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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.36  Belo Horizonte  2020  Epub 09-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/0102-4698223613 

Palavra aberta

DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA METODOLOGIA DE PESQUISA NUM CURSO DE MESTRADO PROFISSIONAL

CHALLENGES AND PERSPECTIVES OF THE RESEARCH METHODOLOGY IN A PROFESSIONAL MASTER'S DEGREE COURSE

RETOS Y PERSPECTIVAS DE LA METODOLOGÍA DE INVESTIGACIÓN EN UN CURSO DE MÁSTER PROFESIONAL

JOSÉ EUSTÁQUIO DE BRITO1 
http://orcid.org/0000-0001-9605-9338

1Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. <joseeustaquio.brito@uemg.br>


RESUMO:

Tendo em vista o processo de implantação de um programa de mestrado profissional numa universidade pública, as reflexões propostas nessas “palavras abertas” visam a problematizar a relação entre teoria e prática inerente a essa modalidade de pós-graduação stricto sensu considerando, dentre outros aspectos, o perfil dos sujeitos ingressantes. Na abordagem desenvolvida no artigo, destacam-se a atenção a ser conferida aos mestrandos em virtude de suas vinculações a atividades de trabalho, que se relacionam com os projetos de pesquisa e intervenção, bem como a reflexão epistemológica acerca da postura inter / transdisciplinar a ser adotada no desenvolvimento da disciplina Metodologia de Pesquisa, que subsidia a realização do trabalho final do curso de mestrado profissional. Nesse sentido, fundamenta-se teoricamente esse desafio a partir da abordagem ergológica, que concebe o trabalho como atividade humana, refletindo sobre processos de reconhecimento e validação de saberes.

Palavras-chave: Mestrado Profissional; Metodologia de Pesquisa; Ergologia

ABSTRACT:

Considering the process of implementing a master's degree program in a public university, the reflections proposed in these "open words" aim to problematize the relationship between theory and practice inherent in this postgraduate modality stricto sensu considering, among other aspects, the profile of the entering subjects. In the approach developed in the article, the attention to be given to the masters by virtue of their links to work activities, which are related to the research and intervention projects, as well as the epistemological reflection about the inter / transdisciplinary posture to be adopted in the development of the discipline Research Methodology, which subsidizes the accomplishment of the final work of the professional master's degree course. In this sense, the challenge is theoretically based on the ergological approach, which conceives work as a human activity, reflecting processes of recognition and validation of knowledge.

Keywords: Professional Master's Degree; Research Methodology; Ergology

RESÚMEN:

Ante el proceso de implementación de un programa de maestría profesional en una universidad pública, las reflexiones propuestas en estas "palabras abiertas" tienen como objetivo problematizar la relación entre teoría y práctica inherente a esta modalidad de posgrado stricto sensu considerando, entre otros aspectos, el perfil de los sujetos entrantes. En el enfoque desarrollado en el artículo, destaca la atención a los estudiantes de maestría por su vinculación con las actividades laborales, las cuales están relacionadas con los proyectos de investigación e intervención, así como la reflexión epistemológica sobre la postura inter / transdisciplinar a ser adoptado en el desarrollo de la disciplina de Metodología de la Investigación, que apoya la realización del trabajo final del Máster profesional. En este sentido, este desafío se basa teóricamente en el enfoque ergológico, que concibe el trabajo como una actividad humana, reflexionando sobre los procesos de reconocimiento y validación del conocimiento.

Palabras clave: Maestría profesional; Metodología de investigación; Ergología

INTRODUÇÃO

O processo que resultou na aprovação, por parte da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da proposta de Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania da Universidade do Estado de Minas Gerais, no ano de 2018, explicitou um amplo debate entre os atores envolvidos em sua construção acerca dos objetivos estratégicos da formação a ser proporcionada pelo curso num contexto em que um conjunto de desafios se fazem presentes no cotidiano dessas políticas em nossa sociedade.

O conjunto de objetivos elencados na proposta evidencia diversos níveis em que a relação entre “teoria e prática” se manifesta, de modo a considerar os temas que se fazem presentes na conformação das linhas de pesquisa, o perfil do público alvo do programa2, bem como a natureza do trabalho final de curso estabelecido pelo regimento do Programa.

Ao considerar a elaboração do trabalho final do curso, o texto apresenta uma reflexão acerca das opções político-epistemológicas presentes no campo da Metodologia de Pesquisa capazes de orientar a elaboração do programa de estudos dessa disciplina que considere a relação “teoria e prática” como eixo do regime de construção de saberes a partir de uma concepção teórica que reconhece e amplia a natureza interdisciplinar inerente ao campo temático demarcado pelo programa.

Para tal, o texto encontra-se organizado em três partes, além dessa introdução e das considerações finais. Num primeiro momento, abordamos a implementação da modalidade de formação profissional no âmbito da pós-graduação stricto sensu refletindo sobre alguns de seus marcos normativos e explicitando pontos de vista distintos em relação a essa modalidade. Em seguida, discorremos sobre a elaboração do Trabalho Final de Curso (TFC) de modo a considerar a diversidade de formatos possíveis, a escolha feita no projeto do Mestrado em Segurança Pública e Cidadania da UEMG e os desafios que essas possibilidades apresentam para a disciplina de Metodologia de Pesquisa. A terceira parte do artigo é dedicada à explicitação da concepção político-epistemológica que fundamenta as escolhas feitas para a organização do programa da disciplina em diálogo com o aparato normativo que regulamenta a modalidade do mestrado profissional em nosso País. A conclusão do texto aponta para o compromisso de traduzir a relação entre “teoria e prática” nas atividades de trabalho e militância social em que se encontram vinculados os potenciais alunos do Programa.

O mestrado profissional como modalidade de pós-graduação stricto sensu

A institucionalização do mestrado profissional como uma modalidade de pós-graduação stricto sensu em nosso país foi marcada por intenso debate no final da década de 1990 e início da década seguinte, que explicitou pontos de vista divergentes em relação à viabilidade da proposta tendo em vista concepções distintas em relação ao entendimento acerca do sentido da pós-graduação stricto sensu. Denominado inicialmente de “mestrado profissionalizante”, essa modalidade recebeu sua regulamentação mediante publicação da Portaria Normativa nº 17, datada de 28 de dezembro de 2009, que dispõe sobre o mestrado profissional no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).3

De acordo com as normas vigentes, a ênfase conferida pelo mestrado profissional à capacitação em alto nível de quadros técnico-profissionais vinculados a diversas áreas do conhecimento visando à dinamização o setor produtivo, bem como à atuação profissional no âmbito da gestão de políticas públicas, evidenciou um debate que, dentre outras questões, problematiza o locus e a autonomia da pesquisa científica nessa modalidade diante das demandas sociais que sempre atravessam o processo de investigação.

Em defesa do mestrado profissional, Ribeiro (2005) argumenta que sua implementação contribui para ampliar o diálogo entre a academia e a sociedade. Para esse autor,

a sociedade atual requer formação cada vez mais qualificada mesmo para setores que não lidam com a docência nem com a pesquisa de ponta - de modo que temos, e teremos mais e mais, uma demanda de mestres e doutores “fora e além da academia”. É possível que, com a melhora do ensino de graduação, este possa atender uma parte da demanda que hoje recai sobre a pós-graduação. Mas, numa sociedade em que o conhecimento é cada vez mais importante, é imperioso a pós-graduação assumir a formação dos profissionais que atendam essa demanda. (RIBEIRO, 2005, p. 10).

A posição explicitada pelo autor reconhece o processo de transformações que incide sobre a sociedade e confere acento à necessidade de a universidade contribuir para formação de pesquisadores que não necessariamente estabeleçam vínculos de trabalho com a universidade. Ao propor distinção entre as modalidades acadêmica e profissional dos programas de mestrado, o autor confere destaque ao perfil dos candidatos que buscam ingressar em cada uma dessas modalidades, conforme fragmento abaixo:

A principal diferença entre o mestrado acadêmico (MA) e o mestrado profissional (MP) é o produto, isto é, o resultado almejado. No MA, pretende-se pela imersão na pesquisa formar, a longo prazo, um pesquisador. No MP, também deve ocorrer a imersão na pesquisa, mas o objetivo é formar alguém que, no mundo profissional externo à academia, saiba localizar, reconhecer, identificar e, sobretudo, utilizar a pesquisa de modo a agregar valor a suas atividades, sejam essas de interesse mais pessoal ou mais social. Com tais características, o MP aponta para uma clara diferença no perfil do candidato a esse mestrado e do candidato ao mestrado acadêmico (RIBEIRO, 2005, p. 15).

A análise da experiência de implantação da pós-graduação stricto sensu no país ao longo da década de 1970 oferece o argumento apresentado por Severino (2009) em crítica à implementação do mestrado profissional em nosso país. Esse autor compreende que “a realização de uma pesquisa científica está no âmago do investimento acadêmico exigido pela pós-graduação” sendo, pois, “o objetivo prioritário dos pós-graduandos e seus professores” (p. 15). Essa intencionalidade situa a pós-graduação stricto sensu como o espaço destinado a “desenvolver uma pesquisa que realize, efetivamente, um ato de criação de conhecimento novo, um processo que faça avançar o conhecimento na área” (p. 15). A partir dessa premissa, o autor assevera que

Pouco importa se as preocupações imediatas sejam com o aprimoramento da qualificação do docente de 3º grau ou do profissional. Em qualquer hipótese, esse aprimoramento passará necessariamente por uma prática efetiva da pesquisa científica. Aliás, é preparando o bom pesquisador que se prepara o bom professor universitário ou qualquer outro profissional. É por isso que sequer tem sentido falar de uma Pós-Graduação stricto sensu puramente profissional, tal como vem sendo implementado entre nós, que dispensasse a realização de uma pesquisa e a elaboração de uma dissertação. Oficializado pela Capes e já sacramentado em algumas grandes instituições universitárias do país, o mestrado profissional é, sem dúvida, uma deturpação do sentido qualitativo de um curso de pós-graduação stricto sensu: não por razões institucionais ou de nomenclatura, mas porque se trata de finalidades, certamente importantes, mas fundamentalmente diferentes (SEVERINO, 2009, p. 15 -16).

Não obstante as posições acima explicitadas traduzirem perspectivas distintas em relação ao mestrado profissional, observa-se que elas reconhecem a centralidade ocupada pela atividade de pesquisa no âmbito da pós-graduação stricto sensu. Assim, abre-se um conjunto de indagações que interpelam o campo da metodologia de pesquisa em sua intenção de contribuir para tornar viáveis as trajetórias de formação em cursos de mestrado profissional de forma geral. A posição que sustentamos em relação ao lugar a ser ocupado pela disciplina de metodologia de pesquisa no Curso de Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania, a considerar tanto o processo formativo em sua totalidade quanto seu resultado expresso na formalização do Trabalho Final de Curso (TFC), reforça o entendimento de que ela seja capaz de contribuir para traduzir a dialética teoria e prática a partir da sistematização e ampliação de conhecimentos da área, fomentando iniciativas de formulação e gestão de políticas direcionadas aos mais diversos âmbitos em que ela se estrutura, tendo por referência os mais diversos vínculos mantidos pelos sujeitos mestrandos a partir de seus engajamentos profissionais e/ou militantes.

A diversidade das formas do Trabalho Final de Curso (TFC) no mestrado profissional

A proposição acerca a natureza do Trabalho Final de Curso contida na Portaria Normativa Nº 17, da Capes, que regulamenta os cursos de mestrado profissional, caracteriza-se pela diversidade de formatos, linguagens e abrangência que esse trabalho possa vir a apresentar a depender da natureza da área do conhecimento a qual se vincula o curso em questão. De acordo com os termos dessa norma, a proposta de mestrado profissional a ser submetida à análise por parte da Capes deve conter, obrigatoriamente, dentre outros quesitos, “a exigência de apresentação de trabalho de conclusão final do curso” que, de acordo com o texto, se define nos seguintes termos:

§ 3º O trabalho de conclusão final do curso poderá ser apresentado em diferentes formatos, tais como dissertação, revisão sistemática e aprofundada da literatura, artigo, patente, registros de propriedade intelectual, projetos técnicos, publicações tecnológicas; desenvolvimento de aplicativos, de materiais didáticos e instrucionais e de produtos, processos e técnicas; produção de programas de mídia, editoria, composições, concertos, relatórios finais de pesquisa, softwares, estudos de caso, relatório técnico com regras de sigilo, manual de operação técnica, protocolo experimental ou de aplicação em serviços, proposta de intervenção em procedimentos clínicos ou de serviço pertinente, projeto de aplicação ou adequação tecnológica, protótipos para desenvolvimento ou produção de instrumentos, equipamentos e kits, projetos de inovação tecnológica, produção artística, sem prejuízo de outros formatos, de acordo com a natureza da área e a finalidade do curso, desde que previamente propostos e aprovados pela Capes (BRASIL, 2009, p. 21).

Além de explicitar uma variedade de formatos que possa vir a ter esse trabalho de conclusão do curso de mestrado profissional, o documento deixa em aberto novas possibilidades de apresentação desse trabalho, “desde que previamente propostos e aprovados pela Capes”, o que é compreensível e justificado a partir do objetivo estratégico dessa modalidade de curso de pós-graduação. Por sua vez, as áreas de conhecimento, às quais se vinculam as propostas de curso de mestrado profissional, buscam circunscrever e detalhar o formato mais pertinente à área de acordo com as características e especificidades de seu delineamento temático.

A partir de critérios definidos pela Capes, o curso de Mestrado Profissional em Segurança Pública e Cidadania encontra-se vinculado à área de “Ciência Política e Relações Internacionais”. Dados reunidos no Documento de Área datado de 2016 apontam que

A Área tem adquirido configuração crescentemente multidisciplinar, com a participação de Programas de Ciência Política (16), Relações Internacionais (13) e mais recentemente, Defesa e Estudos Estratégicos (5) e Políticas Públicas (9). Também há tendência à diversificação na natureza institucional dos Programas da Área, com a integração de instituições militares, da Aeronáutica, Exército e Marinha, de órgãos públicos, ao lado de uma presença ainda predominante de instituições de ensino superior, federais, estaduais e privadas (CAPES, 2017, p. 2-3).

O documento destaca ainda que, do total de 43 (quarenta e três) programas vinculados à Área, 8 (oito) eram de Mestrado Profissional presentes em várias regiões do País, mas tendo maior concentração na região Sudeste. Embora não explicitando quais seriam os formatos de trabalho de final de curso mais compatíveis com a identidade da Área, o documento arrola um conjunto de critérios que devem ser analisados visando à avaliação dos respectivos programas. Os itens “qualidade dos trabalhos de conclusão produzidos por discentes e egressos” e “aplicabilidade dos trabalhos produzidos” apontam que o processo de avaliação deve examinar

as publicações em revistas, livros e outros meios de divulgação científica ou técnica; a produção técnica que não foi objeto de publicação, dos alunos e egressos, além da aplicabilidade do trabalho de Mestrado desenvolvido junto a setores não acadêmicos, órgãos públicos / privados etc. (CAPES, 2017, p. 22 - 23).

O detalhamento desses critérios de avaliação dos programas de mestrado profissional aponta que, independentemente do formato conferido ao trabalho final de curso, o mesmo deve ser traduzido em produção escrita reconhecida como tal pela comunidade científica da Área ou, mesmo que não tenha esse formato, deva ser traduzido em relatórios técnicos escritos de acordo com as normas de produção dessa modalidade de texto acadêmico. Ou seja, independentemente do formato conferido ao trabalho, não se pode renunciar aos requisitos que conferem relevância e reconhecimento científico ao trabalho final de curso.

Tendo por referência essas considerações, o Regimento do Programa de Pós-Graduação em Segurança Pública e Cidadania inclui no rol das disciplinas obrigatórias do Programa a “redação do TFC: elaboração e desenvolvimento da pesquisa ou planejamento, avaliação de uma política pública em Segurança Pública ou elaboração de projeto de intervenção com acompanhamento individual do professor orientador”. A explicitação desses formatos do trabalho final de curso encontra-se fundamentada na legislação vigente, como visto anteriormente, de modo a apresentar à disciplina de metodologia de pesquisa e à atividade de orientação uma referência a partir da qual deve-se assentar o planejamento tanto da disciplina quanto das estratégias de orientação.

Proposição epistemológica acerca da relação entre teoria e prática na elaboração do Trabalho Final de Curso

As reflexões contidas nesse tópico emergem do encontro havido com a abordagem proposta pela Ergologia4 acerca de um regime de produção de saberes que situa a atividade de trabalho no centro dessa dinâmica. A partir dessa abordagem, tem-se o desafio de articular, de forma dinâmica e não hierarquizada, saberes provenientes de fontes distintas, mas que são convocados em permanência a partir da compreensão do trabalho como atividade humana.

A abordagem ergológica a qual fazemos referência tem suas origens na experiência pluridisciplinar e pluriprofissional iniciada na Universidade de Provence - França no final da década de 1970, com a criação de um dispositivo denominado “Análise Pluridisciplinar das Situações de Trabalho” (APST), tendo como seu principal mentor o filósofo e professor Yves Schwartz. Naquele contexto, configurava-se um desafio político e epistemológico buscar responder aos questionamentos feitos pelos operários ao modelo taylorista-fordista de organização do trabalho e gestão da produção. Em torno dessa demanda reuniram-se, no âmbito daquele departamento, pesquisadores de várias áreas de conhecimento: Filosofia, Linguística, Sociologia, Ergonomia, Economia etc., em estreita colaboração com trabalhadoras e trabalhadores assalariados, que se defrontavam, nos planos profissional, social e político, com os problemas propostos pelas novas estratégias de racionalização do trabalho e pelas mudanças nas situações de trabalho.

Essa iniciativa demandou a construção de conceitos capazes de promover a interação entre os saberes especializados, construídos ao longo da história dos campos disciplinares, tendo por eixo as experiências relatadas pelos protagonistas da formação - trabalhadoras e trabalhadores - e as evidências empíricas apresentadas a partir dos trabalhos de intervenção.

A concepção da Ergologia como uma disciplina de pensamento, que busca construir bases teóricas sólidas para a promoção do diálogo transdisciplinar em torno das atividades de trabalho, demanda a postulação de um paradigma capaz de tornar viável esse encontro. O conceito de “atividade humana” é visto por Schwartz como princípio da cooperação transdisciplinar capaz de promover aberturas nos diversos saberes específicos visando à troca de aportes mútuos, bem como a redefinição de conceitos que orientam suas investigações. Por isso, o autor vai demarcar três características inerentes ao conceito de atividade quando pensado na perspectiva do encontro transdisciplinar: 1) transgressão: nenhuma disciplina pode monopolizar ou absorver conceitualmente a atividade, pois ela atravessa os diversos campos; 2) mediação: ela impõe-nos dialéticas entre todos os campos, assim entre o micro e o macro, o local e o global; 3) contradição (potencial): a atividade é sempre o lugar de debates com resultados sempre incertos entre normas antecedentes enraizadas nos meios de vida e as tendências às renormalizações ressingularizadas pelos seres humanos.

A referência ao conceito de atividade aponta-nos a existência de laços intrínsecos entre a atividade, o universo de valores e os saberes engendrados nessas atividades. Desde que se trata da vida e das atividades humanas, nos lembra Schwartz, esses elementos vão se mesclar num triângulo que desloca parcial, mas fundamentalmente, o terreno da epistemologia. Dessa forma, como produzir conhecimentos com este “policentrismo”, a não ser pela construção de lugares em que esta relação triangular entre atividades, valores e saberes torne-se objeto de uma experiência epistemológica explícita? (Cf. SCHWARTZ, 2004, p. 155).

Para que se efetive esse encontro transdisciplinar propugnado pela abordagem ergológica, faz-se mister conceber um espaço no interior do qual possam ser trabalhados e retrabalhados os saberes específicos aportados pelas mais diversas disciplinas, além da conformação do paradigma capaz de operar deslocamentos conceituais. Para responder a essa dupla exigência epistemológica, a Ergologia nos apresenta o denominado Dispositivo Dinâmico a Três Polos (Dispositif Dynamique à Trois Pôles), que articula: o grau de apropriação de saberes expressos sob a forma de conceitos; o grau de apreensão das dimensões históricas presentes nas situações de trabalho e o debate de valores a que se vê convocado todo indivíduo num meio de trabalho particular, conforme a figura abaixo:

Fonte: Schwartz (2000a, p. 94)5.

Figura 1: Dispositif Dynamique à Trois Pôles6  

O conhecimento que está em jogo construir diz respeito ao entrelaçamento dinâmico e transdisciplinar entre atividade, saberes e valores. Na exposição do dispositivo, tomaremos por base os ensaios de autoria de Schwartz (2004) intitulados “Ergonomia, filosofia e exterritorialidade e “A comunidade científica ampliada e o regime de produção de saberes”. Num primeiro momento, faremos uma exposição dos elementos que integram o dispositivo buscando explicitar as particularidades a que se referem e seus modos de articulação. Feita essa apresentação, discutiremos a pertinência do referido dispositivo no contexto do planejamento da disciplina de Metodologia de Pesquisa no Programa de Mestrado em Segurança Pública e Cidadania.

Inicialmente, temos o polo dos “saberes organizados e disponíveis” que se apresenta sob a forma de conceitos que comportam materiais para o conhecimento, por exemplo, sobre a distinção entre trabalho prescrito e trabalho real, sobre a noção de mercado, sobre o corpo humano, sobre as práticas linguísticas, sobre a comunicação e as dificuldades de traduzir em palavras, que não podemos evitar. Em seguida, o polo das “forças de convocação / validação e dos saberes investidos”, que é o polo dos saberes gerados nas atividades. Os protagonistas destas atividades, portadores desses saberes, têm necessidade destes materiais para valorizar seus saberes específicos e transformar sua situação de trabalho. O encontro fecundo destes dois polos não pode se produzir senão pela existência de um terceiro polo: aquele da “exigência filosófica ou ergológica, portanto da filosofia como disciplina”, que, em síntese, manifesta dimensões éticas e epistemológicas presentes nas situações de trabalho. Ele se articula sobre uma determinada filosofia da humanidade, uma maneira de ver o outro como seu semelhante (SCHWARTZ, 2000b, p. 44).

Identificamos no centro do dispositivo a presença dinâmica e enigmática da atividade de trabalho a promover a articulação entre os três polos. O autor refere-se a esse núcleo como sendo o espaço em que se realizam os “processos socráticos de duplo sentido”, ou seja, a construção de vias de mão dupla - a exemplo dos diálogos platônicos em que Sócrates interroga seus interlocutores - que se configura como um núcleo permanente de interrogação dos elementos capaz de produzir novas configurações de saberes visando à renovação de conhecimentos sobre a atividade. Esse retrabalho das disciplinas específicas de origem de cada profissional do conceito, tanto aquelas de natureza epistêmica, quanto os saberes filosóficos, é sinalizado nas extremidades das flechas de duplo sentido com um símbolo que também expressa a tensão provocada nos conhecimentos estabelecidos pela dinâmica da atividade. Ou seja, os polos em constante interação, para renovarem permanentemente seu estatuto epistemológico, necessitam do concurso do caráter dinâmico da atividade. A exigência do polo filosófico incorporado ao dispositivo, nos diz Schwartz (2004, p. 164), “poderia parecer provocativo e suscitar reservas inúteis”. No entanto, a existência desse polo é considerada fundamental para que o modelo se estabeleça em recusa aos pressupostos da exterritorialidade, ou seja, para assegurar que os conhecimentos construídos não assumam a característica de pseudoneutralidade, sobrepondo-se à história humana. Em outras palavras, trata-se do polo que encontra a atividade de trabalho como “matéria estrangeira” e não simplesmente como “objeto” de conhecimento.

A articulação entre o polo dos saberes organizados e disponíveis, aportados pelas disciplinas específicas, e o polo das forças de convocação e reconvocação e de saberes investidos, resultante das sínteses históricas realizadas pelos trabalhadores e trabalhadoras no espaço enigmático entre o trabalho real e o trabalho prescrito pelas normas operativas, deriva de uma tese filosófica, que concebe a vida como uma constante transformação operada por homens e mulheres em seu meio. Essa relação entre os polos é interpretada por Schwartz da seguinte forma:

(..) num caso, trata-se de saberes acadêmicos, objetos de um esforço permanente de estabelecimento de uma ordem teórica, objetos de explicitação metódica e crítica, de retrabalho contínuo; no outro polo estão os saberes imanentes às atividades e retrabalhados por estas atividades, os mesmos que a ergonomia da atividade fez emergir como momentos de escolhas e de comprometimentos (...). Poderíamos chamá-los de saberes investidos (na atividade). Neste polo, as atividades são cadinhos da organização de saberes, estruturando sobre uma base histórica seus desdobramentos a partir de seus apelos aos saberes formalmente organizados (SCHWARTZ, 2004, p. 161).

A pertinência desse modelo de regime de produção de conhecimentos sobre as atividades de trabalho com a teoria que lhe dá sustentação pode ser avaliada a partir de uma característica presente nessa elaboração considerada central para sua viabilidade numa perspectiva transdisciplinar: trata-se da valorização da atividade de trabalho a partir da presença viva de seus protagonistas, de modo a demonstrar que o conhecimento sobre a atividade de trabalho que prescinda dos aportes oriundos dessa presença é considerado pela abordagem ergológica como incapaz de compreender seu caráter enigmático.

Ao lado dos aportes oferecidos pelas disciplinas epistêmicas, há o concurso de saberes indisciplinares, provenientes de processos históricos do transmitir que renovam permanentemente a arte de fazer e que são constantemente retrabalhados pelos protagonistas das atividades. Essa característica projeta novos horizontes que nos convidam a um exercício de reavaliação do lugar que a atividade de trabalho ocupa em nossa cultura, sobretudo em nossas instituições universitárias, templos dos saberes disciplinares organizados em áreas do conhecimento.

Considerações Finais

A reflexão apresentada nesse artigo, ao tomar como ponto de partida a implementação da modalidade do mestrado profissional no contexto da pós-graduação stricto sensu, destacou a relevância de que programas organizados a partir dessa modalidade ofereçam aos seus públicos ferramentas teórico-conceituais capazes de contribuir para o desenvolvimento de uma atitude investigativa que resulte em produções que repercutam de forma exitosa nas mais diversas situações em que se apresentam desafios a serem enfrentados no cotidiano das organizações.

Não obstante a explicitação de um intenso debate presente no âmbito das instituições de ensino superior e instâncias gestoras da política de pós-graduação acerca do caráter profissional de programas de mestrado e doutorado em nosso país, identificou-se que a relação a ser estabelecida com a atividade de pesquisa é inerente aos objetivos propostos pelos programas visando a alcançar os resultados pretendidos e expressos nos diversos formatos de apresentação do trabalho final de curso. A explicitação desse argumento conduziu-nos à problematização do lugar a ser ocupado pela disciplina de Metodologia de Pesquisa no curso de Mestrado em Segurança Pública e Cidadania em seu intento de tornar viável essa articulação entre a atividade de pesquisa e as demandas sociais inerentes aos projetos de pesquisa / intervenção desenvolvidos pelos mestrandos a partir de seus engajamentos profissionais e militantes em relação com o leque temático presente em cada uma das linhas de pesquisa em que se organiza o programa.

A relação entre teoria e prática, inerente ao perfil do público alvo do Mestrado em Segurança Pública e Cidadania, no contexto da disciplina de Metodologia de Pesquisa, convida-nos a propor uma abordagem que, centrada na demanda de construção de saberes sobre a atividade de trabalho, seja capaz de conferir reconhecimento e validação aos saberes convocados para o desenvolvimento dessas atividades em estreita relação com os saberes disciplinares que se fazem presentes nas atividades. Essa opção político-epistemológica situa-nos em uma perspectiva internacional que assume esse desafio como parte de seu projeto, como exemplificado a partir da abordagem proposta pela Ergologia em seu projeto de contribuir para a construção de saberes sobre a atividade de trabalho de forma engajada a partir dos protagonistas da atividade.

No contexto da experiência analisada, essa proposição se faz pertinente à medida que o Programa se abre a perfis profissionais diversos cujos integrantes desenvolvem atividades distintas no campo da política de segurança pública e dos direitos humanos, seja em instituições públicas, privadas ou na atuação em movimentos sociais organizados em torno desse campo de intervenção militante. Problemas de pesquisa / intervenção que emergem a partir do exercício da atividade profissional dos mestrandos se deparam com modelos de gestão e culturas organizacionais diversas, que oferecem oportunidades para o desenvolvimento de ações inovadoras, mas também opõem resistências a determinadas formulações.

Ao propor esse fundamento político-epistemológico com vistas à organização da disciplina de Metodologia de Pesquisa, nossa intenção é também responder, de forma propositiva e em colaboração com os profissionais que integram o corpo docente do Programa, ao desafio exposto no Plano Nacional de Pós-Graduação (PNG) 2011 - 2020 quando aborda a situação da formação em nível da pós-graduação em Criminologia e Segurança Pública. De acordo com o diagnóstico apresentado no documento, essa área se caracteriza pela dispersão das questões investigadas em vários campos disciplinares. E acrescenta que “existe uma produção importante e de boa qualidade sobre a temática em tela, mas a não consolidação de um campo interdisciplinar termina gerando insulamento e endogenia, marcados pelo alheamento da produção internacional sobre o tema (BRASIL, 2010, p. 216).

A perspectiva transdisciplinar inerente ao Dispositivo Dinâmico a Três Polos, conforme exposto, convida-nos a afirmar uma posição em defesa de abordagens interdisciplinares em interação com saberes constituídos nas atividades visando à ampliação do conhecimento sobre os fenômenos a serem investigados num contexto em que os desafios presentes na área da Segurança Pública incidem sobre a qualidade de nossa democracia e vivência cidadã.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. Plano Nacional de Pós-Graduação - PNPG 2011-2020. Coordenação de Pessoal de Nível Superior. - Brasília, DF: CAPES, 2010. [ Links ]

CAPES. Diretoria de Avaliação. Documento de Área Ciência Política e Relações Internacionais. Capes: Brasília, DF, 2016. Disponível emDisponível emhttps://www.capes.gov.br/images/documentos/Documentos_de_area_2017/39_cpol_docarea_2016.pdf . Acesso em19 de abril de 2019. [ Links ]

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2A seleção da primeira turma de ingressantes no curso de mestrado profissional em Segurança Pública e Cidadania, da Universidade do Estado de Minas Gerais, ocorrida no ano de 2019, traduziu a diversidade de inserção profissional e formação acadêmica do público. Identificam-se nesse grupo sujeitos que atuam nas polícias militar e civil, na gestão estatal da política de segurança pública, no sistema prisional, em instâncias da justiça restaurativa, no sistema socioeducativo, dentre outros.

3Os principais destaques da Portaria, de acordo com a Capes, referem-se a diferenças na submissão e avaliação de propostas de cursos novos, critérios específicos para a avaliação periódica dos cursos de mestrado profissionais, composição do corpo docente e diferentes trabalhos de conclusão do curso de mestrado profissional. Informação disponível em http://www.capes.gov.br/acessoainformacao/perguntas-frequentes/avaliacao-da-posgraduacao/7419-mestrado-profissional. Acesso em 16 de abril de 2019. Mais recentemente, a Portaria MEC Nº 389, de 23 de março de 2017 e a Portaria CAPES Nº 131, de 28 de junho de 2017 dispõem sobre os cursos de mestrado e doutorado profissional e disciplinam a submissão de novas propostas no âmbito da Capes.

4Esse encontro se deu no ano de 2007 no contexto de inserção no então Departamento de Ergologia da Universidade de Provence quando da realização do estágio de doutoral (doutorado sanduíche) sob a orientação do Professor Yves Schwartz. Desde então, o referencial teórico-conceitual aportado por essa abordagem tem sido incorporado em atividades de pesquisa e práticas pedagógicas.

5Embora seja apresentada a versão original do esquema, sua descrição será vertida para o português. Para tal, oferece-se uma tradução livre dos termos mencionados na sequência da exposição: Pôle des savoirs organisés et disponibles - Polo dos saberes organizados e disponíveis; Pôle des forces d’appel / rappel et des savoirs investis - Polo das forças de convocação / validação e dos saberes investidos; Pôle de l’exigence philosophique ou ergologique dont la philosophie comme discipline - Polo da exigência filosófica ou ergológica, portanto da filosofia como disciplina; Coeur des processus socratiques à double sens - Âmago dos processos socráticos em mão dupla.

6Na obra intitulada Le paradigme ergologique ou un métier de Philosophe, Yves Schwartz (2000a) discorre sobre o sentido desse dispositivo em sua proposição de lançar um novo olhar sobre a atividade de trabalho capaz de proporcionar uma produção de saberes sobre o trabalho a partir de um novo regime de produção de saberes.

Recebido: 06 de Maio de 2019; Aceito: 22 de Outubro de 2020

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