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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.36  Belo Horizonte  2020  Epub 01-Jul-2020

https://doi.org/10.1590/0102-4698219832 

ENTREVISTAS

POR UMA EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA, PÚBLICA E DA DECISÃO: ENTREVISTA COM LICÍNIO C. LIMA

1Universidade Católica Dom Bosco(UCDB). Campo Grande, MS, Brasil. <ruth@ucdb.br>

2Universidade do Minho (UMINHO), Portugal. < llima@ie.uminho.pt>


APRESENTAÇÃO

Licínio C. Lima é professor catedrático do Departamento de Ciências Sociais da Educação do Instituto de Educação da Universidade do Minho (Braga, Portugal). Coordena diversos projetos de investigação, de formação e de cooperação em âmbito nacional e internacional, sendo autor de inúmeros trabalhos acadêmicos, publicados em diferentes países europeus e do continente americano.

Pertence à European Society for Research on the Education of Adults (ESREA). É membro e sócio-fundador da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação. É membro do Fórum Português de Administração Educacional, do Instituto Paulo Freire de Portugal, da Associação Nacional de Política e Administração da Educação (ANPAE) e do International Council for Adult Education (ICAE), dentre outras atividades em diferentes conselhos e coordenações na Universidade do Minho.

A seguir, a entrevista com o professor.

Ruth Pavan: No livro, Educação ao longo da vida: entre a mão direita e a mão esquerda de Miró, o senhor traz, desde a introdução e também ao longo do livro, a sugestão de que talvez possamos seguir o exemplo de Miró, tematizado poeticamente por João Cabral de Melo Neto no poema O sim contra o sim (LIMA, 2007). Além da aproximação irretocável entre as questões da educação e a poesia, ressalto que se trata de um poeta brasileiro. Como se deu a presença do Brasil de forma tão intensa e pertinente nos seus escritos - neste caso, com a poesia produzida no Brasil - e como a poesia pode contribuir com a educação nestes tempos, como o senhor escreve no livro, das visões tecnicistas de educação, “tão dominantes quanto esgotadas” (LIMA, 2007, p. 34)?

Licínio C. Lima: O livro chama-se Educação ao longo da vida: entre a mão direita e a mão esquerda de Miró; é uma metáfora que me chamou atenção e que até mesmo me deu trabalho, mas que me deu algum entusiasmo na pesquisa. Conheço razoavelmente a literatura brasileira, conheço a obra completa de João Cabral. Enfim, nós vamos lendo e interpretando as coisas, de certa forma, consoante ao momento em que estamos a trabalhar; portanto, eu possivelmente não daria relevância a esse poema de João Cabral se não estivesse a trabalhar este tema naquele momento. João Cabral diz que Miró chegou a uma situação de impasse porque pintava tão bem, tinha a mão direita tão adestrada, tão sábia, tão competente, tão capaz, tão capacitada, que já não podia inventar nada. Ela tinha atingido o máximo da sua competência. Então, o escritor diz que, isto é, tematizando poeticamente a situação de Miró, que Miró está num impasse, numa crise, porque, para inventar coisas novas, para continuar a pintar coisas novas, ele tem que procurar reaprender o novo, portanto, ele tem que desistir, tem que abdicar desta capacidade, deste adestramento, desta destreza, desta competência. Vai procurar fazê-lo cortando a mão esquerda e colocando-a no braço direito. Faz várias tentativas e, no final, descobre que tem que começar a pintar com a mão esquerda. Porque a mão esquerda é inábil, é incompetente, não é adestrada, tem imensas dificuldades, mas é a mão que, no fundo, está disposta a aprender, reaprender a cada linha, como diz o poema, e serviu-me muito bem esta metáfora.

O que me parece é que a mão direita tem dominado. Mão direita da educação ao longo da vida é a mão das competências para competir para o mercado de trabalho, para a economia, para a empregabilidade, para o empreendedorismo, para habilidades economicamente valorizáveis. É apenas uma parte da educação ao longo da vida, é apenas uma parte da agenda da educação de adultos, mas a educação de adultos está muito além disso, porque esta mão direita é uma mão direita orientada para a adaptação. Adaptação funcional ao mundo, às circunstâncias, à economia, aos chamados imperativos da economia, da competitividade, etc.

Ora, eu faço um elogio à mão esquerda, na base dessa metáfora de João Cabral de Melo Neto, dizendo que é preciso que a educação de adultos não abandone a mão direita, porque há lá competências que são importantes, mas que se consiga contrabalançar o excesso de protagonismo da mão direita com uma mão esquerda que seja capaz de preocupar-se com a democracia, com a cidadania, com a participação, com a transformação do mundo social. Essa mão esquerda é uma mão esquerda mais criativa, mais insubmissa, mais crítica, que deve compensar os excessos da mão direita.

Não estou a defender a mão esquerda contra a mão direita. Estou, nesta metáfora, a criticar o excesso de protagonismo da mão direita e a dizer que a mão esquerda é fundamental. Digo no texto uma coisa que parece óbvia, quer dizer, trata-se de uma educação de adultos que seja realmente global, integrada, diversificada no seu interior, uma educação de adultos a duas mãos. Ela é ambidestra, ela utiliza as capacidades, as competências de uma e outra para fazer-se uma educação de adultos mais humana, mais crítica, mais transformadora, etc. Portanto, a metáfora veio muito a propósito, foi um recurso.

Para finalizar, por que a poesia e por que a poesia brasileira: por várias razões. Desde a minha juventude, a música - a música popular brasileira - foi uma presença na minha geração, bem como os poetas, desde muito cedo. Meu interesse pelo Brasil é muito anterior às minhas idas ao Brasil. Tenho ido ao Brasil muitas vezes fazer cursos, palestras, conferências, escrevendo. Eu procuro aprender, aprender a cultura do Brasil, conhecer o Brasil, os seus autores, os seus melhores escritores, os autores da minha área, os autores da ciência política, da filosofia política. Essa troca é muito clara, quer dizer, eu não me permitiria escrever um livro sobre Paulo Freire se não conhecesse o mínimo da história do século XX do Brasil, se não conhecesse o que foi o Estado Novo, se não conhecesse quem foi Jango, o Movimento de Cultura Popular, quem foi Miguel Arraes no Recife... Essas coisas, eu tenho que estudar, temos que saber o porquê das coisas, não é?

Depois, faz sentido também do ponto de vista do conhecimento que a arte comporta. As visões hoje são muito tecnicistas nas nossas áreas das Ciências Sociais, mas, na Educação, muito principalmente, vão esquecendo, vão recusando... Vivemos uma espécie de cientificismo que exagera a centralidade da ciência, a relevância da ciência para a resolução dos problemas econômicos, tecnológicos, de saúde pública, disto e daquilo. As contribuições são extraordinárias, mas tendemos a ter uma visão mítica, endeusada da ciência, um discurso épico sobre a ciência e a tecnologia, ao qual, eu confesso, não adiro. Sou muito mais adorniano desse ponto de vista, sou muito mais crítico da ciência, desse ponto de vista, e da tecnologia.

O conhecimento científico é um tipo de conhecimento, central na sociedade moderna, central nas sociedades complexas, central no capitalismo, no novo capitalismo mais ainda, nas ditas sociedades da aprendizagem, da economia do conhecimento, etc., mas o conhecimento, por exemplo, estético, o conhecimento artístico, é uma forma de conhecimento poderosíssima! Disso, não tenho dúvida. Há certos romances sobre certas épocas históricas que são capazes de retratar uma época ou um contexto social que nenhum tratado de Sociologia - ou vários tratados de Sociologia - consegue fazer.

Acredito muito no poder da metáfora, mesmo nos trabalhos acadêmicos, e foi, digamos, algo que apareceu quase naturalmente. A gente tropeça nas coisas porque está nelas, por estar atento a elas, porque está preocupado com elas e faz as referências, faz as articulações. E, sim, acho que nossos trabalhos precisam estar atentos, na educação, especialmente à dimensão cultural, à dimensão estética, à dimensão ética - todas essas dimensões que estão, em minha opinião, muito desprezadas atualmente.

Ruth Pavan: Poder-se-ia dizer que atentar para essas questões muito desprezadas atualmente tem a ver com o que senhor tem denominado de pedagogia da decisão, que, ao tematizá-la cita Saramango quando escreve: “Em rigor, não tomamos decisões, são as decisões que nos tomam a nós” (ApudLIMA, 2011a, p. 12)?

Licínio C. Lima: Estudo muito, nas teorias organizacionais, a questão da teoria da decisão, os problemas da racionalidade, etc. Há um conjunto vasto de teorias da decisão que se afastam daquilo que, na teoria, se chama teoria padrão da decisão, ou teoria da escolha racional. A teoria padrão, a teoria clássica da decisão, que é considerada uma decisão racional, é uma teoria que nos diz, basicamente, que decidimos racionalmente porque identificamos com rigor um determinado problema, antecipamos todas as possíveis soluções para esse problema, depois antecipamos as consequências que teria a tomada de cada decisão, ou opção de cada solução, comparamos todas com todas e, no final, escolhemos a decisão ótima.

Essa teoria padrão, esta teoria da escolha racional, ela própria hoje é criticada por ser muito racionalista, pois esquece que não detemos informações suficientes para construir, inventariar e antecipar todas as possíveis soluções para um problema. Isso não existe! Um grande teórico, chamado Herbert Simon, chamou essa teoria de teoria da decisão baseada numa racionalidade olímpica. Diz ele: nós temos uma racionalidade limitada, nós não conseguimos prever, antever todas as possíveis soluções para um problema. Impensável! Temos uma capacidade de cálculo, de computação, de criatividade, de informação e conhecimento limitado sobre as coisas, e seria impensável antecipar todas as possíveis soluções e mesmo ter a capacidade de, usando meios de cálculo, ter a certeza de que vamos escolher a decisão ótima. Decisão ótima, não haveria outra além desta. Isso depende do quadro de racionalidade; é contingente, depende das circunstâncias, da situação. Portanto, estudo vários autores que criticam esta versão positivista, racionalista da decisão.

Há tensões, claro; o mundo é um mundo tenso, contraditório, e, portanto, aqui também há contradição. A construção do sujeito que nós temos na educação é de um sujeito da história, um sujeito com mais capacidade de autonomia, reforçada em termos individuais e coletivos, mas algumas dessas mudanças não são passíveis de serem superadas individualmente. Nesse sentido, temos que estar atentos às sobredeterminações, aos contextos que não favorecem a tomada de decisões com autonomia, mas temos que ser capazes, de outro lado, de explorar as margens da autonomia relativa e as próprias limitações que se impõem a qualquer estrutura social. Isso porque a estrutura, para permanecer, para ser reproduzida, precisa de atores que a reproduzam. Quando não a reproduzem ou a reproduzem parcialmente, evidentemente, há uma brecha, há um espaço, há um caminho, há reinvenção.

Acredito que a afirmação dos atores educacionais - professores, professoras, alunos, alunas, os pais, as mães, a comunidade, etc. - é uma afirmação que passa muito por encontrar espaço - espaço de inscrição, espaço de decisão -, ainda que saibamos que este espaço é sempre limitado e, muitas vezes, um espaço que tem que ser conquistado, porque ninguém oferece, em geral, poder de decisão ao outro. Portanto, há aqui um combate entre regras heterônomas e regras autônomas, entre autonomia e heteronomia, entre as grandes decisões olímpicas, tomadas por quem sabe, por quem pode, por quem vê globalmente. Parece que as microdecisões têm pouca importância, mas muitas vezes é no terreno das microdecisões, no terreno das organizações, das escolas, etc., que se fazem e refazem certas regras, se mudam certas orientações e interpretações da própria legislação escolar, por exemplo. Há aqui um espaço, e, se não houvesse esse espaço, isso, sim, seria uma espécie de fim da história, do fim do ator e, muito mais, do fim do sujeito. Isso seria um impasse do ponto de vista não só teórico, mas, sobretudo, humano. Essa frase quer assinalar um pouco isso.

Ruth Pavan: Nesta pedagogia da decisão, que implica a crítica à “educação indecisa” (LIMA, 2011b), o processo de decidir articula-se com a defesa da participação e com a democratização da educação. Nesta defesa, há uma crítica à educação subordinada à lógica do mercado. Conforme consta nos seus escritos, nem sempre é uma questão de omissão, ou ainda, de incapacidade de tomar decisões, mas, muitas vezes, de centralização política, que impede a possibilidade de tomar decisões. A questão é: houve um processo de intensificação dos processos de subordinação, especificamente em relação à educação escolar, nos últimos anos? É possível vislumbrar também processos de insubordinação?

Licínio C. Lima: Sim. Em primeiro lugar, uma das marcas dos últimos anos é aquilo que começo a chamar agora de privatização lato sensu. Privatização lato sensu será uma privatização que não é, necessariamente, a privatização em termos de sociedade ou estatuto jurídico, etc., mas a introdução dos modos de gestão típicos ou considerados típicos do privado dentro da administração pública e dentro das escolas e universidades públicas. Esse processo de privatização lato sensu está apoiado na nova gestão pública, nas teorias da nova governança, na reinvenção do governo, tudo perspectivas que, enfim, nos últimos 30 anos, têm emergido como elementos ideológicos ligados à Reforma do Estado, pretensamente capazes de reformar o Estado e a administração pública na direção certa, que seria a direção da eficácia e da eficiência, de acordo com critérios de natureza econômica, da racionalidade econômica.

Aí, o que verificamos? Que a educação não só é objeto sistemático dessa privatização lato sensu, mas de uma das suas dimensões cruciais, que chamo de impregnação empresarial. Impregnação, quer dizer, nós estamos a embeber a educação e o educativo, as escolas, as universidades, de tudo aquilo que é, do ponto de vista até estereotipado, associado à firma, à empresa. A empresa é hoje vista como o arquétipo da organização racional, o arquétipo da boa administração; fora disso, tudo é irracional. O mercado, a empresa, a concorrência, a competitividade econômica, são elementos intrinsecamente associados a uma boa administração, ou gestão.

Ora, deste ponto de vista, creio que o papel da participação na decisão, na autonomia, é muitíssimo mais difícil hoje. Nós verificamos, por parte dos diretores das escolas, por exemplo, em Portugal - e de muitos professores e educadores -, quão de repente muitos discursos se transferem dos referenciais pedagógicos, educativos, culturais, para os referenciais gestionários. Da mensuração, da quantificação, da avaliação, da accountability, da prestação de contas, da missão, da visão. Hoje a linguagem que se fala em torno da educação e das escolas é uma linguagem de forte inspiração econômica, empresarial, gestionária. Sobre isso, não há dúvida.

Desta impregnação, deste embebimento do educativo pelo econômico, pelo empresarial, nós não damos conta. Ele é tão mais eficaz e forte quanto, nós não damos conta.

Neste contexto, um primeiro elemento de resistência é o elemento da crítica, o elemento da desocultação. Por que agora esta obsessão com a avaliação? E por que com a avaliação em termos quantitativos? E por que com a mensuração e com os rankings? E por que com a competição? Fazer essa crítica, compreender profundamente o processo, eu diria que é um primeiro momento de pensar. Não me parece poder haver resistência a estes fenômenos, alternativas, insubmissões, como prefiro dizer, processos de infidelidade normativa no interior das organizações, se as pessoas não têm o mínimo de consciência crítica sobre esses fenômenos de que estamos falando. Se, primeiro, não dão conta deles; se, segundo, não dando conta deles, os naturalizam e os aceitam, não têm a que resistir… Tudo isso terá enormes repercussões. Não podemos nos surpreender, depois, que as pessoas se refugiem no técnico, no didático, na dimensão tecnológica do ensino e aprendizagem.

Acredito em uma certa capacidade de resistência, de insubmissão. Agora, acredito não apenas por adesão a um ideário político; acredito também por adesão a um quadro racional crítico que seja capaz de fazer a desocultação disto. De onde que vem? Qual é o quadro da racionalidade? Precisamos compreender profundamente esses quadros de racionalidade para interpretá-los, para conhecê-los.

O Brasil não tinha assistido ainda, com essa intensidade, à conquista do espaço público, à afirmação de agendas como a “Escola sem Partido” e como o ataque a Paulo Freire, etc. Ele vem? Não, ele está lá; ele não existe a partir de agora, ele sempre esteve lá. Os [cérebros] conservadores sempre estiveram lá. Agora, há um momento em que, de fato, há condições para que eles consigam emergir com grande força, de forma aparentemente concertada. Com apoios objetivos de dentro e de fora da classe política, porque não são apenas os partidos políticos, não são apenas ações políticas; são, evidentemente, os intelectuais que escrevem para os grandes jornais e falam nas grandes televisões brasileiras que estão frequentemente a ocupar lugares relevantes nas universidades.

Portanto, eu diria que é o momento de levar a sério, do ponto de vista intelectual, do ponto de vista da pesquisa e do estudo das fontes, todas essas correntes, todas essas teorias. A desconstrução mais forte dessas perspectivas, não é ficarmos na superfície delas; não vamos ao fundo da questão, e, de certa forma, parece-nos mais prático e imediato fazer logo o ataque político, o ataque ideológico, o ataque à agenda de valores. Tudo isso é importante e pode ser feito, mas o acadêmico não pode começar nem acabar por aí. O acadêmico tem que ir mais longe. Tem obrigação de estudar as fontes, de perceber como é que as coisas se relacionam. Isso é fundamental.

Ruth Pavan: Essa sua fala fez-me lembrar seu artigo intitulado “A educação faz tudo? Crítica ao pedagogismo na 'sociedade da aprendizagem'” (LIMA, 2010), no qual o senhor escreve sobre a educação ao longo da vida, criticando a ideia de que a educação faz tudo e de que pode tudo, mas afirma que pode algo. Talvez pudéssemos dizer que há, também hoje, possibilidades de uma educação permanente que fortalece a dignidade das pessoas e que a educação ao longo da vida é uma apropriação mercantilizada da educação permanente? Como podemos fazer com que as duas não se confundam e que prevaleça a que defende a educação ao longo da vida que dignifica as pessoas?

Licínio C. Lima: Creio que estamos a exagerar, absolutamente, o papel de educação, que, na verdade, já não é o conceito de educação; é, sobretudo, o conceito de formação e o conceito de aprendizagem, qualificações, competências, habilidades, exagerando essa contribuição, para quê? Para a resolução dos problemas econômicos e sociais. Hoje, esta aquisição de competências, esses qualificacionismos, que às vezes têm pouco de educativo, do ponto de vista normativo, podemos dizer que ela, de certo ponto de vista, é até deseducativa, porque ela parece projetar programas de doutrinação, adestramento, treinamento, mais do que de educação, pois a educação tem essa dimensão normativa, política, cultural. Nos grandes textos da OCDE, da União Europeia, do Banco Mundial, encontramos muito essa perspectiva.

Para cada problema social, cultural, econômico, político, do envelhecimento da população, disso e daquilo, há uma solução educativa. Então, de repente, ainda que não seja verdadeiramente educativa, que seja mais de competências, que seja mais de qualificações, etc., de repente, ela se transforma em uma espécie de medicina, remédio, pílula que se dá para resolver problema, e é essa a crítica que faço muito ao qualificacionismo. Desse ponto de vista, eu diria que, nos anos 1960, a educação permanente e a educação ao longo da vida eram sinônimos. O conceito era o mesmo, com a ideia de incompletude trabalhada por Paulo Freire, a ideia de que estamos em processo e, portanto, em educação até o final dos nossos dias, porque nos sabemos inconclusos e incompletos. Paulo Freire, quando diz que o ser humano é inconcluso, não está a acentuar uma teoria do déficit, está a acentuar que, por nossa própria natureza, nascemos com a capacidade de nos sabermos incompletos, queremos ir mais longe, indagar, conhecer, etc. Isto faz parte da natureza humana, da condição humana.

Nós hoje temos uma perspectiva diferente, que é uma espécie de teoria dos déficits. A população tem déficits, o povo brasileiro precisa disto, o povo português precisa daquilo. Está mal qualificado, a economia e a tecnologia deram um salto muito grande, e agora há um fosso, há um gap, como dizem os ingleses, há um desencontro entre a vida e a educação, entre a economia e a formação, entre os novos empregos altamente tecnológicos e as competências dos indivíduos. Então, parte-se da teoria dos déficits; é por isso que se parte, na educação de adultos, do que as pessoas não têm, não sabem, não podem.

Para fazer educação de adultos, considero isso o contrário do que ensina a teoria da educação de adultos. A teoria da educação de adultos parte daquilo que nós somos, já temos e sabemos, para a partir daí, fazer o seu programa. Não podemos atrair as pessoas para a educação de adultos na base de: “Olhem, vocês não sabem nada, são analfabetos, são ignorantes. Venham porque precisam”. Isso não faz sentido.

Deste ponto de vista, creio que o que impera mais hoje é uma tradução do conceito por via da língua inglesa, que se tecnicizou muito; daí a lifelong education, de que se fala pouco hoje, mas, quando se fala, é muito mais tecnicista do que era a lifelong education dos anos 1970 ou o conceito francês de éducation permanente. Hoje fala-se sobretudo de lifelong learning.

De certa forma, estamos à procura de outro conceito; já não é o mesmo. Hoje é um conceito muito mais instrumental, muito mais vocacionado para as necessidades da economia, a competitividade econômica, a adequação do perfil de formação dos indivíduos ao mercado de trabalho, aos desafios do chamado novo capitalismo, das novas tecnologias, da sociedade da informação e da comunicação, e aí começa a ser uma apropriação mais tecnicista, mais instrumental. Por isso eu falo muitas vezes em qualificacionismo em vez de educação de adultos, formação de adultos. Nós queremos qualificar os adultos como se eles fossem desqualificados; partimos do princípio de que eles são desqualificados ou de que têm déficit de qualificação.

Esta discussão, por exemplo, em Portugal, foi muito utilizada durante anos por governos até de centro-esquerda. Há um enorme déficit na qualificação da população adulta de Portugal, por isso é que o país não é tão desenvolvido quanto os países mais avançados da União Europeia. Esta é uma das razões evocadas, não é? Nós teríamos aqui um desencontro - há até empresas tecnológicas em Portugal e um avanço das empresas, mas falta mão de obra qualificada. Isto é um discurso que, de outra maneira, vai sendo feito no Brasil também: a importância do vocacionalismo, da formação profissional, da preparação para o mercado de trabalho, para um país em desenvolvimento. Todas essas expectativas retomam perspectivas que o Brasil já teve nos anos 1950 e 60 e que agora ressurgem, neste momento, nesta situação um pouco mais complexa, mas que ressurgiram quando a economia brasileira esteve em grande expansão. Isto é, de certa forma, uma crítica que é feita, porque, na verdade, creio que no final a educação corre o risco de ser evacuada dos discursos das políticas educacionais - cada vez se fala menos em educação. Nos textos, por exemplo, da União Europeia, a educação aparece cada vez menos; aparecem formação, aprendizagem, sobretudo aprendizagem individual, que responsabiliza o indivíduo, as qualificações e as competências. Há um projeto de colocar as qualificações individuais a serviço das necessidades do novo capitalismo, da nova economia. Basicamente, é esta a perspectiva.

Ruth Pavan: Ao finalizar a entrevista, lembro que seus escritos são sempre explícitos em relação à defesa de uma educação radicalmente democrática. Esta posição é retomada e recontextualizada constantemente nas suas obras, principalmente apresentando a impossibilidade da neutralidade do ato educativo. Em um dos seus textos, afirma: “Apesar de tudo, a invenção democrática continua a ter lugar nos nossos dias, tanto a oeste quanto a leste, através de lutas, protestos e revoltas [...]” (LIMA, 2005, p.80). Contém uma posição importante, que reconhece as possibilidades de reinvenção da democracia e que se afasta de uma visão fatalista, tão ao gosto dos conservadores, mas a frase inicia com “apesar de tudo”. Passada mais de uma década, parece-me que esse “apesar de tudo” é ainda mais necessário no contexto atual. O que ele significa?

Licínio C. Lima: “Apesar de tudo” é isto, a situação não está fácil. Na verdade, assistimos, na nossa área, na educação, como já referi anteriormente, a uma privatização lato sensu, a uma impregnação empresarial. A educação tende a desaparecer do discurso em muitos países. Desapareceu do discurso público, do discurso político, não se fala mais em educação. Fala-se em qualificações, competências, habilidades. Portanto, a situação não é nada favorável. Não está fácil.

Agora, também é verdade que temos aqui, acolá, menos do que desejaríamos, eventualmente, insubmissões, dimensões críticas, grupos que fazem a diferença. Digamos, setores da juventude que são críticos, que procuram alternativas, isto não tem sido muito claro. Por exemplo, o Processo de Bolonha na Europa - alguns dos maiores críticos, algumas das coisas mais inteligentes foram ditas por estudantes universitários na Europa. Há aqui relações de poder assimétricas, há aqui dominantes e dominados, há aqui agendas que têm uma força enorme transnacional, em escala global. A situação não é fácil. Há a tal impregnação, da qual muitas vezes nem nos damos conta; portanto, se não nos damos conta dela, não vamos combater. Há tudo isso, mas temos um grande cantor e poeta das canções revolucionárias depois de 25 de abril, e até já de antes, porque ele já escrevia antes, que diz: “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Ele está a falar do tempo da ditadura salazarista, não é? É o Manuel Alegre, é um poema de Manuel Alegre: “há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não”. Não é possível imaginar uma sociedade absolutamente esmagada atingindo um estágio final, definitivo, um fim da história que foi anunciado, sem críticas, sem debates, sem lutas sociais, sem lutas sindicais... Mesmo em Portugal, agora, nestes dias, com o governo que, apesar de tudo, está a aliviar um conjunto de coisas importantes, está a procurar fazer uma política social diferente relativamente ao governo anterior, etc. Há a dinâmica social.

Nós pensamos, nós agimos, nós refletimos e, portanto, o “apesar de tudo” é porque a situação não está fácil e porque não se esperaria uma revolução nem para amanhã, nem para depois de amanhã. A mudança é difícil. Quem critica essas ideias, quem tem agendas críticas, quem tem agendas militantes, ativistas contra este estado de coisas, não terá uma vida fácil. Em muitos casos, é francamente minoritário nas instituições sociais, isto me parece evidente. Por exemplo, aqui na universidade, fazemos muito esse juízo, não é? Porque uma pequena minoria de professores tem umas ideias estranhas que a nós nos parecem as ideias certas, mas aos outros não. Claro que é um grupo que, sendo minoritário, tem força para afirmar as ideias e às vezes até para conseguir algumas coisas, que vai conseguindo pela sua atividade de crítica, ativismo, etc, etc., mas já não há muitas ilusões. A maioria está um pouco adormecida com o produtivismo, os papers, os artigos, o dia a dia, as tensões, as pressões.

Depois, há também outro setor que tem um projeto diferenciado para a universidade, que é um projeto de universidade mais empresarial, mais gestionária, mais competitiva no mercado internacional, uma universidade como se pretende construir na Europa. É essa universidade que criticamos, uma universidade que abdica de muitos aspectos da crítica, do seu papel de transformação social. É uma universidade que se quer insinuar como útil ao poderes, às aplicações tecnológicas da ciência, ao registro de patentes, etc.

Enfim, tudo isso terá seu lugar, com certeza, em uma universidade. Não convém é que isto tome a dianteira e que seja o aspecto dominante, porque, se for o aspecto dominante, sabemos o que vai acontecer a outros saberes, que são os saberes que entram em crise e já estão em crise - a filosofia, as ciências sociais, a educação... Muitos desses saberes não têm uma aplicação imediata, e alguns pensam que estão a mais na universidade hoje. Isso na Europa é muito claro! Portanto, o “apesar de tudo” está cada vez mais reforçado.

Referências:

LIMA, Licínio C. Cidadania e educação: Adaptação ao mercado competitivo ou participação na democratização da democracia? Educação, Sociedade & Culturas. n. 23, p. 71-90, 2005. [ Links ]

LIMA, Licínio C. Educação ao longo da vida: entre a mão direita e a mão esquerda de Miró. São Paulo: Cortez, 2007. [ Links ]

LIMA, Licínio C. A Educação faz tudo? Crítica ao pedagogismo na “sociedade da aprendizagem”. Revista Lusófona de Educação, v. 15, n. 15, p. 41-54, 2010. [ Links ]

LIMA, Licínio C. A escola como organização educativa. São Paulo: Cortez , 2011a. [ Links ]

LIMA, Licínio C. Crítica da educação indecisa: a propósito da pedagogia da autonomia de Paulo Freire. Revista e-Curriculum, v. 7, n. 3, p.1-15, 2011b. [ Links ]

Recebido: 12 de Fevereiro de 2019; Aceito: 05 de Setembro de 2019

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