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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.37  Belo Horizonte  2021  Epub 05-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/0102-469826304 

Artigos

UTOPIAS NA DOCÊNCIA EM HISTÓRIA: DIÁLOGOS COM PROFESSORES FRANCESES

UTOPÍAS EN LA DOCENCIA EN HISTORIA: DIÁLOGOS CON PROFESORES FRANCESES

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil. caroline.pacievitch@ufrgs.br


RESUMO:

Este texto explora discursos de professores de histoire-géographie sobre a docência em História expressos em editoriais de duas revistas publicadas por associações docentes francesas: Historiens & Géographes e Les Clionautes (1998-2016). Problematizam-se as utopias políticas e educacionais percebidas nesses documentos, a fim de complexificar o olhar sobre os discursos que percorrem a formação de professores de História. Foram selecionados os editoriais que tratavam sobre formação de professores de História, destacando os que, de alguma maneira, expressavam utopias político-educacionais. Utopias são entendidas como narrativas fundadas em crítica ao tempo presente e que projetam futuros melhores, na esteira do Princípio Esperança de Ernst Bloch. A análise permitiu identificar diversas categoriais, sendo que, neste artigo, o foco é na didática e no papel da História no futuro dos estudantes. Dialogar com as revistas francesas, escritas por professores de histoire-géographie da educação básica, evidenciou que o foco nas utopias torna pouco importantes as dicotomias entre história e ensino. Conclui-se que, quando professores de História são provocados a falar sobre seus sonhos, perspectivas e responsabilidades profissionais, a atenção se desloca da repetição dos enunciados mais frequentes em direção a outros percursos, sempre inéditos, provocados pelos encontros com os estudantes e a história, na vida da sala de aula.

Palavras-chave: Ensino de História; utopias; formação de professores

RESUMEN:

El texto explora discursos de profesores de histoire-géographie sobre la docencia en Historia expresos en editoriales de dos revistas publicadas por asociaciones docentes francesas: Historiens & Géographes y Les Clionautes (1998-2016). Se problematizan las utopías políticas y educacionales percibidas en los documentos, para dejar compleja la mirada sobre los discursos que involucran la formación docente en Historia. Se han seleccionado los editoriales que trataban de la formación de profesores de Historia, con destaque para los que, de alguna manera, expresaban utopías político-educacionales. Se comprenden las utopías como narrativas fundamentadas en una crítica al tiempo presente y que proyectan futuros mejores, basado en el Principio Esperanza de Ernst Bloch. El análisis posibilitó identificar distintas categorías, pensando que este artículo se concentra en la didáctica y en el rol de la Historia en el futuro de los estudiantes. El diálogo con las revistas francesas, escritas por profesores de histoire-géographie de la educación básica, evidenció que el enfoque de las utopías vuelve poco relevantes las dicotomías entre historia y enseñanza. La conclusión es que, cuando los profesores de historia son provocados a hablar de sus sueños, perspectivas y responsabilidades profesionales, la atención se traslada de la repetición de los enunciados más frecuentes en dirección a otros caminos siempre inéditos, provocados por los encuentros con los estudiantes y con la Historia, en la vida del aula de clase.

Palabras clave: Enseñanza de Historia; utopías; formación de profesores

ABSTRACT:

This text explores discourses of histoire-géographie teachers about teaching in History expressed in editorials of two journals published by French teaching associations: Historiens & Géographes and Les Clionautes (1998-2016). The political and educational utopias perceived in these documents are problematized in order to complexify the look at the discourses that run through the training of history teachers. The editorials that dealt with history teacher education were selected, highlighting those that, in some way, expressed political-educational utopias. Utopias are understood as narratives based on criticism of the present time and that project better futures, in the wake of Ernst Bloch's Principle of Hope. The analysis has allowed us to identify several categorical ones, and in this article the focus is on didactics and the role of History in the future of students. Dialoguing with French journals, written by basic education histoire-géographie teachers, evidenced that the focus on utopias makes the dichotomies between history and teaching unimportant. It is concluded that when history teachers are provoked to talk about their dreams, perspectives and professional responsibilities, attention shifts from the repetition of the most frequent statements towards other paths, always unpublished, provoked by encounters with students and history, in the life of the classroom.

Keywords: History teaching; utopias; teachers’ education

INTRODUÇÃO

Utopia não é quimera. É sonhar desperto e imaginar que o novo é possível a despeito de todas as probabilidades contrárias. Quem brinca de utopias se move de uma profunda crítica ao tempo presente em direção à bagunça criativa de projetar outras vidas, modelos econômicos, escolas, histórias (COLOMBO, 2009). Imaginar utopias permite que o vento da esperança espalhe tudo que é certo, determinado, seguro, todas as diretrizes, todos os pontos finais (JACOBY, 2007). Criar utopias abre espaço para o que ainda não é, mas pode ser (BLOCH, 2005), para a coragem de iniciar o novo no encontro com os demais (ARENDT, 2009).

Utopia não é substantivo comum, estado. Se o caminho já existe, não é utopia. Ela é ação, sempre móvel, é narração. Pode ser refeita, transformada, negada, sem compromisso com regras pré-definidas. Quem quiser produzir um futuro fechado e impô-lo para outros, não faz utopia. Projeto de futuro que implica sofrimento, exploração, destruição, morte, injustiça, tampouco é utopia (QUARTA, 2009). Utopia é verbo, movimento. Inútil e imprescindível.

Esses movimentos são instigantes para pensar a formação de professores de História em suas relações com a política, tema explorado pela autora e por parceiros em uma série de pesquisas anteriores, as quais incluíram entrevistas extensas e observações de aulas com docentes brasileiros e espanhóis (PACIEVITCH, 2014), além de questionários fechados respondidos por professores brasileiros, argentinos, chilenos, paraguaios e uruguaios (PACIEVITCH; CERRI, 2016). Os resultados dessas investigações permitiram levantar alguns pressupostos: primeiro, não se confirma o estereótipo do professor de História marxista, revolucionário, socialista ou anarquista. Tudo isso pode fazer parte de utopias docentes, mas não as define. Em segundo lugar, as utopias políticas e educacionais expressas pelos professores de História tratam, em geral, de ser um bom professor, que ensina bem e que ensina conteúdos que ampliam a visão de mundo e contribuem para as vidas dos estudantes. É útil sem ser utilitarista. O maior sonho é que o mundo seja justo, que as pessoas tenham vida digna e que a escola seja efetivamente pública, universal, gratuita, laica, emancipadora e de boa qualidade: algo próximo aos ideais iluministas, notadamente expressos em projetos revolucionários franceses (PIOZZI, 2008). Por fim, as tensões entre teoria e prática, educação e história, conteúdo e método, repetidas no discurso acadêmico sobre formação de professores de História, perdem relevância nos testemunhos docentes justamente quando o foco do debate são as utopias. Olhar para essas dicotomias por meio do sonho implode as barreiras e permite expressar a profissão de forma sensível e potente para a criação do novo.

A aproximação com projetos educacionais iluministas motivou o interesse em escutar mais atentamente a professores, pesquisadores e associações profissionais francesas, o que se fez em pesquisa realizada em 2016. O presente artigo é um recorte dessa investigação e tem por objetivo analisar a presença de utopias políticas e educacionais em editoriais de revistas publicadas por duas associações docentes francesas entre 1998 e 2016: Historiens & Géographes, de responsabilidade da Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie de l’Enseignement Publique (APHG) e Les Clionautes, pertencente à associação homônima. Ambas as associações representam apenas docentes da educação básica. Os editoriais apresentam convicções e bandeiras de luta pela qual se mobilizariam docentes de histoire-géographie na França, mesclando elementos de militância pelo estatuto profissional, referenciais acadêmicos e concepções de educação e de ensino de história. Esse debate é pertinente para os campos da formação de professores e dos impressos em ensino de história e educação, ao abordar questões como neutralidade no ensino, desvalorização social, hierarquização de saberes, dicotomia entre ensino e pesquisa, disputas de memória, visão redentora sobre a educação, entre outros (NUNES, 2011; PROST, 2013; SILVA, 2014; PINHEIRO, 2015).

A metodologia utilizada para análise dos editoriais foi a seguinte: leitura na íntegra de todos os editoriais localizados entre 1998 e 2016, seguida de seleção daqueles que tratassem de formação de professores de História ou que, de alguma maneira, expressassem utopias político-educacionais sobre o tema. Os trechos que denotassem esta presença (a partir da compreensão de utopia político-educacional apresentada no início desse artigo) foram transcritos. Três categorias emergiram dos trechos e orientam as análises a seguir: a) historiografia, pedagogia e intelectualidade docente; b) conflitos entre docentes, políticos e mídia; c) didática e papel da história no futuro dos estudantes. Pesquisas com outros interesses certamente detectariam outros temas, tais como a análise de propostas curriculares, reflexões sobre as relações entre memória e história e críticas a políticas educacionais em geral. Para os fins deste artigo, o foco principal é no terceiro tema: objetivos do ensino de história consequentes para a formulação de responsabilidades docentes.

A busca foi realizada na página do arquivo da Revista Historiens & Géographes2. A partir de 2011, foram utilizados os textos disponibilizados em um arquivo de compilação dos editoriais da revista que, embora incompleto, ofereceu um panorama do teor dos editoriais propostos pela revista do fim da década de 1990 até 2016. Porém, apenas a partir de 1998 os editoriais estão disponíveis na íntegra. Em relação à Les Clionautes, apesar de a associação existir desde 1998, foram localizados editoriais apenas dos anos de 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016, dos quais nove são citados neste texto. Esta foi outra razão pela qual não se retrocedeu na análise dos editoriais da APHG, tendo em vista a dificuldade em cotejar com Les Clionautes3.

Nas seções seguintes, apresenta-se cada uma das revistas e exploram-se trechos dos editoriais que têm potencial para dialogar com os pressupostos elencados para essa argumentação. A ordem cronológica em que os editoriais foram publicados não é o mais relevante aqui. Importa percorrer os enunciados e questionar como eles produzem lugares, sujeitos e relações na formação de professores de História, principalmente em suas dimensões políticas (FOUCAULT, 2013). Ao final, pretende-se discutir a pertinência de escutar as vozes de associações docentes francesas. A intenção é manter um estado de abertura para outras possibilidades de debate coletivo, em que o pedagógico, o historiográfico e o político não permaneçam estanques, muito menos em competição e/ou relação hierárquica.

HISTORIENS & GÉOGRAPHES

A Association des Professeurs d’Histoire et de Géographie de l’Enseignement Publique (APHG) foi fundada em 1910 e agrupa mais de 9 mil associados. Seu objetivo é defender os interesses e a liberdade de ensinar histoire-géographie e enseignement moral et civique (EMC)4. A APHG é tida como porta-voz das inquietudes dos professores de história perante as modificações a que eles assistem nos programas oficiais e, principalmente, em sala de aula (GARCIA; LEDUC, 2003).

Talvez a principal marca dos editoriais analisados tenha sido a combatividade. Embora não exista polarização política partidária, sempre que a associação considera que seus interesses estão sob ataque, medidas de defesa são tomadas, tais como a solicitação de audiências com autoridades e, principalmente, o apelo à mobilização dos membros. Apesar de alguns editoriais se referirem a movimentos sociais tais como dos Indignados5, não se notou nenhuma nota de apoio a nenhum tipo de associação, sindicato, grupo em greve etc. Os associados são conclamados a apoiar historiadores que seriam processados por supostamente ofenderem a memória de certos grupos. Qualquer movimento que constranja o trabalho historiográfico (como, por exemplo, leis memorialistas) é rechaçado em nome da verdade e da ciência histórica. Para se defender das acusações de que a História nacional francesa perpetua o racismo, a xenofobia e a colonialidade, levanta-se a bandeira da neutralidade. Para a Historiens & Géographes, a aula de História não precisa acolher demandas de movimentos sociais nem comemorações memorialísticas: cabe à historiografia atualizar-se. Por consequência do avanço historiográfico, essas questões aparecerão na escola. Essa postura abre espaço a críticas de corporativismo e de recusa em negociar com a sociedade, ao que a Associação responde que utilizam os mesmos princípios que o historiador acadêmico em todos os seus posicionamentos públicos.

Assim, predomina na Historiens & Géographes a identificação com historiadores cientistas, muito mais do que como educadores ou pedagogos. Aliás, a Pedagogia é outra fonte de ataques contra a qual precisariam se resguardar. Se, por um lado, os professores devem cuidar para não se tornarem militantes de uma “causa”, de uma “comunidade”, de um “partido político” (MARCONIS, 2005, p. 54), de outro não deveriam se render às inovações pedagógicas que retiram a autoridade de transmitir a História Francesa para todos os estudantes, independente de origem, sexo, cor ou classe. Para a revista, manter o ensino como transmissão - principalmente verbal e escrita - de verdades históricas dominadas pelo professor é essencial para que a educação seja democrática. As inovações pedagógicas seriam responsáveis por aligeirar a cultura geral dos estudantes e, assim, desagregar o vivre ensemble da República. Eventualmente, porém, os editoriais reconhecem algumas demandas sociais, mas à sua moda.

Ajudar todos os alunos a compreender a complexidade do mundo, sua diversidade, seu passado, as questões e conflitos do tempo presente, responde a uma missão maior da escola e a uma intensa demanda social, que se dirige notadamente aos professores de história e de geografia. Essa missão supõe, da parte dos professores, importantes competências científicas e pedagógicas, um olhar crítico permanente e um cuidado constante com a tolerância. Abandonar essa missão significaria se render a grupos de pressão de diversos tipos, desde as «autoridades» políticas ou religiosas [...], sempre prontas a desacreditar o trabalho dos professores, sua rotina, o arcaísmo dos seus métodos [...] sua recusa a se abrir às «realidades da sociedade», seja aquela da empresa, da «religião»... Nesses domínios eles são, ai de nós, auxiliados pelos pedagogos cujo olhar crítico, necessário, acaba por ser instrumentalizado. [...] Bela ocasião para os poderes políticos compensarem a diminuição dos horários de aulas e de recursos. (MARCONIS, 2006c, p. 62)6.

Marconis reconhece que há temas novos que precisam ser ensinados, mas os professores podem fazê-lo sem a interferência de atividades prontas oferecidas por instituições alheias à ciência acadêmica. E o fazem justamente porque contam com uma formação científica e pedagógica rigorosa fornecida pela Universidade e pelos organismos públicos de pesquisa de alto nível (MARCONIS, 2006c, p.62). O Editorial conclama: “que a escola conceda aos alunos uma formação científica de alto nível, que essa formação ensine a refletir sobre as relações complexas entre as sociedades e seu meio-ambiente, a fim de que eles se tornem capazes de agir como cidadãos livres e de escolher se engajar ao serviço de uma ou outra causa [...]” (MARCONIS, 2006c, p.63)7.

A citação demonstra a crença no poder do conhecimento para despertar a compreensão do mundo e proporcionar a adesão livre às causas que cada um considera válidas, recusando que organizações com discurso militante tenham espaço aberto na escola para substituir o próprio discurso docente, ou transmitir, subliminarmente, a mensagem de que a ciência não é capaz de provocar o engajamento necessário. Em julho/agosto de 2015, o presidente convoca todos a difundir e a discutir uma lista, formulada a partir de uma consulta aos membros, sobre os objetivos do professor de história.

  • Transmitir saberes úteis e seus métodos,

  • Manter os alunos abertos ao mundo e ativos, e manter os professores inventivos,

  • Suscitar o interesse dos alunos a partir de seu lugar no mundo,

  • Ser um decifrador do mundo, passado e atual,

  • Tornar o aluno ativo, mobilizando-o para o trabalho com documentos,

  • Valorizar o narrativo,

  • Formar cidadãos,

  • Desenvolver a sensibilidade dos alunos às realidades do mundo em que eles vivem. (BENOIT, 2015c, p. 3)8

A principal luta, para a APHG, é manter a identidade do professor como responsável por transmitir conhecimentos e métodos da história e da geografia e jamais render-se à identidade de animador cultural. Parece ser difícil aceitar que o perfil dos estudantes se modificou e que isso transforma - independente do que cada um deseje, individualmente - as formas de ensinar e o próprio conteúdo histórico. Ou seja, apesar de valorizarem o potencial do pensar historicamente para a tolerância e vida democrática, sentem dificuldade em submeter sua própria profissão a um olhar histórico.

No editorial assinado por Marconis de maio/junho de 2000, encontra-se uma síntese do que propõe a APHG para o ensino de histoire-géographie: a centralidade da História e a adição de perspectivas ditas inovadoras (como as Tecnologias de Informação e Comunicação). Entretanto, falta o enfrentamento dos desafios vividos pelos docentes no dia a dia: a diversidade entre os estudantes e a falta de sentido de alguns conhecimentos históricos - aspecto que é mais enfrentado por Les Clionautes.

Estreitamente associadas, a história e a geografia devem contribuir essencialmente à formação dos homens e dos cidadãos, fornecendo-lhes conhecimentos e métodos indispensáveis para viver em sociedade, agir, exercer suas responsabilidades. Tudo isso com consciência e liberdade, a partir de uma reflexão sólida e serena, ancorada no tempo e no espaço. Nessa perspectiva, o ensino da história e da geografia deve ser garantido ao conjunto de alunos, da escola elementar ao baccalauréat, por meio de professores competentes e bem formados, com base em currículos periodicamente revisados em função dos avanços da pesquisa científica e pedagógica, da demanda social, com carga horária suficiente para um trabalho sério, eficaz e atraente, preocupado em aproveitar as oportunidades oferecidas pelas novas tecnologias de informação e comunicação. Com essas bases, tudo é possível. (MARCONIS, 2000, p. 15)9

A última afirmação é temerária, pois ignora as culturas juvenis e incertezas da sala de aula e arrisca responsabilizar os docentes por tudo o que não funcionar, caso as bases materiais sejam garantidas. Ainda, mantém o conhecimento disciplinar como principal personagem do ensino e da aprendizagem. O editorial de outubro/novembro de 2007 reforça o posicionamento da APHG perante as políticas de memória e de comemoração que se fazem inserir nas escolas.

A comemoração pública não é o mesmo que a história professada na escola pública.

A Memória não é a História, elas são, ao mesmo tempo, distintas e inseparáveis, com inevitáveis sobreposições em zonas de conexão.

Aos poderes públicos as políticas da Memória.

Aos professores de História os conteúdos da história ensinada. (PEYROT, 2007, p. 85)10

Perante tais princípios, a responsabilidade docente é fácil de discernir.

O professor, de sua parte, está tensionado entre dois registros. Por sua formação, conhece a importância da História científica. Inserido na sociedade, ele não pode ignorar o primeiro registro, o da Memória. Como consequência, ele acompanha a comemoração, ele pode se servir dela como um gancho para a sua aula. Ele inscreve a comemoração num contexto, esclarece-a, completa-a e, ao completá-la, a corrige. (PEYROT, 2007, p. 85)11

Assim, a APHG luta pela autonomia docente: “[...] Nós queremos a liberdade de pesquisar e dizer o verdadeiro da História” (PEYROT, 2007, p. 86, grifos no original)12. Autonomia fundamentada no profundo conhecimento da ciência histórica que garante a transmissão da verdade para os estudantes. O poder público pode e deve construir os programas, mas jamais interferir na forma como cada docente ensina. O mesmo se expressa no editorial de julho/agosto de 2011: “enquanto Historiadores ou Geógrafos, nós somos os representantes de uma cultural geral, por muito tempo negligenciada, e que é hoje reivindicada em todas as instâncias da vida profissional” (BENOIT, 2011a, p. 13)13.

Em maio de 2012, o editorial apela a professores e diretores, ao ministério e aos pais, que lutem para garantir o direito de estudar histoire-géographie nas terminales de lycées voltadas para as ciências. O texto lembra que esta é uma decisão citoyenne e não burocrática (BENOIT, 2012a, p. 8). A mesma luta segue no editorial de outubro/novembro de 2012, em que se reforça o papel utópico do ensino de história:

[ ...] Ouso dizer que um futuro engenheiro, banqueiro, membro de uma empresa, médico, advogado ou economista necessita imperativamente de uma cultura civilizatória, geopolítica e memorialista que a História e a Geografia fornecem. [...] A APHG, desde sua criação, sempre esteve aberta para que todos os jovens, mesmo no ensino profissionalizante, recebessem o mesmo ensino em História e em Geografia, base do vivre ensemble republicano. Para ser cidadão do mundo no qual ele vai evoluir, o aluno [...] necessita de conhecimentos históricos e geográficos que abrem o espírito, oferecem espaço para a reflexão e formam a tolerância. (BENOIT, 2012b, p. 3)14

O editorial dirige-se ainda ao coletivo Aggiornamento Hist-Géo15 e defende-se de acusações de conservadorismo e corporativismo. Apesar disso, no editorial de fevereiro de 2014, pela primeira vez o autor apela para uma intervenção direta contra problemas sociais relevantes: “com saberes sólidos e carga horária decente, a História e a Geografia formam uma barreira contra o racismo e o antissemitismo” (BENOIT, 2014c, p. 2)16. Seriam sinais de um aggiornamento da APHG?

Entretanto, nos editoriais seguintes, reflexões sobre racismo ou outros tipos de discriminação não aparecem. Diante das inúmeras comemorações impostas à escola, o editorial de julho/agosto de 2014 reforça que a responsabilidade de transmitir os valores da República é dos professores de história.

[...] quem, na escola, ensino os jovens franceses como foi construída a República, quais foram os combates feitos contra seus opositores e seus invasores, como se forjou a nação, como se formou o povo francês, o que significa o lema Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mas também a laicidade? São aqueles e aquelas que são os vetores desses saberes: os professores de História e de Geografia! (BENOIT, 2014a, p. 2)17

O editorial ainda afirma que a história e a geografia, sozinhas, não conseguem cumprir o objetivo de promover a tolerância, mas que ele não ficará mais concreto reduzindo a carga horária dessas disciplinas (BENOIT, 2014a). Em maio/junho de 2015, a APHG defende-se novamente de acusações de conservadorismo, replicando que a escola que exclui e prejudica não é a escola tradicional, mas a que se nega a difundir a cultura (BENOIT, 2015a).

Esse panorama sobre a Historiens & Géographes demonstra que as relações entre política e formação de professores de História não podem se resumir à localização partidária ou ideológica, embora tal baliza seja necessária, tendo em vista a relação com os argumentos expostos nas políticas públicas e na mídia. O foco está na forma como se compreendem o saber, o conhecimento científico e o papel da instrução e da educação (especificamente em História) na transformação da sociedade. No caso da APHG, prevalece a defesa do conhecimento e dos métodos da historiografia como ferramentas de formação do cidadão e de sua integração na sociedade. Acusados de defender uma postura elitista, a associação rebate confiando que o dever da escola é garantir que todos tenham acesso à ciência histórica. Por entenderem que a ciência, por si só, exerce autocrítica e renovação, ela responderia às demandas sociais sem necessidade de pressão externa. Os jovens devem aceitar o que a escola sempre ofereceu, já que inovações didáticas retirariam a autoridade docente e prejudicariam a aprendizagem.

Esses editoriais expressam misturas entre política, história e pedagogia, envolvendo as políticas públicas educacionais e a militância associativa. Apesar de a Historiens & Géographes considerar seus propósitos representantivos do conjunto de professores de histoire-géographie franceses, constataram-se outras perspectivas nos editoriais da associação Les Clionautes, explorados na próxima seção.

LES CLIONAUTES

Segundo sua página oficial, Les Clionautes é uma associação de cultura profissional criada para se engajar nos debates públicos sobre ensino de histoire-géographie e EMC, bem como produzir e divulgar conhecimentos sobre a prática de ensino dessas disciplinas. Ainda segundo a página, os editoriais representam a opinião de quem os assina e não uma linha de pensamento única da associação18. Quase todos os editoriais são assinados pelo presidente, Bruno Modica. A técnica utilizada para a seleção dos editoriais foi a mesma para a seção anterior: leitura na íntegra de todos os editoriais, separando aqueles que mencionassem os objetivos de Les Clionautes, os significados utópicos ao ensino e, consequentemente, as responsabilidades docentes e os posicionamentos sobre formação de professores.

Na sequência, é apresentado um panorama dos editoriais, destacando os contrastes entre o posicionamento de cada revista. Em seguida, analisam-se trechos que explicitam utopias político-educacionais e concepções sobre as responsabilidades docentes, na visão dos que assinam tais editoriais. Devido ao curto intervalo de editoriais encontrados e por ser o mesmo presidente assinando quase todos eles, não é possível constatar diferenças expressivas nos posicionamentos de um período a outro. Entretanto, é possível contrastar as opiniões quanto às formas de expressão escolhidas pelos Clionautes e por Historiens & Géographes sobre os mesmos assuntos. Tal fato contribui para a crítica e para nuançar os pontos de vista dicotômicos ou excludentes que se delinearam na seção anterior.

Assim como a APHG, Les Clionautes demonstra ciência dos ataques que recebem por parte da mídia e se ressentem das críticas - que consideram infundadas - sobre o elitismo ou a má-vontade dos professores. Entretanto, a posição dos Clionautes é a de evitar classificações estanques, reconhecendo-se como grupo de professores que necessitam tanto da abordagem disciplinar quanto da pedagógica. A abordagem disciplinar tem leve preponderância, mas não há uma hierarquização entre ambas. Nota-se a busca de pontos positivos e negativos, que seriam constatados não apenas pela reflexão acadêmica, mas pelo fato de os associados serem professores em efetiva atividade na escola. Essa é uma diferença relevante para com a Historiens & Géographes.

O objetivo do grupo não se resume a escrever e publicar as críticas, mas em fazer proposições, que estão quase sempre anexas aos editoriais e que seriam objeto de intensos debates na lista de discussão da associação. Dessa maneira, a imagem que Les Clionautes pretende transmitir é a de um grupo com perspectivas teórico-metodológicas e ideológicas abertas e desejoso de diálogo propositivo, buscando afastar-se de sectarismos. Os editoriais não mencionam com qual outra associação estariam se comparando.

Essa busca de um alinhamento entre reflexão teórica, engajamento nos debates públicos e valorização da experiência docente, direciona as opiniões enunciadas nos editoriais sobre a formação e o recrutamento de professores, pois, mesmo que sutilmente, são mencionados os problemas discutidos pela Historiens & Géographes, tais como as reformas curriculares, a precarização do trabalho docente e os concursos. Entretanto, a visão de Les Clionautes é firme nos princípios de defesa da especificidade dos conteúdos disciplinares, mas sem tabus. Evitar as dicotomias e as verdades absolutas sem abrir mão de princípios básicos, eis o ponto de partida essencial das argumentações (raras) dos editoriais sobre a formação de professores.

Foi possível notar o posicionamento de Les Clionautes, em alguns editoriais, contra o racismo, a xenofobia e a islamofobia, notadamente quando história ou memória são manipuladas para fomentar esse tipo de discriminação. Mas a principal bandeira da associação são os valores da República Francesa, bem como do conhecimento e da razão para ampliar as visões de mundo dos jovens. Para cada uma dessas bandeiras correspondem, quase sempre, enunciados sobre a responsabilidade docente.

O primeiro tema - e o mais recorrente - é a construção de pensamento crítico e da capacidade de se localizar no mundo e de tomar decisões. As palavras destacadas na citação a seguir ecoam os questionamentos sobre a mídia, o pensamento crítico e a prudência na construção de opiniões.

É nesse terreno que nós devemos aparecer como referências para nossos alunos de uma certa ética em matéria de acesso e apreciação da informação. [...] Esse papel deve conduzir a uma reflexão autônoma, seja baseada sobre argumentos, sobre fontes verificadas, e finalmente a favorecer o pertencimento de todos à «coisa pública», à República, em resumo. (MODICA, abr. 2013, p. 2)19

A possibilidade de interferir na opinião pública, de criticar a instrumentalização da história e da memória, de se posicionar perante o que dizem os universitários e os militantes é um privilégio das disciplinas de histoire-géographie e EMC. Segundo Modica, sua maior força e também seu maior desafio (maio 2013, p. 2-3). Trata-se do lien citoyen, evocado para justificar argumentos e recuperado diversas vezes nos editoriais ao longo do tempo.

Exemplos concretos sobre o papel que as disciplinas podem cumprir perante os desafios atuais são retirados da vivência dos editorialistas, embora predominem os enunciados ditos como lemas ou como apelos: “é porque nós damos a descobrir e a ler o mundo, tanto aquele do passado como o de hoje, para construir o mundo de amanhã, que nós dizemos, simplesmente, a uns como a outros, atores da comunicação, tomadores de decisão, formadores de opinião, escutem-nos!” (MODICA; STEVENOT, maio 2015, p. 2, grifos originais)20. E ainda:

Constitutivas da formação do cidadão, a história e a geografia são marcos indispensáveis que permitem construir um futuro. [...] Em todos os níveis de ensino nós defendemos os conteúdos obrigatórios e adaptados, a pesquisa de excelência dentro do respeito aos valores fundadores da escola republicana. (MODICA, dez. 2013, p. 1)21

Mas os mais reveladores são os baseados em exemplos concretos, neste caso em que o presidente Bruno Modica comenta um tweet publicado pelo então prefeito da cidade de Béziers.

Fonte: mensagem na rede social Twitter, publicada pelo então prefeito de Béziers, em 30 de outubro de 2015. Disponível em: https://is.gd/urrlNn. Acesso em: 5 nov. 2020.

Figura 1: tweet de Robert Ménard22  

Ao invés de simplesmente reprovar a posição do prefeito, o editorial combina ironia, humor e profissionalismo, verificando quais ligações poderiam ser feitas entre a publicação e o programa oficial das disciplinas histoire-géographie e EMC. Em seguida, o autor apresenta uma citação do currículo oficial e sugestões de trabalho. Dessa forma, fica explícita a crítica sobre a opinião do prefeito e a denúncia da intolerância e do racismo, sem deixar de lado o métier docente. Em 2015, quando dos atentados de janeiro e de dezembro, os editoriais clamam pelo engajamento dos docentes aos valores republicanos e laicos, tomando o cuidado de não cair na generalização sobre os culpados, através, novamente, de exemplos vindos da sala de aula ou da historiografia.

É uma provação, não vamos esconder. O último atento mais mortífero em solo francês (28 vítimas) foi imputado aos assassinos da OAS que acreditavam defender o ocidente cristão.23 O presente ataque parece ligado ao fundamentalismo que sequestra a mensagem de paz e de amor de um dos grandes monoteísmos. Nos dois casos os assassinos demonstram um desprezo total sobre a vida humana. (MODICA, jan. 2015, p.3 - nota original).24

Nós, professores de histoire-géographie, conhecemos a situação catastrófica no Oriente Médio e fazemos referência constante a isso nas nossas aulas [...], devemos mais uma vez oferecer aos nossos jovens uma compreensão e um recuo salutares diante dos fatos de uma amplitude emocional sem precedentes para eles. Muitos são os mortos que não tinham mais do que a idade de nossos alunos. E descobrimos, conforme a investigação avança, que alguns dos assassinos eram também bastante jovens.

Devemos responder suas questões, e respondê-las com humanidade, mas também com toda autoridade científica que, entre outros, Les Clionautes contribuem para reforçar os debates e as proposições, mas também para velar pela cientificidade das nossas disciplinas ensinadas no mundo da pesquisa e do ensino. (LE COMITÉ ÉDITORIAL DES CLIONAUTES, nov. 2015, p .1)25

A última citação demonstra o apego às opiniões e aos interesses dos estudantes, algo do que os docentes não podem se afastar e a que devem ser empáticos. Entretanto, seu papel não é o de ouvir como psicólogos, mas de ensiná-los a analisar todos os fatores, com uso do conhecimento e do método histórico. Alguns meses mais tarde, confrontados com uma publicação em um jornal fundamentalista, o espírito de combate e de guerra laica26, com as armas do conhecimento, permanece. Junto ao teor combativo do editorial, destaque-se o apreço à laicidade como valor que não exclui, mas sim acolhe a todos por ser universal. As nuances na compreensão dos valores da República fazem parte das reflexões dos professores participantes desta pesquisa e constituem pontos de contraste entre as entrevistas, os editoriais e a legislação educacional, principalmente entre os testemunhos docentes e o discurso oficial. Nesse sentido, o valor cidadão do conhecimento histórico e dos valores da República, bem como o combate a todo tipo de preconceito desembocam na enunciação das responsabilidades docentes, que devem ser sempre nuançadas com críticas à formação e às condições de trabalho.

Veber, que assina alguns editoriais, reconhece a responsabilização dos docentes e procura equilibrar as diferentes exigências, mostrando a preponderância do conhecimento - dominado pelo professor - na resolução de problemas sociais mais amplos. Ele retoma os objetivos pelos quais a escola republicana francesa foi fundada por Jules Ferry no século XIX e que seriam ainda os mesmos, apenas mais estendidos. Reconhece que os desafios atuais são diferentes, porém defende que a escola não seja rotulada como excludente, mas vista como uma das grandes incubadoras de mudanças. Os professores de História já estariam na vanguarda dessas mudanças (VEBER, out. 2014).

Para finalizar, Modica (set.2015), novamente respondendo a posicionamentos xenófobos por parte da prefeitura de Béziers, sintetiza o desafio e a responsabilidade do professor de histoire-géographie e EMC diante tanto dos alunos de carne e osso quanto dos saberes da história:

[...] em Béziers, eu serei ao mesmo tempo um avaliador dos conhecimentos e portador dos valores morais e cívicos que fundam nosso pacto republicano. E, uma vez mais, Kevin e Khaled, Özul e Catarina, Pierre, Isabelle e Charles-Henri estarão juntos, nos bancos da escola da República, e poderão adquirir as ferramentas de conhecimento e de reflexão crítica que farão deles atores do seu destino... (MODICA, set. 2015, p. 4)27

Não é pelo discurso ativista nem pela memorização: a revolução - humanista, do saber - acontece cada dia na escola pelas relações entre as vidas dos jovens, o conhecimento e os futuros possíveis. Esses jovens não são apresentados aqui de forma essencialista, como se não tivessem história, pertencimento étnico-racial, sexo, apenas futuros cidadãos da República. São - eis a diferença mais importante em relação à Historiens & Géographes - pessoas com perspectivas de vida muito distintas, que precisam ser acolhidas e ter oportunidades para manter e recriar a nação francesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: BRINCAR DE UTOPIAS E ENSINAR HISTÓRIA

De um lado, a revista Historiens & Géographes apresenta um caráter combativo e a defesa intransigente do professor como um sábio que transmite conhecimentos científicos, cuja formação deve ser pautada primordialmente pela ciência histórica. Assim, a responsabilidade docente é, fundamentalmente, transmitir conhecimentos historiográficos e seus métodos. A construção da cidadania, a constância dos valores republicanos e a capacidade de tomar decisões racionais são consequências da transmissão de conhecimentos. A defesa dos interesses dos professores está em primeiro lugar, diante dos ataques vindos do ministério e das mídias.

Os editoriais de Les Clionautes evitam prender-se a perspectivas fechadas. Embora a ciência histórica seja um valor também para essa associação, a formação pedagógica e didática é relevante quase na mesma medida. Propõe-se sua inserção em etapas anteriores ao concurso público e critica-se a noção de que toda aprendizagem profissional só tem valor quando feita em contato com o terrain, valorizando, assim, a produção de conhecimento em didática e nas ciências da educação. Os ideais democráticos e republicanos e uma perspectiva humanista sobre o ensino de história são recorrentes, conformando utopias político-educacionais sobre o ensino de história e a formação de professores sensíveis à vida da sala de aula.

Utopias político-educacionais sobre o ensino de história estão presentes nos editoriais das duas associações, bem como o estabelecimento de responsabilidades docentes. Porém, no caso da Historiens & Géographes, predomina uma postura de desconfiança, quiçá ressentida, diante do incerto e do caótico que a utopia movimenta. Ao recusarem o encontro com o político, os editoriais parecem recuar diante da janela aberta pela utopia, refugiando-se no roman national (CITRON, 1987) e no ensino transmissivo. Fogem da utopia e erguem muros entre a história e o ensino, negando a potência da vida da sala de aula e se agarrando a uma pretensa autoridade científica cada vez menos reconhecida socialmente. Já em Les Clionautes, a perspectiva humanista sobre o ensino e o professor de história é uma recorrência importante, em que as tensões entre política, historiografia e didática se mesclam na busca de sentidos para a profissão e em significados para a militância - seja na sala de aula, seja na associação, seja nos embates públicos em torno da história e da memória.

Dirigir o olhar para a França, em especial para essas duas associações, permitiu evidenciar o quanto o foco nas utopias torna - se não irrelevantes - pouco determinantes as dicotomias entre história e ensino. Quando professores de História são provocados a falar sobre seus sonhos, perspectivas e responsabilidades profissionais, a separação entre o “ensinar” e o “saber história” pode se desmanchar. Dar aula de história não é transmitir informações sobre o passado, com amparo em métodos de ensino, tampouco se resolve com alguma medida ideal entre a competência técnica e o compromisso político.

Dar aula de história é acontecimento, aberto aos encontros com os estudantes e à escuta do mundo - elemento que assusta na Historiens & Géographes, mas que é acolhido em Les Clionautes. Acolhimento dos estudantes com seus corpos e tudo que isso implica: gênero, origem familiar, raça, classe, idade, religião, medos, desejos e conhecimentos. Por outro lado, não são limitados aos corpos, justamente pela confiança na potência do estranhamento trazido pela linguagem científica da História e seus embates com a memória. A utopia da aula de história que acolhe e que ensina atravessa tudo. A forma pela qual Modica confronta o prefeito de Béziers é exemplar, pois atesta que a responsabilidade de professores de História é afetar o mundo para que se torne melhor: professores de História combatem racismo, xenofobia e ignorância pela potência criadora da aula de história, com humor, conhecimento e sensibilidade.

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2APHG. Révue Historiens & Géographes. Articles. Disponível em: https://clck.ru/RsccZ. Acesso em: 11 nov. 2020.

3Todos os editoriais foram salvos em formato PDF e estão sob a guarda do autor. Alguns já não se encontram mais disponíveis nas páginas das associações. As traduções são do autor.

4APHG. Présentation. Disponível em: https://archives.aphg.fr/presentation-aphg.html. Acesso em: 15 out. 2020.

5Referência a um ciclo de movimentos sociais desenvolvidos principalmente na Europa desde 2010, marcado principalmente pelos protestos na Plaza del Sol, em Madrid, culminando em 15 de maio de 2011. Segundo Candon, “[...] de forma lenta pero constante responde a las consecuencias de la crisis económica mundial. Las movilizaciones contra los recortes sociales han ido aumentando en varios países de Europa [...]” (2013, p. 21), com ampla participação de jovens e utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação.

6Aider tous les élèves à comprendre la complexité du monde, sa diversité, son passé, les enjeux et les conflits du temps présent, répond bien à une mission majeure de l’école et à une forte demande sociale, qui s’adresse d’abord aux professeurs d’histoire et de géographie. Cette mission suppose de leur part de grandes compétences scientifiques et pédagogiques, un regard critique permanent et un souci constant de tolérance. L’abandonner serait s’en remettre à des groupes de pression de toutes natures, à des « autorités » politiques ou religieuses, [...] toujours prêts à discréditer le travail des enseignants, leur routine, l’archaïsme de leurs méthodes [...] leur refus de s’ouvrir sur les « réalités de la société » qu’il s’agisse de celle de l’entreprise, du « fait religieux »… En ce domaine ils sont, hélas, souvent aidés par des pédagogues dont le regard critique, nécessaire, finit par être instrumentalisé. [...] Belle occasion pour les pouvoirs publics de compenser ainsi la diminution des horaires et des moyens.

7Que l’école donne d’abord aux élèves une formation scientifique de haut niveau, qu’elle leur apprenne à réfléchir sur les rapports complexes entres les sociétés et leur environnement, afin qu’ils soient, ensuite, en mesure d’agir en citoyens libres et de choisir de s’engager au service de telle ou telle cause [...].

8• Transmettre des savoirs utiles et des méthodes, • Avoir des élèves ouverts sur le monde et actifs et des professeurs inventifs, • Susciter l’intérêt des élèves en les prenant tels qu’ils sont, • Être déchiffreur du monde, passé et actuel, • Rendre l’élève actif par une mobilisation sur travail sur documents, • Valoriser le narratif, • Former des citoyens, • Développer la sensibilité des élèves aux réalités du monde dans lequel ils vivent.

9Étroitement associées, l'histoire et la géographie doivent apporter une contribution essentielle à la formation des hommes et des citoyens en leur donnant les connaissances et les méthodes indispensables pour vivre en société, agir, exercer leurs responsabilités. Ceci en toute conscience, et en toute liberté, à partir d'une réflexion solide et sereine, enracinée dans le temps et dans l'espace. Dans cette perspective, l'enseignement de l'histoire et de la géographie doit être assuré à l'ensemble des élèves, de l'école élémentaire au baccalauréat, par des maîtres compétents et bien formés, sur la base de programmes périodiquement révisés en fonction des avancées de la recherche scientifique et pédagogique, de la demande sociale, avec des horaires suffisants pour un travail sérieux, efficace et attractif, soucieux de mettre à profit les opportunités offertes par les nouvelles technologies de l'information et de la communication. Sur ces bases, tout est possible.

10La commémoration publique n’est pas l’histoire professée dans l’Enseignement public. La Mémoire n’est pas l’Histoire, elles sont à la fois distinctes et inséparables avec inévitablement des chevauchements aux zones de raccordement. Aux pouvoirs publics les politiques de la Mémoire. Aux professeurs d’Histoire les contenus de l’histoire enseignée.

11Le professeur, lui, est tendu entre les deux registres. Par sa formation il connaît l’importance de cette Histoire scientifique. Inséré dans la société, il ne peut ignorer le premier registre, celui de la Mémoire. En conséquence il accompagne la commémoration, il peut s’en servir comme d’une accroche à son cours. Il l’inscrit dans un contexte, l’éclaire, la complète et, en la complétant, la rectifie.

12Nous voulons la liberté pour chercher et dire le vrai de l’Histoire.

13En tant qu’Historiens et Géographes, nous sommes les représentants d’une culture générale, trop longtemps négligée, et qui est aujourd’hui réclamée dans toutes les instances de la vie professionnelle. Or nos matières sont actuellement malmenées par une série de réformes qui affectent aussi bien les horaires, la place de l’histoire et de la géographie dans le cursus scolaire, les concours, la formation des professeurs.

14J’ose dire qu’un futur ingénieur, banquier, cadre dans une entreprise, médecin, juriste ou économiste a besoin impérativement d’une culture civilisationnelle, géopolitique et mémorielle que l’Histoire et la Géographie lui procurent. De plus l’APHG a toujours, depuis sa création, oeuvré pour que tous les jeunes, même dans l’enseignement professionnel, reçoivent le même enseignement en Histoire et en Géographie, base du vivre ensemble républicain. Pour être citoyen du monde dans lequel il va évoluer, l’élève de 1°S a besoin de connaissances historiques et géographiques qui ouvrent l’esprit, donnent du recul à la réflexion et forment à la tolérance.

15Coletivo atualmente coordenado por Laurence De Cock, dedicado a promover reflexões e debates públicos sobre o ensino de histoire-géographie na França. Apresenta, em geral, um posicionamento mais à esquerda do que as outras duas associações apresentadas nesta comunicação, posicionando-se frequentemente a favor dos professores entendidos como trabalhadores da educação, tanto como intelectuais e educadores. AGGIORNAMENTO HIST-GÉO. À propos. Disponível em: https://aggiornamento.hypotheses.org/a-propos. Acesso em: 15 out. 2020.

16Contre ceux qui pensent que la culture générale est d’un autre temps ou qu’apprendre est dépassé. Or, nous revendiquons être des matières de culture générale et, à ce titre, nos matières nécessitent des efforts pour l’apprentissage. Avec des savoirs solides et des horaires décents, l’Histoire et Géographie forment un barrage contre le racisme et l’antisémitisme.

17[...] mais qui, à l’École, apprend aux jeunes de France comment s’est construite la République, quels ont été ses combats menés contre ses opposants et ses occupants, comment s’est forgée la nation, comment s’est formé le peuple de France, que signifie la devise Liberté, Égalité, Fraternité, mais aussi la laïcité ? Ceux et celles qui sont les vecteurs de ces savoirs sont les professeurs d’Histoire et de Géographie !

18LES CLIONAUTES. L’Association. Disponível em: https://www.clionautes.org/categorie/association_clionautes_2020. Acesso em: 15 out. 2020.

19C’est pourtant sur ce terrain là que nous devons apparaître comme les référents auprès de nos élèves et étudiants d’une certaine éthique en matière d’accès et d’appréciation de l’information. Modestement, comme professeurs d’éducation civique, connaissant les mécanismes qui dans le passé ont conduit à des troubles de l’opinion favorisés par des scandales, nous avons notre rôle à jouer. Il doit conduire à une réflexion autonome qui soit basée sur des arguments, des sources vérifiées, et finalement à favoriser l’attachement de tous à la « chose publique », à la République en somme.

20C’est parce que nous donnons à découvrir et à lire le monde, celui d’hier comme celui d’aujourd’hui, pour construire celui de demain, que nous disons tout simplement, aux uns comme aux autres, acteurs de la communication, décideurs, faiseurs d’opinion, écoutez-nous !

21Constitutives de la formation du citoyen, l’histoire et la géographie sont autant de points de repères indispensables qui permettent de construire un avenir. [...] Dans tous les ordres d’enseignement nous défendons des contenus exigeants et adaptés, la recherche de l’excellence dans le respect des principes fondateurs de l’école de la République.

22Eu assumo, eu não quero que #Béziers se torne a capital do #kebab. Esses estabelecimentos comerciais não têm nada a ver com a nossa cultura!

2318 juin 1961 : Une bombe posée par l’OAS sous le train Strasbourg-Paris à la hauteur de Vitry le François fait 28 morts.

24C’est une épreuve, ne nous en cachons pas. Le dernier attentat le plus meurtrier sur le sol français (28 victimes) était à imputer à des tueurs de l’OAS qui croyaient défendre l’occident chrétien. Celui-ci semble lié au fondamentalisme qui détourne le message de paix et d’amour de l’un des grands monothéismes. Dans les deux cas les assassins affichent un mépris total de la vie humaine.

25Nous professeurs d’histoire-géographie, connaissons la situation catastrophique au Moyen-Orient et y faisons souvent référence dans nos cours [...] devons une fois encore à nos jeunes une compréhension et un recul salutaires face à des événements d’une ampleur émotionnelle sans précédent pour eux. Nombreux sont les morts qui n’avaient guère plus que leur âge ! Et l’on apprend au fur et à mesure de l’enquête que certains des assassins étaient eux aussi très jeunes... Acceptons d’écouter leurs questions, d’y répondre avec humanité, mais aussi avec toute l’autorité scientifique que, parmi d’autres, Les Clionautes contribuent fortement à renforcer par leurs débats, leurs propositions, mais aussi par leur veille scientifique sur nos disciplines enseignées dans le monde de la recherche et de l’enseignement.

26Teor semelhante aparece no editorial de novembro de 2013, às vésperas das comemorações do primeiro centenário da I Guerra Mundial, quando Les Clionautes receberam a doação de um diário de um médico de campanha (MODICA, nov. 2013, p. 1).

27[...] à Béziers, je serai à la fois passeur de savoir et porteur des valeurs morales et civiques qui fondent notre pacte républicain. Et encore une fois, Kevin et Khaled, Özul et Catarina, Pierre, Isabelle et Charles-Henri seront ensemble, sur les bancs de l’école de la République, et pourront acquérir les outils de la connaissance et de la réflexion critique qui feront d’eux les acteurs de leur destin...

Recebido: 16 de Novembro de 2020; Aceito: 10 de Março de 2021

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