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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.37  Belo Horizonte  2021  Epub 31-Jul-2021

https://doi.org/10.1590/0102-4698234127 

Resenhas

CARTOGRAFANDO O ENSINO DE HISTÓRIA

CHARTING THE HISTORY TEACHING

CARTOGRAFIANDO LA ENSEÑANZA DE LA HISTORIA

AARON SENA CERQUEIRA REIS1 
http://orcid.org/0000-0001-8970-4941

1Universidade Federal de Sergipe (UFS). Itabaiana, SE, Brasilaaron_sena@hotmail.com

MONTEIRO, Ana Maria; RALEJO, Adriana. Cartografias da Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019.


Na obra Cartografias da Pesquisa em Ensino de História, as historiadoras Ana Maria Monteiro e Adriana Ralejo reúnem parte dos trabalhos apresentados no XI Encontro Nacional de Pesquisadores do Ensino de História (ENPEH), um dos mais importantes eventos sobre Ensino de História realizado no Brasil. Embora não contemple toda a dimensão teórico-metodológica das discussões encetadas no evento, a compilação das falas de experientes convidados aponta alguns dos desafios enfrentados por uma área que se localiza, muitas vezes, em um “lugar de fronteira”. Cunhado pela própria Ana Maria Monteiro em parceria com Fernando de Araujo Penna (2011), este conceito é um dos principais eixos a partir do qual o livro, dividido em três partes, foi construído.

Já nos primeiros capítulos, é possível perceber o teor politizado da obra, preocupada com movimentos que interferem no ambiente escolar e abalam direitos fundamentais relacionados à Educação. Neste sentido, Fernando Seffner discorre sobre a conjuntura política atual que, marcada por uma guinada conservadora, lança ataques à democracia e à diversidade cultural, bem como flerta com o retorno de práticas autoritárias. Consequentemente, o autor percebe a escola pública em cheque: por um lado, sendo criticada tanto por movimentos sociais (que a acusa de práticas de exclusão) quanto pelos discursos neoliberais (que reduzem a Educação à esfera do consumo e da meritocracia); por outro lado, tem-se a má compreensão do papel do professor, cuja liberdade de ensinar tem sido questionada.

Corroborando com esta percepção, Durval Muniz de Albuquerque Júnior tece críticas às tolas aspirações de grupos identificados com a direita política, segundo as quais é possível fomentar uma prática de ensino isenta de valores. Inspirado no pensamento de Michel Foucault, o estudioso propõe uma “desnaturalização” tanto do objeto quanto do sujeito escolar, atitude capaz de ampliar o campo de visão de pesquisadores, favorecendo a percepção da escola como um espaço de resistências - não de obviedades - e do professor como um sujeito “situacional, pragmático e relacional”. Para Albuquerque Júnior, atentando-se não apenas aos discursos produzidos no ambiente escolar, mas, sobretudo, às performances corporais, o professor continuará sendo um sujeito incômodo, pois, com ele, diferentes valores adentram às escolas.

A segunda parte é composta por capítulos que fazem jus ao título atribuído à obra. Deste modo, percebemos nos trabalhos de Mauro Cezar Coelho e Taissa Bichara, Sonia Regina Miranda, Nadia Gonçalves, María Paula Gonzalez (convidada argentina) e Carmen Teresa Gabriel um esforço no sentido de cartografar as pesquisas desenvolvidas em Ensino de História no Brasil e, também, na Argentina. Por meio de ferramentas como o Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, além de periódicos nacionais e estrangeiros avaliados pelo quadro de referência da CAPES, os pesquisadores supracitados apontaram que, mesmo localizado em uma zona de fronteiras, sobretudo entre a Pedagogia e a História, é na área da Educação que o Ensino de História encontra uma melhor acolhida e valorização.

O conteúdo dos capítulos coligidos na segunda parte da obra permite-nos compreender que os grupos de pesquisa em Ensino de História começaram a ganhar projeção após a reabertura política, tanto no Brasil (a partir da década de 1980) quanto na Argentina (a partir da década de 1990). Marcada por fronteiras multidisciplinares e dialógicas, o Ensino de História também estabeleceu redes de intercâmbio e colaboração por meio de projetos que viabilizaram a emergência de novos temas e abordagens (a exemplo da consciência histórica e política de jovens estudantes), estreitando a relação de países como Argentina e Brasil. Ademais, a virada do século XXI representou para ambas as nações um aumento expressivo no número de publicações na área. No Brasil, especificamente, este momento também denota a consolidação do campo de conhecimento sobre o Ensino de História.

Sob a perspectiva da Teoria do Discurso, os autores mencionados nos conduzem a perceber a relevância da distinção entre as pesquisas “sobre/em” Ensino de História, demarcando o cuidado em não reduzir o campo de conhecimento ao seu objeto de investigação. Com esta abordagem, também se torna possível reconhecer e investigar as “demandas de igualdade, de diferença e de qualidade que interpelam nossa ordem social, nossas escolas e o conhecimento que nelas são produzidos, reelaborados e distribuídos” (p.148). A valorização de categorias discursivas multiculturais - que exercem influência tanto sobre a escola quanto sobre a História ensinada - fomenta a desestabilização de fronteiras que diminuem nosso campo de atuação científica.

Por outro lado, a dissonância nos discursos proferidos entre pesquisadores de diferentes vertentes pode prejudicar, ou mesmo desqualificar, os saberes produzidos no campo do Ensino de História. Com argumentos provocativos, os autores aqui elencados nos mostram como as críticas lançadas por historiadores contra a primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) fomentaram uma sequência de “golpes” que resultou na versão final encomendada pelo Estado, a qual confirmava o velho código disciplinar canônico baseado no modelo quadripartite europeu. Este revés denota a falta de autonomia de nosso campo científico, ainda incapaz de refratar imposições externas.

Não obstante os ataques, o Ensino de História tem resistido em diferentes frentes. É o que mostram os capítulos reunidos na terceira parte do livro. No primeiro deles, Cristiani Bereta da Silva analisa práticas de leitura relacionadas aos usos de livros destinados aos exames de admissão para o ensino Secundário, bem como os rituais que demarcavam este processo avaliativo. Instituídos em 1931 pela Reforma Francisco Campos, os exames admissionais não apenas prescreviam os conteúdos relacionados à História do Brasil, como também apontavam para um projeto educacional que visava a formação dos futuros dirigentes do país. Por um lado, o estudo evidencia mecanismos de controle utilizados pelo Estado sobre o Ensino de História, no passado, mas, permite-nos também estabelecer comparações com o presente.

Em seguida, Flávia Eloísa Caimi e Letícia Mistura apresentam uma reflexão acerca do lugar epistemológico ocupado pelo Ensino de História. Retomando parte da discussão anteriormente citada, as autoras destacam a característica fronteiriça das investigações que envolvem os processos de ensinar e aprender História. Deste modo, percebe-se que o Ensino de História se apropria de diferentes domínios (como a Educação, a História e a Retórica) e campos (como a Didática e o Currículo), os quais permitem-lhe a atribuição de diferentes sentidos (como o da história cotidiana, da história escolar e da história-conhecimento). Portanto, ainda que lhe seja negado o status de campo científico, tendo em vista sua dependência epistemológica, o Ensino de História pode ser circunscrito como um lugar de pesquisa ou mesmo um campo, “uma vez que existem nele agentes dominantes que, de certa forma, impõem (...) condições de produção” (p.195).

Em sintonia com as demandas sociais da atualidade, Warley da Costa discute os sentidos de “negro” na coleção didática História.doc, aprovada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Embora não tenha sido possível apresentar um quadro mais amplo, tendo em vista a seleção de uma única coleção, o trabalho da pesquisadora nos leva a perceber transformações discursivas decorrentes da inserção de questões étnico-raciais no currículo de História. Sendo o livro didático um espaço de lutas identitárias e apropriações, observa-se uma reconfiguração de narrativas a qual, mesmo privilegiando uma abordagem eurocêntrica, realiza, agora, a valorização da História da África e dos afrodescendentes.

Ao enfocar memórias e práticas de professores de História da rede municipal de São Paulo, Helenice Ciampi analisa entrevistas realizadas com docentes que atuaram no período da ditadura militar. Dentre os sujeitos elencados, a autora conferiu destaque às narrativas de uma professora alfabetizadora. Seguindo a metodologia da História Oral, a investigação privilegiou a história de vida da informante, buscando compreender como a entrevistada “lidava com as normas escolares no período e, ao mesmo tempo, filtrava suas memórias do passado a partir do presente enunciativo da entrevista” (p. 222). Neste percurso, foi possível compreender alguns dos confrontos encetados pela informante, em movimentos que revelam seu protagonismo diante de situações adversas.

Por sua vez, Cintia Monteiro de Araujo faz uma reflexão acerca dos pressupostos teóricos que permitem desvelar o lugar da diferença na pesquisa em Ensino de História. Para a autora, a organização curricular ainda é baseada em uma perspectiva temporal linear e progressiva que, na História ensinada, torna-se perceptível através da permanência do regime moderno de historicidade. Ainda que não considere as marcas desta tradição como um elemento negativo, a autora destaca a necessidade de valorizarmos outras formas de experiência social - sobretudo em uma perspectiva intercultural, capaz de promover o reconhecimento do outro.

Com foco na formação docente (inicial e continuada), Carlos Augusto Lima Ferreira discorre sobre um projeto de extensão desenvolvido com o intuito de estreitar a relação da universidade com a escola pública, além de fomentar a interdisciplinaridade entre os estudantes dos cursos de História, Geografia e Letras. Neste sentido, o autor, com o apoio de bolsistas de Iniciação à Docência e professores da rede pública, relata sua imersão na comunidade quilombola da Lagoa Grande, em Feira de Santana - Bahia, com o fito de valorizar o estudo da História Local através das memórias e do cotidiano de seus moradores.

Resultado de suas investigações no campo do conhecimento histórico escolar, Ana Maria Monteiro demonstra como tem operado com um instrumental teórico que considera não apenas o que sabem os professores, mas, principalmente, o que compreendem acerca da disciplina que ensinam. Nesta perspectiva, os saberes docentes são vistos como um conjunto de habilidades e conhecimentos mobilizados de maneira original, fazendo do exercício de sua profissão um “lugar de autoria” específico. A partir deste “lugar”, conclui a autora, é possível identificar três categorias de conhecimento, a saber: o conhecimento da matéria ensinada, o conhecimento curricular e o conhecimento pedagógico da matéria ensinada.

Enfim, Cartografias da Pesquisa em Ensino de História é um livro que evidencia a complexidade em se definir o lugar epistemológico do Ensino de História. Neste sentido, denota a necessidade de buscarmos outras formas de inteligibilidade para o seu campo de conhecimento. Em que pese as possíveis divergências teóricas de seus autores, a obra ressalta, de maneira consensual, o caráter político e combativo do Ensino de História e, deste modo, convida o leitor - professores e estudantes - para se engajar na luta contra os ataques revisionistas dirigidos à escola, aos professores e ao conhecimento histórico escolar. A obra enfatiza que a Educação, assim como o Ensino de História, é um direito de todos.

REFERÊNCIAS

MONTEIRO, Ana Maria ; PENNA, Fernando de Araujo. Ensino de História: saberes em lugar de fronteira. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 36, n.1, p. 191-211, jan./abr, 2011. Disponível em:<Disponível em:http://www.ufrgs.br/edu_realidade > Acesso em:15 jan. 2020 [ Links ]

MONTEIRO, Ana Maria ; RALEJO, Adriana(orgs.). Cartografias da Pesquisa em Ensino de História. Rio de Janeiro: Mauad X, 2019. [ Links ]

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