligenciando o ensino básico e acarretando uma série de implicações paradoxais. Aqui cabe destacar, sobretudo, o acirramento das desigualdades sociais proveniente dessa política. A desigualdade de acesso e de tratamento às diferentes classes sociais e etnias no Brasil já era expressa por Darcy Ribeiro:

A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural. (RIBEIRO, 1997, p. 24)

O problema da estratificação social é notado, por exemplo, no âmbito do Ensino superior no Brasil. As melhores instituições de ensino superior do país são as públicas, que atendem às classes mais privilegiadas, principalmente nos cursos de maior prestígio e que, comprovadamente, trazem retornos financeiros melhores aos indivíduos depois de graduados. Isso porque o ingresso em universidades públicas é bastante disputado e, de modo geral, praticamente só aqueles que tiveram sua formação básica em instituições de qualidade, quase sempre privadas, acedem a essas vagas. Isto é, no Brasil se educa uma elite minoritária para governar, enquanto uma maioria continua sem acesso às instituições de melhor qualidade, o que acaba não só limitando às possibilidades de ascensão social, mas ajudando a definir o ideário sócio-político das classes e demarcar ainda mais fortemente a estratificação social. Não por acaso, nas universidades públicas são as licenciaturas os cursos que mais recebem estudantes oriundos das escolas públicas, pois a docência é uma profissão de prestígio e remuneração baixos no país.

Aqui notamos ecoar a problemática evidenciada por Pierre Bourdieu (2012) em seus estudos sobre a educação. O acirramento das desigualdades envolve fatores mais complexos do que somente econômicos. Forjam-se ideários ou culturas de classes, num processo de naturalização de certas posições sociais. Isso acaba por fazer com que os indivíduos não só difiram em termos de capital cultural, mas também em aspirações para o futuro e no que diz respeito a sua autoimagem. Isto é, “de maneira geral, as crianças e sua família se orientam em referência às forças que as determinam” (BOURDIEU, 2012, p. 49), de modo que há certas probabilidades condicionantes dos níveis de aspiração desses sujeitos. Por exemplo, provavelmente, segundo essa óptica, um menino brasileiro afrodescendente que reside na periferia de uma grande cidade e cujo pai trabalha na construção civil não almejará ser médico - tampouco seus pais sonharão com um futuro assim para ele. Explica Bourdieu (2012, p. 49) que “as mesmas condições que definem as atitudes dos pais e dominam as escolhas importantes da carreira escolar regem também a atitude das crianças diante dessas mesmas escolhas e, consequentemente, toda sua atitude com relação à escola”. Não por acaso, Brandão (1985, p. 92) admite que a proposta de Bourdieu representa “a viabilidade de fazer convergirem sentido e poder em uma teoria”. Ora, as “forças que determinam” ajudam a constituir significados de estar-condicionado. Com vistas a superar essa conjuntura, Schwartzman (2005, p. 15) defende que é responsabilidade

do setor público trabalhar pela diversificação dos sistemas educacionais, atendendo de forma apropriada à população cada vez mais diferenciada que busca os bancos escolares, sem, no entanto, permitir que estas diferenças se transformem em hierarquias de prestígio, benefícios e oportunidades.

Trata-se de outro elemento que é trazido à tona pelo PNE: atender às especificidades das populações do campo, indígenas e afrodescendentes. No documento correspondente ao Projeto de Lei do PNE, à época em tramitação, a então deputada federal e ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Maria do Rosário, considera que “um dos maiores desafios da educação brasileira é atuar como protagonista para a superação da desigualdade e da exclusão” (BRASIL, 2011, p. 13). Percebe-se essa preocupação em algumas das metas do Plano quando é destacada, por exemplo, a necessidade de inclusão dos indígenas (Cf. BRASIL, 2014), levando em conta as especificidades de sua cultura, bem como a preservação de sua língua. O mesmo ocorre em relação a outros grupos excluídos do acesso ao ensino em épocas passadas.

Uma política pública que tem como objetivo incluir sujeitos historicamente excluídos - ao mesmo tempo em que busca uma ressignificação que desnaturaliza suas posições sociais - são as ações afirmativas. Segundo o proposição originária do PNE,

Trata-se de políticas passíveis de avaliação sistemática, que após implementadas poderão, no futuro, vir a ser extintas, desde que comprovada a superação da desigualdade que as originou. Elas implicam uma mudança cultural, pedagógica e política. Na educação, dizem respeito ao direito a acesso à escola e permanência na instituição escolar aos grupos dela excluídos em todos os níveis e modalidades de educação. (BRASIL, 2010, p. 28)

Na opinião de Schwartzman (2005, p. 40), porém,

Políticas efetivas de redução das desigualdades educacionais causadas por diferenças de renda, região e cultura deveriam começar por capacitar as escolas públicas e educar de forma mais efetiva as crianças oriundas de famílias mais pobres, e continuar através de programas voltados para o apoio, a educação e a reeducação de jovens e adultos que não conseguem completar seus estudos.

Antes, contudo, de discutir o problema das desigualdades na educação brasileira, Schwartzman (2005), em seu panorama histórico, também frisa o atraso na implementação das escolas no Brasil e a escassez de investimentos quando do início da criação de uma rede de ensino. É, em certa medida, em virtude dessa problemática que se produziram desigualdades tão demarcadas, notadas ainda hoje. Ademais, o autor aponta para a tardia criação de universidades e, consequentemente, a precariedade da formação de professores, problema que se estende até a atualidade, sobretudo em algumas regiões do país, mais desassistidas de ensino superior de qualidade.

Se, num passado mais remoto, não havia investimentos em escolas e em formação no Brasil, há alguns anos, quando eles existiram, se relevaram problemas de outra ordem. Nesse sentido, Schwartzman admite que

Para enfrentar esta complexidade crescente, é necessário criar, no país, condições para o desenvolvimento da pesquisa em educação, e fazer com que os resultados destas pesquisas sejam amplamente difundidos, conhecidos e incorporados às políticas governamentais. (SCHWARTZMAN, 2005, p. 43)

No que tange à pesquisa em educação, cremos ser pertinente fazer um adendo, a título de contextualização, desse aspecto específico. Hans-Christoph Koller (2012), em artigo que discute o tensionamento entre pesquisa empírica em educação e pesquisa teórica, advoga contrariamente a uma rígida delimitação de fronteiras, bem como a uma tentativa de unificação das duas correntes. Pois, “apesar de haver algumas abordagens intermediantes”, escreve Koller (2012, p. 163), “uma teoria da educação sem pesquisa educacional e uma pesquisa educacional sem teoria da educação estariam em conflito direto”. Para ele, é preciso que ambas as tradições “contribuam para uma aproximação na qual se abram fronteiras e, ao mesmo tempo, se conservem diferenças” (KOLLER, 2012, p. 166). É o que ele chama de “mudanças por aproximação”.

O que queremos abordar na última seção deste artigo não chega a ser uma teoria da educação, tampouco se origina de um estudo empírico, trata-se, em vez disso, de proposições que são alternativas estratégicas para promover autonomia e horizontalidade na micropolítica das relações escolares. Em outras palavras, busca-se, a partir das contribuições da teoria da formação (a qual agora explanaremos), propor a experimentação da autonomia dos educandos para a sua constituição enquanto sujeitos de sua própria formação: o traquejo necessário para a instauração de culturas formativas. Antes, porém, trataremos de elucidar o conceito de bildung.

BILDUNG: O OLHAR DA FILOSOFIA ALEMÃ SOBRE A FORMAÇÃO HUMANA

O termo alemão bildung é geralmente traduzido para o português como formação, aparece também como cultivo (Cf. WEBER, 2006), em certos casos, ou ainda como formação cultural (Cf. SUAREZ, 2005, OURIQUE; TREVISAN, 2009). Aqui optamos pela utilização do termo formação por ser de uso mais corrente e por considerarmos agregar a noção de cultura e cultivo, como ficará mais evidente logo a seguir.

Hans-Georg Gadamer (1999) explica que a palavra bildung (formação) é composta pela palavra bild (imagem), que também abrange os termos nachbild (cópia) e vorbild (modelo). Nesse sentido, Gadamer (1999, p. 50) argumenta que há uma “frequente transferência do devir para o ser”, ou seja, que comumente formação acaba por designar mais o “resultado desse processo de devir do que o próprio processo.”. No entanto, o autor atribui isso ao fato de que o próprio resultado da formação não se “produz na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interno de constituição e de formação e, por isso, permanece em constante evolução e aperfeiçoamento” (GADAMER, 1999, p.50).

Para José María Quintana Cabanas (1995), aeducação é comumente entendida como o processo de configuração do caráter, que dá lastro para aformaçãoe que leva à autocompreensão do ser humano e das relações que estabelece com o mundo a seu redor. Além disso, o autor contribui com um olhar histórico sobre o conceito de formação. Destaca que no século XIX, para o pensador iluminista Friedrich Schleiermacher, o ideal de formação estava muito mais associado à noção de homem estético do que a de homem livre e o conceito era entendido como a ação da razão sobre a natureza. Quintana Cabanas (1995) dá especial ênfase à obra A Didática como Teoria da Formação, de Otto Willmann, na qual este autor defende que o ideal de formação se sustenta em sete características:

  • Dimensão intelectual;

  • Aprofundamento nos temas;

  • Relação com o fundamental;

  • Compreensão do mundo e de si mesmo;

  • Um meio termo entre o diletantismo e o trabalho profissional e técnico;

  • A formação manifesta-se na vida inteira do indivíduo;

  • Pressupostos éticos.

Apesar da abordagem de Willmann (apud QUINTANA CABANAS, 1995) ser bastante abrangente, veremos, com Gadamer (1999), que ele se esquece de alguns elementos importantes ou, melhor dizendo, buscando pensar uma didática vertical (educativa), o autor prescinde de uma proposição que entenda a formação em seus aspectos, por assim dizer, mais autonomizantes e se distancia de perspectivas que integrem certas potencialidades passíveis de se desenvolver no processo formativo a partir da atuação dos educandos.

Em seu inventário sobre o conceito de formação, Quintana Cabanas (1995), por fim, atribui a Herder e a Humboldt o mérito de terem descoberto a linguagem como o fator de mediação entre o ser humano e o mundo, portanto, ela deve ser elemento central na teoria da formação humana. É na linguagem que o mundo devém para o ser humano e este para o mundo.Gadamer (1999, p. 48-49), por sua vez, salienta que, para Herder, é a “formação que leva rumo à humanidade”, enquanto que, para Kant e Hegel, ela pressupõe o “dever para consigo mesmo”. Contudo, mais recentemente, o conceito de formação passou a destoar da ideia de “formação natural” (oriunda da Idade Média), que fazia referência à aparência externa ou à configuração engendrada pela natureza, e agora integra o conceito de cultura, designando a “maneira humana de aperfeiçoar suas aptidões e capacidades” (GADAMER, 1999).

No que tange essa matriz cultural da ideia de formação, cabe esclarecer que o conceito de cultura comumente é impregnado de certo teor formativo, bem como carrega a dupla dimensão também presente na formação: ser mutuamente processo e produto. Para Brandão (1985), por exemplo, a cultura é, ao mesmo tempo, produto do trabalho do homem e aquilo que constitui a própria transformação do homem em si mesmo. A respeito deste argumento, poderíamos dizer que, ao se referir à cultura, ele nos remete à formação e traz um novo elemento que está no cerne da discussão: o trabalho.

Não por acaso, Gadamer (1999), partindo das ideias de Hegel, utiliza o trabalho para explicar a formação como uma elevação à universalidade. Destaca que, para Hegel, a essência do trabalho é dar forma a alguma coisa, mas o ser humano, “ao formar a coisa, forma-se a si mesmo” (GADAMER, 1999, p. 52). Isto porque, “o trabalho é a cobiça inibida” (GADAMER, 1999, p. 52), de modo que, ao trabalhar, a consciência se eleva e ajuda o sujeito a encontrar “um sentido próprio, sendo perfeitamente correto dizer do trabalho: ele forma.” (GADAMER, 1999, p. 52). Contudo, não é no mero alheamento do trabalhador, em sua servidão a algo estranho para si - ao trato da coisa em formação -, que ele vive a essência da formação, é no retorno a si mesmo, poder-se-ia dizer: no empoderamento que adquire no ato de trabalhar. Senhor daquilo que forjou em seu trabalho, o indivíduo adquire um poder, uma habilidade, ganhando uma consciência de senso próprio que o ajuda a se constituir como sujeito autônomo (GADAMER, 1999).

É, porém, Humboldt que, de acordo com Gadamer, se deu conta de uma diferença de significado entre cultura e formação. Em sua visão, formação é algo que se refere “à índole que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e moral, a se derramar harmonicamente na sensibilidade e no caráter” (HUMBOLDT apud GADAMER, 1999, p. 49).

Por fim, Gadamer considera que é no conceito de “tato”, cunhado por Helmholtz, que se completa o ciclo formativo. Tato é “determinada sensibilidade e capacidade sensível para situações e para postar-se nelas, para as quais não possuímos nenhum saber baseado em princípios universais” (apud GADAMER, 1999, p. 57). Tato, nesse sentido, é o elemento da formação que propicia ao espírito uma mobilidade livre e requer tanto a formação histórica quanto estética, sendo “ao mesmo tempo uma forma de conhecimento e uma forma de ser” (GADAMER, 1999, p. 57).

Nota-se, tanto na incursão de Gadamer (1999) na teoria hegeliana, quanto na especial atenção que dá ao conceito de Helmholtz, que ele procura desenvolver, no âmago do conceito de formação, a noção de autonomia e, mais do que isso, busca trazer à tona a formação estética enquanto sensibilidade para o trato com o mundo e suas contingências. São os tais elementos que há pouco mencionamos que Willmann (apud QUINTANA CABANAS, 1995) deixa de lado.

Antes de iniciar a próxima seção, cabe pontuar um aspecto importante para a discussão aqui empreendida. Denis Huisman (1997) esclarece que estética (aisthesis) significa originalmente sensibilidade. Esta possui “o duplo significado de conhecimento sensível (percepção) e de aspecto sensível da nossa afetividade” (HUISMAN, 1997, p. 9, grifo do autor). Aqui consideramos formação estética como o processo que contempla essas duas esferas e se articula à formação entendida de maneira mais ampla (bildung).

FORMAÇÃO NA MICROPOLÍTICA ESCOLAR: A BUSCA POR HORIZONTALIDADE E AUTONOMIA

Em seu diagnóstico, Schwartzman (2005, p. 32) salienta que “a experiência internacional mostra que, sem o envolvimento das comunidades profissionais próprias do mundo da educação é muito difícil desenvolver sistemas educacionais de qualidade”. A respeito do que afirma o autor, é possível frisar que, mais do que envolvimento das comunidades profissionais, no âmbito da micropolítica, todos os atores sociais da educação devem estar envolvidos. É claro que quando afirmamos isso temos outro foco: não o sistema entendido de modo mais amplo, mas as práticas do dia a dia escolar. Darcy Ribeiro discorre sobre um projeto de ordenação social que, obviamente, incluiria um pacto das maiorias - e, porque não dizer, também das minorias - pela educação. Para ele,

Faltou sempre, e falta ainda, clamorosamente, uma clara compreensão da história vivida, como necessária nas circunstâncias em que ocorreu, e um claro projeto alternativo de ordenação social, lucidamente formulado, que seja apoiado e adotado como seu pelas grandes maiorias. (RIBEIRO, 1997, p. 26)

Consideramos que um projeto de ordenação social elaborado lucidamente pressupõe a priorização da Educação (na macropolítica) e, mais do que isso, nos parece que a dinamização do processo formativo requer certa lucidez metodológica (na micropolítica) que dialogue com as contingências de nosso tempo. Ordenação social, aliás, não pode existir sem um projeto que propicie o convívio das diferenças e isto começa pela Educação. Num país heterogêneo (desigual, miscigenado e que abriga culturas bastante diversas) como o Brasil, as trocas intersubjetivas de pessoas que se encontram em ágoras formativas (e a escola é a principal delas) são passíveis de contribuir largamente na formação destas. Há na micropolítica, portanto, uma potência que precisa ser explorada.

A esta altura, faz-se importante retomar alguns pontos que abordamos quando discutimos o conceito de bildung. Isso porque partimos do pressuposto de que, para forjar nos indivíduos o ímpeto para se relacionar com o mundo de maneira aprendente, é preciso certas noções que se encontram aglutinadas no referido conceito. Nesse viés, convém destacar o estudo feito por Gertrud Nunner-Winkler (2011) no qual, além de apontar para uma multiplicidade normativa na contemporaneidade, a autora releva a existência de uma postura autônoma dos sujeitos no que diz respeito a sua constituição identitária. Ela explica que

nas sociedades tradicionais, a identidade é instituída e estabilizada através de arranjos socioestruturais. Na modernidade clássica, a identidade é escolhida pelo indivíduo, mas estabilizada socioestruturalmente. Nas sociedades pós-modernas ou de modernidade tardia, a identidade é escolhida pelo indivíduo, que produz sua estabilização através do tempo. (NUNNER-WINKLER, 2011, p. 57)

Se a multiplicidade normativa, ou seja, a pluralidade de concepções acerca de valores morais, varia de acordo com o fator geracional, a autonomia na constituição identitária se mostra gradativamente mais presente, sobretudo nos sujeitos mais jovens. O próprio sujeito escolhe os caracteres que são relevantes na formação de sua personalidade e pode produzir a estabilização da identidade por meio do autocomprometimento com valores morais, isto é, (auto)constitui uma identidade que, apesar das céleres mudanças sociais e das demandas por decisões de estilos de vida variados, “se fundamenta na fidelidade a princípios” (NUNNER-WINKLER, 2011, p. 63). Esses aspectos conjunturais dos sujeitos contemporâneos se tornam importantes de ressaltar, na medida em que formar é, também, sugerir vias de constituição identitária, principalmente tendo em conta que consideramos como central, em nossa acepção de formação, o quesito autonomia. Num contexto em que, notadamente, os indivíduos se constituem identitariamente de modo autônomo, faz-se ainda mais relevante a formação de certo tato.

De qualquer modo, uma dinâmica de relação aprendente com o mundo que queremos preconizar, parece exigir essa educação voltada para construção da autonomia dos sujeitos, ao mesmo tempo em que desenvolve o chamado tato para lidar com as vicissitudes do mundo e do próprio caminho (auto)formativo. Em outras palavras, trata-se de uma formação entendida como processo em devir e na qual o sujeito se assenhora do seu próprio decurso formativo por meio de experiências passíveis de potencializarem a sensibilidade. A sensibilidade se mostra, assim, como o próprio poder sobre a autoformação. Um indivíduo sensível desenvolve o tato necessário para estar atento às contingências formativas e decidir sobre seus caminhos de formação. Eis um processo de autonomização formativa a partir da sensibilidade. Esta, na proposta aqui defendida, é uma competência necessária à constituição de culturas formativas. Desenvolver uma cultura formativa pressupõe forjar meios para o cultivo de si que driblem as forças homogeneizadoras da cultura dominante. Assim, é possível gozar uma relativa liberdade para decidir sobre os caminhos de sua formação, isto é, para aculturar-se segundo um ponto de vista crítico. Ademais, para bem-decidir, é mister que o sujeito desenvolva certo tato, uma sensibilidade ciente de aspectos históricos e constituída historicamente, que o habilite a tomar parte em diferentes contextos e situações.

Schwartzman (2005, p. 13), ao se reportar ao Ensino Médio no Brasil, indaga: “Será que o aluno está aprendendo o que precisa para aprimorar sua personalidade, viver em sociedade e participar do mercado de trabalho?”. No nosso entender, a provocação do autor dá margem para que se pense no conteúdo e não no processo. Nesse sentido, nossa interpelação seria um pouco distinta: Estarão os estudantes sendo educados para formarem-se, para aprender vias plausíveis para a compreensão de si e do mundo adquirindo o tato necessário para autonomia formativa? Estarão sendo formados para desenvolver ao mesmo tempo certa consciência histórica (e de historicidade) e sensibilidade estética?

Como vimos, o próprio sentido do termo formação carrega a noção de autocompreensão e compreensão do mundo. Num contexto de mudanças céleres, mais do que nunca, afigura-se como qualidade indispensável ao sujeito em formação certa sensibilidade para se dar conta das contingências (de)formativas que lhe interpelam por escolhas e respostas. Faz-se importante que se contraponha aos estímulos (de)formativos de uma sociedade midiática e multifacetada um viés educativo autonomizante que torne os estudantes hábeis para lidar com o enorme contingente de informação que chega até eles. Isto é, para optar pelos caminhos formativos mais condizentes com o conceito de formação aqui discutido, se faz necessário uma forma autônoma em vias de progressiva autonomização. Isso constituiria uma atitude formativa capaz de, além de superar a cultura, recriá-la em termos de culturas formativas contingenciais nas quais os sujeitos desenvolvem certo tato para uma formação autônoma.

Nesse sentido, é possível notar certa semelhança do que aqui propomos com os intentos da educação popular3 enquanto “forma de educação política” (BRANDÃO, 1985, p. 68). Isso porque a noção de cultura popular que a respalda pressupõe certa “intencionalidade universal”, ou seja, uma cultura deve ser dita popular quando “permite a abertura das consciências num grau de universalidade crescente” (AÇÃO POPULAR, 1963 apud BRANDÃO, 1985, p. 38). Contudo, um paralelo ainda mais pertinente entre o que há pouco chamamos de culturas formativas e a cultura popular, reside no fato desta levar o ser humano a “assumir sua posição de sujeito da criação cultural” (BRANDÃO, 1985, p. 38).

Quando falamos em culturas formativas não estamos, no entanto, almejando a criação de uma consciência revolucionária de classe, como quer a educação popular, mas de uma cultura de sensibilização progressiva do indivíduo enquanto sujeito em processo autoformativo, de modo que o resultado da formação não se produz “na forma de uma finalidade técnica, mas nasce do processo interno de constituição e de formação e, por isso, permanece em constante evolução e aperfeiçoamento” (GADAMER, 1999, p. 50).

É possível encontrar outra ressonância do que Gadamer (1999) entende requerer ao tato nos pressupostos da pesquisa participante, método tão caro à educação popular. Nesse sentido, cabe citar a proposta de Brandão para uma espécie de unificação da ciência com a Educação. A sua atuação conjunta deve promover a “transformação do conhecimento em consciência na ação coletiva que fortaleça, no trabalho político dos sujeitos das classes populares, o poder de transformar o seu mundo” (BRANDÃO, 1985, p. 87).

Podemos destacar, ainda, dois pontos levantados por Brandão: um poder autônomo de transformar e uma noção de consciência que pressupõe conhecimento. Esses aspectos nos levam a refletir a forja de um tato formativo, por assim dizer, nos educandos. Para Gadamer (1999), o tato requer formação histórica. O conhecimento, por seu turno, é também aspecto central no estabelecimento de uma consciência histórica. Esta, aliada a certa sensibilidade, empodera para transformar(-se). É a razão pela qual acima mencionamos que, no enfoque que aqui propomos, a sensibilidade consiste numa espécie de poder ou potência no processo de formação. Ela é definidora e ampliadora de vias formativas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse intento de arquitetar uma espécie de ciência popular, presente na pesquisa participante e há pouco referido, pode ser pensando em termos de uma prática horizontalizante em sala de aula. No nosso entender, poderia consistir, por exemplo, em tornar os educandos espécies cientistas de seus interesses, numa dinâmica de trabalho/pesquisa em que o educador atuaria mais como um mediador/orientador.

Uma proposta que viabilizaria uma metodologia dessa natureza, seria o estímulo para que os alunos trabalhassem a partir de projetos de pesquisa com enfoque em temas que sejam de seus interesses. Esses projetos podem ser levados a cabo dividindo a turma em grupos nos quais os interesses e as competências dos estudantes sejam semelhantes ou complementares. Prioritariamente, esses projetos devem aliar teoria e prática, e não somente contemplar os interesses dos educandos. Convém, também, que sejam contextualizados dentro da realidade da comunidade/sociedade em que estes vivem. A escola deve funcionar como um órgão que contribui com o funcionamento da comunidade/sociedade, e o educando como um agente social avalizado pela escola e orientado pelo professor. Contribuir para o funcionamento da comunidade/sociedade, evidentemente, passa pela capacidade de crítica e impulso para a transformação. Este, aliás, é pressuposto básico para a própria constituição de culturas formativas, que nada mais são senão conjuntos de disposições para ensinar/aprender de maneiras diversas e criativas, modos de ser professor/aluno que prezam pela construção do conhecimento e não por sua transferência, formas de conceber a escola como sistema permanentemente instituinte e não como uma instituição rija centrada em princípios e métodos ortodoxos.

Nesse sentido, trabalhando a pedagogia de projetos, por exemplo, por meio da formação de grupos de educandos, é possível desenvolver um processo de ensino-aprendizagem mais dinâmico e intercambiante. Seres humanos, ao mesmo tempo idealizadores e alvos de nossa própria educação, somos imensamente distintos uns dos outros. Dessa maneira, parece uma espécie de aberração querer impor métodos únicos e preconizar estratégias educativas semelhantes a adestramentos/treinamentos em lugar do que aqui é entendido por formação. Somos desiguais por natureza e formação. A igualdade deve residir, isto sim, no tratamento dos sujeitos para lhes propiciar condições equivalentes para a construção de vias interpessoais de diferenciação. Apesar de sermos diferentes, nos constituímos (nos diferenciando) por meio das relações que estabelecemos uns com os outros.

Nesse viés, um método formativo que se organize em grupos temáticos de trabalho orientados por projetos, além de contribuir com a construção autônoma dos sujeitos, visa a respeitar a heterogeneidade dos educandos e permitir que desenvolvam suas próprias potencialidades e investiguem seus interesses. Não faz sentido que se impinja aos estudantes caminhos formativos estanques e conteúdos programáticos de relevância duvidosa.

Talvez uma alternativa para contornar a elitização da formação superior brasileira seja justamente tentar democratizar a cultura e fomentar a pesquisa desde o Ensino Básico. Para tanto, é interessante que se motive os educandos a buscarem ser, como defendemos anteriormente, cientistas de seus interesses por meio de uma dinâmica diferenciada em sala de aula, que promova a horizontalização das relações de saber/poder.

Uma dinâmica horizontal e propiciadora da participação dos educandos em seu processo de ensino-aprendizagem também parece poder contribuir para a frutificação e exercício da sensibilidade, tarefa imprescindível para o estímulo à artisticidade em cooptação com a cientificidade. Do mesmo modo que não queremos dizer com cientificidade o acato a rigores científicos, mas o elã pela aquisição de ciência e solidez teórica de seus interesses por parte dos educandos, não queremos também insinuar com o termo artisticidade que os estudantes devem, necessariamente, desenvolver competências artísticas. O que se sugere aqui é que se incite a fruição e traquejo da arte/sensibilidade, bem como a experienciação de momentos estéticos, pois emoção e cognição são constituídas reciprocamente e é sua abordagem concomitante e inter-relacional que, por assim dizer, instigará os educandos a encetarem a “tatear”, isto é, a formar o tato. Convém que a arte se faça presente na abordagem dos mais diversos temas curriculares e possa contribuir para o estabelecimento/aprofundamento de relações.

A experiência interpessoal propiciada por uma dinâmica de trabalho orientada para o desenvolvimento da autonomia e vivenciada de modo coletivo já consiste numa abertura à experiência estética4, ou, digamos, à experienciação da artisticidade dos educandos. Salientamos que neste trabalho entendemos a formação estética como dimensão que integra o exercício da percepção (conhecimento sensível) e da afetividade (Cf. HUISMAN, 1997). A formação estética passa pelo convívio com diferentes perspectivas, culturas, personalidades, ou seja, tende a ter seu horizonte mais amplo quanto maior forem as possibilidades de contato com a diferença/alteridade. Por outro lado, o outro só pode aparecer numa dinâmica relacional em que haja horizontalidade. Do contrário, uma personalidade hierarquicamente superior na relação, geralmente, subjuga as outras ou as constrange. É importante frisar a esta altura que “ser pessoa quer dizer, assumir uma orientação avaliativa [...] de si mesmo, defender ou rejeitar os motivos [do próprio] agir, decidir se aquilo que se tem vontade é importante [para si]” (FRANKFURT apud NUNNER-WINKLER, 2011, p. 60). Nesse sentido, a interpessoalidade constitui uma lógica inter-relacional na qual nasce certa verdade (a verdade do outro) e por meio da qual somos convidados a exercitar a sensibilidade/percepção. O sujeito se autoavalia frente à interpelação (que interpela também pela autointerpretação) que o outro representa. Diante de outra pessoa que se abre a uma relação aprendente conosco e com o mundo, invariavelmente, refletimos sobre nós mesmo, dando-nos conta do que no outro nos ameaça/acolhe - ou do que, no outro, se configura como uma afronta/assunção (que de algum modo nos constitui) - e, dessa forma, erijimos uma hierarquia valorativa de vontades, gostos, ideais, prazeres, verdades, crenças. Essa hierarquia, de algum modo, só se origina graças a certo tato, que, nesse caso, é um tato exercitado na interpessoalidade. É tato porque, para constituir realmente uma nova verdade para nós, aquilo que é aprendido/experienciado numa relação interpessoal, também requer sensibilidade e consciência da historicidade relacional, seja esta interpessoal ou não. Não há sensibilidade episódica (ou experiência sensível pontual) capaz de tatear, por assim dizer, na completa ausência de luz, certa lucidez sem que, para isso, se sirva do sensível cotejar de todo um repertório de sentimentos e valores que foram construídos historicamente, de lucidezes passadas, de uma competência sensível que vem sendo aprimorada na história do sujeito. A relação que estabelecemos com qualquer coisa já é um aprendizado relacional e uma experiência formadora de tato. Este é uma disposição aqui tomada como essencial na formação humana (bildung) e passível de fomentar culturas formativas nas escolas.

É nesse sentido que argumentamos, neste artigo, a importância de práticas educativas horizontais e autonomizantes na micropolítica da escola. Cremos que somente com uma educação calcada na interpessoalidade é possível dar conta dos princípios articuladores da formação (bildung) há pouco elencados. O desenvolvimento de projetos que consigam aliar teoria e prática e que, simultaneamente, tematizem e problematizem os interesses dos educandos, lança-lhes numa aventura que os convida a conhecerem a si mesmos por meio da investigação rigorosa e contextual daquilo que lhes desperta interesse e da aplicabilidade disso no âmbito de sua comunidade/sociedade.

De acordo com a proposta aqui defendida, uma dinâmica dessa natureza daria lastro ao desenvolvimento de culturas formativas que serviriam de estímulo para que os educandos buscassem ser partícipes de sua própria trajetória formativa, desenvolvendo a autonomia para pesquisar e a iniciativa para projetar seus caminhos formativos. Em síntese (e a título de conclusão), cabe destacar algumas estratégias que aqui abordamos e parecem poder contribuir com uma educação que promova culturas formativas:

  • Uma pedagogia orientada, em maior medida, por projetos que deem liberdade aos educandos para se tornarem espécies de cientistas de seus interesses, isto é, investigadores de problemas que tenham implicações em suas realidades;

  • Tal liberdade deve ser acompanhada de uma educação para a autonomia e para a horizontalidade. Nesse viés, cabe ao professor atuar mais como um mediador, um facilitador, do que como um detentor do saber;

  • Uma dinâmica de ensino-aprendizado que se baseie na interpessoalidade e promova o diálogo entre os sujeitos aprendentes, tanto para a produção de demandas de pesquisa, quanto para o fortalecimento da cooperação e da autonomia;

  • Faz-se necessário, para dar conta desses aspectos, ou, a fim de catalisá-los, uma educação para a sensibilidade, como tratamos à exaustão neste texto. Tal educação, em nosso ponto de vista, deveria ocorrer interdisciplinarmente. Ora, não é só por meio da arte que se cultiva e se traqueja a sensibilidade. Apostar na horizontalidade e na interpessoalidade parece contribuir nesse sentido. A formação para certa capacidade sensível de comportar-se em situações diversas (tato) requer a participação do educando no seu processo de ensino-aprendizado. O exercício da autonomia na construção do conhecimento e a vivência em um ambiente cooperativo são experiências potencializadoras de uma educação para a sensibilidade e para a criatividade. Estas, por sua vez, são qualidades indispensáveis às transformações microculturais que almejamos.

Com base nesses pressupostos, pensamos ser possível dar os primeiros passos em direção às culturas formativas que defendemos. No transcurso da formação, é claro, caberá, permanentemente, reformular metodologias e redirecionar caminhos, aperfeiçoando a proposição aqui descrita. Invariavelmente, haveremos de avaliar as estratégias que precisarão ser repensadas e reformuladas. Tato, assim, é o que se quer formar nos educandos, bem como é o que o educador deve traquejar em si. A formação é uma arte que nos escapa e que sempre requer transformações. Em qualquer caso, temos de reconhecer seu caráter perpétuo e nunca deixar de persegui-la.

REFERÊNCIAS

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2Fonte: site da BBC. Disponível em http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/11/121127_educacao_ranking_eiu_jp.shtml. Acesso em 12 de setembro de 2017

3A opção por utilizar a educação popular e o conceito de cultura popular como parâmetros não se dá somente pelas semelhanças que queremos destacar, mas também por serem, respectivamente, uma concepção de educação e um conceito desenvolvido no âmago de suas discussões que possuem longa tradição de estudos no Brasil. Uma vez que este texto foi inspirado por estudos contextuais do panorama da educação brasileira, nos parece pertinente entrançar nossa proposta em bases epistemológicas que se erigiram em grande medida desde a realidade da educação nacional.

4O termo estética aqui é entendido como “sensação, sensibilidade, percepção pelos sentidos ou conhecimento sensível-sensorial.” (HERMANN, 2008, p. 18).

1Rede Municipal de Ensino de Esteio - RS. <rodrigo.a.colla@gmail.com>

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 02 de Maio de 2019

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