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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 15-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/0102-469835502 

Artigos

A GINÁSTICA DOMÉSTICA DE DANIEL SCHREBER: MANUAIS EM CIRCULAÇÃO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX

LA GIMNÁSTICA DOMÉSTICA DEL MÉDICO DANIEL SCHREBER: MANUALES EN CIRCULACIÓN EN LAS ÚLTIMAS DÉCADAS DEL SIGLO XIX

DIOGO RODRIGUES PUCHTA1 
http://orcid.org/0000-0002-7994-2759

MEILY ASSBÚ LINHALES2 
http://orcid.org/0000-0003-2762-4916

1 Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Ibirité, MG, Brasil. <diogo.puchta@uemg.br>

2Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. <meily_linhales@yahoo.com.br>


RESUMO:

Este estudo versa sobre os processos de produção e circulação de um manual intitulado Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos, publicado pela primeira vez em Leipzig, no ano de 1855, pelo médico alemão Daniel Gottlob Moritz Schreber e endereçado a pais e educadores. Partindo de uma escala particular de observação que inclui singularidades que caracterizam a difusão do referido manual entre a segunda metade do século XIX e início do XX, buscou-se identificar as estratégias autorais e editoriais adotadas, bem como os exercícios de “fabricação” presentes nas várias traduções, de modo a compreender como os textos impressos conferem e agregam efeitos de verdades a determinados saberes sobre o corpo. De modo mais específico, são analisadas duas traduções da obra que circularam no Brasil. A primeira publicada em Lisboa, em 1879, e a segunda no Rio de Janeiro pelo jornal Gazeta de Notícias, em 1887. O estudo nos permite afirmar que foram as traduções, como estratégias de apropriação e circulação cultural, que permitiram a esta obra um notável alcance em diferentes países.

Palavras-chave: educação do corpo; manuais de ginástica; Schreber

RESUMEN:

Este estudio aborda los procesos de producción y circulación de un manual titulado Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos, publicado por primera vez en Leipzig, en 1855, por el médico alemán Daniel Gottlob Moritz Schreber y dirigido a padres y educadores. Partiendo de una escala de observación particular que incluye singularidades que caracterizan la difusión del referido manual entre la segunda mitad del siglo XIX y principios del XX, se buscó identificar la autoría adoptada y las estrategias editoriales, así como los ejercicios de “fabricación” presentes en las distintas traducciones, para comprender cómo los textos impresos confieren y agregan efectos de verdades a ciertos conocimientos sobre el cuerpo. Más específicamente, se analizan dos traducciones del trabajo que circuló en Brasil. La primera fue publicada en Lisboa, en 1879, y la segunda en Río de Janeiro por el diario Gazeta de Notícias, en 1887. El estudio permite afirmar que fueron las traducciones, como estrategias de apropiación y circulación cultural, las que permitieron a este manual un alcance notable en diferentes países.

Palabras clave: educación del cuerpo; manuales de gimnasia; Schreber

ABSTRACT:

This study deals with the production and circulation processes of a manual entitled Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos, first published in Leipzig, in 1855, by the German physician Daniel Gottlob Moritz Schreber and addressed to parents and educators. Starting from a particular scale of observation that includes singularities that characterize the diffusion of the referred manual between the second half of the 19th century and the beginning of the 20th, we sought to identify the adopted authorship and editorial strategies, as well as the “manufacturing” exercises present in the various translations, in order to understand how printed texts confer and add effects of truths to certain knowledge about the body. More specifically, two translations of the work that circulated in Brazil are analyzed. The first was published in Lisbon, in 1879, and the second in Rio de Janeiro by the newspaper Gazeta de Notícias, in 1887. The study allows us to affirm that it was translations, as a strategy of appropriation and cultural circulation, that allowed tris work to achieve a remarkable achievement reach in different countries.

Keywords: body education; gymnastics manuals; Schreber

INTRODUÇÃO

Este estudo é parte de uma investigação maior cujo propósito é analisar os processos de produção e circulação de prescrições para a educação do corpo que, privilegiadas em uma dada época, foram capazes de legitimar e autorizar discursos e finalidades pedagógicas, não somente nas escolas, mas também em outros tempos e lugares da vida social.1De modo mais específico, nossa investigação priorizou o estudo de um manual intitulado Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos, publicado pela primeira vez em Leipzig, no ano de 1855, pelo médico Daniel Gottlob Moritz Schreber e endereçado a pais e educadores.2 Na operação historiográfica estabelecida, este manual foi tomado como escala particular de observação por conter, em si, elementos para análise das relações estabelecidas entre a educação do corpo e a educação da moral e da vontade e as interseções entre a denominada natureza dos corpos e os processos de racionalização e metodização dos saberes sobre o movimento corporal. Partimos do pressuposto de que os diferentes exercícios de sistematização/planificação conferiram às ginásticas um lugar de excelência entre as maneiras de educar os corpos na Modernidade, abrindo possibilidades para a produção de outras estratégias de afirmação de uma autoridade pedagógica sobre o corpo, por exemplo, a disciplina escolar Educação Física.3

Os manuais de ginástica, formas modelares de sistematização, aqui considerados como produções culturais, agregaram às práticas de exercitação um efeito de verdade sobre a saúde do corpo e sobre o prolongamento da vida, em estreita relação com a contenção dos impulsos, com a crença de que existe um corpo natural/biológico e com o estabelecimento de um amor/ódio pelo corpo tanto no plano do “cada um” como no plano da cultura.4

As preocupações e os interesses relativos à educação do corpo despertaram a produção e a propagação de uma infinidade de manuais de ginástica ao longo do século XIX, e o de Schreber é apenas mais um. Além disso, outros estudos nos mostram como as prescrições de exercícios ginásticos também estiveram presentes em diversas obras médicas e, ainda, nos manuais indicados como de pedagogia e higiene.5 A partir da Europa, a ginástica compreendida como a “arte de desenvolver o organismo por meio de exercícios bem dirigidos” (LAURET, 1881, p. 79) se torna uma prática terapêutica e educativa bastante difundida, alcançando, gradativamente, sua larga aceitação e legitimação social. Pode-se considerar que os impressos, na forma de compêndios, manuais, tratados ou regulamentos, contribuíram sobremaneira para sua divulgação e popularização. Alguns foram produzidos tendo como público-alvo os professores que se ocupavam do ensino da ginástica nas escolas e liceus, outros pretendiam atingir um público maior, como estratégias impressas de propagação de saberes e orientações de ordem médica e, ou, higiênica que visavam a prevenir ou remediar enfermidades.6 Muitos desses manuais produzidos na Europa circularam em diferentes países da América Latina, tanto em suas línguas originais quanto por meio de traduções, dando a ver os exercícios de apropriação e ressignificação.7Ao perscrutar elementos dessa circulação cultural, interessou-nos identificar algumas estratégias autorais e editoriais adotadas, bem como os exercícios de “fabricação” presentes nas várias traduções, de modo a identificar como os textos impressos conferem e agregam efeitos de verdades a determinados saberes sobre o corpo.

No Brasil, o manual Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos foi adotado como referência para o ensino da ginástica em diferentes regiões e representado como um método de vasta notoriedade (PUCHTA, 2015). Partindo, então, de um mapeamento feito no País, interessou-se por conhecer as duas traduções que aqui circularam - uma publicada em Lisboa [1879], e outra, no Rio de Janeiro (1887) - atentando para o fato de que elas possam ter atuado como mediadoras na popularização do conhecimento médico-pedagógico atribuído ao dr. Schreber. Não menos importante foi conhecer esse médico-autor, alguns aspectos relevantes sobre o contexto de produção da obra e os percursos transformativos advindos de sua circulação e apropriação.

SOBRE TERAPÊUTICAS E ORTOPEDIAS

Desde os anos finais do século XVIII até as primeiras décadas do século XX, a Gymnastica, como “arte methodica”, “exercício dirigido”, recebe atenção especial e compõe, de modo incisivo, os cuidados com o corpo. Como sistematizações ordenadas, os manuais participaram da produção cultural de uma moderna disciplina dos “corpos endireitados” (VIGARELLO, 1978) ou dos “corpos retos” (SOARES; FRAGA, 2003), capazes de interatuar no mundo oitocentista fabril, urbano, febril e massificado. Sobretudo a partir da Europa, essas obras contendo exercícios regrados foram integradas a outros textos orientadores da saúde e da higiene, não apenas do corpo individual, mas também como parte constituinte das orientações e rotinas das instituições (escolas, asilos, sanatórios) constituintes dos modernos Estados-Nações em afirmação. Os manuais de ginástica incluíram maneiras de educar os corpos de crianças e adultos, homens e mulheres, conferindo aos textos estabelecidos e às imagens (quase sempre presentes) um estatuto modelar, tanto pelo que era explicitamente anunciado, apalavrado, como também pelos elementos implícitos, expressos de modo velado. Termos como “racional”, “terapêutico”, “metódico”, “científico”, com vistas à “correção” e à “regeneração”, compunham um léxico capaz de conferir autoridade e legitimidade a um conjunto de orientações ortopédicas e higiênicas, quase sempre acompanhadas de descrições indicativas dos efeitos destas não somente sobre o corpo e suas moléstias, mas também sobre o espírito, a moral ou a vontade. Como anuncia a epígrafe existente na introdução da edição portuguesa do manual de Schreber, “Para que se mantenha em plena prosperidade a vida do espírito, deve o corpo conservar a sua força e atividade” (SCHREBER, [1879], p. 7).

Construía-se, de modo gradativo e cumulativo, uma expectativa social de que os exercícios ginásticos pudessem remediar os males, os desgastes e as perdas identificadas no corpo e, muitas vezes, relacionadas às condições objetivas de vida, intrínsecas ao próprio progresso. Santner (1997), em diálogo com a obra The human motor (RABIMBACH, 1992), que analisa a fadiga e a debilitação que ameaçavam as apostas otimistas no progresso, discute os desarranjos relativos à Modernidade, em sua relação com o corpo, e assim argumenta:

A perspectiva do desperdício de energia humana e do poder do trabalho gerou não apenas temores de declínio e até de morte cósmica, mas também uma nova ética social de preservação da energia e uma proliferação de projetos de pesquisa voltados para a maximização da produtividade da “máquina humana”, bem como para a minimização da “obstinada subversão do corpo pela modernidade” (SANTNER, 1997, p. 20).

Diante dos desafios tecnocientíficos para fazer o corpo render, a ideia de prosperidade do espírito associada à expectativa de modernização da vida (não sem uma atenção aos efeitos nefastos desta sobre o corpo) foram temáticas recorrentes nas sistematizações da ginástica. Representada comumente pelas máquinas, pela velocidade ou pelo urbano, a ideia de progresso passaria também a convocar uma dada “natureza dos corpos” e os exercícios harmoniosos seriam uma possível forma de retorno a uma espécie de “natureza perdida”. E, nessa perspectiva, uma forma de compensar “a diminuição da força dos órgãos, o desequilíbrio e a perturbação das funções naturaes, a invasão de muitas de graves doenças e, por fim, a morte prematura” (SCHREBER, [1879], p. 7). O caráter indenizatório da ginástica estava dado. Para salvar o corpo dos males do progresso, ela deveria aproximar-se do que fosse o mais “natural” possível para as funções corporais.

Contudo, a partir das ações e dos deslocamentos de diferentes sujeitos, alguns desses manuais europeus de ginástica passaram também a ser adotados em outras partes do mundo como artefatos integrantes das apostas civilizatórias. Se concebidos como antídotos aos problemas da vida moderna, tais dispositivos médico-pedagógicos foram, ao mesmo tempo, usados como estratégias disciplinares ante os corpos “bárbaros” e “disformes” dos países não europeus, onde a “natureza dos corpos” deveria ser, mais uma vez, disciplinada. Assim, a ginástica foi enfatizada para minorar a fraqueza, a vadiagem, a preguiça, pois as prescrições corretivas e os alinhamentos corporais e morais se afirmavam igualmente como possibilidades para a domesticação dos corpos “esgrouvinhados”, não civilizados, que traziam impulsos rebeldes capazes de se contrapor ao desenvolvimento e ao progresso que, nas práticas colonizadoras, foram afirmados como caminhos inexoravelmente ideais.8Assim, representado como dócil e disciplinável, como doente e neurastênico, como subversivo e perturbador da ordem, o corpo esteve presente no debate médico-pedagógico, recapitulando uma pergunta clássica: como é possível educá-lo?

As ginásticas bem como as instituições escolares compuseram o projeto civilizador moderno e, com tal, têm frequentado os debates relativos à História da Educação, especialmente a partir do diálogo com uma tradição francesa de investigação, que toma o corpo como uma construção histórico-cultural (LINHALES; SILVA; 2020; AZEVEDO; LIMA, 2021). É nessa perspectiva que os manuais de ginástica e de higiene, entre outros, têm sido perscrutados como objetos e como fontes nas pesquisas históricas, confirmando a potencialidade desses documentos para a historiografia do campo. Como vestígios das maneiras de agir sobre o corpo, muitos desses manuais indiciam, seja pelo conteúdo textual e imagético que veiculam, seja por sua materialidade como artefato do mundo letrado, os efeitos de verdade e ciência que representaram: modelagens para educar o corpo. Não menos relevante tem sido investigar os processos de circulação e a dimensão transformativa presente nos usos e nas apropriações que foram feitas desses livros. Assim, este estudo prioriza um desses manuais entre tantos outros adotados como orientação médico-pedagógica para a prática da ginástica no Brasil, buscando extrair do diálogo com a historicidade que carrega algumas reflexões e características sobre o tema.

SCHREBER: PECULIARIDADES DE UM AUTOR, PISTAS SOBRE SUA OBRA

Daniel Gottlob Moritz Schreber nasceu em Leipzig, em 1808, no então Reino da Saxônia. Membro de uma família burguesa, cursou Medicina em sua própria cidade e, já como médico, assumiu diferentes cargos ao longo de sua carreira. Foi professor na mesma universidade onde se formou, além de diretor do Instituto Ortopédico e Médico-Ginástico de Leipzig. Por meio dessa instituição, afirmou sua notoriedade e autoridade, na cena urbana daquela cidade, como especialista em ortopedia (Fig. 1) e sendo convocado também para orientar e prescrever sobre temas atinentes à saúde pública e à higiene (NIEDERLAND, 1981; ISRAELS, 1986; SANTNER, 1997). No âmbito da educação, apresentou maior interesse pelas variadas maneiras de educar os corpos, mas sobretudo pela ginástica.

Fonte: Israëls (1986, p. 64).

Figura 1 Sede do Instituto Ortopédico e Médico-Ginástico 

A partir de um levantamento realizado no acervo da Biblioteca do Estado da Baviera,9 identificamos treze diferentes títulos de autoria de Schreber, dando a ver a intensidade de sua produção num curto período: as décadas de 1840 e 1850.10 São várias obras publicadas, sendo Ärztliche Zimmergymnastik a mais traduzida para diferentes idiomas e a com o maior número de edições. Entre os assuntos abordados nas obras, encontram-se desde temas relacionados à área médica, voltados para clínicos e colegas de profissão (dosagem de medicamentos, método de cura pela água fria, peculiaridades do organismo das crianças) até assuntos referentes à educação, voltados para pais, professores e educadores. Merecem atenção os estudos sobre as posturas e hábitos prejudiciais às crianças, a visão médica relativa ao sistema escolar, à educação popular e às aproximações entre casa e escola. Foi possível constatar, contudo, que Schreber se dedicou mais especificamente às relações entre os exercícios corporais, a saúde e o refinamento espiritual.

É também relevante comentar que Schreber ficou conhecido na Alemanha (e na Saxônia, em particular) a partir das “Associações Schreber”, criadas com o intuito de preservar a memória do médico após sua morte, em 1861. Tais associações se encarregaram de difundir uma das criações atribuídas a Schreber: os Schrebergärten. Tratava-se da construção de pequenos jardins urbanos destinados inicialmente à educação das crianças pequenas e, posteriormente, desenvolvidos como espaços a serem ocupados por pessoas das mais variadas idades. Segundo Santner (1997, p. 15), “Numerosos textos sobre saúde pública, educação infantil e os benefícios do ar puro e do exercício inspiraram a criação desses jardins, no fim do século XIX”.

O tema dos Schrebergärten e a relação destes com o movimento denominado Lebensreform (Reforma da Vida) são objetos de análise de Paiva et al. (2018) e Vaz (2020), buscando compreendê-los como experiências forjadas na transição entre os séculos XIX e XX. Em suas contribuições, Vaz localiza a relevância dos jardins urbanos e dos propósitos do dr. Schreber em suas obras sobre a ginástica, provocando-nos a pensar, com base nas contribuições da teoria crítica, mais especificamente na obra Dialética do esclarecimento (HORKHEIMER; ADORNO, 1985), a estreita relação entre domínio do corpo e controle da natureza. Agrega à sua própria análise a necessidade de nuançar a referida crítica, “Deixando o convite para que a pesquisa a partir de outros estudos que abordem a diversidade de práticas vinculadas à Lebensreform na sociedade sigam sendo pesquisadas” e indicando que, “por meio do somático, também se conta uma história” (VAZ, 2020, p. 15). Por certo, muitas são as possibilidades anunciadas para a escrita de uma história que aborde as variadas contribuições do médico alemão e de suas obras, com base em diferentes chaves interpretativas.

Por fim, outro aspecto não menos importante sobre o autor da Gymnastica doméstica, médica e hygienica é a controvérsia relativa a seu ambiente familiar. Alguns aspectos por vezes analisados como uma rigidez disciplinar de Schreber podem ser percebidos na própria educação de seus filhos. Nesse tópico, mereceu nossa atenção o famoso caso de paranoia que acometeu Daniel Paul Schreber, seu terceiro filho, e outros fatos inusitados, incluindo o suicídio de Daniel Gustav Schreber, o filho mais velho.

Entre os vários casos clínicos descritos e analisados por Freud em seus exercícios de demarcação das estruturas e dos mecanismos de funcionamento do psiquismo humano, encontra-se o denominado Caso Schreber, que aborda, de maneira detalhada, o adoecimento do juiz Daniel Paul Schreber (FREUD, 2010). Trata-se de um caso de notoriedade para a história do pensamento psicanalítico, como também o foram o Caso Dora, o de Anna O., o Homem dos lobos, a Jovem homossexual, o Pequeno Hans, entre outros. Todavia, o que há no Caso Schreber que o distingue dos demais é o fato de que Freud não atendeu clinicamente o juiz Daniel Paul Schreber, como ocorrido em outros tantos casos estudados e posteriormente registrados por ele. Nesse estudo dedicado à paranoia, Freud se valeu do livro intitulado Memórias de um doente dos nervos, escrito como uma espécie de relato autobiográfico e por meio do qual o juiz pretendia tornar pública sua própria experiência de adoecimento. Freud argumenta que, na escrita de Schreber filho, quando ele menciona Deus, sua principal referência seria o pai “transfigurado” em alguém capaz de “curas milagrosas” junto aos pacientes que o veneravam. E, no exercício de compreensão da relação entre pai e filho, apresenta ao leitor uma pergunta: “Há maior expressão de escárnio por tal médico do que afirmar que ele nada entende de homens vivos e sabe lidar apenas com cadáveres?” (FREUD, 2010, p. 69). Nas breves considerações que faz sobre o dr. Moritz Schreber, Freud reconhece sua importância no campo médico e educacional:

Ora, o pai do juiz presidente não fora um homem insignificante. Era o dr. Daniel Gottlob Moritz Schreber, cuja memória é ainda hoje conservada pelas associações Schreber, particularmente numerosas na Saxônia […]. Seu renome como criador da ginástica terapêutica na Alemanha é evidenciado pelas muitas edições que sua Ärztliche Zimmergymnastik teve entre nós (FREUD, 2010, p. 68-69).

Pode-se presumir que o relato autobiográfico de Daniel Paul Schreber impressionou Freud, pois, mesmo com suas características de uma narrativa delirante, fora estabelecido de modo pormenorizado, como um esforço próprio e singular de produzir sentidos sobre si mesmo. Tal modo de interpretação coloca em relevo o protagonismo inventivo de Schreber filho diante de seu adoecimento. Essas e outras representações sobre o caso constituem, inclusive, possibilidades de análise e problematização dos sentidos conferidos à educação e à saúde na Alemanha, nas últimas décadas do século XIX. As maneiras de educar os corpos e as justificativas para os métodos e as normas compartilhadas por pai e filho ajudam-nos a interpretar os efeitos de uma dada Modernidade e de sua aposta na razão e na ideia disciplinadora e irreversível do progresso.

SOBRE O MANUAL GYMNASTICA DOMÉSTICA, MÉDICA E HYGIENICA

Das obras publicadas por Schreber, a que obteve maior difusão foi certamente a Ärztliche Zimmergymnastik (Gymnastica doméstica, médica e hygienica), ficando bastante conhecida na Alemanha e fora dela. Não por acaso, entre os livros localizados na Biblioteca do Estado da Baviera, foi o que acusou o maior número de exemplares presentes no acervo. Esse manual foi amplamente divulgado em sua primeira publicação e chegou a atingir uma tiragem de 300 mil exemplares ao longo de suas 32 edições pela Friedrich Fleischer (ISRAËLS, 1986, p. 242). Popularizada, a obra foi traduzida muito rapidamente para, pelo menos, sete idiomas (ISRAËLS, 1986, p. 244).

Em suas várias edições em alemão, desde 1855, o manual do dr. Schreber foi intitulado Ärztliche Zimmergymnastik oder System der ohne Gerät und Beistand überall ausführbaren heilgymnastischen Freiübungen als Mittel der Gesundheit und Lebenstüchtigkeit für beide Geschlechter und jedes Alter (Ginástica doméstica, médica e higiênica ou representação e descrição de movimentos ginásticos que não exigem aparelho algum nem auxílio estranho e podem ser executados em qualquer ocasião e lugar para uso dos dois sexos e para todas as idades acompanhada com aplicações a diferentes afecções), anunciando, assim, já em sua denominação inicial, uma ampla pretensão de abrangência. Na figura 2, são apresentadas duas versões de capas, publicações do referido manual, realizadas na cidade de Leipzig, pelo editor Friedrich Fleischer, respectivamente nos anos de 1867 e 1899. Em suas primeiras edições, as capas não incluíam imagens, como passaria a ocorrer posteriormente, inclusive realçando a pertinência do livro tanto para homens como para mulheres.

Edição de 1899. Leipzig: Friedrich Fleischer.

Fonte: Biblioteca Estadual da Baviera. Fonte: Acervo do Cemef/UFMG.Edição de 1867. Leipzig: Friedrich Fleischer.

Figura 2 Capas de duas edições publicadas em alemão 

Com enorme notoriedade na Europa na segunda metade do século XIX, o livro foi muito rapidamente traduzido e republicado. Se tomarmos os exercícios de tradução como práticas interessadas e contextualizadas de apropriação, torna-se relevante considerar os usos, os acréscimos, as supressões e outras tantas formas de “fabricação cultural” às quais foi submetido esse manual. Em Portugal, a obra traduzida de Julio de Magalhães, com data indicativa de 1879, recebeu o título de Gymnastica domestica, medica e hygienica ou representação e descripção de movimentos gymnasticos que não exigem aparelho algum nem auxilio extranho, e podem ser executados em qualquer ocasião e logar, para uso dos dois sexos e para todas as edades, acompanhada com aplicações e diferentes afecções (Fig. 3-A). No Brasil, a versão traduzida por Ramalho Ortigão e publicada em 1887 pela Typografia Gazeta de Notícias, recebeu título já bastante reduzido: Gymnastica de quarto, hygienica e therapeutica (Fig. 3-B).

A - Edição portuguesa, publicada em Lisboa, com tradução de Julio de Magalhães, 1879. Fonte: Acervo do Cemef/UFMG e Biblioteca Nacional do Desporto, Portugal. Fonte: Biblioteca Nacional do Desporto - Portugal. B - Edição publicada no Rio de Janeiro, com tradução de Ramalho Ortigão, 1887.

Figura 3 Capas de duas edições publicadas em português 

Na Espanha, a tradução de D. Estéban Sanches de Ocaña, publicada em 1861 pela Libreria D. Carlos Bailly - Extranjera y Nacional, Cientifica y Literária, foi assim nomeada: Manual popular de gimnasia de sala, médica e higiénica o representacion y descripcion de los movimientos gimnásticos que, no exigiendo ningum aparato para su ejecucion, pueden practicarse en todas partes y por toda clase de personas de uno y otro sexo. Na figura 4, a capa de uma edición facsímil, de 2010, no tamanho 14,5 cm x 10,5 cm, que reporta à 14ª edição espanhola, do ano de 1891, traz não somente imagens, mas também diferentes cores. Tanto o número de edições levadas a termo na segunda metade do século XIX quanto a iniciativa recente de sua reprodução em formato idêntico dão a ver a relevância da obra entre os espanhóis, como um “manual popular”.

Fonte: Acervo do Cemef/UFMG

Figura 4 Edición facsímil de 2010, publicada em Valladolid pela Editora Maxtor 

Com variações em seus títulos, todas as edições citadas trazem 45 imagens que, intercaladas aos textos, cumprem a função de demonstrar, em desenhos de corpos masculinos, os exercícios prescritos. A proposta é apresentada como uma contribuição “médica e hygienica” de suma importância:

Da possibilidade de executar em toda a parte os preceitos que formam o systema de gymnastica domestica, e de os acomodar a todas as circunstancias, resulta o facto de ser esse systema próprio para constituir o meio mais conveniente de estabelecer a harmonia indispensável ao mais elevado grau de civilização, bem como o fato de não poder nunca ser substituído completamente por qual outra ordem usual de movimentos (SCHREBER, [1879], p. 44).

A partir de uma sistematização claramente metódica, com classificações de exercícios e indicação de sequências para execução, o manual ganha centralidade como uma peça exemplar. O apelo à “harmonia” é dirigido ao corpo e também indispensável ao “mais elevado grau de civilização”. Como justificativa apresentada por Schreber para a publicação desse manual de ginástica estava sua convicção de que o corpo deveria alinhar-se às leis da natureza.

Os processos cujas práticas aconselhamos no presente livro constituem um systema em tudo conforme com as leis da natureza, por meio do qual a vida civilisada, nos seus progressos dia a dia mais elevados e sublimes, póde ser collocada e mantida em completo accôrdo como as leis fundamentais do organismo humano, por meio do qual o desenvolvimento do nosso corpo póde ser beneficiado e defendido das innumeras imperfeições por que póde ser afetado, e finalmente por meio do qual os voos do nosso espirito podem ser estabelecidos em bases definidas, que na verdade lhes são indispensaveis (SCHREBER, [1879], p. 4).

De modo bastante explícito, identifica o sublime e o benéfico do lado do trabalho metódico e bem definido, ao mesmo tempo em que afirma ser o corpo composto por leis similares. Os exercícios deveriam ser empregados com base na divisão da ginástica em três ramos: ginástica médica, higiênica e terapêutica. A ginástica terapêutica era recomendada para remediar certas imperfeições e doenças do organismo cuja origem, no entendimento de Schreber, podia ser deduzida de uma falta maior ou menor de movimentos corporais. A ginástica higiênica tinha um caráter preventivo, ou seja, não tinha a finalidade de curar e sim preservar o indivíduo dessas doenças e imperfeições, visando à manutenção da saúde. Já a ginástica médica era conhecida pela ligação desses dois ramos diferentes de ginástica, definidos e aplicados pelo médico alemão.

A ginástica doméstica poderia ser realizada individualmente, em qualquer local e dispensando o uso de aparelhos e o auxílio de outras pessoas. O manual é composto por uma gama variada de exercícios, especialmente para os membros e as articulações. Em seu método, toda a musculatura do corpo, mediante os movimentos de cabeça, ombros, tronco, braços e pernas, deveria ser trabalhada. Os exercícios prescritos, além de desenhados (corpos masculinos e adultos), são acompanhados de breves explicações sobre os diferentes efeitos causados no organismo. O manual também é composto por séries e, ou, grupos de exercícios com diferentes finalidades. Um registro imagético sequencial contendo os 45 exercícios foi encontrado como apêndice suplementar em uma edição alemã do ano de 1903 (Fig. 5)

Fonte: Schreber (1903).

Figura 5 Os 45 exercícios da Ärztliche Zimmergymnastik 

No Brasil, o manual de Moritz Schreber, mesmo não se caracterizando como um manual escolar, foi adotado oficialmente no ensino público primário do Estado do Paraná, em 1882. A obra também circulou em outros Estados brasileiros, como São Paulo e Minas Gerais, assim como no Rio de Janeiro . Elementos que atestam também a circulação das obras do ortopedista alemão, especialmente da Gymnastica doméstica, médica e hygiênica, são as citações feitas a ele nos primeiros manuais de ginástica publicados por autores brasileiros. Esse foi o caso de pelo menos cinco títulos diferentes, como escrutinado por Diogo Puchta (2015) em sua tese. São eles: o Manual theorico-pratico de gymnastica escolar, publicado no Rio de Janeiro por Pedro Manoel Borges, em 1888; a Gymnastica nas aulas: manual theorico-pratico, publicado em São Paulo por Manoel Baragiola, em 1895; o Compendio de gymnastica escolar, publicado no Rio de Janeiro por Arthur Higgins, em 1896 e 1909; e o livro Homem forte, publicado em Curitiba por Domingos Nascimento, em 1905. Com efeito, pode-se argumentar que a circulação das ideias se dá pela própria circulação da obra. Possivelmente, o livro de Schreber fosse o manual de ginástica que mais circulara no Brasil nos anos finais do século XIX. Além das duas versões publicadas em língua portuguesa, circularam também, em nosso país, versões em alemão.

A circulação da Ginástica doméstica… em solo brasileiro contribuiu não apenas no processo de escolarização dos exercícios físicos, tornando a ginástica uma prática escolar obrigatória (PUCHTA, 2019), mas também fomentou parte do entendimento e do conhecimento a respeito da educação física e da ginástica no período. A presença de Schreber em outras obras, integrando as recomendações e prescrições veiculadas em outros manuais publicados no Brasil, mostra-nos como esse autor também participou das discussões sobre a educação física e a ginástica no período. Sua obra agregava um conjunto de ideias sobre corpo, educação e civilidade, compartilhadas a partir de um fundo comum (PUCHTA, 2015). Temas pungentes no período encontravam-se prescritos de maneira ordenada e ilustrada no manual, e ainda carregavam a autoridade de um renomado médico alemão, especialista em crianças. Além do Brasil, mapeamos a presença da obra de Schreber em outros países latino-americanos. A Ginástica doméstica… também integra acervos de países vizinhos, como é o caso da Argentina e da Colômbia, podendo ainda ser consultada no acervo da Biblioteca Nacional do México.11

Apesar de sua ênfase na educação do corpo, Schreber sempre ressaltou a importância da atenção dedicada à formação do espírito. Ou seja, suas preocupações recaíam em ambos os aspectos da vida, conciliando-os de maneira “harmônica” e compreendendo tais escolhas como (re)educação da “natureza dos corpos”, especialmente os infantis, degenerados pelo que era considerado “nocivo” na vida social. Trata-se da incorporação de hábitos e comportamentos, principalmente nas crianças, e de como controlá-los e regulá-los. O dr. Schreber atualizava, por meio de seu manual e de outras prescrições, algumas ideias já em circulação desde o século XVIII. No tratado L’Orthopedie ou l’art de prevenir et de corriger dans les enfans, les dieformités du corps, publicado em 1741, Nicholas Andry (1741) também utilizou a natureza como modelo para justificar a correção dos corpos. Uma natureza a ser conduzida e direcionada conforme algumas premissas e ideais de vida, de crescimento e de desenvolvimento.

A GYMNASTICA DE QUARTO, PUBLICADA EM 1887 PELA GAZETA DE NOTÍCIAS

Em 1887, uma nova versão da Gymnastica domestica… passou a circular no Brasil. Tratava-se da primeira edição brasileira, traduzida por Ramalho Ortigão e publicada pela Gazeta de Notícias.12 Na edição brasileira, a primeira mudança já aparecia no título da obra, traduzido como Gymnastica de quarto…. Contudo a proposta era a mesma. Ou seja, a ginástica de quarto, assim como a ginástica doméstica, consistia em “Um plano determinado de movimentos das articulações susceptíveis de serem executados sem apparelhos e sem auxilio extranho e por conseguinte de um modo consecutivo e em qualquer sitio que seja” (SCHREBER, 1887, p. 3). Visando à promoção da saúde, a ginástica de quarto deveria ser adotada como medida preventiva, sem fins terapêuticos e, portanto, sem o uso de aparelhos e sem o auxílio e supervisão de um médico. Segundo Schreber, na versão de Ramalho Ortigão,

A gymnastica de quarto póde ser executada em qualquer parte, n’uma sala, n’um jardim, debaixo das árvores, na barraca de banhos, em casa ou em viagem, sem o auxilio de disposições nem de aparelhos particulares, sem assistência d’outras pessoas, como o exige a gymnastica sueca, e que póde, em summa, ser applicada em todas as circunstancias, tendo unicamente por guia a vontade (SCHREBER, 1887, p. 4).

Com efeito, o que faria da ginástica de quarto uma prática acessível e popular era justamente a aposta na facilidade de memorização dos movimentos e de realização dos exercícios, por isso era recomendada de maneira massiva, para todos os leitores que dela tomassem conhecimento.

A edição brasileira de 1887 é uma versão mais reduzida, talvez até simplificada no uso das palavras, se comparada com a edição portuguesa, traduzida por Julio de Magalhães, bem mais próxima da obra original. Verificamos que foram suprimidas algumas partes como o prefácio, a introdução, as onze séries de exercícios apresentadas no final do livro e a conclusão. Tais séries eram dedicadas ao tratamento de diferentes afecções do organismo (os “casos especiais”), tais como: congestão e dores crônicas de cabeça e do peito, para ativar e completar a respiração e remediar a estreiteza da cavidade torácica, contra sintomas de paralisia muscular, para auxiliar o desenvolvimento normal de todo o corpo, entre outras.

Quadro 1 Subdivisões das edições portuguesa e brasileira da Ärztliche Zimmergymnastik 

Além das supressões, foi possível identificar algumas alterações no conteúdo publicado, que parecia ter como leitor visado a população em geral e não mais os médicos responsáveis por serviços terapêuticos especializados. Embora preservado o enunciado dos 45 exercícios com suas respectivas imagens, as descrições foram sintetizadas e reduzidas, quando comparadas com a Ginástica domestica…, o que nem sempre tornava o texto esclarecedor para o leitor. Talvez Ramalho Ortigão tenha apostado que os desenhos falariam por si mesmos. O tradutor não formulou algo novo, mas ele empobreceu a obra, conferindo-lhe outra inteligibilidade. Do ponto de vista dos interesses editoriais, de fato, a simplificação operada tornaria o livro mais barato e acessível. Transformada numa espécie de livreto ou encarte de jornal, a obra de Schreber chegaria a um número muito maior de leitores brasileiros. Se texto e impresso são elementos distintos, embora indissociáveis (CHARTIER, 1990; GALVÃO; MELO, 2019), pode-se afirmar que o “Schreber Carioca” e sua Ginástica de quarto… parece cada vez mais distante do “Schreber de Liepzig” da Ärztliche Zimmergymnastik.

Analisando algumas edições do Gazeta de Notícias, percebemos que, a cada ano, o jornal oferecia prêmios aos novos assinantes ou àqueles que renovassem a assinatura por um ano ou um semestre. Entre os prêmios oferecidos, estava o Almanaque da Gazeta de Notícias e uma série de livros, entre eles a Gymnastica de quarto…. No ano de 1893, por exemplo, o assinante por anuidade poderia escolher receber o Almanaque ou dois livros da lista de prêmios. Já quem assinasse por seis meses poderia ficar com o Almanaque ou um livro de sua escolha. Todos esses títulos presentes na lista de publicações do jornal também poderiam ser adquiridos separadamente. No caso da Gymnastica de quarto…, cada exemplar era vendido por 1.500 réis, um preço mediano entre as demais obras.13

Em diálogo com Galvão e Melo (2019, p. 228), podemos considerar que “o texto procura instituir o leitor idealizado. Porém, os termos do leitor real, suas estratégias, seus signos, permitem-nos apenas imaginá-lo, entrevê-lo”. Pode ser que alguns leitores brasileiros da Gymnastica de quarto… tenham feito uso regular do método, conforme prescrito pelo médico ortopedista alemão, a ponto de memorizar cada um dos exercícios e suas respectivas funções e repetições. Pode ser que outros tivessem suas preferências, praticando e memorizando apenas alguns dos exercícios. Outros ainda poderiam ter incluído novas práticas, extraídas de outras obras, estabelecendo diferentes configurações em uma “relação de cooperação” (GALVÃO; MELO, 2019). Outros tantos, mesmo de posse do livro, talvez nem tenham posto em prática nada do que estava prescrito, deixando a ginástica de lado, sem sair do plano da vontade.

No texto de introdução da obra de Schreber, seção ausente no Gymnastica de quarto…, o autor assim argumenta, em defesa das finalidades de sua publicação:

Ha uma vantagem accessoria, que, para o espirito tem importancia não mediocre, e à qual por isso devemos attender. É a seguinte: applicando regularmente toda a nossa força de vontade á execução das manifestações effectivas da actividade corporal, procurando com perseverança vencer a falta de energia e a inercia corporal, chegamos, como consequencia forçada, e psychologicamente fallando, á dominação normal da parte espiritual do nosso individuo sobre a totalidade da parte corporal, a um augmento progressivo de força de vontade e de força de acção em geral, á firmeza de caracter, á coragem, necessaria para suportar as adversidades da vida, e finalmente á perseverança. D’este modo fica vencido o tão perigoso inimigo moral, contra o qual, em grande numero de doenças chronicas, nada póde o mais cuidadoso e bem escolhido tratamento corporal (SCHREBER [1879], p. 21).

Entretanto, na versão da Gazeta de Notícias, o receituário corporal, o número de repetições, as prescrições imediatas se tornaram mais relevantes do que os propósitos morais e os elevados e sublimes progressos tão refinados e almejados pelo dr. Schreber. O formato mercadoria, simbolicamente revelado pela condição de prêmio comercial, parecia oferecer à ginástica uma nova configuração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo nos permite afirmar que foram as traduções, como estratégias de apropriação e circulação cultural, que permitiram a essa obra um notável alcance em diferentes países. Parece-nos possível supor que as reinvenções, simplificações possam não ter ocorrido em todos os lugares. Por outro lado, também é notável perceber que a rigidez disciplinar que orientou a produção de Moritz Schreber, com vários elementos de disciplinamento moral a ela agregados, parecem ter se perdido pelo caminho, tornando-se uma receita, um bom molde, de como fazer ginástica.

As analises aqui apresentadas também confirmam a potencialidade das pesquisas que promovem conexões entre os vários livros e manuais produzidos pelo dr. Schreber e aquele estabelecido por seu filho Daniel Paul. No capítulo XI de Memórias de um doente dos nervos, intitulado Danos à integridade física através de milagres, alguns fragmentos do texto chamam nossa atenção:

Desde os primórdios de minha ligação com Deus até o dia de hoje meu corpo vem sendo objeto ininterrupto de milagres divinos. Se eu quiser descrever em minúcias todos esses milagres, poderia encher um livro inteiro. Posso afirmar que não há um único membro ou órgão de meu corpo que não tenha sido durante um tempo prejudicado por milagres, nem um único músculo que não tenha sido distendido por milagre, para pô-lo em movimento ou paralisá-lo, conforme o objetivo visado. […] deve ser considerada como contrária à Ordem do Mundo toda situação em que os raios, essencialmente, só se prestam a infligir danos ao corpo de um indivíduo ou a pregar alguma peça nos objetos de que ele se ocupa (SCHREBER, D. P., 1984, p. 153) (grifos nossos).

Para Marilene Carone, tradutora do livro de Daniel Paul Schreber no Brasil, a recorrência do termo “milagre” na obra diz respeito ao “acontecimento que contraria as leis da natureza, em geral de certa duração, agenciado por Deus ou por seus representantes” (SCHREBER, 1984, p. 456). Em geral, são ações nocivas, causadoras de agressões ao corpo e, a partir delas, Daniel Schreber denunciou, de modo delirante, que fora ameaçado em sua integridade corporal. Muitos outros detalhes em suas Memórias… continuam merecedores de nossa atenção e investigação: costelas quebradas, nervos arrancados, torturas com a máquina de atar cabeça, milagre da compressão do peito, diminuição do tamanho do corpo, paralisia dos dedos, corrosão óssea, entre outros. Se, assim, o juiz Schreber representava as percepções corporais e seus efeitos; seu pai, por meio de sua Ginastica doméstica… e outros manuais, pretendia produzir exatamente o prodígio da força de vontade e da firmeza de caráter:

Ha uma vantagem accessoria, que para o espírito tem importância não medíocre e a qual, por isso, devemos attender. É a seguinte: aplicando regularmente toda a nossa força de vontade à execução das manifestações effectivas da atividade corporal, procurando com perseverança vencer a falta de energia e a inércia corporal, chegamos, como consequência forçada e psychologicamente fallando, à dominação normal da parte espiritual do nosso indivíduo, sobre a totalidade da parte corporal. A um argumento progressivo de força de vontade e força de acção em geral, à firmeza do caracter, à coragem necessária para superar as adversidades de vida e, finalmente à perseverança. Deste modo, fica vencido o tão perigoso inimigo moral (SCHREBER, [1879], p. 21).

Cotejar os contrastes entre tais representações tem nos permitido identificar as relações de dependência entre elas e retomar o debate sobre o amor/ódio pelo corpo. A Alemanha particular dos Schreber (pai e filho) oferece pistas sobre a tentativa de construção de uma “ordem do mundo” e de seus fracassos, bem como nos possibilita relacionar os métodos de educação do corpo com a produção de “homens fabricados às pressas”. Ambas expressões, utilizadas nas Memórias…, são chaves de leitura para análises tanto do corpo na Modernidade quanto da ginástica metódica como longevo antídoto contra os riscos que ameaçam a capacidade vital.

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DOI:www.scielo.org

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3 Essa pesquisa integra o projeto "Corpos, natureza e sensibilidades em perspectiva transnacional (entre as décadas finais do século XIX e a década de 1970), coordenado pelos professores Dr. Marcus Aurélio Taborda de Oliveira e Dra. Meily Assbú Linhales, e financiado com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no triênio 2019-2021, sob o n. 409171/2018-2.

4 Ao apresentar a obra pela primeira vez, adotamos o título que ela recebeu quando de sua publicação em Lisboa 1879. Para fins deste estudo, trabalhamos com diferentes versões do referido manual (em alemão, espanhol e português) e, como parte do estudo, faremos menção à dimensão transformativa operada por meio dos exercícios de tradução que, para nós, constitui um elemento importante nas análises históricas relativas à circulação cultural de saberes e práticas.

5 Neste artigo, não é nosso propósito debruçar-nos sobre elementos atinentes à História da Educação Física e da formação de seus professores, embora, em outros estudos, tais temáticas ocupem lugar central em nossas investigações. Interessa-nos aqui realizar, inclusive, um exercício de diferenciação entre os termos “educação física” e “educação do corpo”, pois compreendemos que estes não devam ser tomados como sinônimos. Em perspectiva histórica, parece-nos possível compreender como operaram os processos de aproximação e de distanciamento entre os dois termos. No âmbito dos debates internos do projeto de pesquisa “Corpo, natureza e sensibilidades em perspectiva transnacional”, destacamos as contribuições de Cecília Seré com o estudo “Educación del cuerpo: notas para uma teoría” (no prelo).

6 Embora também escape aos recortes que estabelecemos para este artigo, o debate sobre o amor/ódio pelo corpo, conforme anunciado por Horkheimer e Adorno (1985), tem sido tomado como referência num plano maior desta investigação. O assunto guarda aproximações como o significante condensado por Lacan na palavra hainamoration (traduzido para o português como “amódio”), em O seminário: livro 20: mais, ainda (Lacan, 1985): de haine, ódio, e énamoration, enamoramento.

7 Sobre a circulação dos manuais de ginástica, os estudos de Puchta (2015; 2019); Puchta e Oliveira (2015); Avelar e Moreno (2020); Moreno, Baía e Bonifácio (2019); Oliveira (2019); Quitzau (2015); Fonseca e Linhales (2016) podem ser tomados como referências de pesquisas realizadas no Brasil. O tema da ginástica como conteúdo presente em manuais de pedagogia e higiene foi abordado, entre outros, por Rocha (2016).

8 Vale citar, por exemplo, que, na nona edição espanhola do manual de Schreber, constam, nas páginas finais, propagandas de outras obras, tais como o Manual médico de hidroterapia, o Tratado de las enfermedades del estómago e El monitor de la salud de las familias y de la salubridad de los pueblos, todos publicados pela mesma Libreria de D. C. Bailly-Bailliere (SCHREBER, 1880).

9 Sobre essa temática, compartilhamos do entendimento de Lima (2021, p. 154), ao afirmar que os “argumentos de Gruzinski (2001), Fonseca (2012; 2013) e Gomes e Hansen (2016) sobre os processos de mediação, assim como de Certeau (2014) sobre apropriação”, são importantes referências para que possamos operar com as traduções como prática culturais de mediação e inventividade. Nessa perspectiva, as várias versões dos manuais de Schreber (considerando suas diferentes edições e traduções) foram tomadas como artefatos culturais únicos, ou seja, com contextos próprios de produção e circulação.

10 Nos estudos de Vago (2002; 2010) sobre o processo de inserção da ginástica como prática e conteúdo nos primeiros grupos escolares de Belo Horizonte, em razão da reforma do ensino de 1906, o autor ressalta, nos discursos dos dirigentes, esse argumento relativo à potencialidade dos exercícios corporais metódicos: “Desempená-los e colocá-los em posição ‘erecta e varonil’ era exigência de um desejado novo tempo, de uma nova civilização” (VAGO, 2010, p. 54).

11 Disponível em: https://www.bsb-muenchen.de. Acesso em: 6 dez. 2017. A maioria dos exemplares se encontra digitalizada e disponível gratuitamente para download.

12 Torna-se relevante comentar que o dr. Schreber sofreu um acidente em 1858. Durante a realização de atividades em seu Instituto Ortopédico, uma barra de ferro caiu sobre sua cabeça, provocando um comprometimento cerebral irreversível. Contudo ele deu prosseguimento aos trabalhos que realizava, vindo a falecer em 1861.

13 Na Argentina, encontramos a edição francesa intitulada Gymnastique de chambre médicale et hygiénique : ou représentation et description de mouvements gymnastiques n’exigeant aucun appareil ni aide et pouvant s’exécuter en tout temps et en tout lieu, à l’usage des deux sexes et pour tous les ages, suivie d’applications à diverses affections, publicada em Paris por V. Masson et fils em 1883, e a primeira edição da tradução feita para o espanhol por D. Esteban Sánchez de Ocaña, publicada em Madrid por Carlos Bailly-Baillière, em 1861. Além da primeira edição, o acervo argentino também conta com um exemplar da sétima edição espanhola, publicada em 1871. A quarta edição desse mesmo manual, também publicada em Madrid, em 1864, foi localizada na Biblioteca Nacional da Colômbia. No México, por sua vez, encontramos a trigésima terceira edição do texto original Ärztliche zimmergymnastik oder system der ohne gerät und beistand überall ausführbaren heilgymnastischen freiübungen als mittel der gesundheit und lebenstüchtigkeit für beide geschlechter und jedes alter, publicado em alemão em 1913. A presença da obra de Schreber em outros países latino-americanos confirma sua vulgarização e nos leva a questionar não apenas a circulação desse manual no âmbito de cada um desses países como também os possíveis usos que deles foram feitos.

14 Embora um escritor português, Ramalho Ortigão foi um colaborador assíduo do jornal carioca, o que pode justificar o fato de ter sido sua a tradução escolhida para a estratégia de popularização da obra no formato que foi publicado e distribuído pela Gazeta de Notícias. Fundado em 1875, com publicação diária, esse periódico chegou a ser um dos principais jornais em circulação no Rio de Janeiro durante a Primeira República. Segundo Sodré (1999), tratava-se de um jornal popular e barato.

15 Entre as obras que compunham a lista de prêmios oferecidos pelo jornal, constam autores brasileiros e traduções de vários livros estrangeiros: A brasileira, por A. Mathey; O filho de Antony, por Alexis Bouvier; Trevas e luz, por Hough Konway; Madame Torpille, por Marc Anfosi; O castelo maldito, por H. Wood; Meridionais, por Alberto de Oliveira, entre outros. As notícias sobre os prêmios foram encontradas em várias edições (GAZETA DE NOTÍCIAS, 29 dez. 1890, p. 1; 13 dez. 1892, p. 2; 24 dez. 1892, p. 1).

Recebido: 03 de Agosto de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

Autor 1 - participação ativa no levantamento de fontes, na análise dos dados e na escrita final.

Autora 2 - participação ativa no levantamento de fontes, na análise dos dados e na escrita final.

Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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