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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.37  Belo Horizonte  2021  Epub 30-Jul-2021

https://doi.org/10.1590/0102-4698225250 

Artigos

VIVER É LUTAR: PERSPECTIVAS POLÍTICAS NA COLEÇÃO DIDÁTICA PARA A ALFABETIZAÇÃO DE ADULTOS DO MOVIMENTO DE EDUCAÇÃO DE BASE

VIVIR ES LUCHAR: PERSPECTIVAS POLÍTICAS EN LA COLECCIÓN DIDÁCTICA PARA LA ALFABETIZACIÓN DE ADULTOS DEL MOVIMIENTO DE EDUCACIÓN DE BASE

KELLY LUDKIEWICZ ALVES1 
http://orcid.org/0000-0002-5487-2758

FLÁVIO AMÉRICO TONNETTI2 
http://orcid.org/0000-0002-9279-1852

1Universidade Federal da Bahia (UFBA). Salvador, BA, Brasil.< kellyludalves@gmail.com>

2Universidade Federal de Viçosa(UFV). Viçosa, MG, Brasil. <flavio.tonnetti@gmail.com>


RESUMO:

O artigo tem como objetivo analisar conteúdos e aspectos materiais da cartilha “Viver é lutar”, publicada em 1963, que integrava a coleção didática, de mesmo nome, elaborada pelo Movimento de Educação de Base (MEB) como suporte às aulas de alfabetização de adultos no contexto das escolas radiofônicas brasileiras nos primeiros anos da década de 1960, tendo em vista o contexto político do regime ditatorial brasileiro (1964-1985) e a repressão aos movimentos sociais voltados à educação de adultos. Também foram utilizados como fontes documentais “O Conjunto Didático ‘Viver é lutar’”, relatórios produzidos pelo MEB e cartas escritas por monitores que participaram do movimento. Observa-se no material didático o esforço em trazer elementos da cultura popular sertaneja como estratégia didático-pedagógica para gerar identificação com os camponeses atendidos pelo movimento, tendo em vista ainda as diferentes tendências intelectuais e ideológicas em disputa no interior da Igreja Católica mobilizadas na construção do material, relacionadas às suas concepções política, pedagógica e religiosa, que resultaram em um modelo próprio de educação dos camponeses. Por fim, abordamos o processo de reestruturação do MEB no contexto do regime ditatorial que, de acordo com historiografia recente, se deu por meio de processos de acomodação ao regime, cuja consequência foi a reordenação de seus princípios pedagógicos e o afastamento de militantes das alas mais radicais do movimento.

Palavras-chave: alfabetização de adultos; educação de base; cartilha; golpe civil militar de 1964

RESÚMEN:

El texto tiene como objetivo analizar los contenidos y los aspectos materiales de la cartilla “Viver é lutar” - “Vivir es luchar” - publicada en 1963, que integraba la colección didáctica de mismo nombre y fue preparada por el Movimiento de Educación de Base (MEB) para apoyar a las clases de alfabetización de adultos en las escuelas radiofónicas del MEB a principios de la década de 1960, en vista del contexto político del régimen dictatorial brasileño (1964-1985) y la represión a los movimientos sociales dirigidos a la educación de los adultos. También se utilizaron como fuentes “O Conjunto Didático ‘Viver é lutar’”, informes producidos por MEB y cartas escritas por monitores que participaron en el movimiento. En el material didáctico se observa el esfuerzo por traer elementos de la cultura popular del campo como parte de la estrategia didáctico-pedagógica para generar identificación con los campesinos, teniendo en cuenta las diferentes tendencias intelectuales e ideológicas en disputa dentro de la Iglesia Católica que fueran movilizadas en la construcción del material, las cuales están relacionadas con las concepciones políticas, pedagógicas y religiosas de los militantes del MEB, que además resultaron en un modelo propio de educación para los campesinos. Finalmente, abordamos el proceso de reestructuración del MEB en el contexto del régimen dictatorial brasileño que según la historiografía más reciente, tuvo lugar a través de procesos de acomodación al régimen, cuya consecuencia fue la reorganización de los principios pedagógicos del MEB y la retirada de los militantes de las alas más radicales del movimiento.

Palabras clave: alfabetización de adultos; educación de base; cartilla, golpe militar brasileño de 1964

ABSTRACT:

The article aims to analyze the content and material aspects of the primer “Viver é lutar” - “Living is fighting” - published in 1963, which was part of the didactic collection of the same name prepared by the Movimento de Educação de Base (MEB) - Base Education Movement - to support adult literacy classes in the context of Brazilian radio schools in the early 1960s, in view of the political context of the Brazilian dictatorial regime (1964-1985) and the repression of social movements aimed at adult education. Also, it were used as documentary sources the didactic set of ‘Living is fighting’, reports produced by MEB and letters written by monitors who participated in the movement. We observe in the material the effort to bring elements of popular culture as a didactic-pedagogical strategy to generate identification with the peasants served by the movement, bearing in mind also the different intellectual and ideological tendencies in dispute within the Catholic Church mobilized in the construction of the material, related to their political, pedagogical and religious conceptions, which resulted in their own model of education for peasants. Finally, we approach the process of restructuring MEB in the context of the dictatorial regime that, according to recent historiography, took place through processes of accommodation to the regime, the consequence of which was the reorganization of its pedagogical principles and the removal of militants from the more radical wings of the movement.

Keywords: adult literacy; base education; primer; Brazilian military coup of 1964

I

Eu vivo e luto.

Pedro vive e luta.

O povo vive e luta.

Eu, Pedro e o povo vivemos.

Eu, Pedro e o povo lutamos.

Lutamos para viver.

Viver é lutar.

Assim que abrimos a cartilha somos imediatamente convidados a tomar parte em uma luta que não protagonizaremos solitariamente, mas em companhia de alguém a quem chamamos por um nome próprio, alguém que está por perto e que anda provavelmente conosco. Juntos somos o povo, que também luta - mais do que isso: como povo, somos a expressão coletiva dessa luta.

Trata-se do poema de abertura da cartilha “Viver é lutar” que, desde a primeira lição, dá o tom da perspectiva política assumida pelo material didático do Movimento de Educação de Base (MEB), um movimento eclesial católico organizado com o propósito de alfabetizar trabalhadores rurais no interior do Brasil, em um contexto em que os analfabetos, com direitos políticos negados, não tinham acesso ao voto.

Além da cartilha “Viver é lutar”, encontramos, como fontes documentais, “O Conjunto Didático ‘Viver é lutar’”, relatórios produzidos pelo MEB e cartas escritas por monitores que atuaram no movimento3. Desse conjunto de fontes, identificamos, na cartilha, uma série de elementos da cultura popular sertaneja mobilizados como estratégia didático-pedagógica para gerar identificação com os camponeses atendidos pelo MEB, tendo em vista as diferentes tendências intelectuais e ideológicas em disputa no interior da Igreja Católica, que resultaram em um modelo próprio de educação dos camponeses, que vai se modificando em virtude dos impactos decorrentes do regime ditatorial instalado no Brasil em 1964, com a reordenação de seus princípios pedagógicos e o afastamento de militantes das alas mais radicais do movimento.

Elaborada em 1963 para ser adotada no início do ano de 1964, a cartilha foi produzida para auxiliar os monitores no trabalho de educação de jovens e adultos que frequentavam as escolas radiofônicas do MEB, como parte de um programa de alfabetização veiculado nos sistemas rádio educativos em funcionamento nas Regiões Norte e Nordeste, e também em cidades do norte do Estado de Minas Gerais. A atuação do MEB a partir de 1961 - ano de sua criação - insere-se no contexto de forte demanda pelo acesso à alfabetização, acirrada por campanhas feitas pelo governo brasileiro a partir do final da década de 1940 (Freitas e Biccas, 2009), numa realidade em que havia grande carência de escolas públicas nos meios rurais, o que levava a um alto índice de analfabetismo também entre a população jovem. Segundo Censo Demográfico do IBGE, nos anos de 1960, o Brasil contava com 39,6% de analfabetos entre a população de 15 anos ou mais (Freitas e Biccas, 2009).

A cartilha integrava, como peça chave, um conjunto didático - também intitulado “Viver é lutar” - formado pelos livros de apoio aos professores “Fundamentação”, “Justificação” e “Mensagem”, e foi elaborada por um grupo de trabalho constituído por membros do MEB Nacional e por professores do movimento que atuavam nos estados da Região Nordeste. O grupo se reuniu em fevereiro e março de 1963 nas cidades de Natal e Aracaju, respectivamente. Após as reuniões iniciais, foram realizados encontros parciais para análise e revisão do material, que em agosto foi submetido ao parecer de professores do MEB e de Bispos e Arcebispos, entre eles D. Avelar Brandão, D. Eugênio Sales e D. José Vicente Távora. No início de janeiro de 1964, ficaram prontos os cinquenta mil exemplares da cartilha “Viver é lutar” - dos cem mil inicialmente contratados, que não chegaram a ser impressos em virtude da apreensão de três mil exemplares pelo regime ditatorial (Movimento de Educação de Base, 1963a, p. 01 e 02).

No desenho dessa estratégia de educação a distância, a elaboração dos materiais didáticos era extremamente importante dada a carência de cartilhas e de livros de leitura apropriados para um tipo de ação educativa cujo público-alvo eram adultos das zonas rurais. Sobre os materiais didáticos disponíveis para a alfabetização dos adultos à época, o texto de análise do conjunto “Viver é lutar” menciona que “as poucas cartilhas que se conseguiam davam aos adultos e adolescentes das áreas atingidas pelo MEB o mesmo tratamento dado às crianças - e, muitas vêzes, crianças das grandes cidades” (MEB, 1963a, p. 01). Por isso a importância de sua realização como instrumento didático. Se considerássemos apenas a especificidade de seu público-alvo, “Viver é lutar” já mereceria reconhecimento: é uma das pioneiras no gênero de livro didático para jovens e adultos; e, mais especificamente, para a alfabetização de adultos camponeses.

Além de atender a essa demanda por materiais apropriados às necessidades e à realidade de jovens e adultos, também encontramos pioneirismo no sentido de reconhecer mais adequadamente a singularidade de seu público-alvo ainda em um outro aspecto: a elaboração de um conteúdo e de uma abordagem que buscava dialogar de forma direta com a cultura e com as condições de vida material dos camponeses aos quais o material se destinava. O que reforça o fato de haver, na constituição do material, um claro empenho em aproximar conteúdo e forma, de modo a incorporar em sua linguagem tanto os gêneros da cultura popular quanto os temas religiosos inerentes ao imaginário dos estudantes, com questões próximas ao cotidiano, relacionadas, sobretudo, ao trabalho e ao acesso a direitos fundamentais.

Sendo um movimento católico, a perspectiva pastoral também é parte importante dessa proposta pedagógica. Nota-se, entretanto, que seu caráter evangelizador manifesta-se numa perspectiva bastante progressista, relacionada, sobretudo, à militância das Juventudes Católicas, a qual estavam ligados os primeiros mentores do projeto (Alves, 2019, 2020; Fávero, 2006).

Cumpre observar que, ao longo da cartilha, a alfabetização não se estabelece como objetivo único da educação de base: é preciso também conscientizar - mais do que alfabetizar “e” conscientizar, trata-se de alfabetizar “para” conscientizar. De forma articulada, em “Viver é lutar” propunha-se que tais objetivos - a um só tempo, teológicos, políticos e educacionais - deveriam “focalizar a valorização do homem e da comunidade, sua cultura, seu papel diante da realidade brasileira - tudo de acordo com as necessidades das diferentes áreas” (MEB, 1963a, p. 01) demonstrando uma premissa pedagógica comum aos movimentos eclesiais de base para os quais “um conhecimento crítico e aprofundado da realidade social tornou-se condição da evangelização” (Betto, 1981, p. 87). Esse “messianismo social”, como estratégia de transformação política, visava a organização das comunidades em prol da luta por direitos básicos, dentre eles a organização sindical e o acesso ao voto, compreendidos, nesse momento, como ferramentas fundamentais para a mudança social. Dar acesso à educação por meio da alfabetização - direito negado aos trabalhadores do campo - significava, então, oferecer condições para que outros direitos fossem acessados.

II

Em “Viver é lutar”, do ponto de vista de uma discussão curricular, tais contornos se revelam muito bem expressos não apenas em relação ao conteúdo textual de suas lições e exercícios de alfabetização, mas também em relação a sua forma, no que toca à materialidade do objeto e a sua dimensão imagética. Com uma produção gráfica singular para o contexto dos anos de 1960, em que apostilas eram habitualmente reproduzidas de forma artesanal em mimeógrafos, sua impressão em tipografia - com lições acompanhadas por fotografias em preto-e-branco e capa em duas cores - representava um significativo avanço tecnológico do ponto de vista da editoração de materiais pedagógicos. Acrescenta-se a isso o fato de que não era comum o uso de fotografias retratando trabalhadores rurais e paisagens do sertão nordestino, o que reforça a dimensão inovadora da cartilha em seu esforço de apresentar conteúdos capazes de gerar identificação com a realidade dos educandos, respeitando a sua cultura e em diálogo com seus contextos.

Como uma espécie de síntese dessa concepção geral, a própria capa do material pode ser tomada como exemplo: nela vemos a imagem de uma escultura de barro representando um grupo de adultos reunidos em torno de uma mesa. Sobre ela vemos um rádio, em torno do qual as pessoas estão reunidas. Sentadas sobre um banco sem encosto, bastante característico das zonas rurais, elas mimetizam uma situação que claramente se configura como uma aula. Na imagem da pequena escultura, vemos ainda uma das pessoas em pé, escrevendo um conjunto de letras em um pequeno quadro, demonstrando o formato de articulação didática experienciado na situação das próprias escolas radiofônicas, que eram improvisadas em salões comunitários, nos fundos de igrejas ou nas casas dos monitores. Não se trata, portanto, de uma aula qualquer, mas da própria aula radiofônica. Também não se trata de representá-la por meio de uma imagem ou de um gênero escultórico qualquer, mas de apresentar a realidade de um contexto de aprendizagem que será criado e experienciado pelos educandos por meio de um gênero já conhecido por eles: a escultura de barro sertaneja - que é, reconhecidamente, uma marca identitária da cultura popular nordestina, funcionando como objeto icônico de ampla circulação, cujas pequenas obras se encontram facilmente tanto nas feiras do interior quanto nos mercados turísticos das capitais nordestinas, nos quais são vendidas como souvenirs de viagem, projetando a cultura popular para além das fronteiras da própria região.

O barro, é preciso lembrar ainda, é tanto a substância mítica com a qual Deus, na mitologia cristã, cria o humano, quanto a matéria-prima organizadora da vida no interior dos sertões - a casa, o forno e os instrumentos de cozinha são feitos de barro; vale lembrar que na realidade dos camponeses o próprio cultivo dos alimentos depende diretamente da terra. Ponto de contato entre o trabalho espiritual e o trabalho material, o barro funciona como um elemento síntese em uma cultura cuja base é a agricultura, para sujeitos cuja terra, como direito a ser conquistado, é o bem necessário para a manutenção da própria vida.

Também as fotografias que acompanham os exercícios destinados à alfabetização, com retratos típicos de trabalhadores e gente simples do campo - por vezes acompanhados de seus filhos - cumprem a função de transformar o material numa espécie de retrato, numa ode à consciência da própria condição social. Essas imagens visam reforçar a perspectiva de que a transformação social só é possível a partir da compreensão da dimensão política da própria vida, “despertando o adulto para o necessário engajamento em grupos de trabalho na comunidade - clubes, sindicatos, cooperativas, artezanatos, etc” (MEB, 1963a, p. 01) em uma vida - como o próprio título do material assinala - que precisa ser anunciada e experienciada conscientemente como luta.

Em termos visuais figurativos, enaltecendo o trabalhador como protagonista da transformação material de sua realidade, a presença destas fotos pode ser facilmente associada à orientação estética do “realismo socialista”, cujos contornos foram dados por intelectuais comunistas já na década de 1930 em discussões sobre a contribuição da representação artística para a construção de movimentos revolucionários. Como corrente estética, o realismo socialista previa, justamente, a produção de representações realistas e historicamente concretas que pudessem contribuir com a transformação ideológica colaborando com a educação do trabalhador no espírito do socialismo (Sinjavskij, 1966).

O engajamento político expresso em “Viver é lutar”, cuja base do projeto se assenta numa conscientização do trabalhador contra a injustiça de sua condição social se realiza, portanto, duplamente: como conteúdo e como forma. O material, visto por esse duplo aspecto, se coloca nos termos de uma obra engajada, em que a composição autoral se vê intimamente relacionada com um objetivo político muito bem definido (Napolitano, 2011). Nesse sentido, é importante perceber e enfatizar que a cartilha, por suas singulares características, não possui apenas um “caráter inovador”, e sim “revolucionário”. Isso explica, em grande medida, as razões pelas quais a sua publicação e a sua utilização nas escolas radiofônicas do MEB esteve envolvida em uma grande polêmica, sobretudo no contexto de um estado que se mostrava cada vez mais repressor com relação às demandas do povo e de agentes da cultura popular.

Destinada a alunos já em processo de alfabetização, a cartilha era composta por 30 lições, distribuídas em 65 páginas. Os conteúdos gramaticais, seguidos por exercícios práticos, eram permeados pelos textos de conteúdo político, sendo cada lição ilustrada com uma fotografia. Os temas abordados nas lições referiam-se à vida dos camponeses, em torno da família e da comunidade, sua condição de trabalhador rural e a sua inserção na comunidade religiosa, terminando geralmente com perguntas mobilizadoras, que buscavam propor o debate, atendendo à forma como o MEB costumava trabalhar os conteúdos, colocando o problema a partir de dados da realidade para depois analisá-los. No final, uma frase era ressaltada como mensagem fundamental a ser transmitida em cada uma das lições.

Tendo em vista essas características da cartilha no contexto de sua publicação - feita poucos meses antes do golpe civil militar de 1964 - é importante considerar os modos de atuação e engajamento relativos ao grupo de militantes católicos envolvidos na criação do MEB, bem como as disputas entre distintas correntes no interior da Igreja Católica, que foram decisivas no processo de reestruturação do movimento que precisou ocorrer após o golpe de 1964. Também é importante observar a circulação do material didático para compreender como a recepção do mesmo contribuiu - e em que medida - para reforçar a identificação do MEB perante a sociedade como um movimento comunista.

Os embates experienciados no contexto sócio-histórico em que a cartilha foi produzida, tanto no interior da Igreja quanto na sociedade de forma mais ampla, revelam-se expressos em aspectos do próprio conteúdo de “Viver é lutar”. Articulada aos documentos produzidos em virtude de sua “criminalização”, a análise de seu conteúdo e de sua forma ganha importância por permitir que observemos as disputas ideológicas travadas no interior do movimento católico a partir do próprio desenvolvimento de seu material didático - cuja atenção se voltava para a promoção da cultura popular, da educação de base e da conscientização, na forma como eram compreendidas pelo MEB em seu currículo.

Um contato mais aprofundado com a cartilha “Viver é lutar”, nos permite perceber claramente a proposta política dessa educação, cuja mobilização dos camponeses para a luta é apresentada através de lições. O que nos ajuda a compreender, com mais elementos, a atuação dos movimentos populares nos contextos que antecedem e que se sucedem ao golpe de 1964, permitindo discutir de que modo o golpe afetou decisivamente esses movimentos - seja pela repressão, seja por interferências que, no caso do MEB, implicaram na reordenação de seus princípios pedagógicos, que passam a assumir uma perspectiva mais conservadora e muito menos revolucionária.

III

Durante o regime ditatorial, o MEB foi o único movimento de educação de base a continuar suas atividades, depois de um breve período de suspensão da sua programação radiofônica, que durou cerca de três meses, de abril de 1964 a meados de julho. A relação de proximidade com a Igreja Católica desde sua origem foi decisiva para a retomada das atividades nas escolas radiofônicas após o golpe de abril de 1964. Tais relações, entretanto, não foram sempre harmoniosas no interior da Igreja, cujas distintas correntes de caráter mais progressista, conservador ou até mesmo institucional, disputaram espaço no trabalho educativo junto aos camponeses.

Para Osmar Fávero (2006), a permanência das atividades após o Golpe deveu-se ao fato de se tratar de um movimento católico conduzido pela mediação institucional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que, em 1961, era uma das partes envolvidas no convênio celebrado com o governo federal - naquele momento presidido por Jânio Quadros - para abertura das escolas radiofônicas do MEB. A parceria da CNBB com o governo ampliava as experiências anteriores de alfabetização de adultos desenvolvidas pela Igreja Católica em cooperação com o Estado nas arquidioceses de Natal e de Aracaju que, desde 1958, já adotavam o modelo de educação de adultos por meio de uma programação radiofônica educativa (Fávero, 2006; Wanderley, 1984).

A criação do MEB também correspondeu a outras motivações oriundas da Igreja Católica que, institucionalmente - atendendo à agenda de lideranças conservadoras - desejava conter o avanço dos movimentos populares de luta pela terra, identificados com o comunismo, e promover uma ação evangelizadora por meio do trabalho de base que a aproximasse das populações camponesas e contribuísse para sua expansão no meio rural.

Paralelo às motivações institucionais que contribuíram para a criação do MEB, havia a ação de grupos de católicos leigos que atuavam em outros espaços políticos, como o movimento estudantil, ou outros movimentos sociais, como foi o caso da Juventude Universitária Católica (JUC) e, posteriormente, da Ação Popular (AP). Esses grupos viam nas ações promovidas pelo MEB a possibilidade de atuar como militantes engajados na luta pela educação e organização dos trabalhadores rurais (Kadt, 2007; Paiva, 1983). Atuando como forças políticas laicas, de orientação à direita ou à esquerda, percebiam o poder da Igreja em influenciar processos de transformação social, assumindo posições vistas como estratégicas para a promoção da cultura popular, por meio de atividades de educação de base (Gavião, 2007).

Desde o final da década de 1950 os educadores católicos leigos compunham o grupo que vinha tecendo severas críticas ao modelo de educação dos adultos praticado pelo Estado. No II Congresso Nacional de Educação de Adultos realizado em 1958 em Recife, Paulo Freire integrava o grupo de Pernambuco que produziu um relatório no qual se enfatizava que o problema do povo nordestino não era o analfabetismo e sim a miséria. Ainda que o tema da educação dos adultos seguisse atrelado ao projeto desenvolvimentista do Estado brasileiro, as críticas promovidas por esse grupo, bem como a sua atuação, e mais particularmente, a ação de Paulo Freire, representaram uma mudança de concepção em relação aos analfabetos. Estes já não são mais aqueles que possuem uma anomalia e por isso precisam ser curados, mas pessoas a quem o estado brasileiro historicamente negava condições básicas de vida e cidadania, dentre elas o acesso à educação. Segundo Vanilda Paiva (1983), naquele encontro sinalizou-se a promoção de experiências desenvolvidas com a inserção das comunidades locais como modelo adequado para um trabalho de educação de base. Partindo desta perspectiva, a dimensão de atuação dos católicos leigos se voltou para a defesa de ações direcionadas à formação da consciência do povo, para que pudessem compreender sua realidade e, a partir dessa compreensão, pudessem transformá-la (Freitas & Biccas, 2009).

Desse modo, desde sua origem, o MEB foi um ator chave para essa mudança de perspectiva, sendo seu modelo de educação dos adultos - denominado de educação de base - diretamente influenciado pela pedagogia freireana no que se refere à descentralização, à regionalização do ensino e a necessidade de adaptar a educação dos adultos à cultura local, pensando a comunidade e a escola de maneira integrada, com o objetivo de preparar o povo para a vida política (Freitas & Biccas, 2009). Na cartilha, durante as lições gramaticais, são apresentadas um conjunto de palavras geradoras, elaboradas a partir do conteúdo abordado no texto que inicia a lição. Tais termos seguem, de alguma forma, o trabalho preconizado pelo uso de palavras geradoras propostas na pedagogia freiriana, no conjunto de procedimentos que se preconizou chamar por Método Paulo Freire (Brandão, 2006) evidenciando que sua influência na pedagogia do MEB não se deu somente por suas ideias em torno da construção de uma pedagogia da autonomia (Freire, 1996) ou da luta contra a opressão (Freire, 1968), mas também na perspectiva de uma didática politicamente orientada que incidiu diretamente sobre a prática alfabetizadora adotada pelo MEB nas escolas radiofônicas.

Entretanto, em Paulo Freire as palavras geradoras utilizadas no processo de alfabetização são encontradas e decididas junto aos educandos, como exercício de uma práxis educativa cujo objetivo é em si a conscientização existencial e política do educando de sua condição subalterna numa sociedade desigual. Esse momento inicial, em que se decide quais serão as palavras aprendidas - a partir da sua relevância para a comunidade aprendente - é já um exercício de política exercido pela linguagem.

Já no caso de “Viver é lutar”, tais termos - que funcionam mais como palavras-chave do que como palavras geradoras - são previamente sugeridos, o que assinala uma diferença aparentemente sutil, mas reveladora de sua dimensão prescritiva e salvacionista, que instaura relações assimétricas e hierárquicas bastante características das estruturas eclesiais. Numa das lições, nós podemos observar o modo como as palavras principais - família, trabalho, comunidade e Deus - atendem claramente a uma agenda pastoral:

Eu trabalho para minha família.

Pedro trabalha para a família dele.

Nossa vida é trabalho e luta.

Nosso trabalho é luta e vida.

O trabalho de cada um ajuda o outro.

O trabalho de todos é para a comunidade?

O trabalho de todos ajuda o trabalho de Deus?

O TRABALHO DE TODOS AJUDA O TRABALHO DE DEUS

(Movimento de Educação de Base, 1963b, p. 06)

«Trabalho», «família», «comunidade» e «Deus» emulam a função das palavras geradoras. Mas elas não são geradas, e sim recebidas. A escolha dos termos não é resultado, portanto, de uma negociação política, mas algo a ser acolhido: o debate em torno das palavras não é motivado diretamente pelos interesses dos educandos, mas pelo que os educadores responsáveis pelo material julgam ser o interesse dos educandos - e deles mesmos. O próprio encadeamento dos termos visa expressar uma certa visão de mundo. O trabalho está a serviço da família e da comunidade - e mesmo a luta deve convergir para os interesses de Deus. Há toda uma hierarquia estabelecida entre os termos - o que expressa uma visão de mundo em si hierarquizada e hierarquizante - que precisa ser aprendida e sobre a qual não se discute. O que precisa ser discutido e questionado é a própria estrutura política do mundo e sua desigualdade, que estão em desconformidade com a vontade de Deus. A política, portanto, é a expressão de uma determinada teologia. A atividade política revela-se, portanto, e no limite, como uma atividade religiosa.

Também não se pode perder de vista o nome que dá vida ao primeiro, talvez o principal, personagem do livro: Pedro, aquele sobre o qual, segundo a tradição do evangelho, Jesus deixou a responsabilidade de propagar a fé cristã e fundar a sua igreja, na busca por restabelecer o reino de Deus na terra. Esses elementos demonstram a estreita proximidade que os conteúdos pedagógicos do MEB estabelecem com a doutrina social da Igreja de restabelecimento da ordem e da justiça por meio da aproximação entre homens e Deus.

Isso implica considerar que, como processo educacional, estamos ainda próximos da perspectiva de uma catequese, em que os processos são dirigidos para fins determinados que não são elaborados pelos educandos, mas por sujeitos alienados em instâncias externas à realidade educativa. É nesse sentido que tais práticas precisam ser pensadas criticamente mais como uma espécie de desdobramento de uma pedagogia da libertação do que como uma pedagogia da libertação propriamente dita - revelando também aí os embates ideológicos e as discussões intelectuais inerentes ao grupo do MEB.

No caso da análise de “Viver é lutar”, a força dessa orientação pedagógica inicial acaba, por vezes, sendo diluída. Tópicos como acentuação, sílabas tônicas e variações pronominais recebem um tratamento muito mais gramatical que comunicacional - embora estes tópicos da língua não sejam apresentados ou estruturados formalmente à moda dos gramáticos. Isso significa que, também neste aspecto, a perspectiva linguística do material o afasta de seus objetivos político-pedagógicos. Tampouco a forma de falar e de escrever aparece problematizada no material - no sentido de contribuir para que os educandos possam perceber que também a sua forma pessoal de se comunicar pressupõe uma estrutura e uma organização própria. Discussões linguísticas sobre variação linguística ou preconceito linguístico (Bagno, 2002) - que hoje surgem nos materiais como problemas não apenas de pesquisadores, mas como conteúdo de ensino - estão ainda muito distantes do horizonte de educadores e editores desse período. Isso não significa que essas singularidades não fossem acolhidas e trabalhadas. Sabemos desse esforço de aproximação com a linguagem popular e suas formas de falar não apenas pelo contato com a cartilha e pela análise formal de seus conteúdos, como também por meio da leitura das cartas dos alunos, monitores e supervisores das escolas radiofônicas, nas quais vemos claramente um esforço de acolhimento dessas singularidades, que se manifestam na comunicação escrita trocada por meio dessa correspondência (Alves, 2020).

IV

Em “Viver é lutar” os elementos que compõe a cultura camponesa eram trabalhados para fomentar uma cultura genuinamente popular. Na concepção dos militantes que integravam o MEB, tal estratégia contribuiria para superar os desníveis culturais que impediam a comunicação entre os diversos grupos sociais. As festas populares - carnaval, São João, maracatu, capoeira, ciranda, entre outras - são apresentadas como parte do folclore e da arte popular, nas quais a alma do povo se revela. A cultura é, desse modo, posta como fruto do trabalho e da criação humana em sociedade.

A arte popular é cultura.

Tudo que o homem inventa e faz é cultura:

casa, roçado, sapato, fogão de barro...

Tudo isto é criação.

O homem é criador.

Os costumes do povo são cultura.

Estudando o povo também faz cultura;

aprende a conservar e melhorar seus costumes.

Um povo só marcha para a libertação,

quando caminha com sua cultura

TUDO QUE O HOMEM INVENTA E FAZ É CULTURA

(MEB, 1963b, p. 48)

A cultura, portanto, não se mostra como um conceito elitista que separaria a população entre classes cultas e aculturadas, mas como esfera comum a todos, expressa como manifestação genuína do povo, de sua experiência de vida e de seus gestos de transformação da natureza, numa concepção alinhada ao sentido moderno do termo, conforme mapeado por Raymond Williams (2007). Distintos trechos de “Viver é lutar” ressaltam, em suas lições, elementos como a “arte popular” e os “costumes do povo”. Ressaltam, ainda, suas condições de trabalho e produção quando, por exemplo, se afirma que “o camponês é homem da terra. Êle trabalha a terra”.

Entretanto, sua concepção de cultura popular - que destaca o caráter genuíno das manifestações do povo - reforça, de outra forma, os elementos de cisão e de polarização da cultura, ao ressaltar um modo de vida popular, rural e camponês, que distingue e define um tipo de identidade ou de “ser” do povo brasileiro. O uso de “costumes” para designar um modo de agir do povo também nos revela o campo de disputa que o termo pode representar no contexto do debate político da época, muito preocupado com a elaboração de uma narrativa capaz de definir os elementos característicos do povo.

Ao longo da cartilha, as lições abordam questões referentes à vida do camponês em torno da família e da comunidade, sua condição de trabalhador rural e a sua inserção na comunidade religiosa, terminando geralmente com perguntas mobilizadoras que buscam propor um debate, atendendo à forma como o MEB costumava trabalhar os conteúdos, colocando o problema a partir de dados da realidade para depois analisá-los - uma estratégia plenamente alinhadas às diretrizes pedagógicas concebidas para o trabalho com as comunidades eclesiais de base (Betto, 1981). É nesse momento final, em que perguntas encerram as lições, que a dimensão do diálogo é resgatada e as pessoas podem conversar sobre a sua própria realidade. No final das lições havia ainda o expediente de usar uma frase, ressaltada como mensagem fundamental a ser transmitida em cada uma das lições:

O camponês é homem da terra.

Êle trabalha a terra.

Êle colhe os frutos da terra.

O camponês tem terra?

Êle tem tudo para cultivar a terra?

Êle tem garantia na colheita?

O camponês tem garantia no trabalho?

O CAMPONÊS É HOMEM DA TERRA

(MEB, 1963b, p. 18)

Destaca-se deste trecho, o modo como a lição aborda de forma direta o trabalho dos camponeses e seu vínculo com a terra, como elemento próprio de sua existência e de sua cultura, por meio do qual garante a sobrevivência de si e dos demais. Uma espécie de modo de ser genuíno e transformador.

Pedro conhece a vida do camponês.

Pedro conhece a luta do operário.

Pedro reconhece o trabalho das mulheres.

Ele vê que muita gente sofre injustiça.

E todos são homens.

São filhos de Deus.

Precisam viver como homens.

Precisam viver como filhos de Deus.

TODOS PRECISAM VIVER COMO HOMENS

(MEB, 1963b, p. 24)

As perguntas mobilizadoras, por sua vez, propõem aos leitores à reflexão sobre a ausência do acesso à terra, já que esta é condição para seu trabalho, e segue chamando à reflexão sobre a ausência de outros direitos que são naturais ao homem: “Pedro está preocupado e pensa: Por que nossa vida é tão dura? Por que morre tanto menino aqui? Por que o povo não tem casa? Por que a gente não aprendeu a ler?” (MEB, 1963b, p. 26).

Pedro voltou esclarecido do treinamento.

Voltou esclarecido de que:

O governo é para todos.

Todo o povo deve participar do governo.

Alguns homens têm de sobra e muitos nada têm.

Alguns ganham demais.

Muitos trabalham e seu trabalho é explorado por outros.

Muita coisa está errada no Brasil.

É preciso mudança completa no Brasil.

É PRECISO MUDANÇA COMPLETA NO BRASIL

(MEB, 1963b, p. 32)

Algumas frases finais não funcionam como perguntas, mas como assertivas que encaminham para uma ação política. Nas lições, que seguem uma espécie de narrativa contínua, como se fossem uma pequena novela contada por capítulos, a história de Pedro e seu amigo Xavier é contada enquanto o estudante vai avançando nos conteúdos da cartilha, como se os educandos e os personagens caminhassem, ambos, em direção a uma conscientização que os leva a atuar de forma decisiva na organização de suas comunidades.

Nas primeiras lições, Pedro se questiona sobre sua vida e, ao fazê-lo, passa a ter a compreensão - a conscientização - acerca dos problemas da vida no campo: “Pedro entendeu ainda outras coisas: O povo ignora que é explorado. O povo ignora seus direitos e deveres. Seus direitos não são respeitados [...]” (MEB, 1963b, p. 34). Além disso, à medida que conversam e participam dos treinamentos, as personagens percebem a importância da organização dos camponeses, o que os levará a abertura de uma escola radiofônica, encampada pelos personagens Xavier e sua esposa, na 18ª lição. O mesmo ocorre com a organização de um sindicato rural, que aparece nas últimas lições, apontando para a importância da organização e da luta dos trabalhadores como caminho necessário para uma efetiva mudança em sua condição de trabalho e vida:

Os camponeses sentem necessidade de união.

Sentem que unidos podem agir.

Seu direito de união é lei.

Pedro e os camponeses querem fundar um sindicato.

Êles sentem os problemas de sua classe.

Querem organizar sua classe.

Sindicato é união.

Sindicato é força.

A união faz a fôrça do sindicato

A UNIÃO FAZ A FÔRÇA DO SINDICATO

(MEB, 1963b, p. 42)

O diálogo com a realidade e com a cultura camponesa, articulando-se no sentido de reconhecê-la, é estratégia para o convite a transformá-la, instando o leitor diretamente à mudança social e política por meio de ações comunitárias diretas - cuja mensagem é reforçada pela trajetória dos personagens da cartilha e pela utilização de nomes próprios, bem como pela inserção de imagens de pessoas, paisagens e cenas do cotidiano sertanejo, conforme mencionado, reforçando a identificação junto ao leitor da cartilha na perspectiva de um diálogo com sua realidade. É no desenrolar dos conteúdos apresentados nas lições que percebemos um arco narrativo que se estrutura em torno não apenas da problematização, mas da resolução de problemas sócio-históricos, articulados da reflexão crítica à ação transformadora - perspectiva fundamental para o modelo de educação de base promovido pelo MEB.

V

A estrutura das lições também é signo de síntese das diferentes orientações ideológicas em disputa - ou em acomodação - no interior do MEB. Se por um lado temos a ênfase na incorporação da cultura popular numa perspectiva revolucionária, de outro, temos um modo de organização bastante estruturado e estratificado que dá indícios de uma forma escolástica de pensar o mundo. A aproximação entre gramática, lógica e retórica é perceptível na estrutura das lições organizadas a partir de um conjunto de proposições que se insinuam como versos - ou como versos que mascaram proposições. Ali onde poderíamos ver exercícios tradicionais de gramática, com lições de conjugação verbal iniciadas por sujeitos pronominais acompanhados de seus respectivos verbos flexionados, os desenvolvedores da cartilha parecem ter visto, pela disposição visual das frases, a possibilidade de encará-los como estrofes de um poema, cuja característica foram buscar na poesia popular nordestina em que os blocos de estrofes muitas vezes são estruturados em conjuntos de seis versos - as sextilhas. Dessa forma, podemos enxergar nessa disposição de sentenças a forma visual dos cordéis nordestinos. Um exercício simples com o verbo “viver”, que na forma tradicional se apresentaria assim:

Eu vivo

Tu vives

Ele vive

Nós vivemos

Vós viveis

Eles vivem

Passa a ser entendido como uma sextilha. Ali onde víamos apenas uma lista de pronomes acompanhados de seus verbos, podemos ver agora, em “Viver é lutar”, proposições aparentadas à versos, criando uma interface de contato entre a linguagem letrada e a cultura popular. Curioso pensar que a forma gramatical de conjugação de versos em manuais de gramática ou dicionários de conjugação, se vistas distraidamente, parecem de fato com as imagens de composição das estrofes organizadas em sextilhas. Isso fica mais claro se observarmos uma sextilha de Patativa do Assaré, um dos poetas mais conhecidos do nordeste, notório não apenas por suas participações em feiras e festejos populares, mas, sobretudo, por sua inserção como recitador em programas de rádio, a principal mídia de massa das classes populares, que seria adotada como veículo de alfabetização pelos educadores do MEB:

Gravador que estás gravando

Aqui, no nosso ambiente,

Tu gravas a minha voz,

O meu verso, o meu repente.

Mas, gravador, tu não gravas

A dor que o meu peito sente!

(Patativa do Assaré, 1979).

O uso da forma cordel não remete, portanto, apenas à literatura do povo: é também a literatura a qual se tem acesso pelo rádio. E a mídia como tema, também é explorada por poetas populares, como Patativa, que no poema apresentado joga com as flexões verbais da segunda e da terceira pessoa do singular, brincando inclusive com o pronome “tu”, pouco utilizado entre os brasileiros, para se referir a um outro inanimado - o gravador - numa estratégia de personificação de um objeto com o qual se dialoga em um monólogo. Nos versos, sujeito e verbo são acompanhados de complementos que dão sentido completo às proposições. Essa estratégia também é adotada nas lições da cartilha, em que cada verso forma uma proposição com sentido completo. Da mesma forma que nas estrofes os verbos se juntam para montar uma unidade de sentido, também nas lições do MEB, cada linha, embora possua significado isoladamente, está articulada com as demais para formar um bloco de sentido.

Ocorre que usar a sextilha pura e simplesmente configuraria um desafio dentro de um esquema silogístico. Nesse sentido há uma preocupação formal que precisa ser resolvida: por compor-se a partir de um número par de proposições, a sextilha não permite a realização da síntese silogística, que requer um número ímpar, de cujos pares contrários se possa extrair uma síntese conclusiva. Uma solução para esse problema seria dividir cada uma das lições em blocos de três versos, montando a estrutura de um silogismo simples - primeira proposição, segunda proposição e conclusão -, mas isso levaria as lições a um distanciamento tanto da forma gramatical consolidada quanto da forma do cordel popular.

Vemos que a forma:

proposição

proposição

conclusão

+

proposição

proposição

conclusão

é diferente de

verso

verso

verso

verso

verso

verso

A saída, consciente ou inconscientemente deliberada, foi optar por pensar a lição inicial partindo da forma fixa da septilha - estrofes de sete versos - também bastante popular nos cordéis escritos e declamados nos interiores sertanejos. Dessa estrutura se pode operar a construção de uma espécie de conclusão geral para cada estrofe-lição, cuja sentença conclusiva torna a se repetir ao final, em letras maiúsculas. Como estrutura, essa parece ser a origem de uma forma didática que se irá variar ao longo de toda a cartilha, combinando uma pedagogia que articula lógica, retórica e dialética.

As lições com sete linhas, emulando as septilhas dos cordéis encontrados em bancas de feiras e a repetição do verso final, entretanto, vão cedendo em rigor - algumas “estrofes” ganham mais versos e a moral da história deixa de repetir exatamente o verso final - mas a estrutura, na qual se encapsula toda uma lógica silogística, se mantém - muito provavelmente importada do pensamento escolástico no qual muitos dos militantes católicos, alguns com passado de seminaristas, foram formados intelectualmente.

As sínteses formais, ideológicas, políticas e, em certo sentido, teológico-metafísicas, se compõem com muito engenho, criando, além disso, uma narrativa que vai do particular para o geral, o que revela aí também um elemento discursivo apoiado na lógica. As lições evoluem seus temas a partir de camadas: partindo do indivíduo, seguem para a família, para a escola e para o sindicato; compondo uma projeção de sociedade em camadas crescentes cujo acúmulo gera complexidade, operando uma espécie de pensamento indutivo em que a sociedade será finalmente vista como um complexo de indivíduos - em que o geral é concluído, e composto, a partir do individual. Uma estratégia de análise que vai se elaborando a fim de se compor uma síntese - numa operação agora de caráter cartesiano.

Além disso, cada camada vai se construindo a partir de uma pedagogia assentada no método do ver-julgar-agir (Betto, 1981), em que a compreensão crítica de mundo visa a construção de um outro mundo pela ação direta do educando que, como indivíduo, cria a sua família, a sua escola e o seu órgão de representação de classe; e que cria - ou revoluciona - a sociedade por meio da construção política e do voto, numa visão dialética de história - de caráter hegeliano-marxista. O que se pretende é inaugurar um movimento que parte da lógica do discurso rumo à ação concreta.

No arco geral das lições, portanto, o objetivo não é apenas poético, lógico, gramático ou meramente metafísico: longe de animar seres inanimados ou revelar o fantástico da vida - como o fazem os poetas populares - o que se pretende é animar os homens por meio do diálogo entre seus próprios pares, para que desencantem a realidade e a transformem por meio da ação criticamente embasada, por meio de uma pedagogia que contém em si elementos reformistas e revolucionários, progressistas e conservadores.

Tudo reunido, temos uma estrutura sofisticada apoiada em formas discursivas populares, que se realiza por meio de uma visão pedagógica de caráter escolástico cujo suporte lógico busca a realização de um projeto político revolucionário através de uma retórica dialética.

VI

Do ponto de vista da realização de suas intenções, cumpre refletir se esse projeto que tem a cartilha como instrumento, pode ser realizado por meio dela. Pela sua forma podemos refletir sobre as dificuldades inerentes às pedagogias de educação de base e seus paradoxos. Até que ponto seus instrumentos utilizados para realizar a educação popular não acabam por impedir a realização desses mesmos objetivos, criando uma relação de dirigismo de caráter autoritário ou colonialista. Frei Betto é quem, justamente, nos chama a atenção para esse desafio posto aos agentes pastorais em sua prática pedagógica junto às comunidades eclesiais de base:

A pastoral popular criou a exigência de ida ao povo. Não foi algo exclusivo dela. Certos grupos políticos e militantes independentes também assumiram a mesma linha de trabalho. Porém esses que, na Igreja, se tornaram animadores das comunidades populares - agentes pastorais - puderam constatar, no contato com as classes populares, o quanto eram colonialistas. Aliás, devo dizer, nós e não eles. Julgávamos o povo pobre coitado, ignorante, enquanto éramos dotados de grandes virtudes acadêmicas, de diplomas, de cursos e de luzes divinas. Pretendíamos ensinar ao povo aquilo que é “bom para o povo”.

Ora, a prática demonstrou que isso é um grande equívoco. Fomos desmascarados pelo próprio povo que, com seu silêncio, assistia ao papel ridículo que nós, agentes de classe média, representávamos. O povo está tão cansado de ser humilhado pelo “saber” e o “poder” da pequena burguesia que ele nem sequer critica. Finge que está aprendendo e até repete nosso vocabulário, uma espécie de dialeto pelo qual aferimos o nível de conscientização dos trabalhadores. Contudo, na hora da ação, ficamos sozinhos no nosso vanguardismo. O povo sabe que a coisa não é por ali, mas a gente não teve paciência em escutá-lo. Portanto, é preciso que nos reeduquemos ao pretender educar as classes populares. É preciso despojarmo-nos das categorias acadêmicas e dessa “erudição” europeizada, cartesianamente destilada em conceitos claros e precisos, como se o real fosse o que existe em nossa cabeça. O real é a vida da lavadeira, do peão, do posseiro, do índio, do operário, do pivete, do ferroviário, do bóia-fria. (Betto, 1981, p. 36-37)

No trabalho pedagógico com “Viver é lutar”, o cuidado com a escuta e a necessidade de despojar-se de uma erudição europeizada e cartesiana talvez precisassem ser redobrados. O caráter diretivo das lições da cartilha carecem de uma mediação dialógica para que suas promessas emancipadoras se efetivem. Como vimos em algumas lições de ‘Viver é lutar”, a conclusão final de cada uma delas visa reforçar uma conclusão a qual se chegaria por conta de um diálogo e não apenas como mero exercício lógico. Isso significa que, na cartilha, a conclusão que deveria ser construída dialogicamente é oferecida como algo pronto, como algo logicamente induzido, e não como uma conquista de estudantes politicamente engajados no exercício da construção de seus próprios saberes. É como se a cartilha quisesse “ensinar ao povo aquilo que é bom para o povo”. É nesse sentido em que há, também aí, uma espécie de falseamento da perspectiva de educação popular genuinamente dialógica.

Acrescenta-se a isso a possibilidade de pensar essas conclusões finais de cada lição não apenas como mero esmero silogístico, mas também como registro discursivo apoiado em formas fabulativas de narrativa popular que terminam sempre com uma “moral da estória”, que geralmente aparece resumida em uma sentença simples de caráter edificante. O que também é problemático, porque nestes casos o que se pretende é inculcar uma moral em vez de debatê-la ou desconstruí-la. Vale lembrar que fábulas com bichos são bastante difundidas na cultura oral nordestina e aparecem frequentemente como temas de cordéis.

Essa forma textual, quando associada às estruturas constitutivas da poesia popular, permitem ainda uma associação dessas linhas finais com o recurso ao mote poético - um verso gerador que é previamente dado ao poeta como desafio para a construção de suas estrofes. O mote é uma sentença que vai ser posicionada obrigatoriamente ao final de cada estrofe. É sobre o mote, e a partir do mote, que os poetas improvisadores realizam os demais versos de suas estrofes, seguindo um rigoroso esquema rítmico numa estrutura de rimas fixas, que os condiciona a terminar suas obras com a sentença do mote exatamente como foi concebida. Embora na poesia popular o mote ocupe visualmente o lugar de uma conclusão, ele é, na verdade, uma premissa inicial. A arte do poeta popular consiste em imaginar um processo dialógico que conduza toda uma estrutura de pensamento expressa pelos demais versos em direção àquele verso inicial - experienciado como conclusão, mas previamente dado. Sem se dar conta, é como se os autores da cartilha tivessem se aprofundado tão intimamente na poesia popular que acabaram por emular suas estratégias de falsificação do processo dialógico.

As conduções lógicas não cessam por aí. Podemos lembrar o que ocorre na primeira lição em que o verbo viver é acompanhado do verbo lutar. Se numa lição tradicional de conjugação veríamos a palavra isolada:

Eu luto

Tu lutas

Ele luta

Nós lutamos

Vós lutais

Eles lutam

Na lição da cartilha, ele compõe uma frase dentro da qual é associado a outros termos. Quando o verbo lutar é associado ao verbo viver, essa aproximação não se dá de forma ingênua. É uma operação de vínculos lógicos produzida para que se crie um entendimento previamente orientado em relação a estes conceitos. A junção de dois verbos também cria um direcionamento lógico que passa a ser trabalhado na chave de uma razão necessária. Quando relacionamos o conceito de viver ao de lutar, estamos produzindo uma interpretação sobre a existência, que não necessariamente trata da vida como ela é: trata-se, portanto, de produzir uma ideologia específica, afastando da experiência de vida um conjunto de outras noções. “Viver é amar”, “viver é festejar”, “viver é rezar” são exemplos de outras possíveis associações lógico-semânticas com as quais se produziria um contorno completamente distinto à ideia de existir.

Em alguns momentos, inclusive, as operações lógicas se sobrepõem às funções gramaticais. No verso “Eu vivo e luto” o sujeito expresso pelo pronome eu exerce uma função de mesmo - ou de tese. No verso seguinte, “Pedro vive e luta”, o sujeito Pedro, que poderia ser expresso pelo pronome ele, no lugar de tu, opera a função lógica de outro - ou de antítese. No terceiro, “O povo vive e luta”, fechando com uma conclusão o pequeno silogismo de base indutiva, temos o povo no lugar do nós, funcionando como um operador geral de fusão dos contrários ou dos diferentes, na função de transcendente - ou de síntese.

Eu vivo e luto - primeira premissa individual

Pedro vive e luta - segunda premissa individual

O povo vive e luta - conclusão geral de base indutiva

Na lição, o pronome em desuso “tu” passa a dar lugar a uma outra estrutura, organizada de forma menos gramatical e mais lógica: se o tu se dá na relação com o outro que é diferente de mim, podemos substituí-lo por alguém que está comigo como marca da diferença. O outro, representado gramaticalmente pelo “tu”, pode então ser substituído, do ponto de vista lógico e dialógico, pelo “ele”. Esse outro que me antagoniza, na verdade possui a chave para que possamos nos perceber como síntese na composição de uma instância mais geral, composta pelo “nós” - ou a sociedade composta por sujeitos individuais diferentes entre si. Eu sou diferente do outro - do tu ou do ele - mas esse outro está comigo, porque na relação lógica é humano como eu - e no limite é, como eu, filho de Deus, o que implica aceitar nossa comunhão: somos a diferença na unidade. É um processo lógico intimamente ancorado numa perspectiva teológica, engenhosamente engendrada em lições de gramática, mas com clara, e muito específica, conotação política.

O tu se substitui pelo Ele, que aparece personificado na figura de Pedro. Da síntese lógica do eu e do outro, é possível compor o Nós, aqui apresentado conceitualmente como «povo». Mais uma vez, no movimento que vai do particular ao geral, ancorado na lógica indutiva, ali onde linguistas veriam um exercício de gramática, alguns intelectuais católicos, provavelmente educados por um pensamento escolástico, viram a possibilidade de um silogismo.

VII

A inserção de membros da esquerda católica na universidade possibilitou a esses militantes um espaço de formação mais abrangente e o contato com teorias e doutrinas inicialmente alheias ao catolicismo, e que foram aos poucos sendo postas em campo em seus espaços de atuação política. Essas doutrinas, por um lado, estavam relacionadas à noção de ideal histórico de Jacques Maritain, voltada para a ideia de que a fé dos cristãos se concretizava numa forma de estar no mundo e que era preciso, além do conhecimento e da reflexão, o engajamento ativo na realidade a ser vivida pessoalmente. Por outro lado, a vivência na universidade também possibilitou o contato com o pensamento marxista, que motivava boa parte da juventude brasileira a orientar sua ação política tendo em vista a promoção de uma radical transformação social do país por meio de uma revolução socialista (Braghini, 2015).

Os militantes envolvidos na criação do MEB e nos primeiros anos de atuação do movimento eram eclesiásticos e católicos leigos que, em maior ou menor grau, estavam ligados a outros movimentos não diretamente relacionados à Igreja Católica e que possuíam uma relação não necessariamente harmoniosa com a hierarquia eclesiástica, em um clero dividido entre aqueles que não viam com bons olhos a militância católica em espaços tidos como politicamente radicais e aqueles que apoiavam essa atuação. Como temos apontado, a Igreja Católica não constituía um todo orgânico, uma vez que em seu interior se correlacionavam uma série de forças e interesses distintos em relação ao trabalho com as camadas populares.

Essa tensão com relação a atuação do MEB nas comunidades esteve presente desde sua fundação, porém, assume contornos mais nítidos à medida que a crise política do país se intensifica diante da “ameaça do comunismo”, no contexto que antecede ao golpe de 1964, mas também após o golpe, quando o governo ditatorial busca consolidar sua hegemonia. Segundo Wagner Teixeira (2008), a continuidade da atuação do MEB ao longo do regime ditatorial se deu não somente devido ao caráter religioso do movimento, mas mais especificamente em virtude da interferência de bispos conservadores ligados à CNBB, que propuseram ao governo militar a reestruturação do movimento por meio de sua descentralização em torno das dioceses locais. Com isso, o grupo mais conservador pretendia tomar para si a direção do movimento e amenizar o conteúdo político radical que, como vimos, estava presente no MEB desde a sua fundação e que se manifesta claramente na produção da cartilha “Viver é lutar”.

O episódio da apreensão, a mando do governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, de cerca de 3000 exemplares da cartilha “Viver é lutar”, em uma gráfica do Rio de Janeiro, meses antes do golpe de 1964, tornou as cartilhas famosas. Na imprensa, a notícia da apreensão das “cartilhas subversivas dos Bispos” (MEB, 1963a, p. 03) foi amplamente divulgada em noticiários de rádio e de TV (Fávero, 2006).

Ao longo dos meses de fevereiro e março de 1964 abriu-se um inquérito junto ao Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no qual foram intimados a depor os funcionários da gráfica onde o material foi apreendido e também os clérigos Dom José Augusto Távora, presidente do MEB, e o Monsenhor Hilário Pandolfo, vice-presidente da CNBB - além de membros das coordenações do MEB. Também se solicitou que fosse enviado ao DOPS o Estatuto Geral do MEB e os trechos das primeiras lições da cartilha “Saber para viver”, que naquele momento estava em fase de elaboração.

Em algumas cartas escritas por monitores que atuavam nas escolas radiofônicas de Pernambuco, relata-se que após esse acontecimento foi dada ordem para que fossem recolhidos os volumes utilizados nas escolas desde o início de 1964:

Eu tenho topado tantas barreiras e buato desta escola, sobre os comonistas, primeiro buato foi o nosso representante daqui de Bôa Vista, em deser-me que as cartilhas eram comonista. Minha escola está tendo pouca frequencia por causa destes buatos, mais eu sempre convensendo os alunos e também a comunidade. Apareceu uma conversa que D. Antonio, tenha sido detido e o Padre Mansoete, também por causa da escola que era comonista e que estas cartilhas iam ser reculhida pelo o exército e os monitores iam ser preso. Nos monitores temos trabalhado há favor desta escola que so quem sabe somos nos, agora esta melhorando mais porque temos esplicado muito de onde nasce esta escola e quem são os dirigentes destes movimentos (Medrado, 1964).

Estou anciosa que você apareça aqui, pois temos coisas sérias a tratar, uma moça veio entregar a Escola que está escola era comunista, são estes casos que precisamos conversar com ela e tem outras dizendo que muita gente estão dando conselho para elas deixarem porque este livro falo no camponez é comunista (Ramos, 1964).

Não estou dando aula desde do dia 18 deste devido aos buato e as cartilhas [...] ajudava a 21 alunos toda noite seguida mas o juiz de direito soube dito talves pelos boateiros da rua que as cartilhas era comunista e ai fui proibida o radio, cartilhas tudo isso esta na casa paroquial recolhida para serem entregue, portando peço manda Joao buscar o radio com todo material e aqui as minha desculpa (Olmeido, 1964).

Esta é para avizar que com ordem do Padre Domingo do Salgueiro as professoras pediu para recolher os livros que são comunista e aqui esta uma notícia que o bispo esta preso, eu estou quase louca tenho mêdo, mais tenho pena de deixar minha escola pois adoro, tenho o maior prazer, os alunos estão satisfeitos mais com esta noticia vão entristecer. Peço que quando receber avize o de devemos fazer pois vou parar até receber avizo, os livros do Salgueiro não foram distribuido pois as professoras e o padre não entregaram dizendo e eram comunista eu já estou como uma pessoa sem juizo pois o povo dizendo e eu não acredito vou parar, hoje mais espero noticias daí. Aqui fico a esperar noticias (Dantas, 1964).

Os escritos das monitoras revelam a tensão causada pela apreensão das cartilhas que, junto com as escolas, passam a ser identificadas como comunistas. O episódio acarretou impactos para as atividades nas escolas radiofônicas, como a evasão dos alunos e o fechamento, ainda que temporário, de algumas delas. O conteúdo dos relatos evidencia também o cenário político nos meios rurais antes do golpe de 1964 e o clima de perseguição política que se instaurou contra os militantes eclesiásticos e leigos, revelados nas palavras das monitoras que dão notícias de prisões e relatos de sentimentos de medo e insegurança vivenciados a partir da apreensão das cartilhas pelos militares:

Quanto aos buatos, sairam muitos. Saiu até que vinham me buscar prêsa mas quanto mais buatos, mais entusiasmo nosso (Costa, 1964).

Para os coordenadores das equipes estaduais, essa associação se dava pela natureza do trabalho do MEB, voltado à promoção da mudança de mentalidades e estruturas e, também, pela falta de costume de alguns bispos, e da sociedade em geral, em assumir a ação de leigos como trabalho religioso. O grupo de coordenadores, por sua vez, afirmava o caráter temporal do MEB e negava qualquer relação que pudesse ser estabelecida entre o movimento e a atuação dos comunistas, declarando que as perseguições sofridas eram derivadas de questões indiretas:

O MEB é considerado subversivo, no Brasil atual, porque sua ação educativa, por si mesma, leva a uma mudança de mentalidades e de estruturas. O fato de atuar no meio rural, onde o problema social é mais agudo e as situações de desigualdade e miséria maiores, exigindo, por isso mesmo, uma mudança mais radical, é que teve como consequência uma reação: das classes favorecidas; de parte do clero não habituada a ver os leigos assumindo, diretamente, um trabalho de Igreja, nem tampouco os valores do Evangelho encarnados, explicitamente, no campo social; da opinião pública, não preparada anteriormente para receber o tipo de trabalho desenvolvido pelo MEB; que levou a identificar a ação do MEB com a dos comunistas, pelo fato de terem eles desenvolvido um trabalho no meio rural, anteriormente ao Movimento de Educação de Base. [...] A maior ou menor intensidade das perseguições e pressões, havidas nos diferentes Estados, foi ocasionada por diferentes motivos, desde os já citados, até questões de política local. Diante da situação existente, no momento, no país e dos problemas havidos com o trabalho do MEB, verifica-se que as estruturas continuam como antes, assim como continuam as mesmas a realidade que motivou e exigiu a criação do MEB de atender as necessidades de aspirações do povo (Movimento de Educação de Base, 1964, p.5).

No documento, os coordenadores manifestam o desacordo que havia entre o grupo de militantes leigos, contrários a proposta da CNBB de descentralização do MEB nas dioceses, e os setores mais conservadores da Igreja. Os coordenadores se colocavam contra a descentralização e a favor da manutenção da unidade nacional do MEB como condição fundamental para que o movimento continuasse de maneira unificada. Os defensores da reestruturação do MEB, por sua vez, defendiam a descentralização como forma de afastar os dirigentes mais radicais, mas também de redimir qualquer relação que pudesse ser estabelecida entre o MEB e o comunismo.

Perante a nova conjuntura política, colocava-se a impossibilidade de manutenção das propostas iniciais que motivaram a criação do MEB. Caso o movimento rompesse a parceria estabelecida com o Ministério da Educação, perderia sua principal fonte de recursos financeiros, o que, aliás, passou a ser tema recorrente após o golpe, devido às discrepâncias entre as verbas orçamentárias destinadas e disponíveis e as efetivamente liberadas. Se optasse pelo embate direto, perderia o direito de continuar exercendo suas atividades e provocaria a intensificação das perseguições por parte do regime a muitos de seus membros, recaindo também sobre os supervisores e os monitores que atuavam nas escolas radiofônicas promovendo a alfabetização e o trabalho de base - o que resultaria na prisão de integrantes e no fechamento de escolas radiofônicas (Teixeira, 2008).

Naquele contexto de instabilidade política em que as atividades do MEB foram de alguma maneira impactadas pelo regime ditatorial, a reestruturação proposta pela CNBB se colocou como a alternativa possível para que o MEB pudesse continuar a desenvolver seu trabalho de educação de base, realizada por meio de acordos que resultaram em processos de acomodação à ditadura. Como tem sido apontado pela historiografia mais recente, a ditadura instaurada naquele momento estabeleceu diferentes níveis de relações com seus opositores que “combinaram diferencialmente o uso da força e as tentativas de legitimação” (Ridenti, 2014, p.30). Devemos nos lembrar que o regime ditatorial jamais se assumiu como antidemocrático, ao contrário, procurou legitimar-se junto a setores expressivos da sociedade como mantenedor da ordem ante a ameaça do comunismo, ainda que fosse em nome de uma “democracia relativa” (Ridenti, 2014).

Dentre os setores com os quais o regime estabeleceu espaços de colaboração estava a Igreja Católica, cujo setor mais conservador vira nos acordos com o regime ditatorial a possibilidade de rearranjos políticos na sociedade e também no interior da própria instituição, afinal, a bandeira anticomunista era comum a ambos. De todo modo, como sabemos, o poder ditatorial que se consolidava a partir dessas alianças não abriu mão de perseguir os grupos de oposição com os quais não poderia estabelecer relações de colaboração. Para estes, restava somente o uso da força.

Assim, em 1965, a CNBB assume a gestão do MEB após a aprovação, no ano anterior, do documento Diretrizes do Monsenhor Tapajós, que promoveu a reestruturação do MEB em torno das dioceses locais e alterou alguns pressupostos metodológicos do movimento por meio de adequações em seu discurso pedagógico. Nesse momento, foram afastados os dirigentes leigos ligados às coordenações nacional e estadual, oriundos dos grupos mais radicais do catolicismo que haviam se engajado no movimento e trabalhado desde a origem na estruturação dos programas educativos (Teixeira, 2008).

Além disso, a reestruturação também levou ao afastamento de militantes que desenvolviam o trabalho de base junto à população, como era o caso dos muitos monitores que foram alvos da perseguição do regime militar por sua atuação nos movimentos de educação de base e cultura popular - e por estarem engajados em outros espaços de ação política como, por exemplo, os sindicatos rurais. Em 1966, o MEB passou por um novo processo de reestruturação que culminou na diminuição das atividades em alguns estados da Região Nordeste e no encerramento de suas atividades em Pernambuco e na Bahia, voltando seu foco de ação para a Região Norte do Brasil.

Outra consequência da reestruturação do MEB, que nos interessa de modo particular, é que nos materiais formativos se abandona o tema da conscientização e de mudança das condições de vida no campo, em decorrência de uma integração social e política, e passa-se a definir a educação popular no âmbito da integração cultural dos indivíduos (Raposo, 1982). De fato, comparações entre as cartilhas “Viver é lutar” e “Mutirão” - que foi publicada em 1965 já nesse momento de acomodação ao regime ditatorial - revelam tratamentos muito diferentes em relação à temática da vida dos camponeses, do acesso à terra e do direito ao trabalho.

Há diferenças também quanto ao papel do homem na mudança de sua condição de vida. “Viver é lutar” possui uma visão crítica em relação à situação dos camponeses e ao papel do Estado que desaparece na cartilha “Mutirão”. Apesar de buscar ou tentar preservar, em seu conteúdo, o diálogo com elementos da cultura popular nordestina - como, por exemplo, o uso de poemas com estrutura semelhante aos cordéis - “Mutirão” apresenta uma visão integradora do homem em relação ao seu meio, que se dá a partir da valorização de uma noção de comunhão forjada através de um viés estritamente religioso.

Em “Mutirão”, aparecem lições que reforçam a “união” e o “cooperativismo” em torno do trabalho, que são apresentados como fatores integradores necessários para a melhoria das condições de vida dos camponeses. Os temas abordam, de um modo geral, a miséria do povo e o direito à terra, considerando a mudança como fruto da organização e união do povo em relação de ajuda mútua de seus indivíduos, mas sem aludir ao dever do Estado de garantir ao povo direitos básicos. O nome da cartilha, “Mutirão”, sugere o novo tom que rege seu pressuposto político de fomentar a associação solidária em benefício do bem comum. A mudança do instrumento pedagógico marca a reorientação política do movimento, em tudo motivada pelo contexto político nacional.

A análise dos materiais didáticos do MEB, e das demais fontes documentais, nos trazem indícios para que possamos refletir, entre outros aspectos, sobre o potencial da educação como ato político revolucionário, sobretudo, no contexto de um estado autoritário que buscou minar as experiências de educação popular. Esse exame nos ajuda também a redimensionar o nosso olhar sobre as cartilhas como fontes potenciais para discussões nos campos da história da educação e do currículo, pois representam em seus conteúdos as orientações político-pedagógicas de movimentos educacionais. Esses materiais, muitas vezes vistos do ponto de vista das tecnologias educacionais, de forma preconceituosa ou ambígua, como ideologizantes, ingênuos, arcaicos ou tecnicamente ultrapassados, têm tido seu valor como fonte cada vez mais evidenciado pela historiografia da educação. Ademais, vemos que os materiais didáticos podem revelar-se, a partir de uma dada perspectiva pedagógica, como um instrumento de luta social e política - com cartilhas em punho, talvez possamos nos perguntar, ainda hoje, sobre o potencial subversivo e ameaçador de um certo tipo de prática educativa.

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3As fontes documentais que foram utilizadas no texto estão sob a guarda do Centro de Documentação e Informação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CEDIC-PUC/SP).

Recebido: 17 de Setembro de 2020; Aceito: 12 de Janeiro de 2021

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