INTRODUÇÃO
Utopia não é quimera. É sonhar desperto e imaginar que o novo é possível a despeito de todas as probabilidades contrárias. Quem brinca de utopias se move de uma profunda crítica ao tempo presente em direção à bagunça criativa de projetar outras vidas, modelos econômicos, escolas, histórias (COLOMBO, 2009). Imaginar utopias permite que o vento da esperança espalhe tudo que é certo, determinado, seguro, todas as diretrizes, todos os pontos finais (JACOBY, 2007). Criar utopias abre espaço para o que ainda não é, mas pode ser (BLOCH, 2005), para a coragem de iniciar o novo no encontro com os demais (ARENDT, 2009).
Utopia não é substantivo comum, estado. Se o caminho já existe, não é utopia. Ela é ação, sempre móvel, é narração. Pode ser refeita, transformada, negada, sem compromisso com regras pré-definidas. Quem quiser produzir um futuro fechado e impô-lo para outros, não faz utopia. Projeto de futuro que implica sofrimento, exploração, destruição, morte, injustiça, tampouco é utopia (QUARTA, 2009). Utopia é verbo, movimento. Inútil e imprescindível.
Esses movimentos são instigantes para pensar a formação de professores de História em suas relações com a política, tema explorado pela autora e por parceiros em uma série de pesquisas anteriores, as quais incluíram entrevistas extensas e observações de aulas com docentes brasileiros e espanhóis (PACIEVITCH, 2014), além de questionários fechados respondidos por professores brasileiros, argentinos, chilenos, paraguaios e uruguaios (PACIEVITCH; CERRI, 2016). Os resultados dessas investigações permitiram levantar alguns pressupostos: primeiro, não se confirma o estereótipo do professor de História marxista, revolucionário, socialista ou anarquista. Tudo isso pode fazer parte de utopias docentes, mas não as define. Em segundo lugar, as utopias políticas e educacionais expressas pelos professores de História tratam, em geral, de ser um bom professor, que ensina bem e que ensina conteúdos que ampliam a visão de mundo e contribuem para as vidas dos estudantes. É útil sem ser utilitarista. O maior sonho é que o mundo seja justo, que as pessoas tenham vida digna e que a escola seja efetivamente pública, universal, gratuita, laica, emancipadora e de boa qualidade: algo próximo aos ideais iluministas, notadamente expressos em projetos revolucionários franceses (PIOZZI, 2008). Por fim, as tensões entre teoria e prática, educação e história, conteúdo e método, repetidas no discurso acadêmico sobre formação de professores de História, perdem relevância nos testemunhos docentes justamente quando o foco do debate são as utopias. Olhar para essas dicotomias por meio do sonho implode as barreiras e permite expressar a profissão de forma sensível e potente para a criação do novo.
A aproximação com projetos educacionais iluministas motivou o interesse em escutar mais atentamente a professores, pesquisadores e associações profissionais francesas, o que se fez em pesquisa realizada em 2016. O presente artigo é um recorte dessa investigação e tem por objetivo analisar a presença de utopias políticas e educacionais em editoriais de revistas publicadas por duas associações docentes francesas entre 1998 e 2016: Historiens & Géographes, de responsabilidade da Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie de l’Enseignement Publique (APHG) e Les Clionautes, pertencente à associação homônima. Ambas as associações representam apenas docentes da educação básica. Os editoriais apresentam convicções e bandeiras de luta pela qual se mobilizariam docentes de histoire-géographie na França, mesclando elementos de militância pelo estatuto profissional, referenciais acadêmicos e concepções de educação e de ensino de história. Esse debate é pertinente para os campos da formação de professores e dos impressos em ensino de história e educação, ao abordar questões como neutralidade no ensino, desvalorização social, hierarquização de saberes, dicotomia entre ensino e pesquisa, disputas de memória, visão redentora sobre a educação, entre outros (NUNES, 2011; PROST, 2013; SILVA, 2014; PINHEIRO, 2015).
A metodologia utilizada para análise dos editoriais foi a seguinte: leitura na íntegra de todos os editoriais localizados entre 1998 e 2016, seguida de seleção daqueles que tratassem de formação de professores de História ou que, de alguma maneira, expressassem utopias político-educacionais sobre o tema. Os trechos que denotassem esta presença (a partir da compreensão de utopia político-educacional apresentada no início desse artigo) foram transcritos. Três categorias emergiram dos trechos e orientam as análises a seguir: a) historiografia, pedagogia e intelectualidade docente; b) conflitos entre docentes, políticos e mídia; c) didática e papel da história no futuro dos estudantes. Pesquisas com outros interesses certamente detectariam outros temas, tais como a análise de propostas curriculares, reflexões sobre as relações entre memória e história e críticas a políticas educacionais em geral. Para os fins deste artigo, o foco principal é no terceiro tema: objetivos do ensino de história consequentes para a formulação de responsabilidades docentes.
A busca foi realizada na página do arquivo da Revista Historiens & Géographes2. A partir de 2011, foram utilizados os textos disponibilizados em um arquivo de compilação dos editoriais da revista que, embora incompleto, ofereceu um panorama do teor dos editoriais propostos pela revista do fim da década de 1990 até 2016. Porém, apenas a partir de 1998 os editoriais estão disponíveis na íntegra. Em relação à Les Clionautes, apesar de a associação existir desde 1998, foram localizados editoriais apenas dos anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016, dos quais nove são citados neste texto. Esta foi outra razão pela qual não se retrocedeu na análise dos editoriais da APHG, tendo em vista a dificuldade em cotejar com Les Clionautes3.
Nas seções seguintes, apresenta-se cada uma das revistas e exploram-se trechos dos editoriais que têm potencial para dialogar com os pressupostos elencados para essa argumentação. A ordem cronológica em que os editoriais foram publicados não é o mais relevante aqui. Importa percorrer os enunciados e questionar como eles produzem lugares, sujeitos e relações na formação de professores de História, principalmente em suas dimensões políticas (FOUCAULT, 2013). Ao final, pretende-se discutir a pertinência de escutar as vozes de associações docentes francesas. A intenção é manter um estado de abertura para outras possibilidades de debate coletivo, em que o pedagógico, o historiográfico e o político não permaneçam estanques, muito menos em competição e/ou relação hierárquica.
HISTORIENS & GÉOGRAPHES
A Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie de l’Enseignement Publique (APHG) foi fundada em 1910 e agrupa mais de 9 mil associados. Seu objetivo é defender os interesses e a liberdade de ensinar histoire-géographie e enseignement moral et civique (EMC)4. A APHG é tida como porta-voz das inquietudes dos professores de história perante as modificações a que eles assistem nos programas oficiais e, principalmente, em sala de aula (GARCIA; LEDUC, 2003).
Talvez a principal marca dos editoriais analisados tenha sido a combatividade. Embora não exista polarização política partidária, sempre que a associação considera que seus interesses estão sob ataque, medidas de defesa são tomadas, tais como a solicitação de audiências com autoridades e, principalmente, o apelo à mobilização dos membros. Apesar de alguns editoriais se referirem a movimentos sociais tais como dos Indignados5, não se notou nenhuma nota de apoio a nenhum tipo de associação, sindicato, grupo em greve etc. Os associados são conclamados a apoiar historiadores que seriam processados por supostamente ofenderem a memória de certos grupos. Qualquer movimento que constranja o trabalho historiográfico (como, por exemplo, leis memorialistas) é rechaçado em nome da verdade e da ciência histórica. Para se defender das acusações de que a História nacional francesa perpetua o racismo, a xenofobia e a colonialidade, levanta-se a bandeira da neutralidade. Para a Historiens & Géographes, a aula de História não precisa acolher demandas de movimentos sociais nem comemorações memorialísticas: cabe à historiografia atualizar-se. Por consequência do avanço historiográfico, essas questões aparecerão na escola. Essa postura abre espaço a críticas de corporativismo e de recusa em negociar com a sociedade, ao que a Associação responde que utilizam os mesmos princípios que o historiador acadêmico em todos os seus posicionamentos públicos.
Assim, predomina na Historiens & Géographes a identificação com historiadores cientistas, muito mais do que como educadores ou pedagogos. Aliás, a Pedagogia é outra fonte de ataques contra a qual precisariam se resguardar. Se, por um lado, os professores devem cuidar para não se tornarem militantes de uma “causa”, de uma “comunidade”, de um “partido político” (MARCONIS, 2005, p. 54), de outro não deveriam se render às inovações pedagógicas que retiram a autoridade de transmitir a História Francesa para todos os estudantes, independente de origem, sexo, cor ou classe. Para a revista, manter o ensino como transmissão - principalmente verbal e escrita - de verdades históricas dominadas pelo professor é essencial para que a educação seja democrática. As inovações pedagógicas seriam responsáveis por aligeirar a cultura geral dos estudantes e, assim, desagregar o vivre ensemble da República. Eventualmente, porém, os editoriais reconhecem algumas demandas sociais, mas à sua moda.
Ajudar todos os alunos a compreender a complexidade do mundo, sua diversidade, seu passado, as questões e conflitos do tempo presente, responde a uma missão maior da escola e a uma intensa demanda social, que se dirige notadamente aos professores de história e de geografia. Essa missão supõe, da parte dos professores, importantes competências científicas e pedagógicas, um olhar crítico permanente e um cuidado constante com a tolerância. Abandonar essa missão significaria se render a grupos de pressão de diversos tipos, desde as «autoridades» políticas ou religiosas [...], sempre prontas a desacreditar o trabalho dos professores, sua rotina, o arcaísmo dos seus métodos [...] sua recusa a se abrir às «realidades da sociedade», seja aquela da empresa, da «religião»... Nesses domínios eles são, ai de nós, auxiliados pelos pedagogos cujo olhar crítico, necessário, acaba por ser instrumentalizado. [...] Bela ocasião para os poderes políticos compensarem a diminuição dos horários de aulas e de recursos. (MARCONIS, 2006c, p. 62)6.
Marconis reconhece que há temas novos que precisam ser ensinados, mas os professores podem fazê-lo sem a interferência de atividades prontas oferecidas por instituições alheias à ciência acadêmica. E o fazem justamente porque contam com uma formação científica e pedagógica rigorosa fornecida pela Universidade e pelos organismos públicos de pesquisa de alto nível (MARCONIS, 2006c, p.62). O Editorial conclama: “que a escola conceda aos alunos uma formação científica de alto nível, que essa formação ensine a refletir sobre as relações complexas entre as sociedades e seu meio-ambiente, a fim de que eles se tornem capazes de agir como cidadãos livres e de escolher se engajar ao serviço de uma ou outra causa [...]” (MARCONIS, 2006c, p.63)7.
A citação demonstra a crença no poder do conhecimento para despertar a compreensão do mundo e proporcionar a adesão livre às causas que cada um considera válidas, recusando que organizações com discurso militante tenham espaço aberto na escola para substituir o próprio discurso docente, ou transmitir, subliminarmente, a mensagem de que a ciência não é capaz de provocar o engajamento necessário. Em julho/agosto de 2015, o presidente convoca todos a difundir e a discutir uma lista, formulada a partir de uma consulta aos membros, sobre os objetivos do professor de história.
Transmitir saberes úteis e seus métodos,
Manter os alunos abertos ao mundo e ativos, e manter os professores inventivos,
Suscitar o interesse dos alunos a partir de seu lugar no mundo,
Ser um decifrador do mundo, passado e atual,
Tornar o aluno ativo, mobilizando-o para o trabalho com documentos,
Valorizar o narrativo,
Formar cidadãos,
Desenvolver a sensibilidade dos alunos às realidades do mundo em que eles vivem. (BENOIT, 2015c, p. 3)8
A principal luta, para a APHG, é manter a identidade do professor como responsável por transmitir conhecimentos e métodos da história e da geografia e jamais render-se à identidade de animador cultural. Parece ser difícil aceitar que o perfil dos estudantes se modificou e que isso transforma - independente do que cada um deseje, individualmente - as formas de ensinar e o próprio conteúdo histórico. Ou seja, apesar de valorizarem o potencial do pensar historicamente para a tolerância e vida democrática, sentem dificuldade em submeter sua própria profissão a um olhar histórico.
No editorial assinado por Marconis de maio/junho de 2000, encontra-se uma síntese do que propõe a APHG para o ensino de histoire-géographie: a centralidade da História e a adição de perspectivas ditas inovadoras (como as Tecnologias de Informação e Comunicação). Entretanto, falta o enfrentamento dos desafios vividos pelos docentes no dia a dia: a diversidade entre os estudantes e a falta de sentido de alguns conhecimentos históricos - aspecto que é mais enfrentado por Les Clionautes.
Estreitamente associadas, a história e a geografia devem contribuir essencialmente à formação dos homens e dos cidadãos, fornecendo-lhes conhecimentos e métodos indispensáveis para viver em sociedade, agir, exercer suas responsabilidades. Tudo isso com consciência e liberdade, a partir de uma reflexão sólida e serena, ancorada no tempo e no espaço. Nessa perspectiva, o ensino da história e da geografia deve ser garantido ao conjunto de alunos, da escola elementar ao baccalauréat, por meio de professores competentes e bem formados, com base em currículos periodicamente revisados em função dos avanços da pesquisa científica e pedagógica, da demanda social, com carga horária suficiente para um trabalho sério, eficaz e atraente, preocupado em aproveitar as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Com essas bases, tudo é possível. (MARCONIS, 2000, p. 15)9
A última afirmação é temerária, pois ignora as culturas juvenis e incertezas da sala de aula e arrisca responsabilizar os docentes por tudo o que não funcionar, caso as bases materiais sejam garantidas. Ainda, mantém o conhecimento disciplinar como principal personagem do ensino e da aprendizagem. O editorial de outubro/novembro de 2007 reforça o posicionamento da APHG perante as políticas de memória e de comemoração que se fazem inserir nas escolas.
A comemoração pública não é o mesmo que a história professada na escola pública.
A Memória não é a História, elas são, ao mesmo tempo, distintas e inseparáveis, com inevitáveis sobreposições em zonas de conexão.
Aos poderes públicos as políticas da Memória.
Aos professores de História os conteúdos da história ensinada. (PEYROT, 2007, p. 85)10
Perante tais princípios, a responsabilidade docente é fácil de discernir.
O professor, de sua parte, está tensionado entre dois registros. Por sua formação, conhece a importância da História científica. Inserido na sociedade, ele não pode ignorar o primeiro registro, o da Memória. Como consequência, ele acompanha a comemoração, ele pode se servir dela como um gancho para a sua aula. Ele inscreve a comemoração num contexto, esclarece-a, completa-a e, ao completá-la, a corrige. (PEYROT, 2007, p. 85)11
Assim, a APHG luta pela autonomia docente: “[...] Nós queremos a liberdade de pesquisar e dizer o verdadeiro da História” (PEYROT, 2007, p. 86, grifos no original)12. Autonomia fundamentada no profundo conhecimento da ciência histórica que garante a transmissão da verdade para os estudantes. O poder público pode e deve construir os programas, mas jamais interferir na forma como cada docente ensina. O mesmo se expressa no editorial de julho/agosto de 2011: “enquanto Historiadores ou Geógrafos, nós somos os representantes de uma cultural geral, por muito tempo negligenciada, e que é hoje reivindicada em todas as instâncias da vida profissional” (BENOIT, 2011a, p. 13)13.
Em maio de 2012, o editorial apela a professores e diretores, ao ministério e aos pais, que lutem para garantir o direito de estudar histoire-géographie nas terminales de lycées voltadas para as ciências. O texto lembra que esta é uma decisão citoyenne e não burocrática (BENOIT, 2012a, p. 8). A mesma luta segue no editorial de outubro/novembro de 2012, em que se reforça o papel utópico do ensino de história:
[ ...] Ouso dizer que um futuro engenheiro, banqueiro, membro de uma empresa, médico, advogado ou economista necessita imperativamente de uma cultura civilizatória, geopolítica e memorialista que a História e a Geografia fornecem. [...] A APHG, desde sua criação, sempre esteve aberta para que todos os jovens, mesmo no ensino profissionalizante, recebessem o mesmo ensino em História e em Geografia, base do vivre ensemble republicano. Para ser cidadão do mundo no qual ele vai evoluir, o aluno [...] necessita de conhecimentos históricos e geográficos que abrem o espírito, oferecem espaço para a reflexão e formam a tolerância. (BENOIT, 2012b, p. 3)14
O editorial dirige-se ainda ao coletivo Aggiornamento Hist-Géo15 e defende-se de acusações de conservadorismo e corporativismo. Apesar disso, no editorial de fevereiro de 2014, pela primeira vez o autor apela para uma intervenção direta contra problemas sociais relevantes: “com saberes sólidos e carga horária decente, a História e a Geografia formam uma barreira contra o racismo e o antissemitismo” (BENOIT, 2014c, p. 2)16. Seriam sinais de um aggiornamento da APHG?
Entretanto, nos editoriais seguintes, reflexões sobre racismo ou outros tipos de discriminação não aparecem. Diante das inúmeras comemorações impostas à escola, o editorial de julho/agosto de 2014 reforça que a responsabilidade de transmitir os valores da República é dos professores de história.
[...] quem, na escola, ensino os jovens franceses como foi construída a República, quais foram os combates feitos contra seus opositores e seus invasores, como se forjou a nação, como se formou o povo francês, o que significa o lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mas também a laicidade? São aqueles e aquelas que são os vetores desses saberes: os professores de História e de Geografia! (BENOIT, 2014a, p. 2)17
O editorial ainda afirma que a história e a geografia, sozinhas, não conseguem cumprir o objetivo de promover a tolerância, mas que ele não ficará mais concreto reduzindo a carga horária dessas disciplinas (BENOIT, 2014a). Em maio/junho de 2015, a APHG defende-se novamente de acusações de conservadorismo, replicando que a escola que exclui e prejudica não é a escola tradicional, mas a que se nega a difundir a cultura (BENOIT, 2015a).
Esse panorama sobre a Historiens & Géographes demonstra que as relações entre política e formação de professores de História não podem se resumir à localização partidária ou ideológica, embora tal baliza seja necessária, tendo em vista a relação com os argumentos expostos nas políticas públicas e na mídia. O foco está na forma como se compreendem o saber, o conhecimento científico e o papel da instrução e da educação (especificamente em História) na transformação da sociedade. No caso da APHG, prevalece a defesa do conhecimento e dos métodos da historiografia como ferramentas de formação do cidadão e de sua integração na sociedade. Acusados de defender uma postura elitista, a associação rebate confiando que o dever da escola é garantir que todos tenham acesso à ciência histórica. Por entenderem que a ciência, por si só, exerce autocrítica e renovação, ela responderia às demandas sociais sem necessidade de pressão externa. Os jovens devem aceitar o que a escola sempre ofereceu, já que inovações didáticas retirariam a autoridade docente e prejudicariam a aprendizagem.
Esses editoriais expressam misturas entre política, história e pedagogia, envolvendo as políticas públicas educacionais e a militância associativa. Apesar de a Historiens & Géographes considerar seus propósitos representantivos do conjunto de professores de histoire-géographie franceses, constataram-se outras perspectivas nos editoriais da associação Les Clionautes, explorados na próxima seção.
LES CLIONAUTES
Segundo sua página oficial, Les Clionautes é uma associação de cultura profissional criada para se engajar nos debates públicos sobre ensino de histoire-géographie e EMC, bem como produzir e divulgar conhecimentos sobre a prática de ensino dessas disciplinas. Ainda segundo a página, os editoriais representam a opinião de quem os assina e não uma linha de pensamento única da associação18. Quase todos os editoriais são assinados pelo presidente, Bruno Modica. A técnica utilizada para a seleção dos editoriais foi a mesma para a seção anterior: leitura na íntegra de todos os editoriais, separando aqueles que mencionassem os objetivos de Les Clionautes, os significados utópicos ao ensino e, consequentemente, as responsabilidades docentes e os posicionamentos sobre formação de professores.
Na sequência, é apresentado um panorama dos editoriais, destacando os contrastes entre o posicionamento de cada revista. Em seguida, analisam-se trechos que explicitam utopias político-educacionais e concepções sobre as responsabilidades docentes, na visão dos que assinam tais editoriais. Devido ao curto intervalo de editoriais encontrados e por ser o mesmo presidente assinando quase todos eles, não é possível constatar diferenças expressivas nos posicionamentos de um período a outro. Entretanto, é possível contrastar as opiniões quanto às formas de expressão escolhidas pelos Clionautes e por Historiens & Géographes sobre os mesmos assuntos. Tal fato contribui para a crítica e para nuançar os pontos de vista dicotômicos ou excludentes que se delinearam na seção anterior.
Assim como a APHG, Les Clionautes demonstra ciência dos ataques que recebem por parte da mídia e se ressentem das críticas - que consideram infundadas - sobre o elitismo ou a má-vontade dos professores. Entretanto, a posição dos Clionautes é a de evitar classificações estanques, reconhecendo-se como grupo de professores que necessitam tanto da abordagem disciplinar quanto da pedagógica. A abordagem disciplinar tem leve preponderância, mas não há uma hierarquização entre ambas. Nota-se a busca de pontos positivos e negativos, que seriam constatados não apenas pela reflexão acadêmica, mas pelo fato de os associados serem professores em efetiva atividade na escola. Essa é uma diferença relevante para com a Historiens & Géographes.
O objetivo do grupo não se resume a escrever e publicar as críticas, mas em fazer proposições, que estão quase sempre anexas aos editoriais e que seriam objeto de intensos debates na lista de discussão da associação. Dessa maneira, a imagem que Les Clionautes pretende transmitir é a de um grupo com perspectivas teórico-metodológicas e ideológicas abertas e desejoso de diálogo propositivo, buscando afastar-se de sectarismos. Os editoriais não mencionam com qual outra associação estariam se comparando.
Essa busca de um alinhamento entre reflexão teórica, engajamento nos debates públicos e valorização da experiência docente, direciona as opiniões enunciadas nos editoriais sobre a formação e o recrutamento de professores, pois, mesmo que sutilmente, são mencionados os problemas discutidos pela Historiens & Géographes, tais como as reformas curriculares, a precarização do trabalho docente e os concursos. Entretanto, a visão de Les Clionautes é firme nos princípios de defesa da especificidade dos conteúdos disciplinares, mas sem tabus. Evitar as dicotomias e as verdades absolutas sem abrir mão de princípios básicos, eis o ponto de partida essencial das argumentações (raras) dos editoriais sobre a formação de professores.
Foi possível notar o posicionamento de Les Clionautes, em alguns editoriais, contra o racismo, a xenofobia e a islamofobia, notadamente quando história ou memória são manipuladas para fomentar esse tipo de discriminação. Mas a principal bandeira da associação são os valores da República Francesa, bem como do conhecimento e da razão para ampliar as visões de mundo dos jovens. Para cada uma dessas bandeiras correspondem, quase sempre, enunciados sobre a responsabilidade docente.
O primeiro tema - e o mais recorrente - é a construção de pensamento crítico e da capacidade de se localizar no mundo e de tomar decisões. As palavras destacadas na citação a seguir ecoam os questionamentos sobre a mídia, o pensamento crítico e a prudência na construção de opiniões.
É nesse terreno que nós devemos aparecer como referências para nossos alunos de uma certa ética em matéria de acesso e apreciação da informação. [...] Esse papel deve conduzir a uma reflexão autônoma, seja baseada sobre argumentos, sobre fontes verificadas, e finalmente a favorecer o pertencimento de todos à «coisa pública», à República, em resumo. (MODICA, abr. 2013, p. 2)19
A possibilidade de interferir na opinião pública, de criticar a instrumentalização da história e da memória, de se posicionar perante o que dizem os universitários e os militantes é um privilégio das disciplinas de histoire-géographie e EMC. Segundo Modica, sua maior força e também seu maior desafio (maio 2013, p. 2-3). Trata-se do lien citoyen, evocado para justificar argumentos e recuperado diversas vezes nos editoriais ao longo do tempo.
Exemplos concretos sobre o papel que as disciplinas podem cumprir perante os desafios atuais são retirados da vivência dos editorialistas, embora predominem os enunciados ditos como lemas ou como apelos: “é porque nós damos a descobrir e a ler o mundo, tanto aquele do passado como o de hoje, para construir o mundo de amanhã, que nós dizemos, simplesmente, a uns como a outros, atores da comunicação, tomadores de decisão, formadores de opinião, escutem-nos!” (MODICA; STEVENOT, maio 2015, p. 2, grifos originais)20. E ainda:
Constitutivas da formação do cidadão, a história e a geografia são marcos indispensáveis que permitem construir um futuro. [...] Em todos os níveis de ensino nós defendemos os conteúdos obrigatórios e adaptados, a pesquisa de excelência dentro do respeito aos valores fundadores da escola republicana. (MODICA, dez. 2013, p. 1)21
Mas os mais reveladores são os baseados em exemplos concretos, neste caso em que o presidente Bruno Modica comenta um tweet publicado pelo então prefeito da cidade de Béziers.
Fonte: mensagem na rede social Twitter, publicada pelo então prefeito de Béziers, em 30 de outubro de 2015. Disponível em: https://is.gd/urrlNn. Acesso em: 5 nov. 2020.
Ao invés de simplesmente reprovar a posição do prefeito, o editorial combina ironia, humor e profissionalismo, verificando quais ligações poderiam ser feitas entre a publicação e o programa oficial das disciplinas histoire-géographie e EMC. Em seguida, o autor apresenta uma citação do currículo oficial e sugestões de trabalho. Dessa forma, fica explícita a crítica sobre a opinião do prefeito e a denúncia da intolerância e do racismo, sem deixar de lado o métier docente. Em 2015, quando dos atentados de janeiro e de dezembro, os editoriais clamam pelo engajamento dos docentes aos valores republicanos e laicos, tomando o cuidado de não cair na generalização sobre os culpados, através, novamente, de exemplos vindos da sala de aula ou da historiografia.
É uma provação, não vamos esconder. O último atento mais mortífero em solo francês (28 vítimas) foi imputado aos assassinos da OAS que acreditavam defender o ocidente cristão.23 O presente ataque parece ligado ao fundamentalismo que sequestra a mensagem de paz e de amor de um dos grandes monoteísmos. Nos dois casos os assassinos demonstram um desprezo total sobre a vida humana. (MODICA, jan. 2015, p.3 - nota original).24
Nós, professores de histoire-géographie, conhecemos a situação catastrófica no Oriente Médio e fazemos referência constante a isso nas nossas aulas [...], devemos mais uma vez oferecer aos nossos jovens uma compreensão e um recuo salutares diante dos fatos de uma amplitude emocional sem precedentes para eles. Muitos são os mortos que não tinham mais do que a idade de nossos alunos. E descobrimos, conforme a investigação avança, que alguns dos assassinos eram também bastante jovens.
Devemos responder suas questões, e respondê-las com humanidade, mas também com toda autoridade científica que, entre outros, Les Clionautes contribuem para reforçar os debates e as proposições, mas também para velar pela cientificidade das nossas disciplinas ensinadas no mundo da pesquisa e do ensino. (LE COMITÉ ÉDITORIAL DES CLIONAUTES, nov. 2015, p .1)25
A última citação demonstra o apego às opiniões e aos interesses dos estudantes, algo do que os docentes não podem se afastar e a que devem ser empáticos. Entretanto, seu papel não é o de ouvir como psicólogos, mas de ensiná-los a analisar todos os fatores, com uso do conhecimento e do método histórico. Alguns meses mais tarde, confrontados com uma publicação em um jornal fundamentalista, o espírito de combate e de guerra laica26, com as armas do conhecimento, permanece. Junto ao teor combativo do editorial, destaque-se o apreço à laicidade como valor que não exclui, mas sim acolhe a todos por ser universal. As nuances na compreensão dos valores da República fazem parte das reflexões dos professores participantes desta pesquisa e constituem pontos de contraste entre as entrevistas, os editoriais e a legislação educacional, principalmente entre os testemunhos docentes e o discurso oficial. Nesse sentido, o valor cidadão do conhecimento histórico e dos valores da República, bem como o combate a todo tipo de preconceito desembocam na enunciação das responsabilidades docentes, que devem ser sempre nuançadas com críticas à formação e às condições de trabalho.
Veber, que assina alguns editoriais, reconhece a responsabilização dos docentes e procura equilibrar as diferentes exigências, mostrando a preponderância do conhecimento - dominado pelo professor - na resolução de problemas sociais mais amplos. Ele retoma os objetivos pelos quais a escola republicana francesa foi fundada por Jules Ferry no século XIX e que seriam ainda os mesmos, apenas mais estendidos. Reconhece que os desafios atuais são diferentes, porém defende que a escola não seja rotulada como excludente, mas vista como uma das grandes incubadoras de mudanças. Os professores de História já estariam na vanguarda dessas mudanças (VEBER, out. 2014).
Para finalizar, Modica (set.2015), novamente respondendo a posicionamentos xenófobos por parte da prefeitura de Béziers, sintetiza o desafio e a responsabilidade do professor de histoire-géographie e EMC diante tanto dos alunos de carne e osso quanto dos saberes da história:
[...] em Béziers, eu serei ao mesmo tempo um avaliador dos conhecimentos e portador dos valores morais e cívicos que fundam nosso pacto republicano. E, uma vez mais, Kevin e Khaled, Özul e Catarina, Pierre, Isabelle e Charles-Henri estarão juntos, nos bancos da escola da República, e poderão adquirir as ferramentas de conhecimento e de reflexão crítica que farão deles atores do seu destino... (MODICA, set. 2015, p. 4)27
Não é pelo discurso ativista nem pela memorização: a revolução - humanista, do saber - acontece cada dia na escola pelas relações entre as vidas dos jovens, o conhecimento e os futuros possíveis. Esses jovens não são apresentados aqui de forma essencialista, como se não tivessem história, pertencimento étnico-racial, sexo, apenas futuros cidadãos da República. São - eis a diferença mais importante em relação à Historiens & Géographes - pessoas com perspectivas de vida muito distintas, que precisam ser acolhidas e ter oportunidades para manter e recriar a nação francesa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: BRINCAR DE UTOPIAS E ENSINAR HISTÓRIA
De um lado, a revista Historiens & Géographes apresenta um caráter combativo e a defesa intransigente do professor como um sábio que transmite conhecimentos científicos, cuja formação deve ser pautada primordialmente pela ciência histórica. Assim, a responsabilidade docente é, fundamentalmente, transmitir conhecimentos historiográficos e seus métodos. A construção da cidadania, a constância dos valores republicanos e a capacidade de tomar decisões racionais são consequências da transmissão de conhecimentos. A defesa dos interesses dos professores está em primeiro lugar, diante dos ataques vindos do ministério e das mídias.
Os editoriais de Les Clionautes evitam prender-se a perspectivas fechadas. Embora a ciência histórica seja um valor também para essa associação, a formação pedagógica e didática é relevante quase na mesma medida. Propõe-se sua inserção em etapas anteriores ao concurso público e critica-se a noção de que toda aprendizagem profissional só tem valor quando feita em contato com o terrain, valorizando, assim, a produção de conhecimento em didática e nas ciências da educação. Os ideais democráticos e republicanos e uma perspectiva humanista sobre o ensino de história são recorrentes, conformando utopias político-educacionais sobre o ensino de história e a formação de professores sensíveis à vida da sala de aula.
Utopias político-educacionais sobre o ensino de história estão presentes nos editoriais das duas associações, bem como o estabelecimento de responsabilidades docentes. Porém, no caso da Historiens & Géographes, predomina uma postura de desconfiança, quiçá ressentida, diante do incerto e do caótico que a utopia movimenta. Ao recusarem o encontro com o político, os editoriais parecem recuar diante da janela aberta pela utopia, refugiando-se no roman national (CITRON, 1987) e no ensino transmissivo. Fogem da utopia e erguem muros entre a história e o ensino, negando a potência da vida da sala de aula e se agarrando a uma pretensa autoridade científica cada vez menos reconhecida socialmente. Já em Les Clionautes, a perspectiva humanista sobre o ensino e o professor de história é uma recorrência importante, em que as tensões entre política, historiografia e didática se mesclam na busca de sentidos para a profissão e em significados para a militância - seja na sala de aula, seja na associação, seja nos embates públicos em torno da história e da memória.
Dirigir o olhar para a França, em especial para essas duas associações, permitiu evidenciar o quanto o foco nas utopias torna - se não irrelevantes - pouco determinantes as dicotomias entre história e ensino. Quando professores de História são provocados a falar sobre seus sonhos, perspectivas e responsabilidades profissionais, a separação entre o “ensinar” e o “saber história” pode se desmanchar. Dar aula de história não é transmitir informações sobre o passado, com amparo em métodos de ensino, tampouco se resolve com alguma medida ideal entre a competência técnica e o compromisso político.
Dar aula de história é acontecimento, aberto aos encontros com os estudantes e à escuta do mundo - elemento que assusta na Historiens & Géographes, mas que é acolhido em Les Clionautes. Acolhimento dos estudantes com seus corpos e tudo que isso implica: gênero, origem familiar, raça, classe, idade, religião, medos, desejos e conhecimentos. Por outro lado, não são limitados aos corpos, justamente pela confiança na potência do estranhamento trazido pela linguagem científica da História e seus embates com a memória. A utopia da aula de história que acolhe e que ensina atravessa tudo. A forma pela qual Modica confronta o prefeito de Béziers é exemplar, pois atesta que a responsabilidade de professores de História é afetar o mundo para que se torne melhor: professores de História combatem racismo, xenofobia e ignorância pela potência criadora da aula de história, com humor, conhecimento e sensibilidade.