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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 03-Set-2022

https://doi.org/10.1590/0102-469825070 

Artigos

FUTURE-SE: ELUCIDANDO MAIS UMA TENTATIVA DE PRIVATIZAÇÃO DAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEIRAS

FUTURE-SE: ACLARAR OTRO INTENTO DE PRIVATIZAR LAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS BRASILEÑAS

LUÍS AUGUSTO LOPES1  2 
http://orcid.org/0000-0003-3430-2755

1Instituto Federal da Bahia(IFBA). Simões Filho, BA, Brasil.


RESUMO:

Este artigo visa estabelecer relações entre o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se - e diversos aportes teóricos que tem pautado a pesquisa, o empresariado e suas relações com o Estado brasileiro ao longo dos anos. Parte-se de uma análise documental da proposta encaminhada à Câmara dos Deputados em junho de 2020, assim como de outras legislações que dão suporte ao projeto, sendo dividido em sete partes. Após a introdução, faz-se uma análise inicial da reforma do Estado, da Teoria do Capital Humano e da Sociedade da Informação. Prossegue-se com um exame da Inovação, do modelo de Tripla Hélice e do Capitalismo Acadêmico. Logo após, aborda-se mudanças no Estado e no indivíduo e a transformação da empresa enquanto um modelo para a sociedade. Em seguida, a reforma do Estado é retomada para demonstrar a mutação gerencial que sofre o Estado brasileiro. O penúltimo tópico detalha outros aspectos do Future-se não abordados nas seções anteriores, e, ao fim, parte-se para a conclusão, onde algumas discussões feitas ao longo do texto são resgatadas. Para o proposto neste artigo, entende-se que o Future-se não é algo novo, mas a tentativa de se consolidar uma tendência crescente de privatização do ensino superior com uma nova especificidade, que é o elemento da financeirização.

Palavras-chave: universidade; future-se; privatização; tecnologia; financeirização

RESUMEN:

Este artículo tiene como objetivo establecer las relaciones entre las Universidades y el Programa de Emprendedores e Institutos Innovadores - Future-se - y varias contribuciones teóricas que han guiado la investigación, la empresa y sus relaciones con el Estado brasileño a lo largo de los años. Se basa en un análisis documental de la propuesta presentada a la Cámara de Representantes en junio de 2020, así como en otras leyes que apoyan el proyecto, y se divide en siete partes. Después de la introducción, se hace un análisis inicial de la reforma del Estado, la teoría del capital humano y la sociedad de la información. Continúa con un examen de la Innovación, el modelo de la Triple Hélice y el Capitalismo Académico. Poco después, aborda los cambios en el Estado y en el individuo y la transformación de la empresa como modelo de sociedad. Luego se reanuda la reforma del Estado para demostrar la mutación gerencial que sufre el Estado brasileño. El penúltimo tema detalla otros aspectos del Future-se no tratados en las secciones anteriores, y, al final, va a la conclusión, donde se rescatan algunas discusiones hechas a lo largo del texto. Por la propuesta de este artículo, se entende que Future-se no es algo nuevo, sino el intento de consolidar una tendencia creciente de privatización de la enseñanza superior, con una nueva especificidad, que es el elemento de la financiarización.

Palabras clave: universidad; future-se; privatización; tecnología; financiarización

ABSTRACT:

This article aims to establish relationships between the Universities and Entrepreneur and Innovative Institutes Program - Future-se - and various theoretical contributions that have guided the research, the business, and its relations with the Brazilian state throughout the years. It is based on a documental analysis of the proposal submitted to the Brazilian Chamber of Deputies in June 2020, as well as other legislation that supports the project, and is divided into seven parts. After the introduction, an initial analysis is made of the state reform, the Human Capital Theory, and the Information Society. It continues with an examination of Innovation, the Triple Helix model, and Academic Capitalism. Soon after, it focuses on changes in the state and in the individuals and the transformation of the company as a model for society. Then the reform of the state is resumed to demonstrate the managerial mutation that the Brazilian state is undergoing. The penultimate topic details other aspects of Future-se not covered in the previous sections, and at the end goes to the conclusion where some discussions made throughout the text are rescued. For the proposal in this article, we understand that Future-se is not something new, but an attempt to consolidate a growing trend towards the privatization of higher education, with a new specificity, which is the element of financialization.

Keywords: university; future-se; privatization; technology; financialization

INTRODUÇÃO

Desde o início, o governo Bolsonaro apresentou um desempenho insatisfatório em diversas áreas, entre as quais, merece destaque o campo educacional. Em meio ao crescente desgaste do então ministro Abraham Weintraub e como forma de não caracterizar sua gestão apenas pela negatividade, o Ministério da Educação (MEC) buscou ser mais propositivo, apresentando, no dia 17 de julho de 2019, o Programa Universidades e Institutos Empreendedores e Inovadores - Future-se, que objetiva aumentar a autonomia financeira, gerencial e patrimonial das Universidades e Institutos. A proposta foi colocada em consulta pública no site do MEC na Internet até o dia 29 de agosto do mesmo ano, sendo alvo de muitas críticas. Bermúdez (2019) nos informa que mais de 40 Universidades condenaram o projeto, e cinco já tinham formalmente rejeitado a adesão ao mesmo. Segundo Ferreira (2019), do total de 63 universidades e 38 institutos federais, apenas 15 estavam dispostos a aderir à proposta governamental. Não obstante tal rejeição, o Future-se foi novamente colocado para consulta pública em janeiro do ano seguinte. Ferreira (2020) nos diz que a adesão tinha aumentado para 25 instituições naquele mês, o que ainda assim caracteriza uma forte rejeição. O ministro anunciou sua demissão em junho de 2020, porém, antes de sair, enviou à Câmara dos Deputados uma proposta reduzida do Future-se que se transformou no Projeto de Lei nº 3.076/2020 (BRASIL, 2020), em tramitação naquela casa. As principais mudanças em relação à versão colocada sob consulta prévia é o desaparecimento da figura das Organizações Sociais (OSs) e uma menção mais comedida dos fundos de investimento.

A leitura e análise das versões do projeto manifesta uma reedição de discursos presentes em outras esferas de governo e, principalmente, na iniciativa privada. Um rearranjo de ideias outrora criticadas, mesclado com alguns elementos novos, e apresentados sob uma nova roupagem. Em resumo, uma reafirmação das políticas neoliberais que visam a redução do Estado e a privatização. Nas palavras de Dahlet (2014, 2015), trata-se de um discurso eivado de eufemismos, cujo significado refere-se ao “bem dito [...] que consiste em dizer as coisas de maneira atenuada [...] para evitar a brutalidade das palavras [...] podendo assim contornar ou evitar palavras ou formulações mais constrangedoras” (DAHLET, 2014, p. 126). Em decorrência, os agentes deste discurso são eclipsados, da mesma forma que suas responsabilidades diante das crises. Outrossim, vários aparelhos ideológicos do Estado, como o governo e o aparelho de informação, expresso principalmente na mídia, naturalizam e generalizam essas falas entre as classes sociais, levando a uma falsa compreensão de que tais fenômenos são naturais e inevitáveis, e as ações políticas não passam de artifícios para minimizar os impactos negativos dessas tendências, ditas irreversíveis. Restaria ao conjunto população, em especial à classe trabalhadora, a mera adaptação.

Não obstante essa grande desaprovação, parte das análises feitas, até então, tem perspectivas diversas. Pode-se citar o caso da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) que, ao término da 176ª reunião do seu Conselho Pleno em 26 de julho de 2019, publicou a Carta de Vitória, onde as críticas são dirigidas mais em relação aos aspectos legais e orçamentários do FUTURE-SE (ANDIFES, 2019). Documentos mais pormenorizados, como a da Universidade de Brasília (2019), debruçam-se sobre uma análise das contradições legais do texto. Por seu turno, Silva (2020) fez um exame do programa a partir do movimento histórico das classes sociais, em especial o movimento da burguesia brasileira, cada vez mais próxima do fascismo, que visa aprofundar a agenda neoliberal no país. O presente artigo visa acrescer a essas ricas produções uma outra perspectiva. Tomando como base uma análise documental da proposta encaminhada à Câmara dos Deputados em junho de 2020, assim como de outras legislações que dão suporte ao projeto, buscou-se relacioná-la aos vários pressupostos teóricos que a embasam, notadamente aqueles que dão suporte ao pensamento neoliberal na economia e na educação, e seus desdobramentos na Universidade e na produção de tecnologia. Após a introdução, prossegue-se com uma análise inicial da reforma do Estado, da Teoria do Capital Humano e da Sociedade da Informação, para depois examinar-se a assim denominada Inovação, o modelo de Tripla Hélice e o Capitalismo Acadêmico. Logo após, abordar-se-á as mudanças no Estado e no indivíduo e a transformação da empresa enquanto um modelo para a sociedade. Em seguida, a reforma do Estado é retomada para demonstrar a mutação gerencial que sofre o Estado brasileiro. O penúltimo tópico detalha outros aspectos do Future-se não abordados nas seções anteriores, e, ao fim, parte-se para a conclusão, onde algumas discussões feitas ao longo do texto são resgatadas. Para o proposto neste artigo, entende-se que o Future-se não é algo novo, mas a tentativa de consolidar uma tendência crescente de privatização do ensino superior com uma nova especificidade, que é o elemento da financeirização.

TEORIA DO CAPITAL HUMANO E A SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Dentre os objetivos do programa que merecem destaque, encontra-se o segundo: “promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação tecnológica e a inovação” (BRASIL, 2020, p. 1). Desde o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), há uma aceleração da privatização do ensino superior, e com as mesmas alegações com que se busca o desmonte da máquina estatal em outros setores: a eficiência e o custo1. Instituições privadas teriam um menor custo por aluno e uma flexibilidade maior na adequação às supostas exigências de mercado. Entretanto, essas escolas nunca conseguiram se igualar ao que mais se destaca nas instituições públicas no Brasil: a pesquisa científica. Rabelo (2019) nos informa, a partir do relatório Research in Brazil, feito pela empresa Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), que as universidades públicas produzem 90% da pesquisa científica do país, sendo que 60% está concentrada em 15 delas. Como os intentos privatizantes não conseguiram demover a importância das instituições públicas, busca-se agora uma privatização que se inicia internamente, a partir daquilo que pode ser considerado como a maior contribuição dessas instituições para a sociedade brasileira: a pesquisa científica.

Contudo é de se perguntar por que uma atividade de trabalho que não coopera diretamente para a produção de valor é alçada a uma posição de tamanha grandeza no atual contexto. Uma das razões a ser aventada e uma das raízes não completamente assumidas pelo Future-se é a da Teoria do Capital Humano (TCH)2. Surgida na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, berço do pensamento econômico neoliberal, teve como um dos maiores expoentes o economista Theodore W. Schultz. Seu trabalho reflete uma propensão dos economistas neoclássicos em considerar que, além dos tradicionais fatores de produção, capital e trabalho, uma outra causa de geração da riqueza seria o que ele denominou de capital humano. Escrito no início dos anos 70, o autor já faz uso de táticas para ocultar as relações sociais vigentes na sociedade capitalista, ao mesmo tempo que tenta estabelecer uma suposta igualdade entre detentores do capital e os denominados detentores do saber. Se as críticas à TCH no campo educacional são bem conhecidas, não se pode olvidar o fato de que seu mentor não considera somente a educação no seu escopo teórico. Nas suas palavras, “a pesquisa vai ser o ator principal, enquanto a educação desempenha um papel coadjuvante. As atividades de pesquisa são parte integral da economia” (SCHULTZ, 1973, p. 193). Todavia, ele admite que há uma dificuldade em mensurar qual a contribuição econômica das mesmas. Por este motivo, ele entende que elas são uma “espécie de atividade econômica porque exige escassos recursos e porque produz alguma coisa de valor” (SCHULTZ, 1973, p. 194). Os recursos estariam na alçada da atuação dos pesquisadores e nas instalações necessárias ao seu trabalho, e todo seu empenho estaria objetivado na busca de “uma nova informação” (SCHULTZ, 1973, p. 194). Ao fim, haveria um prestígio do pesquisador traduzido em ganhos financeiros e benefícios para as empresas e governos. Nessa última esfera, a pesquisa científica resultaria em desenvolvimento, materializado na forma de invenções, patentes, novos materiais, novos produtos e um amplo espectro de técnicas gerenciais e de produção, que seriam manifestações do capital humano. Pouco afeito ao termo desenvolvimento, ele considera que a expressão mudança tecnológica expressaria melhor esse momento, pois não se encontraria alocada nos polos tradicionais dos fatores econômicos - capital e trabalho - mas poderia substituí-los.

Como aporte teórico para sua concepção de pesquisa associada à informação, Schutz cita nominalmente outro economista da Universidade de Chicago, George J. Stigler. Em artigo publicado no Journal of Political Economics (STIGLER, 1961), ele diz nominalmente que a informação é um recurso valioso, pois trata-se de poder. Para demonstrar sua hipótese, ele apresenta um exemplo de compradores e vendedores de carros, por onde os primeiros buscam informações sobre menores preços para adquirirem seu produto, num suposto jogo de livre mercado. Essa procura resulta em custos para consumidores que podem ser minimizados pela publicidade, cujo papel principal seria fornecer aos compradores informações adequadas sobre os vendedores. Embora ele não desenvolva outras questões no artigo, o autor indica que a informação pode exercer um papel fundamental na economia em áreas como investimentos, trabalho, locação de imóveis e qualidade dos bens, por exemplo.

Essa construção caminha em paralelo à formulação de um outro conceito, o de sociedade da informação, criado pelo economista austro-estadunidense Fritz Machlup. Crawford (1983) demonstra que o autor tinha um interesse inicial em estudar imperfeições de mercado e monopólios, analisando o sistema de obtenção de patentes, mas seguiu outro enfoque. Como obtenção de patentes implica em pesquisa - que tem íntima relação com educação - ele passa a investigar o peso desses setores na economia dos Estados Unidos. A eles agrega os setores de comunicação e mídia, a produção de equipamentos de telecomunicações e informática e os chamados serviços de informação, como bibliotecas, serviços jurídicos, financeiro, de saúde, etc. Conclui que o valor agregado do conhecimento chegaria a 29% do Produto Interno Bruto (PIB) daquele país, com uma taxa de crescimento superior a outros setores, como a indústria e a agricultura. Ele também cunha o termo “indústria do conhecimento”, onde a universidade teria um papel central.

Ainda de acordo com Crawford (1983), com base nos escritos de Machlup, Peter Drucker introduz o conceito de Sociedade do Conhecimento no seu livro The Age of Discontinuity de 1969, termo esse confundido, muitas vezes, com o de Sociedade da Informação. Em 1973, o sociólogo estadunidense Daniel Bell publica O advento da sociedade pós-industrial, que também vai ressaltar o papel do conhecimento e da informação na nova ordem social e econômica que supostamente estava nascendo. Esses termos são amplamente difundidos e popularizados desde então, em especial a partir da literatura gerencial.

Ao se retornar para a análise do projeto Future-se, constata-se que é essa linha de pensamento neoliberal que orienta a proposta. No Inciso IV do Art. 3º do projeto, a pesquisa é entendida como um “trabalho criativo empreendido em base sistemática com vistas a aumentar o estoque de conhecimento”, e o mesmo deve ter como objetivo “perscrutar novas aplicações” (BRASIL, 2020, p. 2.). O Inciso II do Art. 18 segue o mesmo raciocínio ao mencionar como diretriz para a pesquisa o desenvolvimento tecnológico e a inovação, ações para promover a “difusão de conhecimento, com o objetivo de consolidar a capacidade da instituição de ensino na apropriação e na negociação de ativos intangíveis”. Igualmente, a internacionalização das instituições, exposta no Inciso XXI do Art. 21, objetiva a “multiplicação do conhecimento e da experiência adquiridos no exterior.” (BRASIL, 2020, p. 7). São expressões que, consoante Dahlet (2014), tornam o discurso neoliberal mais afável, ao mesmo tempo que aponta para um avanço da humanidade e ordena o que é enunciado ao público em geral.

Tanto nos fundamentos da TCH como nos da Sociedade da Informação/Conhecimento, a ausência de termos pode revelar algo mais. Um primeiro fator é que Schutz não considera o momento histórico em que ele apresenta sua teoria. Ela foi formulada nos anos 60, quando vigorava o Estado do Bem-Estar Social, com vários ganhos para a classe trabalhadora. Outro fator era o contexto da Guerra Fria. Desde a Segunda Guerra havia um investimento maciço na construção de uma estrutura industrial, visando dar suporte aos planos militares, e era necessário o envolvimento do aparato científico. Terríveis inventos, como a bomba atômica, ou grandes avanços, como a penicilina e o radar, surgiram nessa interação. Um outro fator é o papel dos conglomerados monopolistas que transformaram o resultado dessas pesquisas em produtos, a exemplo da Monsanto, Du Pont e General Eletric.

Justamente por envolver o setor empresarial, não há ponderações sobre as intricadas e opacas relações entre este e o governo, e que, ao longo da História, têm resultado numa crescente concentração e centralização do capital e formação de grandes monopólios e oligopólios sob os olhares complacentes dos órgãos de fiscalização antitruste. Eis aí a grande dissimulação que essas teorias neoliberais operam: escondem a relação capital-trabalho, o antagonismo de classes e os interesses da burguesia, para naturalizar uma relação de dominação e imprimir ao conjunto da sociedade sua visão de mundo. Ao afirmar que a posse do capital equivaleria à posse de informações/conhecimento, opera-se um duplo movimento: primeiramente, procura minimizar e dissimular o papel histórico e social da propriedade privada dos meios de produção, pois eles já não teriam tanto valor quanto o novo instrumento de poder que agora surge. Segundo, visa criar uma sensação de democratização da posse do capital, pois o conhecimento estaria disponível a todos quantos estivessem dispostos a batalhar por ele, independentemente de sua condição de classe, raça ou gênero.

No caso brasileiro, outras considerações são obscurecidas. Não se recorda a posição do país na divisão internacional do trabalho e a crise do padrão de desenvolvimento que vigorou até os anos 80, denominado de Modelo de Substituição de Importações (MSI). Com a ascensão do neoliberalismo a partir dos anos 90, o país vive uma crescente financeirização da economia, que tem como reflexo um agudo processo de desindustrialização, como nos mostra Bruno (2019). O golpe de 2016 agravou toda a situação. Diante dessa conjuntura, há que se perguntar qual o papel da pesquisa científica e tecnológica. Leher (2010) aponta que durante a vigência do MSI, e em especial na ditadura militar, o projeto de modernização conservadora das elites locais não podia prescindir da universidade. Com o esgotamento desse padrão de desenvolvimento e o início da reprimarização da economia, o papel da pesquisa científica e tecnológica é diminuído, já que tudo passa a ser comandado pelo crivo das finanças globalizadas, regidas pelo curto prazo e pelos altos retornos financeiros. O autor afirma que a educação (e porque não a pesquisa) passam a ser vistas como mercadorias dispostas no chamado livre mercado. Ao invés de uma política científica e tecnológica comandada pelo Estado, tem-se o que Dagnino (2011) denomina como uma terceirização da ação tecnológica, com protagonistas dispersos e fragmentados pelo território nacional.

Em complemento, ao reduzir a pesquisa à busca de informações que passam a ser mensuradas pelo seu valor financeiro, opera-se uma redução da compreensão do que seja pesquisa. Parte-se de um trabalho de desvelamento de um objeto que gera o saber para algo próximo ao entendimento de técnica pura em Weber (1999, p. 39): “meios mais apropriados para chegar a determinado resultado, que aceita como finalidade dada e indiscutível”. Se para o sociólogo alemão a noção de custo é um dos fatores que passa a balizar as escolhas técnicas, o Future-se acrescenta um outro objetivo para a pesquisa, que vem a ser a aplicabilidade do chamado estoque de conhecimento, em consonância com a TCH. Há que se perguntar: por que o conhecimento tem que ter necessariamente uma aplicação? Em caso afirmativo, quem estabelece a utilidade do mesmo? E para quem e a que serve essa aplicação? Ainda que o programa apresente o termo sociedade diversas vezes, ele funciona como um meio de atenuar outra palavra que tem grande destaque: empresa.

INOVAÇÃO, MODELO DE TRIPA HÉLICE E O CAPITALISMO ACADÊMICO

Outra expressão presente no primeiro eixo da proposta do Future-se é a inovação. No Inciso V do Art. 3º do projeto, ela é definida como a “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos” (BRASIL, 2020, p. 2.). Outrossim, um produto ou serviço existente poder ser alvo de novas “funcionalidades”, sem esquecer que os resultados esperados devem envolver “melhorias e [...] efetivo ganho de qualidade ou desempenho” (BRASIL, 2020, p. 2.). A partir do aporte weberiano, entende-se que o objetivo final de tudo, apresentado como algo do campo natural e indubitável, é o ganho. No mesmo tom, a pesquisa científica deve “promover e incentivar [...] a capacitação científica e tecnológica e inovação” (BRASIL, 2020, p. 1.). De igual modo, a internacionalização é conceituada como o “processo de promoção das relações acadêmico-técnico-científicas interinstitucionais, que permite a criação, a implementação e o acompanhamento de projetos e de convênios, com vistas à inovação.” (BRASIL, 2020, p. 2). O termo foi agregado ao nome do Ministério da Ciência e Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTI), deve fazer parte das políticas internas de cada universidade e instituto, e juntos convergem para um Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação. Ao partir-se para o referencial marxista, observa-se a construção social de um fetiche que atende pelo nome de inovação3. As instituições devem gerar pesquisas para a inovação, de igual modo as pessoas devem ser habilitadas a trabalharem com inovação, e esta deve ser incorporada e praticada no cotidiano pessoal e institucional. Contudo, o termo não atua isoladamente, mas faz parte de um conjunto onde expressões como gestão e empreendedorismo, dentre outras, formam uma ideologia que deve ser incorporada na produção científica e tecnológica.

A literatura sobre inovação tem como sua principal fonte teórica o economista austríaco Joseph Alois Schumpeter. Em uma das suas principais obras, Teoria do Desenvolvimento Econômico (SCHUMPETER, 1997), ele procura estabelecer uma diferença entre crescimento e desenvolvimento econômico, ou seja, entre um mero acréscimo de dados e entre mudanças internas efetivas na vida econômica. Essas ocorrem em períodos esparsos, no âmbito industrial e comercial, de uma maneira profunda e estabelecendo um novo patamar no sistema capitalista. Sua atenção é voltada para o indivíduo, e não ao grupo ou o contexto social que produz essa mudança. São chamados de ‘empresários’, em contraponto aos capitalistas mais afeitos à posse do dinheiro. Salienta que os primeiros vão além do entendimento de homens de negócios ou gerentes, mas são pessoas com “iniciativa”, “autoridade”, “previsão”, “intuição”, “perspicácia, “energia” e “personalidade”, ou seja, com um determinado comportamento impulsionador dessa mudança. Como desfecho, todas as ações de um determinado setor serão conduzidas na direção por ele apontada. O termo utilizado para caracterizar esse impulso indutor de transformações é “inovação”.

Outros fatores também sobressaem na teoria schumpeteriana. Ele não acredita que essas pessoas se constituam numa classe social específica, uma vez que essa forma de pensar e agir não é algo comum a todos, mas específico de poucos indivíduos. De igual maneira, não tem a intenção de posicioná-los como demiurgos, porquanto não vê a todos como gênios ou benfeitores que almejam o bem comum. Pelo contrário, considera-os um pouco egocêntricos, utilitaristas, e que tendem a deixar o centro do palco quando parte dessa força se esvai. Outrossim, o economista austríaco era partidário do denominado livre mercado. Fazia grande oposição ao socialismo, pois acreditava que o impulso criativo seria tolhido por causa da estrutura burocrática estatal, mas não somente isso. Via nos grandes conglomerados monopolísticos outro entrave para o desenvolvimento da inovação. Porém, ao se relacionar a ênfase fetichizada que a inovação assume nos dias atuais e o culto a esse indivíduo que seria o ator principal da mesma, há que se perguntar por qual metamorfose esse pensamento passou. Há que se lembrar da vigência do Estado do Bem-Estar Social no pós-guerra e de um fator que também demoveu um pouco o pensamento schumpeteriano: o crescimento contínuo dos grandes conglomerados monopolistas. A simbiose se constituiu num intricado jogo, onde governos garantiam mercados a empresas e estas passavam a ter um papel cada vez mais preponderante nas políticas econômicas e sociais. No jogo de expansão dos mercados para outros continentes ou países dependentes, os dois se apresentavam em conjunto. Eram representantes governamentais acompanhados de seu séquito de empresários que impunham, sob a aquiescência das elites locais, suas políticas e suas empresas.

A publicação dessas teorias no final dos anos 60 e início dos anos 70 coincide com mais uma crise do capitalismo que despontava no horizonte. Nesse momento, o pensamento neoliberal começa a ascender no plano político e é devidamente reconhecido enquanto diretriz maior para a condução do Estado a partir da eleição de Margaret Thatcher em 1979 no Reino Unido, e Ronald Reagan em 1980 nos Estados Unidos, se espalhando pelo globo desde então. Suas políticas se refletiram também nas universidades, com pressão para corte de gastos e maior eficiência na utilização de recursos. Nesse momento, começa uma mutação na antiga relação entre o governo, empresas e universidades que havia estabelecido um padrão para a pesquisa científica e tecnológica até então. Um primeiro fator, já abordado, foi o avanço do poderio empresarial. Agora o governo começa a se retirar de cena.

Dentro do mesmo escopo teórico neoliberal, outros aportes teóricos começam a aflorar. A partir de meados dos anos 80, debuta um pensamento de que a produção de tecnologia com esferas estanques distintas (governo, empresas e universidades) já tinha se esgotado e agora despontava no horizonte um modelo onde esse construto se daria a partir de uma interseção dessas entidades, levando à criação de um modelo híbrido. Dessa forma, novos termos surgem, como empresas start-ups, incubadora de empresas, parques tecnológicos, etc., e uma ênfase maior no empreendedorismo. Outro destaque são as transformações que as grandes empresas sofrem com a primazia do elemento financeiro. Em paralelo, a propriedade do capital se dispersa, ao mesmo tempo que se oculta por trás de novos eufemismos: investidores institucionais, stakeholders, ou partes interessadas, Chief Executive Officer (CEO), mercado acionário, etc. Sua organização interna sofre, igualmente, uma grande mutação, visto que, diferentemente da estrutura verticalizada e centralizada - característica do pós-guerra -, emerge uma outra, horizontalizada, onde a terceirização das atividades tem um papel central, juntamente com a dispersão geográfica das operações e um amplo controle informatizado.

Alguns dos maiores expoentes dessa nova linha de pensamento são o sociólogo estadunidense Henry Etzkowitz e o também sociólogo holandês Loet Leysdesdorff. Seu modelo, denominado de Tripla Hélice, se espaireceu de tal forma que foi criada uma associação internacional sobre o tema, que conta com diversos “capítulos” espalhados por países tão distintos como Rússia, Cazaquistão, Grécia, a região do sudeste asiático e o Brasil. Etzkowitz (1984) se volta para o que ele denomina de cientistas e universidades empreendedoras, analisando casos de pesquisadores com visão de negócios que criam patentes e, doravante, aumentam seus rendimentos e os recursos destinados à investigação científica. Cita como precursores desse exemplo a colaboração entre universidades alemãs e empresas do setor químico, ainda no século XIX. Nos tempos atuais, essas iniciativas podem gerar novos empreendimentos a partir do resultado das pesquisas, as chamadas start-ups, que podem ter uma grande possibilidade de crescimento e até atrair o denominado capital de risco. Os exemplos quase sempre estão circunscritos a grandes universidades e conglomerados, e mesmo as empresas nascentes podem acabar sendo objeto de aquisição. Outra possibilidade aventada pelo mesmo autor (ETZKOWITZ, 1993) refere-se ao caso de determinadas regiões em que houve um estímulo conjunto para que esse ambiente se desenvolvesse, a exemplo da região da Nova Inglaterra, no nordeste dos EUA, berço do Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde, segundo ele, a universidade foi criada com o objetivo de prestar assistência ao setor industrial da região. Numa outra direção, o desenvolvimento do setor aeronáutico na costa oeste do país impulsionou o surgimento do California Institute of Technology.

Posteriormente, com seu colega holandês, ele teoriza melhor os fenômenos que eles observaram, nominando-o de Tripa Hélice (ETZKOWITZ; LEYDESDORFF, 1995; ETZKOWITZ, 2003), que seria o novo fundamento para estratégias de inovação aqui e alhures. Isso implicaria na criação de zonas de interseção entre governo, empresas e universidades, com equipes que perpassariam as fronteiras dos três entes, e forte aporte de áreas como pesquisa, desenvolvimento e marketing. Na ótica de redução da atuação do Estado, este não seria mais um orientador das políticas públicas para o setor, porém apenas um indutor, dando segurança institucional e jurídica para que as outras duas partes se relacionassem sem maiores interferências. Para que tudo progredisse, seria necessária a criação de um sistema de inovação, com fronteiras fluidas entre academia e empresas, de maneira que os frutos da pesquisa científica se convertessem com mais facilidade e rapidez em novos produtos e serviços. Mas como condição sine qua non, para que tudo fruísse, a economia também deveria se tornar uma Economia do Conhecimento, o que indica a materialização da assim denominada Sociedade do Conhecimento.

Do lado do Estado, a ascensão da hegemonia financeira no seio empresarial ocorre em consonância com uma mudança para a mesma prioridade no aparato governamental. A receita neoliberal partia da hipótese de que deveria haver um enxugamento da máquina pública e liberação da economia. Na prática, houve uma reorientação das ações para o domínio financeiro, enquanto a privatização e a desregulamentação campeavam na sociedade.

Com os cortes de verbas e outras orientações neoliberais, começa a tomar forma aquilo que Slaughter e Rhoades (2004) denominam de Capitalismo Acadêmico, que, com algumas ressalvas, ainda assim induziria novas formas de produzir e compartilhar o conhecimento. Vem à tona os aportes teóricos da chamada Sociedade da Informação, e um gradativo aumento na interação entre governo, empresas e universidades, principal eixo de transformação nos moldes que Etzkowitz e Leysdesdorff indicaram. Todavia, a metamorfose não se restringe a essa área somente. A interação com o capital também adentra os portões da academia. Segundo os primeiros autores, estudantes agora são transmutados em consumidores de produtos acadêmicos e devem ser forjados ao gosto de prováveis futuros empregadores. De igual modo, o universo da linguagem e das ações empresariais passa a permear com força maior as universidades. São contratos, metas de produção, resultados, a onipresente gestão, empresas, empreendedorismo, participação acionária, produtos, comercialização, patentes, marcas, etc. Outras expressões deste domínio se manifestam em nomes de prédios, programas e cursos feitos sob encomenda de empresas, áreas dos campi franqueadas a empresas de alimentação e informática, etc.; e, talvez, a maior sagração de todo esse processo: a própria universidade se transforma numa grife. Pode-se perceber claramente esse processo nas instituições estadunidenses. São roupas, acessórios, material escolar e um universo de quinquilharias que portam a logomarca da universidade, produção de luxuosos catálogos para atrair estudantes potenciais e participação em diversas feiras mundo afora, com o mesmo intuito. Nesses catálogos tem-se a impressão de uma vida acadêmica bastante aprazível. Há que se observar, entretanto, que as políticas de bolsas, muito mais do que uma ajuda de custo, visam introduzir nas classes subalternas e nos deslocados dos países periféricos uma compreensão de mundo mais afeita à hegemonia do capitalismo central. Quando esse mundo idílico é contrastado com a realidade brasileira das universidades públicas, de corte de verbas, falta de professores, dificuldade de acesso aos campi, insegurança e uma rotina extenuante de estudos, fica difícil não imaginar que lá as instituições são melhores. Mas essa expressão das universidades estrangeiras tem um outro forte argumento ideológico. Tudo leva a crer que a passagem pela academia se dá sem confronto de ideias, sem contradições e sem grandes debates. O conhecimento aparenta ser algo facilmente disponível a quem acessar um site na Internet e assistir aulas com notórios professores, que vão argumentar com base em “ciência” e não em “visões políticas”. Eis a maior sedução desse processo.

Ao longo dos anos 90, capitaneados pelo Banco Mundial, essa visão neoliberal se alastra pelo mundo. Sempre crítico à educação gratuita no terceiro grau, diversos dos seus documentos orientavam os governos a cobrar mensalidades nas universidades públicas. Em outra frente, deveria haver uma ampla abertura para a oferta de cursos por instituições privadas. No Brasil a pressão política não permitiu que o primeiro intento se concretizasse, ao contrário do segundo, que teve um crescimento exponencial a partir da mesma década de 90, sem reflexo, porém, na qualidade. Várias ações do Capitalismo Acadêmico já vinham sendo implementadas ao longo dos anos, todavia vê-se agora uma tentativa de consolidação desse processo de uma forma avassaladora. No Future-se, observa-se que as instituições públicas deverão se transformar numa espécie de templo de consumo do conhecimento e de seus signos. Fala-se de “cultura empreendedora”, “empregabilidade”, “modernização da gestão pública”, “eficiência”, “economicidade”, “contratos”, “resultados”, “comercialização”, etc. A mensagem ao projeto expressa sua suposta modernidade numa suposta agilidade, “flexibilidade”, “descentralização”, “geração de riqueza”, etc. O Santo Graal a ser adquirido pelos interessados atende, quase sempre, pelo nome de patentes. Muito embora os recursos sejam públicos e a universidade deva prestar contas ao conjunto da sociedade das suas ações, não é a estes que as patentes devem se dirigir, mas à forma mistificada e reduzida de sociedade que se deixa transparecer no projeto: as empresas. Além desse quadro, há uma aproximação ainda maior das instituições públicas brasileiras com suas congêneres estadunidenses. O parágrafo único do Art.16 (BRASIL, 2020, p. 6-7) prevê, dentre outras coisas, a mercantilização de “produtos ou serviços com as marcas das instituições”. Tudo isso não ocorreria, porém, sem que uma intensa mudança estivesse sendo levada a cabo dentro do Estado.

MUDANÇAS NO ESTADO E NO INDIVÍDUO - A EMPRESA COMO MODELO PARA A SOCIEDADE

A partir de um prisma foucaultiano, Dardot e Laval (2016, p. 17.) propõem que o neoliberalismo é uma forma de racionalidade que “tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”, ou seja, “a razão do capitalismo contemporâneo”. A análise deles se volta para um dos maiores expoentes do neoliberalismo, o economista austríaco Ludwig von Mises, onde ao lado de uma condenação veemente ao Estado, ergue-se como contraponto o mercado e a figura do empreendedor. Nesse último aspecto, há uma grande contribuição do já citado Peter F. Drucker, que alarga a visão schumpeteriana desse indivíduo. Ele passa a ser uma espécie de herói, e tal qual um credo redentor, esse “espírito” deveria ser disseminado pela sociedade, inclusive dentro dos governos, já que, em conjunto com a gestão empresarial, resultaria em progresso para o conjunto da sociedade. Os dois autores destacam que o teórico austríaco considerava o espírito empreendedor como uma capacidade presente em todos as pessoas, mas algo não percebido, pois seu estímulo só ocorreria plenamente no mercado, denominado por eles de “processo de formação de si” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 145). Von Mises amplia o espírito missionário empreendedor de Drucker, e indica que ele agora deve permear a mídia e o ensino superior para demonstrar a superioridade moral do capitalismo em relação a qualquer outro modo de produção, ao mesmo tempo que desestimularia pretensões de mudanças sociais, associadas à intervenção estatal, o que avizinharia a sociedade ao totalitarismo, segundo ele. É nesse contexto que os autores franceses vão entender o empreendedorismo com um modo de conduta.

Se a concorrência e o mercado são o horizonte ideal para a sociedade, o Estado também deve ser transmutado para operar segundo esses dogmas. A análise de Dardot e Laval sobre Mises aponta que o economista via que a ação governamental deve se restringir à regulação e avaliação, ao mesmo tempo que orienta, estimula e se sujeita a essa livre concorrência. Diante desse quadro, outro termo desponta no horizonte, devidamente adequado ao ethos neoliberal: governança. Isso significa que empresas e governos devem se orientar pelos mesmos critérios de gestão, materializados sob a forma de ajustes estruturais, abertura de mercados, etc., e o interesse público é travestido em interesse financeiro dos grandes conglomerados. No mesmo caminho trilhado pelas empresas, manifesto numa estrutura horizontalizada, a terceirização das atividades e uma centralização de controle também passam a orientar a nova governança. São Organizações Não Governamentais (ONGs), associações, miríades de empresas terceirizadas, Parcerias Público-Privadas (PPPs), etc., envolvidos numa intricada rede de jogos de poder, controle, avaliação e pressão da máquina pública. Encoberto por uma capa de neutralidade, essa visão vai seduzir, inclusive, os governos ditos de esquerda, a começar por Tony Blair no Reino Unido, passando pelos socialistas franceses e alcançando nosso subcontinente latino-americano.

Se tudo, entretanto, é colocado a partir do prisma das empresas, há pouca atenção ao que acontece nesse meio e suas relações com outros segmentos da sociedade. Pagès et al. (1987) fazem uma análise multidisciplinar sobre o tema, com contribuição da sociologia, psicologia e economia, agregando posicionamentos foucaultianos e marxistas. Investigando o caso da filial francesa de uma multinacional estadunidense ao final dos anos 70, há diversos aportes para entender como o que eles denominam de “empresa hipermoderna” vai se tornando um padrão adotado pelos grandes grupos empresariais. Trata-se, segundo eles, de um sistema de poder, não mais restrito a grupos sociais, mas “um sistema econômico-político-ideológico-psicológico de mediação e ocultação de contradições sociais e psicológicas” (PAGÈS et al., 1987, p. 16). O primeiro processo se caracteriza pela interposição da figura da empresa no conflito capital-trabalho, onde tudo toma a aparência de um conflito individual com políticas organizacionais. Para tanto, ela oferece um generoso pacote de recompensas financeiras e estímulos psicológicos, acoplado a uma grande restrição e controle da atuação profissional. As contradições tendem a ser inconscientemente introjetadas nos trabalhadores, operando o segundo aspecto desse sistema, ou seja, a ocultação.

Como esses elementos não são estáticos, a partir do soerguimento de novas situações de enfrentamento, é posta em marcha uma dinâmica constante para dissipar o conflito, promover novos estímulos psicológicos e expandir as formas de controle. A empresa funciona, portanto, como mais um aparato ideológico, que tende a ampliar sua influência para os governos, escolas, universidades, etc., criando o que os autores denominam de “uma religião de empresa”, convertendo-se “em um lugar de produção de conceitos e valores” (PAGÈS et al., 1987, p. 36), que implica uma “adesão ideológica que galvaniza energias e incita as pessoas a se dedicarem de ’corpo e alma’ a seu trabalho” (PAGÈS et al., 1987, p. 75).

Nesse cenário, grande destaque deve ser observado à operação de poder e controle que é exercido. Há níveis de controle global, regional e nacional. As funções são divididas entre filiais e continentes, de maneira que as várias etapas do desenvolvimento à produção de determinado produto ou serviço nunca fique concentrado em um único local. A pesquisa, em especial, é mais restrita aos países de origem dos conglomerados. Laboratórios em outros países somente operam alguns processos fragmentados, de acordo com a direção emanada de cima. A produção segue um ritmo semelhante, porém sem uma concentração maior nas sedes, mas igualmente pulverizando as diversas etapas por fábricas dispersas a fim de que não surja um conhecimento sobre todo o processo. O controle, principalmente financeiro, é rigoroso e altamente centralizado, amparado pelos sofisticados sistemas de telecomunicações e informática. Como cada filial não deve seguir cegamente a tudo que é orientado pela matriz, sob o risco de não conseguir atingir metas de vendas e lucros, é permitido um determinado grau de autonomia nas decisões locais, num sistema altamente arrojado, que está em constante mudança. Regras são estabelecidas e alteradas a todo momento, mas não são necessariamente impostas, pois, já que as contradições foram introjetadas, o que se espera é um engajamento voluntário às mesmas. Para tanto, um dos mecanismos mais eficazes para criar uma suposta harmonia entre todos é a tradução de tudo em uma linguagem financeira, “de modo que faça do dinheiro o código universal”, que termina por “reduzir as relações sociais a relações mercantis” (PAGÈS et al., 1987, p. 63). A esse processo de centralização do controle e relativa liberdade de decisões os autores denominam “autonomia controlada”.

Em complemento a essa linha de pensamento e, igualmente, sob um enfoque foucaultiano, Gaulejac (2007) enxerga no exercício da gestão uma “tecnologia de poder” que se esconde por trás de uma imagem de racionalidade, pragmatismo, instrumentalidade e utilitarismo das relações sociais. São normas prescritas, que concebem o mundo como um artefato mecânico, e uma finalidade definida, ditada a partir de fora, apoiada numa suposta neutralidade matemática que a tudo explicaria, ou “um conjunto de microdispositivos que não aparecem como fruto de uma concepção centralizada, de um sistema de dominação preestabelecido” (GAULEJAC, 2007, p. 111). Visto não haver espaço para a contradição e o debate, adota-se a postura de interpretar apenas aquilo que pode ser reduzido a números, alimentando uma utopia de domínio sobre a realidade. Eis o motivo do uso quase nauseante da palavra ‘solução’ nas propagandas e manuais empresariais: os obstáculos só devem aparecer no centro do palco quando há uma resposta matemática a eles. Se em Taylor há uma vigilância estrita dos corpos a partir da aferição dos tempos e limitação dos movimentos, esse novo poder gerencial trabalha com a sedução, através de sutis e sofisticados dispositivos de adesão, reconhecimento e obediência, que requer dos trabalhadores um total envolvimento de tempo, espaço e afetos, constituindo, na visão do autor, uma forma de “violência psíquica”.

Ao retornar-se ao disseminado modelo de Tripla Hélice, pode-se dizer que, dado o poderio das grandes corporações e a transformação do Estado aos moldes neoliberais, é uma ilusão acreditar que a academia vai permanecer isenta dessa mudança. A teia corporativa não diz respeito somente a empresas subcontratadas aqui e alhures. Como os resultados práticos de pesquisas científicas e tecnológicas se tornaram parte fundamental para garantir monopólios através de patentes e lucros maiores, a universidade passa a ser, em parte, um elemento dessa cadeia de terceirização, voltado para a produção de tecnologia a um custo menor. Isso porque já há investimento público no pagamento de salários e manutenção das instalações, aliado a um grande número de estudantes que, apesar de estarem dando os primeiros passos no seu aprendizado e no manuseio de determinadas técnicas, podem ser excelentes auxiliares ou até mesmo protagonistas na produção científica. A lógica imediatista das finanças corporativas vai entender como um gasto supérfluo manter grandes laboratórios, com muitos cientistas ganhando bons salários, quando parte dessa produção pode ser terceirizada e acelerada, dado o número de instituições envolvidas. Isso não implica, porém, no descarte dos seus laboratórios próprios. Como já visto anteriormente, o controle é um mecanismo fundamental nesse modelo de gestão, e perder de vista uma operação fundamental para sua acumulação é um grande risco. As matrizes concentram parte da pesquisa, com ações localizadas nas filiais, mas agora essa rede se amplia bastante com o envolvimento de dezenas - quiçá centenas - de universidades e pesquisadores de renome voltados para seus interesses. Mas para garantir que tudo ocorra de acordo com seus ditames, a “religião da empresa” precisa ser disseminada nessas plagas para provocar aquela “adesão ideológica” que impulsione os antigos e novos convertidos a trabalharem com todo afinco nessa relação. Há um conjunto de mecanismos legais e institucionais que têm um longo histórico no Brasil e que estão expressos na proposta do Future-se, e que trabalham a esse favor.

A METAMORFOSE GERENCIAL NO ESTADO BRASILEIRO

O Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (BRASIL, 1995), dentre outras mudanças adotadas, pode ser considerado o marco da incorporação do chamado pensamento gerencial na administração pública brasileira. Como o governo neoliberal de então havia conseguido uma vitória sobre a inflação, depois de mais de uma década de descontrole, as atenções agora se voltaram para o tamanho e a eficiência da máquina pública, que seria a causadora de um grande déficit público pelo seu tamanho excessivo e sua suposta lentidão. Há um conjunto de hostilidades dirigidas principalmente ao funcionalismo público por seus supostos privilégios e pela estabilidade no emprego garantida pela lei. Os novos horizontes seriam a flexibilidade, controle de resultados e governança, ou seja, “capacidade de implementar de forma eficiente políticas públicas” (BRASIL, 1995, p. 11)

Muito repudiada ao longo dos anos, o seu mentor procurou esclarecer melhor alguns pontos de vistas. Bresser-Pereira (2017), afirma que sua inspiração veio de um movimento ocorrido em meados dos anos 80 nos Reino Unido, denominado de Reforma Gerencial do Estado (ou nova gestão pública, ou reforma da gestão pública), de inspiração nas empresas privadas, mas que supostamente teriam sido associadas ao neoliberalismo por terem sido gestadas durante o governo de Margaret Thatcher. Como ele advoga a neutralidade dessas técnicas, seu álibi é de que o governo opositor de Tony Blair continuou seguindo os mesmos ditames. Outra justificativa apresentada pelo autor para a defesa desse modelo é que, mesmo após a ascensão dos governos de centro-esquerda no Brasil, o modelo gerencial seguiu em expansão em várias esferas, como o Bolsa Família e Reforma da Previdência; e o próprio Ministério da Educação (MEC), com o programa Reuni, de reestruturação e expansão das universidades públicas, que exigia um plano estratégico - linguagem essa bem afeita ao setor privado. Todavia, o autor não vê esse movimento como um enfraquecimento da ação pública, mas justamente o contrário, pois a eficiência resultaria num fortalecimento do chamado Estado social. Desde então, outros termos começam a permear a linguagem do setor público: cultura gerencial, resultados, custos, cidadãos transformados em clientes, contratos de gestão e, não menos importante, “criar condições psicossociais necessárias ao fortalecimento do espírito empreendedor do serviço público” (BRASIL, 1995, p. 64).

Como mencionou-se de início, o Future-se não significa algo totalmente novo, mas a consolidação de uma tendência crescente à privatização do ensino superior. Algumas legislações específicas são mencionadas no texto, e na mensagem enviada ao Congresso, que convém um melhor detalhamento. O programa dá um passo a mais na concretização do chamado Novo Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I), uma lei promulgada no segundo mandato da presidente Dilma Roussef (BRASIL, 2016). Ela implementa a Emenda Constitucional nº 85, de 26 de fevereiro de 2015, cujo maior destaque é colocar a inovação enquanto uma política de Estado inserida na Carta Maior do país. A lei faz a alteração em diversos dispositivos legais a fim de facilitar a entrada de pesquisadores estrangeiros e contratações de pessoal por tempo determinado, flexibilizar o Plano de Carreira do Magistério Federal, e acertadas decisões de facilitar a importação de bens destinados à pesquisa. No entanto, cerca de 70% do seu texto destina-se a alterar a Lei nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004, sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (BRASIL, 2004), conhecida como Lei da Inovação. Todo o conjunto de termos associados ao modelo Tripla Hélice, à TCH, à informação, à exaltação da empresa, à Sociedade do Conhecimento, ao fetiche da inovação, etc., estão lá. A competitividade empresarial aqui e alhures é o fim último, e organizações híbridas, como incubadoras, parque tecnológicos, etc., são regulamentadas.

No entanto, essa hibridização vai criar dois novos entes: a Instituição Científica Tecnológica e de Inovação (ICT) e o Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT), e ampliar o espectro de ação de outro ente criado ainda nos anos 90: as fundações de apoio. As ICTs passam a ser a denominação de qualquer órgão público ou privado, onde a pesquisa seja o fim descrito nos seus instrumentos constitutivos, assim como a transformação dos resultados desta em mercadorias. Já os NITs surgem dentro de uma ICT ou em conjunto com outra, mas sem distinção jurídica. Seu papel maior é a gestão da chamada “política institucional de inovação”. A teia organizacional presente nos grandes conglomerados começa aqui a ser moldada. Universidades e Institutos são equiparados a ICTs, tem um ou vários NITs abrigados em seu interior, ao mesmo tempo que podem, de acordo com o Inciso I do §2º do Art. 3ºB (BRASIL, 2016.), fazer acordos com outras ICTs e ceder imóveis e espaços a elas ou até a empresas. Tal pacto também se estende ao compartilhamento e utilização de laboratórios e todo o ferramental para desenvolver pesquisas, e participação de professores, que são remunerados com dinheiro público. Esses acordos podem envolver contrapartida financeira ou não. Os frutos desses trabalhos também estão dentro do enfoque gerencial e financeiro. Patentes são destinadas aos empresários, mas pode haver a constituição de novas empresas, onde a União pode entrar com participação acionária mínima no capital, havendo um contrato que será celebrado para não deixar dúvidas quanto à recompensa financeira às universidades pelos novos feitos tecnológicos. Processos e parques são geridos, recursos humanos e não trabalhadores devem frequentar o catecismo do empreendedorismo, e, caso todo esse processo avance para um almejado sucesso, o uso do mercado de capitais e crédito, fundos de investimento e participação também está autorizado. Muito embora esse arcabouço aparenta uma ampla liberdade, ele também demonstra um caráter totalitário. Para já assegurar que a oposição a esse modelo seja arrefecida entre possíveis pesquisadores críticos, a lei informa que, uma vez celebrado um contrato de transferência de tecnologia, “[...] dirigentes, criadores ou quaisquer outros servidores, empregados ou prestadores de serviços são obrigados a repassar os conhecimentos e informações necessários à sua efetivação, sob pena de responsabilização, administrativa, civil e penal [...].” (BRASIL, 2016, §6º, Art. 6º).

O golpe de 2016, que dá início a uma guinada ao neoliberalismo mais radical, dá continuidade a esse processo de privatização. Um decreto emitido pelo governo Temer (BRASIL, 2018) acrescenta novos detalhes à legislação em vigor. Os termos são idênticos àqueles encontrados na lei anterior, porém com alguns adendos. Dentre outras coisas, facilita-se o trâmite aduaneiro para importação de bens e equipamentos para pesquisa, cria-se subsídios fiscais para estímulo à produção de tecnologia e há um maior detalhamento da participação das ICTs públicas em fundos de investimento, bem como contratos de transferência de tecnologia a empresas e suas respectivas formas de remuneração. O restante da sociedade não é considerado como alvo dessa transferência, pois, como já dito, ela foi eclipsada pela noção de empresa.

A partir da promulgação da chamada Lei da Inovação, segundo (GARCIA, 2019, a criação dos núcleos de inovação se tornou compulsória nas universidades. O Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) habilitou-as para a criação dos NITs, e o maior reflexo desse processo foi um aumento do número de patentes registradas pela academia. Chega a ser irônico que tanto empenho governamental para fomentar parcerias com corporações não encontre tanto respaldo nestas, pois “a cultura de inovação custa a decolar dentro das empresas” (GARCIA, 2019, p. 2). Por essa causa, os maiores depositários de patentes no INPI são universidades, e apenas um grupo privado multinacional, a Case New Holland (CNH). Não obstante, isso não indica que a cultura empresarial tenha se arrefecido nos campi. O então diretor da agência de inovação da Unicamp, Dr. Newton Frateschi, diz que “mais importante do que ter a patente depositada é o fato de que a universidade produz coisas patenteáveis” ((GARCIA, 2019, p. 3). Na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), o Dr. Nilton Silva queixou-se de que há três anos eles não conseguem transferir tecnologia das patentes para as empresas em parte por questões internas à universidade. Razão pela qual deixam “de receber alguns milhões de reais em royalties” (GARCIA, 2019, p. 3).

O Relatório Formict (BRASIL, 2019), confirma esses e outros dados. A maioria das ICTs são universidades (44,9%), públicas (68,5%), abrigadas na instância federal (67,5%) e com maior prevalência na região sudeste (41,2%). Embora a legislação aponte diversas opções para a efetivação do modelo de Tripla Hélice, a maior parte das ações implementadas estão na alçada da chamada “gestão da propriedade intelectual e de transferência de tecnologia”, com 93,2% (BRASIL, 2019, p. 16). Como não há diferenciação de dados entre os dois tópicos, pode-se inferir, a partir da reportagem publicada por Garcia (2019), que o segundo aspecto (transferência de tecnologia) tem um peso menor do que o primeiro (gestão da propriedade intelectual). Na outra ponta, as atividades de “empreendedorismo, gestão de incubadoras e participação no capital social de empresas” alcançaram 50,2% das ICTs públicas e privadas, o que é considerado um índice baixo pelo ministério (BRASIL, 2019, p. 15). De igual modo, os NITs compartilhados não tiveram muito sucesso. Somente 15,3% daqueles estabelecidos nas instituições públicas estão nessa condição. Outro aspecto marcante é o tipo de registro de patente requerida, com o predomínio daqueles relacionados à indústria de transformação e serviços de informática, mostrando que há um envolvimento maior das áreas de engenharia e ciências exatas nesse processo. A universidade, entretanto, não é formada só por esses campos de conhecimento, ficando em suspenso o que ocorre àquelas áreas que não tem, não podem, não querem ou não conseguem se submeter a esses ditames, a exemplo das áreas de Ciências Humanas, que, em sua grande maioria, não geram produtos ou serviços patenteáveis. Ao final, os contratos para a transferência de tecnologia foram firmados por 47 instituições públicas, somente 22,5% do total de 209, que trouxeram rendimentos de R$ 374,3 milhões em 2018. A título de comparação, Moreno (2018) nos informa que em 2017 o valor orçado para o ensino superior no Brasil era de R$ 34 bilhões, verba essa que já vinha em queda desde 2015. Ou seja, os rendimentos com a transferência de tecnologia nas universidades públicas giravam em torno de 1% do orçamento previsto para o ensino superior em 2017, o que demonstra um valor irrisório para justificar uma autonomia institucional reduzida à busca de fontes externas de recursos.

Esse gerencialismo, que adentra e molda o serviço público, pode ser entendido como uma versão governamental do padrão empresarial da empresa hipermoderna descrito por Pagès et al. (1987), ou como a metamorfose da ação pública, segundo os dogmas neoliberais, considerando o aporte teórico de Dardot e Laval (2016). Newman e Clarke (2012) conceituam o gerencialismo como uma ideologia que embasa uma profunda mudança cultural e política ocorrida no Reino Unido a partir dos anos 90. Em conjunto com a extensa privatização de empresas públicas naquele país, se operou uma mudança nas demais ações públicas para que operassem segundo padrões do setor privado, introduzindo valores como competitividade, eficácia, excelência e qualidade, que passaram a se colocar acima dos valores públicos outrora aclamados, ou seja, algo próximo ao que se propôs a reforma do Estado no Brasil. Segundo os autores, tal ideologia foi implantada a partir da gerencialização, ou seja, um processo de transformação que introduziu um parâmetro de cálculo que deve embasar toda a ação pública, e que opera a partir da figura do gerente, portador do arbítrio sobre tudo o que é necessário para a consecução dessa mesma ação.

Os autores mostram os efeitos desse processo na educação britânica, que acabou por aproximá-lo de uma visão de negócios, com o enfraquecimento do entendimento de educação enquanto um bem público. Entre as consequências encontram-se uma maior exploração dos educadores, uma ampliação dos valores capitalistas e uma utilização maior de técnicas pedagógicas de caráter utilitarista. Em paralelo, construiu-se a imagem do cidadão-cliente, que adquire serviços, e a formação de um grande ramo empresarial voltado para a oferta de serviços educacionais. A partir da crise financeira de 2008, com o ethos neoliberal devidamente instalado, o corte de recursos públicos e a austeridade encontraram acolhimento no pensamento dos novos gestores do negócio educacional, sem provocar maiores questionamentos, dada a naturalização da sociabilidade de mercado.

Na dinâmica interna das instituições, são fecundas as observações trazidas por Ball (2004, 2005, 2010). A operação do gerencialismo se dá através do que o autor denomina de performatividade, entendida como “uma tecnologia, uma cultura e um método de regulamentação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança” (BALL, 2005, p. 2), ou seja, uma forma de poder. Ela é construída a partir do estabelecimento de parâmetros e indicadores, e um aparato para a consecução dos mesmos que objetiva induzir os trabalhadores a entrar no jogo da competição, ao mesmo tempo que estabelece mecanismos de aferição de desempenho e classificação dos mesmos. Cria-se um jogo de representações que existe somente para a aferição do mecanismo criado, quase sempre relacionado a um número. O gerencialismo alicia os trabalhadores à performatividade, que, segundo o autor, é uma luta por visibilidade. Produz-se um aparente consenso que tende a ocultar diferenças e divergências, ao mesmo tempo que promove uma insegurança, pois o trabalhador torna-se um número, que é a medida de sua avaliação e desempenho.

No ensino superior britânico o autor aponta que esse processo já é verificado nos processos de submissão a editais de financiamento ou na competição pela quantidade de publicações acadêmicas. Contudo, ele também alerta que, apesar da abrangência mundial desses mecanismos, em especial pelo patrocínio de organismos multilaterais, como o Banco Mundial, há uma adaptação dos mesmos a realidades locais. No caso brasileiro, por exemplo, Hypólito (2008, 2011) analisa o enfoque gerencialista na adoção de programas de qualidade na educação nos sistemas estaduais de Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Carvalho et al. (2018), estudando o trabalho docente no Estado de São Paulo, mostram que os valores do gerencialismo se baseiam naqueles próximos à masculinidade, e que a sua adoção amplia a precarização do trabalho docente marcadamente feminino. Piolli, Silva e Heloani (2015) encontram elementos do gerencialismo no Plano Nacional de Educação (PNE) do período 2014-2024, e apontam para formas de controle do trabalho docente e um crescente adoecimento. Ribeiro e Leda (2016) voltam seu olhar para o corpo docente nas universidades federais, e também demonstram como a competição e o individualismo resultam num processo de intensificação e precarização do trabalho também em instituições de nível superior brasileiras.

Esse conjunto de estudos demonstra que embora os objetivos da Reforma Gerencial do Estado não tenham se concretizado na figura das OSs, e as mesmas tenham sido obliteradas na proposta do Future-se, suas diretrizes foram e continuam sendo implantadas no aparato educacional brasileiro. É a privatização que se inicia internamente. Nota-se que o programa coloca o gerencialismo em um outro patamar. A educação superior agora é explicitamente alçada à condição de suporte ao aumento da acumulação de capital. Além das metas de produtividade acadêmica, como publicação de trabalhos, agrega-se a produção de conhecimento para o setor empresarial, manifesto, principalmente, na forma de patentes, tudo isso pormenorizado no projeto. E além disso, abre a possibilidade do gerencialismo alcançar uma esfera até então inexistente: a financeirização das instituições federais de ensino. Com isso, o que se pode esperar é uma precarização ainda maior do trabalho docente e novas técnicas de performatividade que se voltarão para a mensuração do conhecimento comercializável que for produzido dentro das instituições. Outrossim, não se sabe o que esperar das áreas de Ciências Humanas diante desse quadro. Aliado às políticas neoliberais que operam principalmente no campo econômico, o governo Bolsonaro também tem uma grande ala conservadora que desferiu vários insultos às Humanidades, por exemplo, de que as mesmas eram disseminadoras do chamado marxismo cultural e da assim denominada ideologia de gênero. As universidades, em seu conjunto, foram vistas como disseminadora de práticas contrárias a este conservadorismo (uso de drogas, aborto, diversidade sexual, etc.). Parte desses ataques partiu do próprio ministro Abraham Weintraub. A proposta do Future-se tende a causar uma profunda cisão no conjunto da universidade entre aqueles que produzem conhecimento comercializável e aqueles que não o fazem, relegando essas áreas a um grande ostracismo e possível discriminação, já que não incorporarão o novo ethos empresarial que se aponta no projeto de lei.

FUTURE-SE: ESTADO MÍNIMO E MERCADO MÁXIMO

Fiel ao processo de recrudescimento do neoliberalismo no Brasil, o Future-se tenta consolidar uma tendência que já se verifica a cerca de 25 anos nas instituições públicas brasileiras. Como no governo Bolsonaro o capital financeiro passa a ter uma hegemonia ainda maior que nos governos anteriores, é sintomático que ele também passe a orientar a proposta para uma área que, aparentemente, não é da sua alçada4. A mensagem do projeto é assinada pelo então ministro da educação, Abraham Bragança de Vasconcellos Weintraub; pelo ministro da ciência, tecnologia, inovações e comunicações, Marcos César Pontes, e por ninguém menos que o ministro da economia, Paulo Roberto Nunes Guedes. Embora assegure que não haverá redução do investimento público nas instituições, a lei tenciona criar oportunidades para que as mesmas busquem fontes adicionais de recursos. A desculpa, utilizada desde a ascensão neoliberal no país, é a limitação orçamentária e a necessidade de “universalizar o acesso a serviços públicos essenciais” (BRASIL, 2020b, p. 1). Isso é desmentido pelo próprio §2º do Art. 6º do projeto, pois àquelas instituições que atingirem os resultados contratados, está previsto como prêmio mais recursos orçamentários. De igual modo entram em cena outras alegações já utilizadas anteriormente, como o peso e a burocracia do Estado, da qual as instituições poderão se livrar em parte, e a sinalização oferecida ao mercado financeiro de que não haverá impactos fiscais, pois podem reduzir os ganhos na ciranda dos juros altos e dos títulos da dívida pública, tão estimada pelos bancos.

Em consonância com outras legislações já promulgadas e atestando o que Dardot e Laval (2016) apontaram, a exaltação da figura do empreendedor como um modo de conduta também encontra espaço no Future-se. Há que se criar uma “cultura empreendedora”, a política científica e tecnológica deve ser voltada para ações empreendedoras, que também deve permear os currículos e a formação dos alunos. Estando na vanguarda do que seria um modelo inovador de educação, a empregabilidade ou capacidade de alguém conseguir (ou manter-se num) emprego estaria assegurada. Por isso o vocábulo também é utilizado no projeto. Aos poucos, percebe-se uma construção que coloca no centro das ações um indivíduo imbuído de uma ideologia que nega, desconhece ou não se deixa influenciar por ações coletivas. Isso é sintomático quando se compara o Inciso VII do Art. 3º do projeto (BRASIL, 2020, p. 2)5. No texto colocado para consulta no site do MEC a comunidade acadêmica era entendida enquanto “coletividade”, na qual se incluía docentes, discentes e técnicos administrativos. Agora passa a ser somente “aquela constituída pelo corpo docente, pelo corpo discente e pelo corpo técnico-administrativo” (BRASIL, 2020, p. 2). Essa opção política é ainda mais explícita ao se ler o Art. 28: “Fica instituído o Dia Nacional do Estudante Empreendedor, a ser comemorado no primeiro sábado após o Dia do Trabalhador.” (BRASIL, 2020, p. 11). Essa homenagem poderia acontecer em qualquer outro mês do ano, mas deixa transparecer que um dos objetivos do projeto é estabelecer um contraponto e uma oposição entre a classe trabalhadora que, apesar de todos os percalços, ascendeu ao ensino superior nos governos de centro-esquerda, e o novo ethos que se pretende institucionalizar no país. Não mais lutas capital-trabalho, não mais heterogeneidade racial, de classe e de gênero do proletariado, mas um molde único, onde todas essas diferenças são supostamente anuladas em prol da construção social de um novo demiurgo, cujo sucesso e glória seria somente uma questão de tempo, já que tudo estaria em consonância com uma dita ordem natural e inequívoca da humanidade.

Todavia, o elemento de financeirização da academia não se deixa transparecer totalmente num primeiro momento. No artigo 27, o projeto menciona “fundos patrimoniais” que podem dar suporte ao Future-se, remetendo, para isso, à Lei nº 13.800 de 4 de janeiro de 2019 (BRASIL, 2019b, p. 11). Ela institui os chamados fundos patrimoniais que visam angariar e ordenar doações de pessoas físicas e jurídicas privadas para diversas ações, hoje mais circunscritas à atuação pública, como educação, cultura, saúde, meio ambiente, segurança, etc., e também à produção de ciência e tecnologia. Nesse caso específico, as fundações de apoio criadas em 1994 com Itamar Franco e alteradas nos governos Lula e Dilma passam a ter um novo e decisivo papel. De acordo com o parágrafo único do Art.2º, elas “equiparam-se às organizações gestoras definidas no inciso II6 do caput deste artigo, podendo realizar a gestão de fundos patrimoniais instituídos por esta Lei.” (BRASIL, 2019b, p. 2). Ao abrir esse flanco ao capital financeiro, tem-se um novo espaço para que o modus operandi do mesmo se aproxime da academia. Os órgãos deliberativos deverão contar com profissionais familiarizados e com experiência na área, e uma pessoa jurídica registrada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) também pode ser contratada para administrar os recursos. As receitas podem ser advindas de “exploração de direitos de propriedade intelectual” e “venda de bens com a marca da instituição apoiada” (BRASIL, 2019b, p. 6). Já os dividendos poderão ser utilizados para investimentos, bolsas de pesquisa e treinamento, mas não pagamento de despesas contínuas, como folha de pagamento. Como visa também receber doações, o benemerente deverá apenas fazer uma declaração de que a doação não provém de atividades irregulares. Poderá ser responsabilizado se houver falsidade, mas num país onde o crime organizado está entranhado em várias esferas públicas, paralisando inclusive os órgãos de investigação, e ainda aventa-se a possibilidade de legalizar a jogatina - mundialmente conhecida como centro de lavagem de dinheiro - o que garante que problemas maiores não ocorrerão? Ademais, é perceptível que o governo vai criando artifícios para se desvencilhar de suas obrigações constitucionais e canalizar mais recursos para o cassino financeiro. Ao mesmo tempo, como as atenções podem se voltar para a disputa por recursos privados, há uma redução da pressão para, por exemplo, impedir cortes no orçamento, ou mobilizar professores, técnicos e estudantes por melhoria nas condições de ensino.

Ao fim e ao cabo, tenderemos a ter universidades e institutos que concebem a si mesmos como produtores de um conjunto matizado de mercadorias, expresso em conhecimento, uma grife e seus signos e, principalmente, patentes. Da mesma forma que as empresas modernas buscam cooptar corações e mentes, a ideologia empreendedora e gerencial adentra os campi para realizar o mesmo processo, produzindo, como nos aponta Ball (2004, 2005, 2010), novas performatividades. Como no mundo empresarial a autonomia é restrita, a garantia da consecução desse processo no seio das universidades e a consequente redução da autonomia será expressa na figura dos contratos. Tem-se agora uma urdidura complexa e com vários mecanismos de fiscalização. O MEC celebra acordos com as instituições, todas reduzidas à condição de ICTs, a operacionalização se dá com os NITs, e, para vender sua principal mercadoria, novos contratos são celebrados com empresas. Recursos entram pelas fundações de apoio agora alçadas à condição de fundos patrimoniais que, mediante mais contratos com a ICT, são responsáveis pela aplicação do capital amealhado. É um processo de horizontalização análogo ao que já acontece nos conglomerados. Não é demais observar que o eixo em torno do qual gira os contratos são os resultados ou a mercadoria que pode sair ao fim desse processo produtivo. Esses resultados se manifestam em indicadores, meticulosamente acompanhados, que podem render benefícios para a concretização dos objetivos se a adesão ocorrer, e, ao fim, como já mencionado, mais recursos orçamentários e até prioridade na concessão de bolsas pela Capes. Nesse mesmo carril, para que a existência institucional cotidiana continue impregnada pela ideologia proposta, entra em cena a figura da governança em companhia da eficiência, economicidade, modelo de negócios, gestão, avaliação, etc.

Se alguns desses elementos estavam presentes há tempos na academia, em especial nas áreas de ciências exatas e engenharias, e devido às contradições e lutas, os embates se manifestavam, mas a proposta do Future-se vai além. No Inciso V do Art.18, ao mencionar redes e centros de laboratórios, um dos objetivos é “envolver toda a comunidade acadêmica”, revelando um caráter autocrático do projeto. Nota-se aí uma consonância da proposta com o caráter do governo Bolsonaro. Como as maiores críticas ao seu desempenho partiram das universidades, que são por excelência o lugar do debate, da análise e da construção do pensamento, torná-las semelhantes a empresas, opera a mesma função apontada por Pagès et al. (1987), ou seja, camuflar as contradições sociais e psicológicas, e ir além: reduzir e neutralizar a crítica. Em certo sentido, há uma redução do saber a um viés neopositivista, que acredita na neutralidade científica, numa ideia utópica de progresso infinito e que só reputa como conhecimento válido aquilo que pode ser traduzido em números. É fazer a pesquisa científica e tecnológica e outras que não objetivam gerar produtos, caminhar, ainda mais, para a sustentação das estruturas de poder vigente, descolar-se completamente da sociedade onde estamos inseridos, e, o que é pior, tornar-se irrelevante e descartável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao se fazer uma análise da trajetória insatisfatória do MEC durante o governo Bolsonaro, não é de se estranhar a oposição maciça que gerou até o momento, visto não haver uma proposta sistemática para a melhoria da educação no país, mesmo considerando sua visão de mundo e sociedade. Há uma intempestividade que se manifesta, em geral, numa hostilidade a qualquer argumento ou fato que vá de encontro aos seus fantasmas. Oposição sem fundamentos e ódio não constroem políticas públicas em um país marcado por profundas desigualdades, como o Brasil. Mas essa mixórdia superficial esconde em seu interior uma orientação marcadamente atrelada ao neoliberalismo mais empedernido, onde, como em Hayek (2010), o mercado está no campo da ordem moral. Por esse motivo, o ministro da economia tem um papel decisivo em qualquer política a ser adotada, e, independentemente do que digam os indicadores sociais, outras abordagens econômicas, pensadores de outros campos do saber, ou mesmo uma pandemia que assola o mundo, a agenda neoliberal de destruição não tem trégua.

Assim sendo, a iniciativa do Future-se não está longe desse objetivo. Mesmo com grande rejeição por partes das universidades e institutos, a proposta foi enviada à Câmara dos Deputados, pois o imperativo mercadológico e financeiro deve sobrepujar qualquer outra consideração em contrário. Como já há um longo histórico de parcerias entre setores das instituições e empresas privadas, ao lado de uma legislação que favorece a submissão das primeiras às segundas, aprofunda-se esse estado até que o credo empresarial possa convencer a maioria dos incautos da sua alegada ética e dignidade. Nessa linha, à reforma do Estado é agregada um novo e preocupante aspecto: a financeirização. Se inicialmente os chamados serviços não essenciais poderiam ser prestados por organizações sociais ou entregues a ONGs, o que se avizinha agora é um quadro em que o Estado se desobriga ainda mais de seu papel e abre as portas para a captação de recursos de doações via fundos de investimento, ou ainda a transformação de direitos em mercadorias a serem vendidas no mercado. Isso já acontece, por exemplo, nas áreas de saúde e na crescente educação privada superior, mas, por exemplo, a comercialização de direitos de patente, conseguidos às custas de investimentos públicos e que deveriam beneficiar o conjunto da sociedade, indica um avanço desse projeto.

Mas para que isso não fique tão explícito, parte-se para aquilo que Dahlet (2014) decifra: suaviza-se expressões, dissimula-se intenções e cria-se eufemismos. Seguindo o raciocínio de Pagès et al. (1987) tudo parece ser sedutor, visto que busca-se encobrir o quadro de incertezas e contradições inerentes à experiência de vida dentro do modo de produção capitalista, e indica-se um futuro utópico, mas tido com realizável por ser, quiçá, inerente à natureza, onde a empresa, sua imagem e seus símbolos absorvem e esclarecem as contradições, ao mesmo que tempo que oportunidades e crescimento são distribuídos de forma equânime através do designado espírito empreendedor.

Contudo, a realidade insiste em contrariar as expectativas. Num país que cada vez mais se desindustrializa e onde a desigualdade social e a concentração de renda são norma, supor que há um forte empresariado em busca de tecnologia que possa aumentar sua acumulação é desconhecer essa situação e também como opera a divisão internacional do trabalho, os processos de oligopolização do capital, dentre outros importantes elementos. O retorno aquém do esperado das instituições com a transferência de tecnologia atesta essa afirmação. De igual maneira, a velocidade de destruição de direitos no Brasil corrobora que grande parte da riqueza nacional não está apoiada numa fabricação de produtos de ponta, altamente intensivos em tecnologia e cuja operação exige poucos trabalhadores, em geral com melhores remunerações. Ela se apoia no trabalho informal, terceirizado, intensivo em mão de obra, com pouca ou nenhuma tecnologia de última geração agregada, que precisa destruir direitos para aumentar a acumulação. O custo da força de trabalho se constitui num determinante para a adoção ou não de novas tecnologias. Por que adquirir equipamentos sofisticados para realizar uma tarefa, se é possível contratar trabalhadores a salários irrisórios para fazer atribuições semelhantes? Nesse sentido, a desvalorização da força de trabalho no Brasil se constitui como uma barreira para um avanço das tecnologias mais avançadas.

Por fim, e não menos importante, a pluralidade deve ser a referência para as instituições públicas brasileiras. Grandes avanços foram feitos na inclusão das camadas sociais historicamente alijadas da academia, na ampliação dos temas de pesquisa, bem como na interseccionalidade. A despeito das grandes contradições sempre presentes, há vida na academia para além dos produtos comercializáveis gerados por seus laboratórios, e é isso que reforça o seu papel social e político. Não se pode obrigar que áreas como Filosofia, Sociologia, Linguística, Antropologia ou Artes Plásticas gerem produtos passíveis de serem patenteados. Similarmente nem todos os campos das ciências exatas ou biológicas exercem atração imediata pelo capital. O que dizer da Cosmologia? Pesquisar a origem, evolução e estrutura do universo vai contribuir para novos produtos comercializáveis? De igual modo, o tempo de pesquisa não pode ser reduzido ao curto prazo do cassino financeiro. Vários estudos requerem anos a fio de dedicação, investimento pessoal, equipamentos e muito estudo para resultados que não são conclusivos, pois à medida que a ciência avança, novos questionamentos surgem, certezas se esvaem e as análises se refinam. Por este motivo, para manter vivo esse espírito, é necessário que se renove a força da nossa crítica, não sucumbindo a propostas de fácil explicação, eivadas de palavras dissimuladas, sob pena de se naufragar na insignificância.

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1 O primeiro grande impulso de privatização ocorre com a Reforma Universitária de 1968, ao permitir que instituições isoladas de ensino, dentre outras, atendessem uma demanda reprimida de estudantes, não contemplados nas instituições públicas. Tais reformas avançam até a Constituição de 1988, e, posteriormente, nos governos do PSDB, onde a privatização inicia um avanço mais explícito (CISLAGHI, 2019; FERNANDES, 1979; MARTINS, 2009.)

2Apenas na mensagem do projeto existe a menção, no tópico 21, de produzir “capital social e capital humano”. Ambos se encontram dentro do eixo empreendedorismo, e nota-se que ambos são apresentados em conjunto para tentar amenizar a ênfase individualista desse tópico.

3Nesse caso, fazendo alusão ao fetichismo da mercadoria descrito por Marx (2013), ou seja, a atribuição de certas características mágicas às mercadorias que tenta ocultar as relações sociais capitalistas de produção, exploração da força de trabalho e criação de valor para o capitalista.

4Autores como Andrade (2020), Dweck (2020), Sampaio Jr. (2019) e De Conti (2019), e Gaspar (2018) apontam que o governo Bolsonaro se caracteriza por um ultraliberalismo, seja pela associação da violência política contra as resistências ao domínio do mercado, seja pela escolha do Ministro da Economia, como fiador junto ao mercado financeiro, seja pela a não flexibilização das metas fiscais, mesmo durante a pandemia de Covid-19.

5Anteriormente era inciso X. No projeto enviado à Câmara passou a ser inciso VIII,

6O inciso refere-se a uma organização gestora de fundo patrimonial.

Recebido: 31 de Agosto de 2020; Aceito: 10 de Outubro de 2021

2 luisaugusto@ifba.edu.br

O autor declara que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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