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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 30-Mayo-2022

https://doi.org/10.1590/0102-469826460 

Artigos

EDUCAÇÃO INTERPROFISSIONAL E INTEGRALIDADE DO CUIDADO: UMA LEITURA FILOSÓFICA CONTEMPORÂNEA DOS CONCEITOS

EDUCACIÓN INTERPROFESIONAL E INTEGRALIDAD DEL CUIDADO: UNA LECTURA FILOSÓFICA CONTEMPORÁNEA DE LOS CONCEPTOS

SIMONE BEATRIZ PEDROZO VIANA1 
http://orcid.org/0000-0003-0121-0117

REGINA CÉLIA LINHARES HOSTINS2 
http://orcid.org/0000-0001-8676-2804

1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, SC, Brasil. Bolsista do Programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina. <sviana@univali.br>

2 Docente e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação e coordenadora do Grupo de Pesquisa: Observatório de Políticas Educacionais da Universidade do Vale do Itajaí. Itajaí, SC, Brasil. <reginalh@univali.br>


RESUMO:

Este artigo tem por objetivo aprofundar conceitos de interprofissionalidade e integralidade do cuidado, à luz da filosofia contemporânea, do constructo teórico de pesquisadores nacionais e internacionais e do depoimento de estudantes da área da saúde sobre a temática. A metodologia confere ao estudo caráter qualitativo, cujo suporte teórico filosófico está alicerçado nas discussões de Nietzsche, Foucault e Deleuze & Guattari, assim como na pesquisa de campo, aplicada a 17 estudantes ingressantes em cursos de graduação da área da saúde, mediante entrevista pela plataforma digital Google forms. Para tratamento dos dados, optou-se pela Análise do Conteúdo proposta por Bardin. Os resultados indicam que a interprofissionalidade não é um conteúdo ou uma técnica a ser ensinada, mas atitudes a serem desenvolvidas tanto no espaço profissional como no ensino em saúde, pautadas por comportamentos e interações interpessoais para o trabalho em equipe, de modo a alcançar a integralidade do cuidado. As dificuldades para efetivação vinculam-se à constituição do campo da saúde, às hierarquias instaladas como dispositivo de dominação, à espacialização da doença desconsiderando o ser humano e sua complexidade e à forma ideológica como se deu a construção de alguns conceitos que necessitam de maior delimitação para se tornarem realidade. Conclui-se que não há fórmulas ou modelos para o desenvolvimento da educação interprofissional, tampouco conceitos universalizantes sobre integralidade do cuidado e o produto dessa relação. O que existem são doutrinas, princípios ontológicos e teleológicos que guiam pensamentos e ações, a partir de referenciais teóricos, culturais e sociais associados às experiências ou sentimentos vivenciados.

Palavras-chave: Educação Interprofissional; integralidade em Saúde; Educação Superior; Filosofia

RESÚMEN:

Este artículo tiene como objetivo profundizar los conceptos de interprofesionalidad e integralidad del cuidado, a la luz de la filosofía contemporánea, el constructo teórico de investigadores nacionales e internacionales y el testimonio de estudiantes del campo de la salud sobre el tema. La metodología da al estudio un carácter cualitativo, cuyo sustento teórico y filosófico se fundamenta en las discusiones de Nietzsche, Foucault y Deleuze & Guattari, así como en la investigación de campo, aplicada a 17 estudiantes que ingresan a cursos de pregrado en el área de la salud, a través de una entrevista por la plataforma digital Google Forms. Para el tratamiento de los datos se eligió el Análisis de Contenido propuesto por Bardin. Los resultados del estudio indican que la interprofesionalidad no es un contenido ni una técnica a enseñar, sino actitudes a desarrollar tanto en el espacio profesional como en la educación para la salud, a partir de comportamientos e interacciones interpersonales para el trabajo en equipo, con el fin de lograr un cuidado integral. Las dificultades que se relacionan con su efectividad están ligadas a la constitución del campo de la salud, a las jerarquías que se han instalado como dispositivo de dominación, a la espacialización de la enfermedad desconsiderando al ser humano y su complejidad, y a la forma ideológica en la que ocurrió la construcción de algunos conceptos que necesitan una mayor delimitación para convertirse en realidad. Se concluye que no existen fórmulas o modelos para el desarrollo de la educación interprofesional, ni conceptos universales sobre la integralidad del cuidado y el producto de esta relación. Lo que existen son doctrinas, principios ontológicos y teleológicos que orientan pensamientos y acciones, basados en referencias teóricas, culturales y sociales asociadas a las experiencias o sentimientos vividos.

Palabras clave: Educación Interprofesional; Integralidad en Salud; Educación Superior; Filosofía

ABSTRACT:

This article intends to further concepts of interprofessionality and health care integration, in the light of contemporary philosophy, the theoretical construct of national and international researchers and the testimony of students in the health field about this matter. The methodology provides the study a qualitative character, whose philosophical theoretical support is based on discussions by Nietzsche, Foucault and Deleuze & Guattari, as well as field research, applied to 17 students starting undergraduate courses in the health area, through an interview on Google Forms digital platform. For data handling, the Content Analysis proposed by Bardin was chosen. The results indicate that interprofessionality is not a content or a technique to be taught, but attitudes to be developed both in the professional space and in health education, lined up by behaviors and interpersonal interactions for teamwork, in order to achieve integration of health care. The obstacles for implementation are related to the very establishment of the health field, the hierarchies installed as a device of domination, the spatialization of the disease, disregarding the human being and its complexity, and the ideological establishment of some concepts that need further delimitation for materializing themselves. It is concluded that there are no recipes or templates for the development of interprofessional education, nor universalizing concepts about the integration of health care and the result of this interaction. What do exist are doctrines, ontological and teleological principles that guide thoughts and actions, based on theoretical, cultural and social references associated with the experiences or emotions undergone.

Keywords: Interprofessional Education; Integration in Health field; Higher Education; Philosophy

INTRODUÇÃO

Há mais de 100 anos, estudos sobre a educação médica, liderados pelo Relatório Flexner de 1910, provocaram uma série de transformações no ensino das profissões de saúde. Com foco na doença e na biologia humana, o Relatório Flexner privilegiava o ensino das ciências básicas, a prática clínica individual e a formação hospitalar como espaço ideal para o aprendizado. Denominado modelo biomédico, esse formato de ensino foi considerado essencial para o médico moderno e demais profissionais de saúde, porém insuficiente para acompanhar os desafios de saúde do século XXI, tendo em vista as mudanças nas características do modo de viver e adoecer da população (FRENK et al., 2010).

Esses novos modos de subjetivação, próprios da sociedade contemporânea, vêm requerendo outros desenhos de formação, que superem os modelos isolados de aprendizado, a fragmentação do conhecimento e, por consequência, do ser humano e a forma independente e pouco colaborativa entre os profissionais da saúde no processo de cuidado. Frenk et al. (2010) chamam atenção para mudanças necessárias na educação dos profissionais de saúde, baseada no trabalho em equipe, na comunicação e na interdependência das ações, a fim de que se possam qualificar as práticas e fortalecer os Sistemas de Saúde. O autor defende reformas institucionais e instrucionais para fazerem frente às demandas do século XXI, que, aglutinadas, compõem a terceira grande reforma do ensino em saúde. Nesse sentido, destaca a elaboração de desenhos curriculares baseados em competências locais e globais, atenção centrada no paciente e na população, promoção da educação interprofissional, aprimoramento das práticas colaborativas e docência voltada para os sistemas de saúde.

A educação interprofissional (EIP), portanto, constitui um dos temas emergentes no campo da formação em saúde, no âmbito nacional e internacional, e tem sido amplamente apoiada pelas políticas públicas, tendo em vista as mudanças no perfil epidemiológico da população, em especial das condições crônicas de saúde, exigindo práticas profissionais colaborativas de abordagem integral (WHO, 2010).

Considerada um estilo de educação que prioriza o trabalho em equipe, o conceito de EIP vem sendo amadurecido e aprimorado com o passar do tempo. Em 1997, o Centro para o Avanço da Educação Interprofissional (CAIPE) definiu-a como “ocasião em que duas ou mais profissões aprendem com, entre si e sobre os outros para aprimorar a colaboração e qualidade dos cuidados e serviços” (CAIPE, 2013).

Barr et al. (2005) retomaram a definição dizendo que a educação interprofissional envolve membros de duas ou mais profissões que aprendem lado a lado. Mais recentemente, afirmaram que a EIP possibilita aos trabalhadores em saúde comparar suas perspectivas e reconciliar suas diferenças, combinando suas energias e competências para maior eficiência do sistema de saúde (BARR, 2019). Dessa relação espera-se disponibilidade para uma assistência à saúde ampliada, a partir do trabalho em equipe e cujo olhar seja de compreensão do ser humano e de suas subjetividades.

Ao se encontrarem, estudantes e profissionais de diferentes profissões no aprendizado conjunto, promovidos pela EIP, são afetados uns pelos outros, primeiramente pela descoberta do saber um do outro, pelas capacidades e competências específicas de cada um e depois pelas possibilidades que essa afecção pode causar na construção conjunta que serão capazes de produzir. Por “afecção”, fundamentados em Deleuze, entendemos a potência em ato, o encontro de corpos e mentes, as relações que ali se desencadeiam, ampliando a capacidade de agir. Deleuze (2002, p. 25), ao teorizar sobre a ética de Espinosa, argumenta que, “[...] quando um corpo encontra outro corpo, uma ideia outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, e ao contrário, quando um decompõe o outro, destrói a coesão das suas partes”.

Diante das reflexões iniciais, busca-se com este artigo aprofundar os conceitos de interprofissionalidade e integralidade do cuidado, à luz da matriz de pensamento da filosofia contemporânea e do discurso de estudantes da área da saúde sobre a temática.

Recorrer à filosofia é uma forma de organizar o pensamento, compreender a natureza dos conceitos e suas essências, é problematizar sobre as questões atuais, levantar novos problemas e traçar outros caminhos possíveis. É fundamental, no entanto, lembrar que a filosofia é a disciplina que cria conceitos, mas estes não estão inteiramente prontos, devem ser elaborados e reformulados o tempo todo (DELEUZE; GUATTARI, 2010). Significa dizer que, neste estudo, a filosofia empresta sua caixa de ferramentas para pensar os conceitos e as práticas de saúde como um processo inseparável de formação e atuação intersubjetiva de sujeitos e de suas potências de agir em torno do cuidado com a vida.

PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO DA PESQUISA

Trata-se de pesquisa qualitativa, cujo suporte teórico filosófico foi alicerçado a partir de leituras e discussões sobre as obras de Friedrich Nietzsche em Ecce Homo (2001) e Humano, demasiado humano (2005); Michel Foucault com O nascimento da clínica (2020), A hermenêutica do sujeito (2006), A ordem do discurso (1999) e O governo de si e dos outros (2010); Gilles Deleuze e Félix Guattari em O que é a filosofia (2010); Gilles Deleuze em Espinosa: filosofia prática (2002). Agregam conceitos a essa discussão alguns autores do campo da saúde que tratam sobre EIP e integralidade do cuidado, com destaque para Hugh Barr, Scott Reeves, Ricardo Burg Ceccim, Juan José Beunza Nuin, e José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, cujas visões constituem um campo aberto para o diálogo com a filosofia.

Deleuze e Guattari (2010, p. 5) afirmam que: “segundo veredito nietzcheano você não conhecerá nada por conceitos se você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que os cultivam”.

Assim, além do suporte epistemológico suprarreferido, convidamos estudantes ingressantes dos cursos da área da saúde, de uma universidade do sul de Santa Catarina, para compreender como os conceitos interprofissionalidade e integralidade do cuidado vêm sendo construídos no campo da formação em saúde e a partir deles aprofundar a discussão.

A amostra constituiu-se de 17 estudantes matriculados no segundo período dos cursos de Biomedicina (2), Enfermagem (6), Fisioterapia (3) e Fonoaudiologia (6), sendo 16 do sexo feminino e um masculino, que de forma livre e esclarecida aceitaram participar da pesquisa, respondendo um questionário enviado pela plataforma digital Google forms. O instrumento de pesquisa foi composto por duas questões fechadas a fim de identificar curso de origem e sexo, e seis questões abertas relacionadas com o objetivo de compreender a construção de conceitos dos estudantes sobre: interprofissionalidade e integralidade do cuidado; conceito e representação de interprofissionalidade; aprendizagens propiciadas pela formação interprofissional, concepção de integralidade do cuidado e ações para sua efetivação; conexão entre interprofssionalidade e integralidade do cuidado; desafios e dificuldades da formação interprofissional.

A pesquisa foi orientada pelos preceitos éticos de pesquisa com seres humanos e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Itajaí sob o Parecer n.º 3.447.457/2019.

Para a verificação dos dados, optamos pela análise do conteúdo proposta por Bardin (2011), estruturada em três fases: 1) pré-análise; 2) exploração do material; e 3) codificação e categorização, facilitando assim a interpretação e o significado do texto examinado. As categorias temáticas identificadas estão ligadas à construção de conceitos de interprofissionalidade, integralidade do cuidado e à relação estabelecida no encontro dos pares e à prospecção de ações.

CONSIDERAÇÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE EDUCAÇÃO INTERPROFISSIONAL E INTEGRALIDADE DO CUIDADO

As considerações a seguir não se limitam às citações conceituais sobre EIP e integralidade do cuidado, visto que são insuficientes para esquadrinhar a temática, e fragmentados não se conectam. A lógica foi abordar os sentidos dos conceitos, sua natureza e significados, a partir da articulação entre estudiosos, filósofos e estudantes, uma espécie de plano de imanência, como tão bem definiram Deleuze e Guattari (2010).

As discussões em torno da natureza da EIP e seus propósitos não são tão antigas, nem tão novas como parecem, elas simplesmente são atuais (CECCIM, 2018). Segundo o autor, na década de 1960, já existiam experiências internacionais que apontavam para a necessidade da educação interprofissional, porém de forma isolada. Outrossim, não é de hoje o desejo ontológico de resgatar a integralidade do ser humano, que o conhecimento especializado e compartimentalizado fragmentou, separando o homem em partes, dissociando-o de sua complexa realidade.

Reeves (2016) definiu educação interprofissional como o encontro de duas ou mais profissões que aprendem com, de e sobre cada uma delas para melhorar a colaboração e a qualidade da assistência, podendo ser desenvolvida tanto com alunos de graduação como de pós-graduação. Para se envolver em colaboração interprofissional, todos os membros da equipe precisarão conhecer as potencialidades e as limitações de seus integrantes, assim como devem ter uma linguagem comum que promova comunicação e interação. Portanto, é possível desenvolver um conjunto de habilidades para coordenar as ações e atender em equipe. É preciso, no entanto, que existam afetos nessa relação, na qual um se deixa afetar pelo outro e juntos transformam as afecções em ações. Para Deleuze e Guattari (2010, p. 67), “os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles”.

Em face desses pressupostos, o objetivo da aprendizagem interprofissional é intencionalmente preparar todos os estudantes das profissões da saúde para trabalharem juntos em colaboração interprofissional, com o objetivo comum de construir um sistema de saúde mais seguro, centrado no paciente e orientado para a comunidade (SLUSERR et al., 2018).

No entanto, para que a EIP ocorra, é necessário mais do que reunir estudantes de cursos diferentes em atividades conjuntas. Os recursos cognitivos, afetivos e psicomotores dos estudantes precisam ser estimulados (AGUILAR-DA-SILVA; SCAPIN; BATISTA, 2011).

A EIP, portanto, não é simplesmente um aprendizado compartilhado, pelo qual estudantes aprendem passivamente em um grupo interprofissional frequentando a mesma sala de aula e expostos ao mesmo conteúdo; seus desenvolvimentos são ativos e as estratégias de ensino fornecem oportunidades para o compartilhamento de experiências, conceitos e atitudes congregadas em torno do cuidado do sujeito. Experiências que possibilitem à equipe interprofissional o exercício das competências necessárias para o complexo processo de cuidado e resolução de problemas (SLUSERR et al., 2018).

Compreende-se, assim, que a EIP não é um conteúdo ou uma técnica a ser ensinada, mas competências a serem desenvolvidas para o trabalho interprofissional durante o aprendizado mútuo, aquisição de atitudes pautadas pelas interações interpessoais para o trabalho em equipe, respeito aos valores éticos, definição de papéis para a adequada tomada de decisão, efetividade na comunicação interprofissional, para que se possa, enfim, pelo encontro dos saberes coproduzidos, centrar a atenção no paciente, na família e na comunidade com o intuito de atender suas necessidades com maior resolutividade e qualificação (NUIN, 2019).

A educação interprofissional é, assim, considerada “um modo de potencializar a capacidade dos profissionais e dos sistemas para desenvolver uma atenção em saúde coordenada e desta forma alcançar a integralidade do cuidado” (NUIN; MÉNDEZ, 2019, p. 10). Nesse contexto, entende-se integralidade do cuidado como ação que transcende as práticas assistenciais, articulando ações de educação em saúde como elemento produtor de um saber coletivo que traduz no indivíduo sua autonomia e emancipação para o cuidar de si e de seu entorno (MACHADO et al., 2007).

Foucault (2006), durante suas aulas de verão no Collège de France, em 1982, disse que cuidar de si é uma regra coextensiva da vida, na qual o sujeito deve cuidar-se como ser inteiro, em sua subjetividade, não apenas do corpo, mas também da alma, das relações, das escolhas, do que considera melhor para si, como ser histórico, político e social.

Segundo a literatura, quando a concepção de integralidade surgiu, nos Estados Unidos, entre as décadas de 1950 a 1960, veio acompanhada de duplo sentido: integração dos serviços de saúde e atenção integral em saúde (KALICHMAN; AYRES, 2016). No Brasil, foi influenciada por experiências e organismos internacionais, como a emblemática Conferência de Alma-Ata, ocorrida no Cazaquistão, em 1978, e sua proposição de “saúde para todos no ano 2000”, e firma-se como uma das bandeiras de luta, em defesa dos direitos de saúde da população, superação das dicotomias entre preventivo/curativo, individual/coletivo que marcaram as políticas de saúde até então. Essa luta representava uma contraposição ao pensamento biomédico resultante do modelo flexneriano, que, de certo modo, contribuiu para a demasiada especialização das práticas médicas, a fragmentação do cuidado, a excessiva incorporação de tecnologias biomédicas e a limitada visão do conceito de saúde, vista até então como ausência de doença (KALICHMAN; AYRES, 2016).

Não é forçoso lembrar a dualidade existente entre saúde e doença ao longo dos séculos, subjetividade e materialidade, totalidade e razão, o ser, sua natureza, cultura, individuação e a padronização dos corpos como finalidade em si. Nessa perspectiva, valemo-nos da filosofia nietzschiana, em sua obra Humano, demasiado humano (2005, Prólogo 4, p. 6), na qual aborda a grande saúde como “saúde transbordante” que não pode prescindir da doença para alcançar o conhecimento:

Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento [...] até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde.

É nessa relação de contrários que Nietzsche (2001) acredita que um ser tipicamente doente não se pode tornar são, menos ainda curar-se a si mesmo; para quem é tipicamente saudável, estar doente pode, pelo contrário, ser até um enérgico estímulo de vida, de mais vida.

Defensor da natureza, o filósofo alemão se opõe a qualquer tipo de idealismo que, ao negar a natureza humana, deturpa e desmerece a vida em sua autenticidade (PEREIRA, 2019).

Em Ecce Homo (2001), por exemplo, Nietzsche (2001, p. 81) faz questão de chamar de:

[...] intempestivo e perigoso o nosso hábito tão intenso de cultivar ciência: a vida, molestada por causa dessa engrenagem, desse mecanismo destituído de personalidade, devido a despersonalidade do trabalhador e da falsa economia na divisão do trabalho. O fim: a cultura, perde-se; o meio: o movimento científico moderno, barbarizou-se. Nesta dissertação, o sentido histórico, que tanto ufana nosso século, é apresentado pela primeira vez como uma moléstia, como um sinal típico de decadência.

Outrossim, o autor fez duras críticas aos filósofos do passado, pela influência que exerceram sobre o Ocidente ao sobrepor a racionalidade aos instintos, tornando a vida apenas uma doença que inviabiliza o caminho de retorno à virtude, à saúde e à felicidade (NIETZSCHE, 2001).

Dessarte, ao enaltecer o ideal da racionalidade aplicada aos corpos, a cultura ocidental negou a natureza, abandonou a concepção de pluralidade do ser, a constante transformação a que estamos sujeitos, ao movimento da vida que faz ser o que somos. No embate entre unidade e decomposição do ser humano em partes, por vezes é a saúde que ganha espaço e visibilidade, em outros momentos a ênfase é na doença.

No momento atual, é a integralidade que ganha destaque, sua multiplicidade de sentidos concebe o ser humano como um todo indissociável do contexto cultural, social e familiar, no qual está inserido. Sua complexidade implica a disponibilidade de uma assistência à saúde ampliada, cujas estruturas políticas e organizacionais contemplam ações do âmbito preventivo ao assistencial em todos os níveis de atenção, e exige profissionais com competências e habilidades para o trabalho em equipe, centrado no ser humano, não na doença (MAKUCH; ZAGONEL, 2017).

A integralidade configura-se, portanto, um dos mais importantes princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS), e muito provavelmente o mais desafiador no que se refere à construção conceitual e metodológica. Ausente de conceito específico, diz respeito ao atendimento das complexas necessidades de saúde da população, intimamente imbricadas na dimensão biopsicossocial e dependente da formulação de políticas públicas, da organização dos serviços e da interação entre profissionais, usuários e comunidades para sua efetivação. Mattos (2005) prefere atribuir à integralidade um conjunto de sentidos e significados que se associam aos valores e atributos desejáveis nas práticas de saúde e na configuração dos sistemas de saúde. Da mesma forma, Oliveira e Cutolo (2018) acreditam que o significado de integralidade que mais interessa é o de “compreender um amplo aspecto do sujeito”, na qualidade de seres sociais, biológicos, familiares e emocionais, requerendo, assim, uma visão ampliada dos profissionais que os atendem.

Pinheiro e Guizardi (2008) afirmam que, embora a integralidade apresente atividade instrumental ligada à organização da assistência, sua missão é ideológica e está voltada para assistência integral à saúde, de forma singular, respeitando as particularidades e as necessidades de cada pessoa. Logo, a construção da integralidade, também denominada integralidade do cuidado, ocorre pela edificação de práticas profissionais cotidianas eficazes. Nesse sentido, Padilla (2019) cita, na abertura de seu livro Trabalhar e aprender em conjunto: por uma técnica e ética de equipe na saúde, que qualquer sistema de saúde se efetiva por meio da força de trabalho, representada pelo conjunto de profissionais e trabalhadores comprometidos com o sistema de saúde e organizados de maneira a responder os direitos assegurados à população com a qualidade requerida.

Apesar dos inegáveis avanços do SUS, a operacionalidade e a apreensão da atenção integral continuam sendo um desafio, tanto no que compete à dimensão instrumental quanto à comunicativa, e a dificuldade de traduzir o sentido da integralidade em ações concretas acaba por reduzi-la ao somatório ou justaposição das ações de cunho coletivo ou preventivo com as de cunho individual curativo. Essa constatação foi anunciada há mais de vinte anos e ainda é um desafio, recentemente relatado por Kalichman e Ayres (2016). Do mesmo modo, a noção de cuidado, agregada ao termo integralidade, na área da saúde, não se limita a procedimentos ou atos técnicos, mas engloba dimensões atitudinais, cujo objetivo é acolher e atender o ser humano em seu sofrimento (PINHEIRO; GUIZARDI, 2008).

Percebe-se que há muita subjetividade no contexto da integralidade do cuidado e que o saber fazer associado a ela não está vinculado ao conhecimento específico ou ato derivado do campo profissional, ao contrário, trata-se de atitudes e concepções que precisam ser incorporadas ao cotidiano das práticas em saúde e que se perderam ao longo do tempo, seja pela automação dos processos ou pela supremacia da ciência.

Foucault (2020), ao inventariar o nascimento da clínica, na passagem do século XVIII, chama atenção para sua identificação com a ciência positivista, para o efeito singular que a doença adquiriu sobre o doente e como “uma gramática dos signos substituiu uma botânica dos sintomas”, assim como para a representatividade do uso da linguagem e seus significados, deslocando o médico para o status de expert no funcionamento dos órgãos e dos sistemas, capaz de fazer um prognóstico sobre a lesão, e não acerca do mal que ela representa. Portanto, a pergunta “o que você tem?” foi substituída por “onde lhe dói?”, o que implica a valorização de um discurso sobre a doença que passa a ser descrito e interpretado pelo médico.

A procura pelo cuidado tem sido uma das maiores demandas da população, assim como muitas são as críticas às práticas, às instituições e aos discursos em saúde. Para Pinheiro e Guizardi (2008, p. 23) “as críticas surgem na forma de fragmentação de saberes em diferentes espaços-tempo, em pequenas genealogias e que nem sempre se traduzem apenas na identificação de problemas, mas em construção de soluções e respostas que buscam um cuidar, cuidar de si, do outro e de nós”.

Com base na construção dessas “pequenas genealogias”, o foco da atenção supera a supremacia das áreas do conhecimento, da supervalorização das profissões e de seu campo de atuação, para, enfim, centrar na segurança do paciente, no bem da coletividade. Assim, investir na educação interprofissional é investir nas interseções interdisciplinares, no compartilhamento de saberes, nas competências atitudinais, no trabalho em equipe, na humanização, enfim, na integralidade do cuidado, conferindo novos contornos à formação em saúde (CECCIM, 2018).

OS ESTUDANTES E SEUS CONCEITOS: UM ENCONTRO COM A FILOSOFIA.

A proposta deste tópico é apresentar as categorias temáticas identificadas nas narrativas dos estudantes, as quais se relacionam com a construção de conceitos de interprofissionalidade, integralidade do cuidado, e a relação estabelecida no encontro dos pares e a prospecção de ações, para assim estabelecer um diálogo entre a literatura científica e o referente filosófico previamente selecionado.

Interprofissionalidade: um trabalho em equipe

Os estudantes conceituam interprofissionalidade como um trabalho em equipe, no qual a união de vários saberes contribui para maior qualificação da assistência. Eles a definem também como interação entre profissionais de diferentes áreas que compartilham conhecimentos e complementam ações com o objetivo de alcançarem os melhores resultados, conforme as narrativas3:

“[...] troca de experiência, interação, saber mais sobre a outra profissão, trabalho em equipe [...] uma profissão trabalhando juntamente com outras profissões visando atendimentos mais eficazes [...] união de vários saberes a fim de fazer uma assistência mais qualificada [...]” (S4, S5, S6, S9, S10, S15).

Os entrevistados consideram relevante o fato de terem a oportunidade de experienciar a formação interprofissional na graduação, pois acreditam que essa convivência trará vantagens no campo de trabalho: “[...] importante para me preparar para o campo de estágio ou trabalho [...] maior compreensão das aéreas e diminuição com a competitividade profissional no mercado [...] formará profissionais que saberão se relacionar nos locais de trabalho [...]” (S1, S7, S12).

Para os estudantes, a interprofissionalidade facilita a comunicação, melhora o convívio com outras áreas, representa um trabalho coletivo no andamento do processo terapêutico, fundamental para o sistema de saúde e principalmente para o usuário, pois proporciona maior atenção ao paciente. Percebe-se no conteúdo dos discursos que os fundamentos da educação interprofissional se encontram em fase de construção: “[...] melhora o convívio com outras áreas, maior interatividade e facilidade na comunicação, importante para melhoria do cuidado e resultados mais adequados [...]” (S2, S4, S7, S8, S14, S16, S17).

Se, por um lado, a interprofissionalidade é sinônimo de interatividade e comunicação, por outro, ela evidencia os desafios e as dificuldades a ela vinculados, como as questões relacionais, o individualismo e a competitividade, conforme depoimentos:

“[...] falta de colaboração e compreensão dos próprios estudantes em aprenderem juntos [...] o ego dos profissionais dificultando o trabalho em equipe [...] a hierarquia de algumas profissões sobre outras [...] o medo da invasão de área [...] a resistência das pessoas em trabalhar juntos” (S1, S3, S4, S7, S11, S16, S17).

Trata-se aqui da agonística entre poder e liberdade: dos “egos”, das “hierarquias”, das “invasões”, das “resistências”. Seixas (2009), ao escrever sobre a relação entre uma ontologia crítica do presente e a problematização da agonística entre poder e liberdade em Michel Foucault, fala da nova definição foucaltiana de poder, cuja dimensão é difusa, ou seja, compreende um campo múltiplo e diverso de relações de poderes imanentes ao domínio onde se defrontam, constituindo os espaços de ser e estar dos indivíduos.

Nesse contexto, o campo da saúde e a forma como este se constituiu na relação de poder-saber presente no processo de trabalho, com suas hierarquias e instituição de práticas disciplinares de regulação das relações e do espaço institucional, fortaleceram a hegemonia de algumas profissões, espacializando a doença, o doente e o cuidado de maneira geral (FOUCAULT, 2020). Assim, é compreensível a dificuldade que têm os profissionais de estabelecer relações de confiança, respeito mútuo, reconhecimento do papel profissional das diferentes áreas, interdependência e complementaridade dos saberes e ações, necessários às práticas colaborativas centradas no usuário (D’AMOUR et al., 2008).

Integralidade do cuidado: um campo em delimitação

No discurso dos estudantes, aparece com muita frequência a associação de integralidade com o cuidado do todo, do ver e compreender a pessoa em sua realidade, suas diferenças e singularidades. Integralidade para eles é olhar o sujeito como resultado de sua história, do meio em que está inserido e para o qual exige ações mais complexas que vão além dos aspectos clínicos e do tratamento da doença:

“[...] integralidade é olhar o sujeito como um todo, é ver ele por inteiro e não somente o problema em si, a doença. É não tirar ele da sua realidade [...] é olhar também para o trabalho, moradia, lazer, família, alimentação [...] é uma atenção voltada para o indivíduo, sua família, sua história, não só para as complicações do momento [...] é pensar no paciente de forma ampla e atender suas necessidades [...]” (S10, S11, S13, S14, S17).

As narrativas demonstram incorporação de verdades até então pouco consideradas pelo paradigma biologicista. É preciso, no entanto, ficar atento às concepções que vêm sendo produzidas, porquanto a integralidade do cuidado, na visão dos estudantes, identifica-se com uma construção teórica baseada num idealismo que necessita de delimitação. Fica clara, nos recortes de texto, a inter-relação que estabelecem entre conceito de saúde, determinação social do processo saúde, doença e integralidade. Certamente, são conceitos que se comunicam e se justificam, no entanto, integralidade do cuidado, na qualidade de ação dos profissionais de saúde, não pode ser confundida com atenção totalitária, do contrário, jamais poderá ser atingida.

Oliveira e Cutolo (2018) alertam para os sentimentos contraditórios que o termo integralidade desperta na área da saúde, em função dos múltiplos significados que assume no vocábulo linguístico, e que é necessário esclarecer sua fisiologia não como totalidade, visto que jamais poderia ser alcançada, mas como processo mediador de um caminho no qual profissionais e paciente podem trilhar juntos em busca de soluções.

Nesse mesmo sentido, Kalichman e Ayres (2016) referem-se à integralidade do cuidado como uma construção em devir, uma experiência produzida em ato, construída na base do diálogo pelo conjunto de sujeitos nas práticas cotidianas.

No entanto, alguns equívocos podem ser produzidos, comprometendo assim o processo de aprendizagem, quando o próprio Ministério da Saúde, baseado na Lei Orgânica da Saúde (Lei n.º 8.080/1990) e no ordenamento jurídico que regulamenta o SUS, publica no site da Biblioteca Virtual em Saúde: “integralidade - esse princípio considera as pessoas como um todo, atendendo a todas as suas necessidades” (BRASIL, 2020). A abrangência do conceito, a polissemia do termo e a ausência de elementos balizadores quanto à integralidade do cuidado fazem com que outros discursos e verdades sejam produzidos, causando descrença e pouca esperança de concretização, como vemos neste depoimento: “[...] entender o SUS e sua importância, na prática se perde um pouco da teoria [...]” (S1).

Larrosa (1994), a partir dos estudos de Foucault, cita que os mecanismos óticos e os procedimentos discursivos exercem função de reguladores da vida social e permitem julgar, normalizar e canalizar indivíduos. Assim, os discursos de que na teoria é perfeito, mas na prática não funciona, vão se construindo como verdade no meio social. Para Foucault (1999, p. 10), “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo porque e pelo que se luta, o poder do qual nós queremos apoderar”.

Não obstante, e com o propósito de aprofundar as discussões, parece-nos apropriado refletir sobre a representação de integralidade de cuidado, presente na maioria dos discursos dos alunos e na literatura de forma geral, como se lê no depoimento: “[...] a integralidade do cuidado é o ato de tratar um paciente como um todo e não apenas curá-lo de uma doença [...]” (S14).

“Tratar”, “assistir” o paciente como um todo, “atender suas necessidades”, pode se tornar uma forma ainda maior de dominação dos profissionais sobre os “pacientes” e, ao mesmo tempo, de dependência do paciente, já que passam os profissionais a cuidar do todo, e não só das partes e da doença. É preciso refletir sobre essas armadilhas, para que, mais uma vez, não se esteja excluindo a pessoa de seu processo de vida, de suas escolhas e suas responsabilidades. Incluí-la no cuidado de si, compartilhar conhecimentos e práticas, respeitar suas escolhas, é uma maneira de alcançar a autonomia do sujeito, verdadeiro dono de si. A integralidade do cuidado é também integrar o “paciente” ao processo de cuidado.

Apenas um estudante deixou explícita em seu depoimento a participação do paciente durante o momento da intervenção profissional, mas ainda assim não se pode afirmar que a posição deste é de protagonismo, conforme fragmento a seguir:

“[...] é preciso ter uma visão abrangente acerca do paciente, saber ouvi-lo e não descartá-lo caso não se encontre alguma patologia, pois ele pode estar passando por outras dificuldades [...] cabe um olhar profissional” (S2, S15).

Nesse sentido, afigura-se-nos adequado fortalecer, durante as atividades pedagógicas, estratégias de ensino que estimulem a escuta, a valorização da fala do paciente, como protagonista de sua própria história, para que não seja o profissional o classificador de sinais e sintomas, um desenhista de geografias e soluções, que Foucault (2020) chamou de espacialização secundária da patologia.

É preciso, portanto, que no processo de construção do conceito de integralidade do cuidado sejam incluídos recursos teórico-metodológicos que levem os estudantes a refletir sobre as três formas de dominação apontadas por Foucault (1995, p. 235) e contra as quais devemos lutar “contra a dominação ética, social e religiosa; contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, desse modo, aos outros (lutas contra as formas de subjetivação e submissão)”.

Quanto à prática da integralidade do cuidado, ou seja, das ações para que esta se efetive, o depoimento dos alunos se volta para a necessidade da presença e do trabalho conjunto das mais variadas áreas de conhecimento, da necessidade do trabalho em equipe que inclui o planejamento e a ação conjunta em si, do respeito às singularidades e da atenção centrada no paciente.

Observa-se na fala dos alunos certa retórica, um discurso teórico que se repete e que seguramente faz sentido para o momento da formação, ou seja, nos anos iniciais, as disciplinas trabalham mais os princípios teóricos fundantes do tema do que a prática propriamente dita. Dessarte, os discursos carecem de exemplos, situações ou mesmo de ações vinculadas ao exercício profissional que deem concretude à integralidade do cuidado na prática.

A relação estabelecida no encontro dos pares e a prospecção de ações

Identifica-se nos depoimentos dos estudantes estreita relação entre a convivência interprofissional e a prática da integralidade do cuidado. Os sentimentos apontam para um trabalho de complementaridade, cujos beneficiados são ao mesmo tempo os profissionais, os pacientes e a comunidade em geral, indicando positividade na melhoria da atenção em saúde e resolutividade da assistência, ainda que as manifestações fiquem mais concentradas no campo teórico, como se pode notar:

“[...] permite olhar de forma mais abrangente quando o cuidado é prestado por mais de um profissional, sem fragmentação ou superioridade [...] trabalho em conjunto para o bem-estar do paciente [...] um (integralidade do cuidado) não existe sem o outro (interprofissionalidade). [...] para ter integralidade e cuidado geral dos pacientes, precisa dos profissionais juntos [...]” (S5, S13, S15).

Logicamente, a segurança do paciente, a integralidade do cuidado, a humanização das práticas em saúde, estão entre os motivos pelos quais tem se investido na formação interprofissional e, por consequência, no trabalho em equipe. Ceccim (2018) assevera que a interprofissionalidade eleva a segurança da assistência, reduz riscos e danos, melhora a satisfação e o conforto dos usuários, assim como o alívio e o bem-estar dos trabalhadores.

As parcerias que se formam e se transformam no cotidiano das práticas resultam em ações colaborativas que agregam resolutividade ao trabalho em saúde e sentimento de pertencimento à equipe, diante do agir coletivo (CECCIM, 2018). É o que se pode perceber neste depoimento: “[...] ter mais de um profissional olhando o mesmo paciente ajuda no diagnóstico, podendo ser mais preciso, assim um complementa o outro cuidando do indivíduo por inteiro e não só a patologia” (S13).

Dispor-se a um cuidado mais qualificado a partir do trabalho em equipe, aceitar e reconhecer o saber do outro, priorizar a vida, o bem da coletividade, é com certeza romper com a autossuficiência e com o endeusamento das profissões que, por séculos, habitam os sonhos humanos e as sujeitam uns aos outros.

Nessa relação que exercem (profissões x profissionais), de sobreposição de saberes, instalam-se dispositivos de assujeitamento e dominação, perpetuados culturalmente pelas instituições de classe e pela sociedade em geral, aos quais Foucault (2010) chamou de poder-saber sujeitadores e que precisam ser desconstruídos.

O pensamento dos estudantes, neste estudo, leva-nos a crer que a experiência de educação interprofissional por eles vivenciada tem colaborado não só com a construção de conceitos sobre interprofissionalidade e integralidade do cuidado, mas também com a formação de novas identidades. Logo, o que importa não é o campo de conhecimento, mas para que e a quem ele se destina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há fórmulas ou modelos internacionalmente aceitos para o desenvolvimento da educação interprofissional ou para o exercício da interprofissionalidade, tampouco conceitos universalizantes sobre integralidade do cuidado e o produto dessa relação. O que existem são doutrinas, princípios teleológicos que guiam nossos pensamentos e ações a partir de referenciais teóricos, culturais e sociais associados a experiências ou sentimentos vivenciados.

O encontro com o referencial teórico permitiu aprofundamento conceitual, fornecendo sustentação argumentativa na defesa da EIP para a consolidação da integralidade do cuidado. Sua discussão extrapola o campo da saúde para remetê-la a uma abordagem filosófica mais ampla que compreenda as inter-relações, o cuidado e a integralidade como expressões ontológicas do ser humano. Todo o constructo científico moderno sobre o qual se construiu a dualidade saúde-doença, corpo-alma, médico-paciente, sujeito-objeto tem marcas profundas na constituição da saúde com sérias repercussões na formação dos profissionais da saúde. Romper com esse padrão de relação exige mais que o domínio de uma concepção; requer mudança de atitude e de padrões de comportamento pautada por uma relação hierárquica de poder entre os profissionais e os pacientes.

Portanto, diante de uma formação uniprofissional, competitiva, fragmentária e tecnicista, provavelmente a ação será prescritiva, classificatória, focada na doença, não no ser doente e desqualificadora do saber multiprofissional. Em contrapartida, quando se horizontalizam as relações e se entrelaçam os saberes, num aprendizado mútuo, o que se espera é a existência do espírito colaborativo, do trabalho em equipe e da atenção centrada na pessoa e em sua singularidade.

Para o alcance da integralidade do cuidado, são necessários a superação da hegemonia das áreas do conhecimento, o respeito às subjetividades, a valorização das singularidades, o cuidado de si, do outro e de nós mesmos, a reelaboração de linguagens e signos que valorizem os instintos, a pluralidade do ser e suas transformações, atravessados pela ética.

O desafio, no entanto, é despertar esses afetos, seja na graduação ou na pós-graduação, e para os quais se sugere o uso de metodologias integradoras e de fundamentos filosóficos que expliquem a natureza e os fins das ciências da vida.

Para concluir, é importante dizer que este estudo não representa um esgotamento sobre o tema e que, diante de tantas nuances e processos em construção, é, antes de uma chegada, um ponto de partida.

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3A partir desse momento, empregaremos aspas para distinguir as citações dos entrevistados das citações dos autores que nos ajudam a discutir o tema deste estudo. Para evidenciar os participantes da pesquisa de campo, respeitando os aspectos éticos, utilizaremos caracteres alfanuméricos.

Recebido: 26 de Novembro de 2020; Aceito: 17 de Agosto de 2021

Autora 1 - Condução do processo de pesquisa e do desenho metodológico da investigação. Coleta e curadoria dos dados, análise dos dados. Preparação, criação, escrita e apresentação do trabalho publicado. (Data curation, Formal analysis, Investigation, Methodology, Visualization, Writing - original draft)

Autora 2 - Supervisão no planejamento e na execução da atividade de pesquisa. Orientação na formulação de objetivos, Conceituação. referenciais teórico-metodológicos e metas da pesquisa. Revisão e edição - revisão crítica, comentário ou revisão - incluindo etapas de pré ou pós-publicação. (Supervision, Conceptualization, Methodology Project administration, Writing - review & editing).

As autoras declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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