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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.36  Belo Horizonte  2020  Epub 09-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/0102-46982222346 

ARTIGO

CRÍTICA AO CONCEITO DE AFILIAÇÃO DE ALAIN COULON: IMPLICAÇÕES PARA A PERMANÊNCIA ESTUDANTIL

CRITICISM OF ALAIN COULON'S CONCEPT OF AFFILIATION: IMPLICATIONS FOR STUDENT RETENTION

CRÍTICA AL CONCEPTO DE AFILIACIÓN DE ALAIN COULON: IMPLICACIONES PARA LA PERMANENCIA DE LOS ESTUDIANTES

MAÍRA TAVARES MENDES1 
http://orcid.org/0000-0003-1697-3133

1Professora Adjunta - PPGE e DCB/UESC. Ilhéus, BA, Brasil. <mtmendes@uesc.br>.


RESUMO:

Este artigo busca apresentar e discutir criticamente o conceito de afiliação proposto pelo sociólogo e etnometodólogo francês Alain Coulon. Argumenta-se que este conceito capta parcialmente as dinâmicas da permanência estudantil da universidade brasileira, sendo uma ferramenta com potencial explicativo. No entanto, da forma como o conceito é apresentado na obra de Coulon, não capta importantes elementos da permanência estudantil, como os mecanismos institucionais de produção de fracasso, sobretudo à luz dos atravessamentos de classe, raça, gênero e nacionalidade. O trabalho está organizado da seguinte forma: 1) introdução; 2) breve apresentação sobre o autor e a recepção de seus estudos no Brasil; 3) apresentação do conceito de afiliação; 4) dificuldades apontadas por Coulon para o processo de afiliação; 5) discussão sobre os limites do conceito; 6) algumas considerações. Conclui-se discutindo que pensar a temporalidade de estudantes das classes subalternas é uma importante chave de compreensão da permanência estudantil, agregando ao debate as dinâmicas de classe, raça, gênero e nacionalidade.

Palavras-chave: Acesso à universidade; permanência estudantil; afiliação; temporalidades

ABSTRACT:

This article seeks to present and critically discuss the concept of affiliation proposed by French sociologist and ethnomethodologist Alain Coulon. It is argued that this concept partially captures the dynamics of student retention at the Brazilian university, being a tool with explanatory potential. However, as presented in Coulon's work, it does not capture important elements of student retention, such as the institutional mechanisms which produce failure, especially considering the intersections of class, race, gender and nationality. The work is organized as follows: 1) introduction; 2) a brief presentation about the author and the reception of his studies in Brazil; 3) a discussion about the concept of affiliation; 4) difficulties pointed out by Coulon for the affiliation process; 5) discussion about the limits of the concept; 6) some considerations. We argue that thinking about subaltern students’ temporality is an important key to understanding student retention, adding to the debate the dynamics of class, race, gender and nationality.

Keywords: University access; student retention; affiliation; temporalities

RESÚMEN:

Este artículo pretende presentar y discutir críticamente el concepto de afiliación propuesto por el sociólogo y etnometodólogo francés Alain Coulon. Se argumenta que este concepto capta parcialmente la dinámica de la permanencia de los estudiantes en la universidad brasileña y es una herramienta con potencial explicativo. Sin embargo, tal como se presenta en el trabajo de Coulon, no capta elementos importantes de la permanencia del estudiante, como los mecanismos institucionales de producción del fracaso, especialmente considerando transversalmente la clase, la raza, el género y la nacionalidad. El trabajo está organizado de la siguiente manera: 1) introducción; 2) una breve presentación sobre el autor y la recepción de sus estudios en Brasil; 3) una discusión sobre el concepto de afiliación; 4) dificultades señaladas por Coulon para el proceso de afiliación; 5) discusión sobre los límites del concepto; 6) algunas consideraciones. Concluye discutiendo que pensar en la temporalidad de los estudiantes de las clases subalternas es una clave importante para entender la permanencia de los estudiantes, añadiendo al debate las dinámicas de clase, raza, género y nacionalidad.

Palabras clave: Acceso a la universidad; permanencia de estudiantes; afiliación; temporalidades

INTRODUÇÃO

A constituição de um campo de estudos sobre educação superior é relativamente recente no Brasil, remontando ao final dos anos 1980 (NEVES; SAMPAIO; HERINGER, 2018). Sampaio (2019) destaca que, neste período, a comunidade acadêmica ainda não havia assimilado a ideia de pesquisas empíricas que pudessem contribuir para a democratização do acesso e melhoria da qualidade deste nível de ensino.

Neves, Sampaio e Heringer (2018) afirmam que dois grandes quadros interpretativos podem ser identificados neste campo de estudos: a) a relação entre as instituições de ensino superior e a reprodução dos grupos dominantes, numa perspectiva bourdieusiana; e b) a análise do potencial de contribuição das instituições de ensino superior para a democratização das sociedades contemporâneas, inovação cultural e formação de indivíduos intelectualmente autônomos. No primeiro quadro, pode-se destacar a relevância das pesquisas sobre trajetórias escolares (MASSI; MUZETTI, SUFICIER, 2017; ZAGO, 2006; PIOTTO, 2008). No segundo, destacamos em especial a literatura sobre acesso à educação superior, que foi bastante amplificada no período de debate a respeito da implementação de cotas para ingresso nas universidades públicas, tornando-se um objeto de grande relevo das pesquisas sobre relações raciais no Brasil (FERES JUNIOR et al., 2018).

A permanência estudantil como objeto de estudo neste campo é ainda mais recente. A produção bibliográfica brasileira neste campo temático está concentrada nos últimos 7 anos (desde a promulgação da Lei 12.711/2012, Lei de Cotas - BRASIL, 2012), e se dá mormente por meio de dissertações de mestrado (230 trabalhos), com recentes produções no formato de teses de doutorado (35 teses) e artigos em periódicos (36 textos). Há uma diversidade muito grande de áreas de referência nesta produção, com predomínio da área da Educação (98 dos 301 trabalhos mapeados), seguida do Serviço Social (57 textos) e Administração (31 textos), sendo a pluralidade de abordagens uma característica de todos e cada um dos grupos (MENDES, no prelo).

Nesta perspectiva, proponho com este trabalho analisar a importante contribuição do sociólogo Alain Coulon. O autor propõe o conceito de “afiliação” como central para caracterizar o processo de permanência na transição do Ensino Médio para o Ensino Superior. A partir de uma crítica à sua obra, procuro contribuir com a definição de conceitos importantes para os estudos sobre permanência estudantil, uma temática cara à democratização substantiva da universidade brasileira.

O trabalho está organizado da seguinte forma: 1) esta introdução; 2) uma breve apresentação sobre o autor e a recepção de seus estudos no Brasil; 3) uma discussão sobre o conceito de afiliação; 4) dificuldades apontadas por Coulon para o processo de afiliação; 5) discussão sobre os limites do conceito; 6) algumas considerações.

ALAIN COULON, ETNOMETODOLOGIA E RECEPÇÃO DE SEUS ESTUDOS NO BRASIL

Alain Coulon é um sociólogo francês associado à Etnometodologia, uma corrente de pensamento e pesquisas proposta por Harry Garfinkel em 1967 que retomava questões, temas e metodologias da Escola de Chicago de Sociologia, conhecida pelo conjunto de trabalhos sociológicos desenvolvidos entre 1915 e 1940. Um dos importantes desdobramentos dessa Escola foi, após a Segunda Guerra, a perspectiva do interacionismo simbólico que mobilizou o trabalho de uma geração de pesquisadores e intelectuais, a exemplo de Erving Goffman (COULON, 1995).

A Etnometodologia tem como base metodológica a “sociografia” e os experimentos sociais de teste. Com isso, frequentemente se dedica a investigar a racionalidade dos atores sociais no mundo familiar e cotidiano, tendo como objeto a subjetividade dos atores. Assim, é pronunciada a realização de etnografias visando à descrição dos processos que levam os indivíduos a tornarem-se membros competentes de uma dada comunidade.

Um dos trabalhos de Coulon com considerável recepção no Brasil foi “A condição de estudante: a entrada na vida universitária”, que trata especificamente do processo de aprender o “ofício de estudante”, ou tornar-se membro competente da comunidade universitária. Segundo Coulon (2008), este processo é denominado afiliação: “método através do qual alguém adquire um status social novo” (p. 31-21).

Um grupo em especial no Brasil foi responsável pela recepção desta obra nos estudos sobre acesso/permanência: o Programa de Pós-Graduação de Estudos Interdisciplinares sobre a Universidade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Trata-se de um programa de pós-graduação oriundo dos estudos em psicologia social, com a preocupação em analisar as transições da juventude para a vida adulta2. Mantendo uma regularidade na publicação de obras e produção de dissertações e teses que tratam da vida universitária, o projeto Observatório da Vida Estudantil, que é inspirado nos observatoires de la vie étudiante franceses, tem Coulon como a principal referência em suas publicações (SAMPAIO, 2011; SANTOS; SAMPAIO 2012; SANTOS, SAMPAIO, 2013; SANTOS; SAMPAIO, 2015; SANTOS; VASCONCELOS; SAMPAIO, 2017). O autor inclusive participou de cursos e eventos organizados pelo grupo, estabelecendo uma relação de proximidade expressa na tradução para o português de seu livro, em 2008, realizada pelo grupo.

Muito em função desta produção, outras universidades baianas como UFSB (FERREIRA, 2017) e UFRB (SANTOS; XAVIER; BRITO, 2012) também adotaram Coulon (2008), especialmente seu conceito de afiliação, como principal referencial teórico - assim como fundamentando políticas institucionais - para abordar os desafios da permanência estudantil no contexto da universidade brasileira da última década.

O CONCEITO DE AFILIAÇÃO

Coulon é bastante categórico em sua obra acerca da condição estudantil, iniciando seu livro com a seguinte afirmação: “A primeira tarefa que um estudante deve realizar quando ele chega à universidade é aprender o ofício de estudante” (COULON, 2008, p. 31). Para o autor, este aprendizado é o principal problema que os estudantes encontram para permanecer na universidade: “Aprender o ofício de estudante significa que é necessário aprender a se tornar um deles para não ser eliminado ou autoeliminar-se porque se continuou como um estrangeiro neste mundo novo” (ibidem). Assim, ser um “estudante profissional” (em oposição ao “amador”) corresponderia à dedicação de um tempo significativo das vidas imediatas, exigindo aprendizado, domínio de ferramentas e manejo das regras.

Coulon destaca que ser reconhecido como socialmente competente significa que os saberes adquiridos foram legitimados; caso este processo não se realize, ocorre o fracasso/abandono. As altas taxas de evasão, em especial no começo do curso, seriam decorrência de uma inadequação entre “as exigências acadêmicas, em termos de conteúdos intelectuais, métodos de exposição do saber e dos conhecimentos e os habitus dos estudantes, que são ainda alunos” (p. 32).

O autor toma como objeto sociológico a “passagem” (transição), no sentido etnológico do termo, do Ensino Médio para o Ensino Superior. Em outras palavras, trata-se da entrada no Ensino Superior que, segundo o autor, é um objeto de pouco interesse na França. Interessante destacar que a preocupação de Coulon é justamente com o que ocorre após a admissão/ingresso, considerando a “entrada” na universidade de forma mais ampla, o que exige reposicionar o problema do “acesso à universidade” de maneira a abranger, além do ingresso/aprovação, também a permanência (em conformidade com o discutido por Veloso; Maciel, 2015).

Este momento de passagem se dá em meio a uma série de rupturas simultâneas, a exemplo de condições de existência, vida afetiva, bem como ruptura psicopedagógica: do tutelamento da escola básica para a autonomia (ou, nos termos do autor, “anonimato”). Ainda mais destacadas seriam as rupturas com o tempo, o espaço e as regras do saber; aulas longas, regime semestral, ritmo de trabalho, deslocamento no campus seriam os principais aspectos quanto ao tempo e o espaço. Todavia as mudanças mais profundas dizem respeito à relação com as novas, numerosas e complexas regras da universidade; bem como a relação com o saber: lidar com a amplitude dos campos intelectuais, necessidade de síntese, ligações entre saberes e atividade profissional futura.

Buscando interpretar as dificuldades do primeiro ano na universidade, Coulon (2008) explica que “além da capacidade e aptidão de cada um, existiam problemas sérios de adaptação ao ensino superior” (p. 36). O autor defende que a entrada da universidade “de nada serve se não for acompanhada por um processo de afiliação, ao mesmo tempo institucional e intelectual” (p.32). Para analisar este processo, propõe considerar três tempos definidos em termos de etapas sucessivas e explorados a cada capítulo de seu livro: 1) o tempo do estranhamento; 2) o tempo da aprendizagem e 3) o tempo da afiliação. Para Coulon, “raros estudantes estão prontos para se tornarem verdadeiros profissionais de seus estudos” (p. 39), visto que necessitam, mais do que capacidade, de uma “perspectiva a longo prazo, isto é, um projeto suficientemente elaborado que justifique os esforços empregados e que se realize em instituições que o favoreçam” (ibidem).

O tempo do estranhamento corresponderia a um processo de separação do passado familiar, ou seja, de perda de referências: “o que é importante é o ponto de encontro entre a universidade e o futuro estudante, deixando para trás o tempo da separação e a viagem realizada entre esta porta e a porta da universidade” (p. 40).

Este período inicial de estranheza seria sucedido por uma fase mais crítica, de ambiguidades: “é um período doloroso, feito de inseguranças e dúvidas, ao longo dos quais o estudante está ansioso. Ele não tem mais passado, mas ainda não tem futuro” (p. 40). Este processo de desestruturação do passado, lido por Coulon como necessário, não vem imperiosamente acompanhado pela reestruturação que o levaria a afiliar-se. A angústia inicial será sucedida por uma fase de “familiarização progressiva com a instituição, uma adaptação em relação aos códigos locais” e “início do trabalho intelectual” (p. 147). É neste contexto que se processa a etapa denominada de tempo de aprendizagem, para se adaptar e acomodar à instituição. Para o autor, o que se aprende neste tempo são os “rudimentos do ofício: de debutante o estudante torna-se aprendiz” (p. 147); é quando são desenvolvidas rotinas que levam a uma certa naturalização daquilo que antes os desconcertava.

O tempo de afiliação seria o momento de passagem definitiva para seu novo estado, em que o estudante é denominado “veterano” e consegue manejar regras de maneira a interpretá-las ou transgredi-las, levando-o inclusive a identificar que já não estão propensos a evadir como antes. Para Coulon, empreender trâmites que cadenciam a vida do estudante, compreendendo a ordem temporal própria desta vida, é o significado de se afiliar.

Coulon argumenta que o processo de afiliação se completa na medida em que a competência/ofício de estudante - “aprender os inúmeros códigos que balizam a vida intelectual” (p. 41) - é legitimada pela instituição/professores: não basta adquirir a competência, é preciso aprender a mostrar que a possui. Essa demonstração se realiza por meio de “expressão oral e escrita, inteligência prática chamada às vezes de competência para ‘saber se virar’, seriedade, ortografia, saber apresentar referências teóricas e bibliográficas” (ibidem), o que levaria à compreensão comum de sentidos, palavras, comportamentos. Quanto às diferenças entre a cultura estudantil universitária e do ensino médio, Coulon defende que as últimas devem ser “esquecidas” a fim de serem substituídas por “uma nova cultura, mais complexa, mais sofisticada, tão mais difícil de decodificar e adquirir na medida em que ela é mais simbólica” (p. 42).

Assim, Coulon defende uma aculturação - tornar os estudantes “nativos numa nova cultura” - e, tendo em vista que a apreensão cultural demanda um processo de imersão, “quanto mais interações aconteçam, mais se atenua a ambiguidade da segunda fase de passagem e melhor se realiza a indispensável atividade do senso comum [universitário]” (p. 42). Quanto a estudantes que por razões diversas (por exemplo, a exigência de trabalhar, a inexistência de espaço de convívio, ou instalações inadequadas para estudo) passam o menor tempo possível na universidade, e declaram publicamente essa condição, Coulon julga “não ser de bom augúrio” tal atitude, visto que levaria o estudante a se “isolar de múltiplas e minúsculas operações que participam da imersão nessa nova cultura” (ibidem).

Como em toda cultura, o autor destaca a importância da linguagem para o processo de tornar-se “membro”, conceito que, para a etnometodologia, “designa o domínio da linguagem natural do grupo ou de sua organização; permite compreender a necessidade e as condições dessa passagem para o status de nativo” (p. 42-43). Como a cultura da “comunidade nativa” universitária (assim como qualquer outra) é “movente e cumulativa”, a aquisição dessa linguagem nunca é completa. Reconhecer a competência de um membro é identificar se possui domínio das rotinas, “admitir nele uma naturalidade autêntica que lhe permite realizar certo número de coisas sem pensar nelas” (p. 43), obedecendo a um habitus que seria constantemente renovado. Logo, estudantes que nos primeiros meses de universidade não conseguem demonstrar “os traços distintivos de sua afiliação ao ‘ofício de estudante’ são, impiedosamente, eliminados (fracasso) ou se autoeliminam (abandono)” (p. 43).

Para Coulon existe uma distinção entre o que seria a afiliação institucional e intelectual: a primeira consiste em compreender e interpretar “os múltiplos dispositivos institucionais que regem sua vida estudantil cotidiana” (p. 193), enquanto o segundo diz respeito ao conhecimento por parte do estudante do que “se espera dele no plano intelectual para que possa demonstrar sua competência” (ibid.). Enquanto a primeira é adquirida de forma mais definitiva, a última nunca será finalizada, “estará continuamente recomeçando e sendo confirmada" (ibid.). Seriam estas as duas competências definidoras de um “membro” nos termos da etnometodologia - caracterizadas pelo uso competente de diferentes regras e instruções.

A afiliação dita intelectual teria para Coulon (2008) duas etapas: a primeira seria a submissão à “palavra pública universitária que lhe provoca desejo de conformar-se a ela” (p. 231) e a segunda seria a liberação - “imperiosa” e “no tempo certo” - dessa submissão para “navegar com facilidade na organização, exposição e utilização adequada dos saberes” (ibidem). A aprendizagem do trabalho autônomo seria a característica comum de qualquer passagem para o ensino superior, em todas as universidades e em todos os domínios. Apesar de uma definição um tanto normativa, seria possível ponderar que a mercantilização, a padronização e a homogeneização curriculares têm jogado contra esta autonomia; mais ainda, que essa autonomia, ainda que desejável, não pode ser considerada inata, e sim objeto de uma aprendizagem planejada ao invés de “espontânea” (leia-se de quem já possui capital cultural acumulado).

OBSTÁCULOS À AFILIAÇÃO

A preocupação central de Coulon está voltada aos processos que levam o estudante a permanecer na universidade - a se afiliar. Apresento nesta seção a outra face deste processo de acordo com o autor: quais seriam as dificuldades que geram uma propensão deste estudante a sair?

Coulon (2008) formula o conceito de afiliação num momento em que a Universidade Paris 8 procura flexibilizar suas formas de acesso para além das formas tradicionalmente mais seletivas. Localizando o período de massificação do ensino superior francês entre 1981 e 1995, em que a população estudantil no nível superior dobrou (passou de 1 milhão para 2,2 milhões), o autor destaca a preocupação da Reforma Universitária ocorrida no país em 1984 com a facilitação da entrada de estudantes na vida universitária. O autor discute as inovações pedagógicas, sobretudo quanto à reorganização curricular em ciclos, blocos de Unidades de Ensino - UE (disciplinas) e entrevista de orientação, pontuando que Paris 8 experimentava razoável avanço, e, portanto, não tinha grande necessidade de passar por uma reforma, ainda que não contemplasse resultados pedagógicos satisfatórios em relação, sobretudo, à evasão.

A apropriação do conceito de afiliação no contexto brasileiro se dá na medida em que a expansão mais significativa das vagas universitárias públicas ocorre no Brasil após 2007 com a implementação do REUNI (Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais). Em texto mais recente, Coulon (2017, p. 1241) traça um paralelo entre os casos francês e brasileiro, afirmando que “Nem sempre esses estudantes tinham o nível requisitado e um certo número de hábitos culturais e sociais que não lhes facilitavam a entrada nesse meio universitário”. Assim, para o autor, o desafio é que a democratização do acesso ao ensino superior ainda não veio acompanhada de uma democratização do acesso ao saber.

Entretanto, a expansão da universidade brasileira traz alguns elementos peculiares que colocam desafios ao conceito de afiliação da forma como foi formulado. Não se trata somente de uma expansão quantitativa de estudantes, mas qualitativa. Ainda que Coulon (2008, 2017) mencione os desafios de uma presença maior de estudantes trabalhadores, a expansão da educação superior brasileira se deu sobretudo por meio de conflitos que envolvem dinâmicas raciais interiorizadas na instituição3 (e no conjunto da sociedade), expondo inclusive limites epistemológicos do saber produzido nas universidades, para as quais as contribuições de negros, indígenas e outros povos subalternizados passaram por processos de epistemicídio (OLIVEIRA, NUNES, ANTLOGA, 2019). Portanto, tratar do problema do abandono/evasão enfocando nas dinâmicas de “adaptação ao ensino superior” deixa escapar a atual dificuldade de as universidades brasileiras se adaptarem à presença desafiadora de sujeitos que questionam quais medidas as instituições têm tomado para adaptarem-se a eles.

Partindo destas premissas, apresento três elementos da obra de Coulon tratados como obstáculos à afiliação. Primeiramente tratarei do que o autor denomina de afiliação intelectual, em especial o conjunto de atividades consideradas propriamente acadêmicas, e que discutirei sob o amplo rótulo de “dificuldades pedagógicas”. Depois trato do domínio da linguagem e dos códigos da vida universitária. Por fim, da relação dos sujeitos com o tempo, ou seja, a temporalidade, em especial considerando que a familiaridade com a universidade tem a ver com o tempo disponível para a sua fruição.

Dificuldades pedagógicas

No sistema educacional francês4, existe um itinerário formativo denominado baccalauréat em tecnologia, de formação profissional/tecnológica, ou seja, voltados à formação de mão de obra e, portanto, não acadêmico. Na época em que Coulon publica seu livro, o autor relata haver poucas opções de trabalho para estudantes com este tipo de diploma, gerando com isso um crescimento da demanda deste perfil de formação por universidades, cujo ingresso é considerado como um problema “em razão de seu nível médio de cultura geral” (p. 67). O fato de haver exigências diferentes entre a universidade e a escola seria, para Coulon, uma “marca no currículo” para quem cursa este tipo de escola. Coulon considera haver uma ruptura que distancia este grupo de estudantes ainda mais do exigido no ensino superior “em termos de vocabulário, de conceitualização, de hábitos de leitura e de escrita, de pensamento, enfim, de um conjunto de operações intelectuais que caracteriza o trabalho acadêmico” (p. 68). Menciona ainda professores que “se compadecem com o seu nível primário, especialmente quando escolhem certos tipos de estudos, como por exemplo línguas” (p. 63, grifo nosso).

Ao discutir esta constatação, a responsabilidade institucional da universidade em relação a diferenças formativas deste conjunto de estudantes é transferida exclusivamente ao plano individual, transformando a segmentação estrutural do sistema educacional em fracasso pessoal. Desta maneira, Alain Coulon afasta da universidade a responsabilidade em enfrentar este problema ao afirmar que “não deverá ser objeto de um tratamento institucional, pois se trata de um problema intelectual” (p. 68). A organização de um “ano propedêutico” para estes estudantes é avaliada com algo passível de ainda mais estigmatização, logo o desafio seria propor uma pedagogia da afiliação para este grupo de estudantes, carregando a marca do fracasso estruturalmente produzido.

Ainda sobre estudantes trabalhadores, é atribuída uma deficiência (handicap) em relação a hábitos de trabalho intelectual. Sobre este tipo de trabalho, Coulon remete a um certo número de regras formais, as quais, se não respeitadas, levam ao fracasso.

[A] instituição do trabalho intelectual dissimula o fato de que, para que seja realizado, ele necessita que se dominem os códigos formais de fabricação, reprodução e de exposição que são sua própria base. “O esquecimento” desses códigos fundadores, operadores lógicos que demonstram, por exemplo, o sentido de ordem e de racionalidade do aluno, reificados pela instituição do exame e da classificação, resulta na ilusão de que apenas o conteúdo intelectual é avaliado enquanto que se trata também do controle de sua elaboração (COULON, 2008, p. 234).

Se estas regras do trabalho intelectual consideram tanto seu conteúdo quanto seu controle, como ignorar o fato de que a sua realização de maneira contínua e sistemática não pode se dar no mesmo ritmo para trabalhadores em relação a estudantes em tempo integral? Ao afirmar que “a deficiência” dos não-bacheliers vem “acompanhada do fato de trabalharem”, Coulon transforma uma escassez de tempo para dedicar-se ao aprendizado das regras (que, portanto, pode ser sanada exatamente com mais tempo para tal) em deficiência intelectual. Há que se considerar o elemento “tempo de dedicação” (não apenas no plano individual, mas também numa perspectiva histórica) para tratar das dificuldades que, segundo o autor, levariam os estudantes trabalhadores a uma maior propensão à evasão5.

Em relação aos motivos relatados por seus estudantes, Coulon (2008) destaca a dificuldade em precisar como se toma a decisão de “abandonar”. A estudante Elsa destaca ser a solidão, o tédio e a sensação de não saber para que irão servir seus estudos. Laurence menciona a dificuldade financeira ocasionada por estudar e não trabalhar, associada ao seu medo em não conseguir passar nas disciplinas. Estes exemplos jogam luz sobre um aspecto fulcral quando se trata da permanência/evasão estudantil, especialmente nos primeiros meses da graduação: as dificuldades de desempenho ocasionadas pelo desconhecimento a respeito ou falta de familiaridade com a dinâmica avaliativa da instituição universitária.

Para Coulon (2008) são três as atividades que fundam o trabalho intelectual: ler, escrever e pensar (o que exigiria incluir, para outras áreas do conhecimento, mais habilidades, como o cálculo/lógica nas ciências exatas e biológicas). Estudantes trabalhadores apresentam relatos sistemáticos de dificuldades nestas e em outras atividades exigidas, especialmente quando envolvem a expressão em público (“falar e ousar falar” em apresentações de trabalho, seminários ou até mesmo no enunciar de uma dúvida).

Quanto a estas dificuldades, que reunirei aqui sob uma denominação bastante ampla de “pedagógicas”, Coulon sugere uma “indulgência” na avaliação dos trabalhos dos alunos no começo do curso, não por “tolerância excessiva, mas com o objetivo de realizar uma transição entre as práticas educativas do ensino médio e as da universidade” (p. 167). Acreditamos que esta orientação seria de fato bastante proveitosa se assimilada pelas instituições universitárias, ainda que a denominação de indulgência nos soe equivocada: uma avaliação contextualizada é aquela que leva em conta a situação em que se dá o processo de ensino-aprendizagem. Pensar em termos de “indulgência” reforça uma ideia de que seria uma concessão benevolente (“compadecida”) de quem avalia, e não um exercício reflexivo sobre os objetivos institucionais em relação às práticas pedagógicas reais da universidade. Isto é reforçado pela ideia de que as dificuldades apresentadas pelos estudantes são de ordem “intelectual” ou “cognitiva”, pois uma série de aspectos pode estar em jogo, inclusive elementos pedagógicos mobilizados pelos docentes, os quais parecem não ter memória de suas próprias dificuldades quando ingressantes.

A denominação de uma prática avaliativa adaptada ao contexto como “indulgente”, o rechaço a uma orientação que venha a se constituir numa “espécie de ortopedia que se propicia para compensar ‘deficiências’ individuais de alguns estudantes” (ibidem, p. 248), ou a menção ao “compadecer” de docentes pelo manejo insatisfatório da norma culta são representativos do “comportamento de distinção” tão recorrente na academia, cuja marca mais expressiva é a distância social pretendida entre professor e aluno.

Ainda sobre a “solidão” descrita pelos estudantes, a relação com uma instituição sólida e cheia de tradições pode gerar um sentimento de fragilidade frente à ordem burocrática, quando o “aparelho universitário esmaga o movimento na direção da liberdade” (ibid., p. 168-169).

A dimensão do acolhimento - sobretudo a falta dele - é ressaltada como um dos aspectos que reforçam esta sensação de impotência, falta de motivação e dificuldades aparentemente intransponíveis que acometem parte considerável dos estudantes. Estes sentimentos frequentemente geram um processo de adoecimento, que Coulon de forma perspicaz atribui à burocracia da instituição. O estresse psicológico decorrente da entrada na vida universitária, entretanto, ao invés de ser endereçado como um problema generalizado na instituição é individualizado, sendo que o autor orienta que “é necessário administrar para que o abandono precoce não ocorra”.

É ainda mais grave se ponderarmos que esta sensação de isolamento está frequentemente relacionada à sensação de ser uma pessoa “intrusa”, não pertencente, sobretudo para estudantes de origem popular. “Intruso designa uma pessoa que entra em algum lugar sem ter direito, sem ter sido convidado ou desejado” (COULON, 2008, p. 174), ou, como definido pela estudante Colette, “Eu tenho a impressão que eu não tenho o direito de estar aqui [...] eu estou sozinha, e não gosto do ambiente. Eu quase abandonei por causa disso” (ibidem). Entretanto Coulon afirma que esta sensação de nostalgia e “expatriação” é uma “condição necessária para que nos projetemos sobre uma outra via, em direção a uma outra língua” (ibid., p. 175). O adoecimento, sofrimento psíquico e angústia relacionada à sensação de perda de identidade seriam fases necessárias ao crescimento:

O momento do estranhamento dá tempo aos iniciantes de abandonar as ilusões e o mito de universidade que eles trazem quando chegam. Crescer é sempre perder suas raízes, suas relações antigas, seus amigos antigos, é estar isolado durante certo tempo. É uma condição necessária para caminhar na direção de uma encruzilhada que descortina a esperança de novos caminhos. A aprendizagem, tempo do outro com o qual eu quero parecer, anuncia o tempo da afiliação que será finalmente o que permitirá aprender e compreender (COULON, 2008, p. 175).

A suposta necessidade de apagamento das referências é mais um dos elementos que remete à necessidade do estudante se adaptar à instituição, sem apontar em que medida a instituição reconhece, valoriza e acolhe os distintos pertencimentos culturais. Posto desta maneira, a instituição que cultiva os valores dos que podem dispor do tempo exclusivamente para pensar, não é confrontada com as necessidades daqueles que não puderam/podem dispor deste privilégio de tempo.

O domínio da linguagem e dos códigos da vida universitária

A atividade intelectual demanda uma aprendizagem do processo de concentração que não deixa de ser técnica. Coulon traça um interessante paralelo com a aprendizagem do karatê: é necessário concentrar-se para praticar, e é ao mesmo tempo uma aprendizagem da concentração6.

Dominar uma linguagem restrita tem sido ao longo da história um dos marcadores mais pronunciados de poder. A compreensão da norma culta, especialmente na modalidade escrita, é expressão de um domínio também de classe. Entretanto, é considerada como um dos pré-requisitos para acessar a instituição universitária e, portanto, naturalizado como exigência primeira para “entrar no jogo”. Pierre Bourdieu, em abordagem distinta à de Coulon, coloca ênfase na dinâmica de classes em jogo na universidade: “O que está implícito nessas relações com a linguagem é todo o significado que as classes cultas conferem ao saber erudito e à instituição encarregada de perpetuá-lo e transmiti-lo” (BOURDIEU, 2015, p. 63).

Para Coulon, entrar na universidade é explorar e querer voluntariamente mergulhar nos códigos que definem esta organização. Porém, para além do domínio da linguagem, há um conjunto de códigos e regras que são opacos ou mesmo ilegíveis. Assim, o caráter “voluntário” atribuído a este “mergulho na instituição” (especialmente se considerarmos a prescrição de “perda de raízes” discutida no tópico anterior) diz menos respeito ao manejo do código do que ao desejo de ingresso. O autor francês destaca como recorrentes entre os estudantes “problemas de vocabulário”:

A competência intelectual se distingue pela capacidade de apropriação de palavras eruditas. De fato, o mundo da universidade não é o mundo de todo mundo, o que prova que é um ofício. Não é um lugar aonde se vai para fazer compras, mas onde se deve construir uma competência que pode deixar alguns estudantes na soleira da porta de entrada por falta de não terem antecipado os conceitos de que necessitariam. Os intelectuais universitários são percebidos como extraterrestres cuja ação se caracteriza e manifesta pela utilização de um vocabulário particular que lhes distingue e exclui os outros (COULON, 2008, p. 99).

Acerca desta questão, Bourdieu (2015, p. 62) discute o fato de os professores partirem da hipótese “de que existe, entre o ensinante e o ensinado, uma comunidade linguística e de cultura, uma cumplicidade prévia nos valores, o que só ocorre quando o sistema escolar está lidando com seus próprios herdeiros”. Neste contexto, é possível para um estudante anunciar publicamente sua ignorância? Como expressar dúvidas que podem ser consideradas no ambiente intelectual como “conceitos básicos”?

É ilustrativa deste questionamento a descrição da dificuldade de afiliação “intelectual” dos estudantes mais velhos e/ou trabalhadores. Assim como relata Coulon, é frequente a queixa de estudantes acerca de grandes dificuldades como: o problema da leitura, o bloqueio em relação à escrita (“não sei escrever”, “está uma porcaria” etc.), tolher-se por achar dada pergunta “boba” e deixar de fazê-la. Estas atitudes são descritas por Coulon como “pensamentos desqualificadores negativos ou autodepreciativos”. Entretanto, há que se ponderar que a apreciação/depreciação, como toda questão referente à linguagem, é ensinada e aprendida. Assim, quando alguém se “autodeprecia”, é porque compreende o conjunto de valores de apreciação - de códigos - que levam à compreensão de seu “lugar” numa relação de poder. Não se trata, portanto, como pode dar a entender o termo “autodepreciação”, de um processo exclusivamente íntimo e pessoal, mas da internalização de um código que leva ativamente à expulsão de quem não o maneja com “excelência”.

Para além da linguagem como expressão da norma, os códigos de conduta são também objetos de contestação. Toda a obra de Coulon é construída sobre o processo de aprendizagem das normas do currículo estabelecidas na Universidade de Paris 8. Trata-se de um sistema defendido como flexível em relação ao sistema de grade horária (disciplinas definidas pela coordenação do curso). Um currículo mais rígido, para Coulon, reassegura os estudantes e é cômodo para a organização burocrática, mas a contrapartida é a falta de flexibilidade do currículo, o que gera heteronomia estudantil. Para ele, “Um dos elementos importantes da passagem para o ensino superior é considerar e tratar os estudantes tal como são: adultos” (p. 108).

Apesar de antever que a diminuição da autonomia seria incompatível com a maturidade de estudantes adultos, há que se considerar que a construção de um currículo ilegível para um grande grupo não discute as limitações e responsabilidades da própria universidade para democratização de seu próprio funcionamento. Há uma recorrência na descrição da dificuldade em montar horários, escolher as disciplinas, ou seja, compreender de modo geral as regras de funcionamento postas em prática para o ato mais inicial do estudante universitário: fazer a matrícula.

Entretanto, para o autor seria uma etapa necessária: “[a] afiliação passa, de fato, pela busca de informações precisas que esclareçam sobre a natureza da construção do currículo e dos horários que se coloca para cada novo aprendiz” (p. 96). Coulon destaca como central o movimento do aprendiz buscar se adaptar às regras, sem citar a importância de mudanças institucionais para que novos aprendizes sejam incorporados mais efetivamente. Isto leva à constatação, sobretudo quanto à relatada desorganização da matrícula, de que para se afiliar à universidade é preciso se adaptar à sua desorganização, mais do que refletir sobre a adequação de um sistema aparentemente pouco eficaz.

Coulon demonstra muito interesse em compreender as regras “invisíveis”, como aquelas envolvidas nas complexas ações de matrícula, em virtude de sua relação com uma preocupação etnometodológica: as regras existem quando são colocadas em prática, não bastando uma instrução para sua existência real. Portanto, para investigar a indexicalidade de uma regra (ou seja, o fato de só fazer sentido quando referida a determinado contexto), a sua opacidade (o fato de não ser evidente) parece interessante, visto que a etnometodologia “analisa as propriedades das regras quando elas são ativadas socialmente”. No entanto, é preciso ponderar que esta opacidade é justamente o que permite que o acesso à instituição produtora da regra seja restrito, visto que mesmo a descrição das regras curriculares do contexto pesquisado em Paris 8 recai em enormes dificuldades, nem sempre contornadas pelo autor.

O mesmo pode se dizer sobre as instruções não escritas e frequentemente não ditas exigidas para o trabalho acadêmico. Para Coulon “A descoberta dessas recomendações, secretas, naturalizadas e dissimuladas nas práticas do ensino superior é uma das primeiras tarefas que o estudante deve realizar para se tornar um aprendiz de estudante” (p. 177). No entanto, se estas regras são secretas, como descobri-las? O fracasso parece ser não apenas provável como esperado, favorecendo estudantes que de alguma maneira já possuem facilidade e trânsito no ambiente universitário, como por exemplo, aqueles cujas famílias há gerações frequentam tais instituições.

Coulon destaca a necessidade de aprender a existência de uma certa quantidade de trabalho a ser realizado, um fato que, se ignorado, constitui poderoso fator de abandono, visto que instituições sociais possuem um conjunto de regras que funcionam de maneiras clandestinas. Desta maneira, conclui que “é preciso ser um estudante muito afiliado às instituições locais para identificar essas sutilezas” (p. 185), para descobrir o que não é dito, mas é necessário. Se para tornar-se estudante é necessário adquirir esta competência, porque não colocar como uma questão inadiável e bastante explícita as formas pelas quais se podem adquirir tais saberes? O silenciamento sobre os códigos só é vantajoso para a pequena minoria que já transita historicamente pelos bancos da universidade.

Afiliar-se ao mundo universitário é “do ponto de vista intelectual, saber identificar o trabalho não solicitado explicitamente, saber reconhecê-lo e saber quando finalizá-lo”, tendo sucesso quem compreende “os códigos do trabalho intelectual, cristalizados num conjunto de regras quase sempre informais e implícitas” (COULON, 2008, p. 250). Desta maneira, podemos dizer que fracassa quem não domina este código. Esses “códigos dissimulados” ou “sinais invisíveis” são, para Coulon, “marcadores de afiliação”, quando identificados e utilizados pelos estudantes de maneira “natural”, e que marcam limites entre grupos sociais, visto que distinguem entre aqueles que têm sucesso (dominam) e fracassam (são dominados).

Para Coulon, a sensação de arbitrariedade frente às regras do currículo é encarada pelos estudantes com uma “síndrome da inquietação”, que levaria “os menos motivados ou os mais frágeis” a abandonar imediatamente a instituição. A capacidade de manejar este complexo arranjo normativo inclui também a possibilidade de transgredi-la, seja com a “aquiescência da secretaria, seja de maneira ‘selvagem’” (p. 195), pela descoberta de que certas regras são normas: ou não são obrigatórias, ou não há qualquer consequência em não cumpri-las, constatações que aumentam ainda mais a sensação de arbitrariedade.

A existência, nas escolhas curriculares, de uma regra temporal que não é explicitada como exigência da ordenação de disciplinas no currículo leva Coulon a discutir que está em operação um “currículo oculto”. Trata-se de uma discussão interessante, visto que para Michael Apple, currículo oculto diz respeito às “normas e valores que são implicitamente, mas eficazmente ensinados nas escolas e sobre os quais o professor em geral não fala nas declarações de metas e objetivos” (APPLE, 2006, p. 127), ou seja, ao conjunto de saberes que são ensinados de maneira não intencional (velada), de maneira que a ideologia joga papel fundamental, ao tornar tão sedimentadas determinadas práticas que mesmo seu questionamento pareceria fora de lugar. Portanto, mais do que o não explicitar as regras curriculares, o que se oculta na ordem temporal que Coulon preconiza é o fato de que é preciso dispor de uma familiaridade com as regras, implicando em um tempo histórico no lidar com a universidade. Para o setor social mais subalternizado, este é um tempo difícil de dispor.

A consequência imediata é um processo de institucionalização do fracasso de certos setores, ao deixar estas regras implícitas, ao invés de trazê-las ao debate democrático das finalidades institucionais. Uma universidade que se propõe democrática, sendo uma instituição que tem por ofício trabalhar com o conhecimento, não pode se dar ao luxo de manter regras pétreas sem questionamento, visto que são justamente estas regras que definem sua relação com a sociedade. O que é oculto neste currículo não são somente as regras que o põem em funcionamento, mas também as pessoas para as quais ele não funciona.

Tempo/temporalidade

A relação com o tempo é uma dimensão fulcral de qualquer relação humana e tem grande destaque no trabalho de Coulon. Esta dimensão é sensivelmente distinta daquela mantida antes do ingresso na universidade. Para Coulon, “A temporalidade vivida por eles [estudantes] na universidade é tão diferente e distante daquela de um aluno do ensino médio que não há lugar para se surpreender com as perturbações que uma nova relação com o tempo pode engendrar” (COULON, 2008, p. 104).

Ao afirmar que “não há lugar para surpresa” nessa nova relação com o tempo, Coulon se refere à necessidade de estabelecer algo bem conhecido para quem já possui alguma proximidade com a instituição universitária: o desenho de uma finalidade/objetivo/meta em sua trajetória. Para Coulon, temporalidade e perspectiva de futuro são praticamente sinônimos, já que “é necessário saber por que se está aqui”: “Ser estudante é uma situação escolhida, é se engajar em um projeto de ação que se enuncia como: estudar” (ibidem, p. 105).

Dessa maneira, preconiza a necessária constituição da identidade e cultura estudantis: “Ter uma vida de estudante é ficar na universidade quando acabam as aulas, não sair logo em seguida” (ibid., p. 107). A ausência de um espaço próprio e pensado para tal dificulta este processo, visto que “As pessoas apenas passam por ali, o que não contribui para o desenvolvimento de um sentimento de pertencimento necessário a uma integração” (idem, p. 107). Além das tarefas intelectuais, ser estudante implica “se inculcar, dialogar, realizar atividades com outros estudantes que permitem a eles reconhecer que enfrentam os mesmos problemas, utilizam as mesmas expressões e partilham o mesmo mundo” (ibid., p. 107).

A constituição desta identidade passa, portanto, por uma definição em relação ao futuro que não leva em conta um outro tipo de relação com o tempo, especialmente daquelas pessoas que dele não dispõem - quem trabalha. Como constituir uma identidade e cultura estudantis se o tempo disponível para o estudo é o menor possível? A estes, que precisam negociar e repartir o tempo entre vida profissional familiar e estudo, parece recair uma imponderável e lamentável restrição, cuja “má sorte” de terem nascido distantes da universidade - de terem nascidos pobres, trabalhadores - os levará a um fracasso inevitável. A ordem temporal - leia-se perspectiva de futuro profissional por meio da carreira universitária - que é exigida para a afiliação de Coulon repousa numa norma de perspectiva de futuro de que muitas famílias não dispõem. Como discute Santos (2009)

Na busca por condições de permanecer materialmente na Universidade, alguns estudantes podem também abrir mão de vivenciar a universidade em sua plenitude para poder trabalhar, e essa escolha tem impactos na permanência simbólica, já que repercute de forma distinta sobre o desempenho e sobre a vida acadêmica. Aqueles envolvidos em atividades que lhe consomem grande parte do tempo e que não mantêm qualquer ligação com a área de estudos, enfrentam grande dificuldade em conciliar os estudos com o trabalho, pois o tempo para se dedicarem à leitura de textos e realização dos trabalhos acadêmicos é exíguo, o que contribui para alguns resultados insuficientes e atraso do curso.” (SANTOS, 2009, p. 72).

Almeida (2009) discutindo a desigualdade de fruição na Universidade de São Paulo (ou seja, a possibilidade de aproveitar a diversidade de experiências oferecidas pela instituição), apresenta outro exemplo das diferenciações percebidas pelos estudantes de sua pesquisa.

A falta de tempo devido à necessidade de trabalhar produz uma diferenciação interna: o estudante em tempo integral, que pode aproveitar a USP mais plenamente e, por isso, fazer um curso melhor, aprender mais, e aquele que trabalha e estuda. Temos aqui uma separação objetiva bem delimitada entre os uspianos que acarreta diferenças incontornáveis também no plano simbólico (ALMEIDA, 2009, p. 166).

Além do aspecto simbólico acima discutido, a classificação do processo de afiliação em três tempos é ele mesmo uma marca da temporalidade na obra de Coulon. Trata-se de um insight interessante por sua aparente regularidade, mas contraditoriamente pode deixar antever uma linearidade na relação com o tempo. A indicação de três etapas sucessivas parece sugerir uma sequência mandatória, desconsiderando que certos processos de permanência podem se dar em saltos, seja por grande familiaridade com a vida acadêmica, seja pelo contrário - pela exigência de mudanças bruscas na relação com o conhecimento e os métodos de estudo.

LIMITES AO CONCEITO DE AFILIAÇÃO

Uma vez que o conceito de afiliação tem por foco estudantes adaptados à instituição, a discussão de Coulon trata de questões caras à universidade, produzindo reflexões sobre o sucesso no processo de adaptação à nova condição de estudante. A contrapartida necessária é investigar que lugar ocupam, neste quadro teórico, aqueles que já evadiram. Evadem os que não se adaptam. As regras subjacentes ao processo de afiliação são tomadas como parâmetro normativo de experiência universitária. É importante incluir na análise o que Bourdieu (2017), chamou de “formas denegadas de eliminação”: o atraso/repetência, a relegação para ramos de ensino tidos como menos qualificados ou estigmatizados, bem como a outorga de diplomas desvalorizados.

A naturalização e legitimação das regras se expressam de maneira mais sutil - e talvez justamente por isso de maneira mais cruel - na expectativa de projeção de futuro implícita no conceito de afiliação de Coulon. Sendo o primeiro da família no ensino superior, como exigir a projeção de um futuro quando mal se familiariza com o presente? Para Bourdieu (2015), o ethos de classe tem uma dimensão fundamental: a atitude com relação ao futuro, ou o encontro entre as “oportunidades objetivas” e as “esperanças e desesperanças subjetivas”. “Tudo concorre para conclamar aqueles que, como se diz ‘não tem futuro’, a terem esperanças ‘razoáveis’ [...], ou seja, muito frequentemente, a renunciarem à esperança” (p. 55).

Após descrever o período de entrada do estudante no labirinto de regras, Coulon volta-se à discussão de estratégias, perspectivas, desencantamentos e rotinas desenvolvidos pelos estudantes na fase denominada de “tempo de aprendizagem”. Preocupado em descrever o processo de afiliação a partir do processo em que cada indivíduo procura desenvolver as competências necessárias para serem considerados membros da instituição universitária, não é possível identificar o mesmo esforço no sentido de desvendar que processos e agentes levam ao impedimento estrutural de determinados sujeitos serem legitimados como “membros competentes”.

Sem poupar elogios aos estudantes que dominam com maior facilidade o habitus universitário, os quais agiriam de forma “prudente e inteligente” e demonstrando “capacidade de previsão”, Coulon deixa-se trair ao discutir as situações em que as atitudes e relatos de estudantes fogem do padrão esperado pela instituição. Com efeito, Bourdieu (2015, p. 49-50) descreve, em relação a filhos de meios mais favorecidos, a herança de “saberes (e um ‘savoir-faire’), gostos e um ‘bom-gosto’, cuja rentabilidade escolar é tanto maior quanto mais frequentemente estes imponderáveis da atitude são atribuídos ao dom”.

Coulon critica as escolhas de disciplinas realizadas a partir do que ensinam os manuais, que seriam “maneiras administrativas, não intelectuais” (COULON, 2008, p. 150). No entanto, o que dizer de um manual (gênero textual marcado pela diretividade de instruções), elaborado por uma instituição, que é criticado por Coulon justamente por ser seguido?

Estudantes que conseguem “manipular as regras” e “compreender as sutilezas do currículo”, dominariam a “propriedade temporal da regra” (p. 148), ou seja, a capacidade de projeção no futuro como consequência das escolhas curriculares (ou “estratégia de futuro” - p. 158). Tomar consciência da ordem temporal implica em compreender o fenômeno do tempo subjacente ao processo de aprendizagem. Coulon avalia que os estudantes “calculam seus currículos em função de estratégias de orientação temporal” (p. 151), porém o currículo em vigência no momento de sua análise desenha percursos que são frequentemente ilegíveis. Dito de outra forma, a propagandeada flexibilidade curricular de Paris 8, que traria uma maior responsabilidade e liberdade aos estudantes, veio acompanhada de uma incompreensão crônica do currículo por grande parte dos sujeitos em formação, bem como dos próprios professores (que devem recorrer com frequência às secretarias para informações precisas), consequentemente de um aumento da demanda gerencial da universidade.

Ao tratar da noção de “estratégia de estudo”7, Coulon destaca que não são apenas as estratégias conscientes que operam nas escolhas curriculares e numa autoavaliação fundada no habitus. As estratégias seriam resultado de “uma espécie de submissão” (ao tempo? aos professores? à instituição?) e ao mesmo tempo calculadas: “a prática da estratégia incorpora estruturas familiares, situações socialmente estruturadas e, ao mesmo tempo, depende de operações cognitivas que levam em conta a situação presente e sua ‘praticalidade’ normativa” (COULON, 2008, p. 159).

A estratégia de adiar a definição de um percurso formativo por meio do manejo de disciplinas é avaliada pelo autor como um indicador de compreensão do aspecto temporal do currículo, o que exige “inteligência do conjunto da formação e das vias que conduzem a dois DEUG [tipos de diplomas] diferentes” (idem, p. 153). Este tipo de estratégia, como uma série de outras, não é enunciada de maneira explícita em nenhuma instância universitária. É uma regra que só será tornada evidente (“ativada” nos termos do autor) na prática:

Essa é, efetivamente, uma propriedade das regras - serem descritíveis somente quando as ações as ‘acordam’. Essas propriedades adormecidas se tornam visíveis se elas são ativadas pela ação prática que revela assim sua ordem, sua racionalidade, sua lógica, sua obrigatoriedade, sua flexibilidade, em resumo, seu caráter instituído. (COULON, 2008, p. 154)

Ou seja, trata-se de uma regra tácita, silenciosa, que só é disponível aos sujeitos da instituição na medida em que os mesmos se deparem com problemas bastante específicos; uma espécie de “segredo” disponível aos iniciados e familiarizados. A decorrência da impossibilidade de se ter segurança em relação às regras vigentes do currículo visto não estarem disponíveis e aparentarem uma arbitrariedade injustificável, é o desenvolvimento de uma grande insegurança e ansiedade descritas pelos estudantes nos diários analisados por Coulon.

É surpreendente, frente à crescente dificuldade de se explicar estas regras, a defesa pouco crítica de um modelo que leva os estudantes a gastarem mais tempo se certificando da adequação de suas escolhas curriculares às regras junto à secretaria do que efetivamente estudando. Isto é tomado por Coulon como um “papel pedagógico capital” da “pedagogia da partilha”, visto que mostra “aos estudantes como devem fazer para interpretar as regras”, por meio dos ensinamentos dos funcionários acerca da “competência social média que é exigida deles para que possam seguir ‘normalmente’ seu currículo” (ibidem, p. 155-156).

O autor conclui sua obra com a proposição de uma “pedagogia da afiliação”, um conjunto de atividades para facilitar o engajamento de estudantes na vida universitária, como um diário de afiliação e cursos de metodologia, tomando como base a experiência que vive em Paris 8 (COULON, 2008), bem como indicando seus benefícios para a experiência brasileira (idem, 2017). Sem menosprezar a validade destas experiências, parece-me que o problema central, não enfrentado por Coulon, diz respeito aos conflitos gerados por diferenças que têm, frequentemente, origem em desigualdades de classe, raça e gênero. Em realidade, a ausência da própria ideia de conflito é algo que salta aos olhos na obra do autor, que deixa revelar certo incômodo, para não dizer desprezo, com as interrupções na rotina universitária, a exemplo daquelas decorrentes dos levantes de maio de 1968.

Parece faltar a Coulon uma análise de como as relações de subalternidade - dentre as quais classe, raça, gênero, nacionalidade - se expressam no cotidiano da universidade. Ainda que seja possível defender esta omissão tomando por base a diferença do contexto atual com o momento em que foi escrita sua obra, é preciso lembrar que debates sobre os subalternos - classe, gênero, raça e nação - não eram desconhecidos nem da academia de modo geral, nem do mundo francófono, nas décadas de 1970 e 19808. Possivelmente as passagens mais críticas sobre o tema sejam as que caracterizam as dificuldades de estudantes migrantes, como a “decalagem cultural” de uma estudante guianense.

Um outro exemplo de desprestígio para com estudantes de origem não-europeia pode ser identificado ao discutir a decisão de uma estudante originária do Magreb que procura evitar o curso de Direito em razão de julgá-lo “muito difícil”. Coulon (2008) caracteriza a atitude como uma “provável ignorância” acerca “do que são realmente os cursos de Direito e das possibilidades que eles conduzem” (ibidem, p. 159). Descartando a possibilidade de se tratar de uma decisão consciente e informada, Coulon faz uma relação entre “fracasso” e “filha de imigrantes”:

Malika parece conhecer espontaneamente suas chances objetivas de sucesso, como se ela “soubesse” que fracassaria caso tentasse estudar Direito. Seu “status” de filha de uma família de imigrantes determina igualmente, ao menos em parte, suas reações culturais “espontâneas” em relação aos estudos e empregos aos quais eles conduzem. (COULON, 2008, p. 159)

Outro exemplo em que a subalternidade não só é ignorada por Coulon, como há uma posição ativa em reforçá-la, aparece no relato da estudante Valerie sobre um professor rígido, que antes a fazia rir, e de quem depois passou a sentir horror. O fato de falar de aulas que “a encantavam” e seu posterior “desamparo” leva Coulon à despropositada inferência de “conotações sutilmente libidinais” associadas a uma “decepção amorosa” que poderia ser identificada na “emoção de sua voz”, todos estes sinais de uma “manifesta transferência” em relação a este professor. Considerando que no trecho imediatamente posterior a estudante relata a angústia que ela e colegas vivenciam, em especial relacionadas ao falar em público, tratar de questões tão recorrentes com tal reducionismo de gênero é mais um exemplo de como as subalternidades são ignoradas.

Portanto, ao tratar das estratégias de afiliação orientadas pela projeção de futuro, Coulon ignora estudantes que seguem percursos desviantes do esperado, visto que muitas vezes sua presença na universidade já é, em si, desviante.

O exemplo de Malika, o qual é referido mais acima, é representativo desse estudante desviante do esperado. Caracterizada como estudante “que não sabe muito bem o que fazer”, pois teria realizado uma modalidade de estudos secundários que lhe “impede o acesso a certas alternativas de ensino superior” e não dispõe “de recursos culturais para tornar clara a sua escolha” que teria sido “um pouco ao acaso” (ibidem, p. 160), Malika declara ter, em meio a uma série de dúvidas, inclinação ora para estudos de administração, ora para formação como professora do ensino fundamental. Sua opção por uma estratégia para escolha de UEs do tipo “tentativa e erro” (“experimentar e ver no que dá”) está relacionada, segundo Coulon, à sua impossibilidade de fazer projetos mais sólidos, sendo o sucesso em dada disciplina o que determina sua escolha de vida. Estas escolhas (a de outros estudantes não?) estariam guiadas pela história escolar, estrutura cognitiva, posição social e cultural. Essa estratégia, para Coulon

dissimula a ausência de uma perspectiva determinada de forma clara, é a que adotam os filhos das classes dominadas pouco informados: nos aventuramos e depois “veremos”, dessa forma seremos aquilo que deu certo! Não existe nessa estratégia escolha racional, estratégia de carreira ou projeto de percurso social. É uma estratégia de sobrevivência pela promoção social [...] (COULON, 2008, p. 160)

Ainda que concordemos que a estratégia mobilizada por setores populares/subalternos seja uma estratégia de sobrevivência, o discurso de Coulon atribui um caráter pejorativo, um status de “falta” quando comparada à estratégia lida como normal/esperada, que é detida por aqueles para quem o acesso à universidade é decorrência natural do percurso escolar. Dizer que esta estratégia não é “racional” equivale a dizer que quem por ela “opta” - ou só tem esta opção - não refletiu sobre seus desdobramentos.

A restrição em seguir a estratégia dos filhos das elites, ou mesmo dos setores populares preparados pela escola para seguir as universidades, não implica em uma ausência de cálculo para esta trajetória, no sentido de ter ponderado as possibilidades e impossibilidades existentes. Dizer que uma estratégia “não é racional” equivale a afirmar que apenas aqueles para quem a universidade é um destino natural refletem sobre seus projetos de futuro.

Aqueles que possuem projetos de futuro e para os quais as condições objetivas não contribuem (ou seja, cujas estratégias de carreira exigem priorizar a sobrevivência material por meio do trabalho imediato ou do cálculo de empregos que podem permitir o mais rápido possível a realização de escolhas menos dependentes de tempo) são tratados como uma espécie de “navegantes a esmo” (quando não “náufragos”).

Santos (2009) realiza uma importante contribuição no sentido de mobilizar o conceito de afiliação sem abrir mão de colocar questão racial no centro do debate. A autora coloca em primeiro plano as dificuldades de permanência, tanto no âmbito material como no simbólico, de cotistas (especialmente negros) na UFBA. A articulação entre temporalidade e subalternidade feita pela autora parece ser ilustrativa da crítica que aqui procuro empreender:

Se para o estudante que trabalha formalmente é difícil a permanência dada às restrições de horário e as impossibilidades em participar integralmente da vida acadêmica, para o estudante que não tem nenhum tipo de trabalho ou auxílio permanência esta situação é ainda mais delicada, já que todo o seu tempo de reflexão é gasto em encontrar estratégias de sobrevivência tanto acadêmica quanto na vida social mais ampla. O resultado, em ambos os casos, é sentido diretamente na permanência simbólica. Estes estudantes passam cada vez mais longe das possibilidades de bolsas de pesquisa e a universidade é pensada somente como um espaço para se graduar e se profissionalizar. (SANTOS, 2009, p. 156)

É necessário contrastar esta presença de estudantes negros, cotistas que ingressam, sobretudo, em cursos de alto prestígio social, com o ambiente universitário que indubitavelmente joga com a vaidade, com a arrogância e com a ideia de pertencimento a uma comunidade de eleitos. A “aventura intelectual” demanda uma autoconfiança, pois se o ambiente acadêmico gera um efeito inibidor na maioria das pessoas, este efeito é muito maior naqueles que possuem histórias já marcadas por sentimentos de rejeição, estranhamento ou inadequação social. (SANTOS, 2009, p. 190).

Assim, os limites do conceito de afiliação dizem respeito em grande parte ao não reconhecimento de que as subalternidades - diferenças de classe, raça, gênero e nação - produzem desigualdades materiais e simbólicas. Estas desigualdades subjazem apreciações - a respeito de questões pedagógicas, de linguagem/códigos e mesmo expectativas em relação ao tempo disponível para as atividades acadêmicas - pouco críticas em relação ao papel que a universidade pode desempenhar no sentido de corrigi-las ou ao menos minimizar suas distorções.

CONSIDERAÇÕES

A partir das ponderações colocadas, acreditamos que a discussão sobre o conceito de afiliação apresentado por Coulon nos leva a questões centrais para a constituição do campo de estudos sobre permanência estudantil. Refletir sobre os condicionantes da permanência de estudantes com distintas origens sociais, bem como outras categorias em articulação (gênero, raça, nacionalidade, etc.) diz respeito não somente ao que a universidade julga “faltar” a estes estudantes, mas, tão importante quanto, àquilo que falta à própria universidade refletir. Talvez, justamente por essa razão, seja ainda um processo tão embrionário nas instituições. Todavia, a presença de conflitos decorrentes destas novas presenças (ou ao menos esta nova escala de presenças antes minoritárias) tem se intensificado e, em grande parte por responsabilidade do protagonismo estudantil, esta preocupação tem crescido entre docentes e gestores.

O conceito de afiliação, da maneira como constrói Coulon, carece de dialética: apesar de captar importantes dinâmicas da permanência estudantil, não aponta os movimentos institucionais que levam à eliminação de setores subalternos. As consequências de um conceito de via de mão única, mais do que teóricas, contribuem para empurrar, também no plano da produção do conhecimento, o peso da responsabilidade pelo fracasso quase que exclusivamente sobre os ombros dos estudantes. Defendemos que se trata de um conceito cuja utilidade - teórica como prática/política - pode ser de grande valia, desde que acompanhada de instrumentais teóricos que captem as responsabilidades institucionais, as quais devem levar em conta dinâmicas estruturais que as condicionam e que possam transformá-las.

Um dos corretivos a essa unilateralidade na análise da evasão/permanência pode ser incluir a dinâmica temporal na análise, especialmente nas análises institucionais, diretamente responsáveis pela formulação de políticas de permanência. Ainda que Coulon tenha explicitamente uma preocupação com o tempo, o autor apresenta uma temporalidade normativa: os tempos de estranhamento, aprendizagem e afiliação aparecem como etapas sucessivas e lineares. É importante considerar que o tempo de estudantes trabalhadores/as é outro, distinto de quem tem o privilégio de estudar em tempo integral. Em verdade, estes últimos gozam frequentemente de um “acúmulo de tempo” que é histórico, visto ser frequente já terem membros de sua família na universidade há mais de uma geração. Conforme discutido por Almeida (2009, p. 190), “além do tempo, é preciso refletir também sobre o uso que se faz dele, sugerindo assim modos diversos de inserção acadêmica entre os alunos”.

Desta maneira, concluímos com esta proposição: a de que pensar no tempo - o passado, o presente e o futuro - parece ser uma chave de compreensão rica para tratar da evasão e consequentemente de estratégias de permanência institucionais mais efetivas. Isto implica em examinar quais mecanismos institucionais a universidade tem lançado mão para promover uma reparação de desigualdades históricas, se é que toma como sua esta função social.

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2Informações disponíveis em: http://www.observatorioestudantil.ufba.br/index.php/ove/sobre-o-ove/3-mais-sobre-o-ove.

3Destaco aqui os conflitos que envolveram a implementação de critérios raciais para ingresso nas universidades (FERES JUNIOR et al., 2018).

4O sistema educacional francês possui, tanto na escola básica como no nível superior, um grande número de itinerários formativos alternativos. A formação em liceus (equivalente ao ensino médio) concede o grau de bacheliers aos seus concluintes, que podem então pleitear o ingresso nas universidades. Outro itinerário possível de nível superior é a formação técnica (Brevê de Técnico Superior - BTS), com duração de dois anos e de caráter eminentemente profissional.

5 Tinto (1975) diferencia formas de ruptura de vínculo com a instituição de ensino superior: dropout, voluntary withdrawal e academic dismissal, que poderiam ser traduzidos respectivamente como “evasão”, “abandono voluntário” e “desligamento acadêmico”. O autor assume uma divisão muito estrita entre motivações para saída/ evasão (dropout) resultantes de desligamento acadêmico (academic dismissals) decorrentes de baixo desempenho e as resultantes de abandonos voluntários (voluntary withdrawals), que parece funcional a uma tentativa de modelagem abrangente, porém é pouco capaz de captar violências simbólicas embutidas em comportamentos acadêmicos aceitáveis (habitus). Para os efeitos de nossa discussão, o conceito de “evasão” nos parece mais adequado do que “abandono”, visto que pode representar apenas a saída de um determinado curso, porém a inserção em um outro, na mesma instituição ou não. Ademais, o termo “abandono” reforça o sentido unilateral do processo de deixar a universidade por parte do aluno, colocando pouca ênfase nas dinâmicas institucionais que contribuem para esta saída.

6Gramsci (2014) trata de questões semelhantes ao afirmar que “Deve-se convencer muita gente que o estudo é também um trabalho, e muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço, aborrecimento e até mesmo sofrimento” (p. 52).

7Importante destacar que a noção de estratégia de Coulon (2008) é usualmente mobilizada no sentido de escolhas curriculares realizadas pelos estudantes. Para Bourdieu (2017), “estratégias de reprodução” correspondem a um conjunto de práticas, conscientes ou não, para manter ou melhorar sua posição nas estruturas de classe. Certeau (2005), por sua vez, diferencia “estratégias” - aquelas enunciadas do lugar de poder - de “táticas” - cálculos realizados pelo lado mais fraco da relação no intuito de realizar subversões. As proximidades e distanciamentos entre conceitos mobilizados pelos autores é tema frutífero que merece novos textos para aprofundamento.

8A exemplo de Frantz Fanon (1979; 2008) e Simone de Beauvoir (2009), para citar tão-somente autores bastante célebres no ambiente universitário francês antes da publicação primeira edição francesa de Coulon (2008).

Recebido: 18 de Dezembro de 2019; Aceito: 22 de Maio de 2020

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