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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 20-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/0102-4698368539479 

Artigos

GRAMSCI E OS INTELECTUAIS, DOS ORGÂNICOS AOS LORIANOS: UMA FACETA PARA PENSAR O BOLSONARISMO

GRAMSCI Y LOS INTELECTUALES, DE LOS ORGÁNICOS A LORIANOS: UMA FACETA PARA PENSAR EL BOLSONARISMO

1 Professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil. <deiserosalio@gmail.com>.


RESUMO:

O artigo versa sobre a conceituação de intelectual desenvolvida por Antonio Gramsci, em suas diferentes categorias, abarcando a extensão que adquire no pensamento do autor sardo, buscando elucidar o lugar que os intelectuais assumem na luta política e social. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica centrada, principalmente, na produção elaborada por Gramsci durante o período do cárcere. Foram examinados o conjunto dos Cadernos do cárcere, da edição crítica italiana, além de alguns dos mais importantes comentadores do autor e de excertos das Cartas do cárcere. O conceito de intelectual adquire grande amplitude no pensamento gramsciano, pela expressão organizativa e indispensabilidade dessa atuação no delineamento de todo tecido social. Dos intelectuais tradicionais aos orgânicos, cosmopolitas, nacionais-populares e até os contenciosos lorianistas e brescianistas, enquanto agentes fundamentais na difusão e consolidação de concepções de mundo e condutas operantes, eles assumem papel indispensável em toda organização política, econômica e social. Tal conjunto de categorização de intelectuais pode ser traduzida para o presente. Dessa forma, o compêndio da concepção de intelectual gramsciana mostra-se como recurso relevante também na compreensão do nosso tempo, da atual ordenação do tecido político social brasileiro, que possibilitou a ascensão de Bolsonaro ao poder e, apesar de toda crise vivida, ainda sustenta percentual significativo de apoiadores, elucidando que a sua real superação demandará uma reforma intelectual e moral, ratificando a luta cultural inerente a toda luta política.

Palavras-chave: Intelectuais; Gramsci; lorianismo; educação; bolsonarismo

RESUMEN:

El artículo aborda la conceptualización de intelectual desarrollada por Antonio Gramsci, en sus diferentes categorías, abarcando la extensión que adquiere en el pensamiento del autor sardo, buscando dilucidar el lugar que asumen los intelectuales en la lucha política y social. Se trata de una investigación bibliográfica centrada principalmente en la producción realizada por Gramsci durante el período carcelario. Se examinó el conjunto de “Cadernos do cárcere”, de la edición crítica italiana, además de algunos de los comentaristas más importantes del autor y extractos de “Cartas do cárcere”. El concepto de intelectual adquiere gran amplitud en el pensamiento gramsciano, por la expresión organizativa y la indispensabilidad de esta acción en la delimitación de todo el tejido social. Desde los intelectuales tradicionales hasta el litigio orgánico, cosmopolita, nacional-popular e incluso lorianista y brescianista, como agentes fundamentales en la difusión y consolidación de concepciones de mundo y comportamientos operativos, asumen un papel indispensable en toda organización política, económica y social. Tal conjunto de categorización de los intelectuales puede traducirse al presente. De esta manera, el compendio de la concepción intelectual gramsciana se muestra como un recurso relevante también en la comprensión de nuestro tiempo, del actual ordenamiento del tejido político social brasileño, que hizo posible el ascenso de Bolsonaro al poder y, a pesar de todas las crisis vivida, aún sostiene un importante porcentaje de simpatizantes, aclarando que su real superación demandará una reforma intelectual y moral, ratificando la lucha cultural inherente a toda lucha política.

Palabras clave: Intelectuales; Gramsci; lorianismo; educación; bolsonarismo

ABSTRACT:

The article is about the conceptualization of intellectual developed by Antonio Gramsci in its different categories, covering the extension that it acquires in the thought of the Sardinian author, seeking to elucidate the place intellectuals assume in the political and social struggle. This is a bibliographical study mainly centered on the production elaborated by Gramsci during his imprisonment. The whole of the Prison Notebooks, the Italian Critical Edition, some of the most important commentaries on the author, and excerpts from the Letters from Prison were examined. The intellectual concept acquires great amplitude in Gramscian thought due to this action’s organizational expression and indispensability in delineating the entire social fabric. From the traditional intellectuals to the organic, cosmopolitan, national-popular, and even the contentious Lorianists and Brescianists, as fundamental agents in the diffusion and consolidation of world conceptions and operative behaviors, they play an indispensable role in any political, economic, and social organization. Such a categorization of intellectuals can be translated to the present. In this way, the compendium of the Gramscian concept of intellectual shows itself as a relevant resource also in understanding our time, the current order of the Brazilian social-political fabric, which enabled the rise of Bolsonaro to power and, despite all the crisis experienced, still holds a significant percentage of supporters, elucidating that its real overcoming will require an intellectual and moral reform, ratifying the cultural struggle inherent every political struggle.

Keywords: Intellectuals; Gramsci; Lorianism; education; Bolsonarism

INTRODUÇÃO2

Entre as inúmeras formulações desenvolvidas por Antonio Gramsci durante suas reflexões e estudos no cárcere, destaca-se um ambicioso projeto de pesquisa que pretendia desenvolver sobre a história dos intelectuais. E, embora, não tenha conseguido finalizar o seu intento como talvez gostaria, justamente pelas limitações da prisão e de saúde, que determinaram sua morte precoce, contribuiu como ninguém nessa direção, de maneira que nem parece possível falar de intelectual e não mencionar o Gramsci.

Para compreender a importância dessa formulação, faz-se relevante resgatar os elementos que compõem sua concepção historicista e visão filosófica e política de mundo.

Para Gramsci, o conhecimento é fruto da produção humana estabelecida na relação com outros sujeitos e com o meio, estando, portanto, em constante movimento, mas adquirindo maior ou menor difusão dependendo do modo como se mostram as relações de força.

As ideologias compreendem as ideias e concepções que, inerentemente conectadas às ações práticas, constroem historicamente a realidade. São as significações que nos fazem ler e ser no mundo. Nesse sentido, o conhecimento e a verdade também são ideologias, são produções históricas humanas, passíveis de serem refutadas e modificadas. Entretanto, em uma sociedade constituída por sujeitos em posições assimétricas, a circulação de ideologias não se dá de modo linear e harmônico; pelo contrário, é resultante da divisão social estabelecida pelas relações que alicerçam a organização estrutural e superestrutural da sociedade e fazem com que determinada concepção de mundo se torne senso comum e alicerce a hegemonia de determinado grupo.

Portanto, a importância atribuída por Gramsci ao arcabouço ideológico deve-se à delimitação do papel das superestruturas na luta política, inescusável às relações de força, o que determina a necessidade de aparatos hegemônicos no interior da disputa ideológica. Destarte, nesse processo, assume especial relevância a atuação dos intelectuais. Como afirma Gramsci: “uma massa não se distingue sem organizar-se, e não existe organização sem intelectuais” (2007, Q11, §12, p. 2362).

Gramsci compreendia que todos os sujeitos eram intelectuais, mas nem todos assumiam na sociedade essa função. O autor rejeita a concepção simplista de intelectual, amplia o conceito, não se limitando à noção corrente do “grande intelectual”, destacado detentor de saberes superiores e acima da maioria. Não é possível destituir de nenhuma atividade humana uma dimensão intelectual. Entretanto, como observa no Caderno 12:

seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (assim, o fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar dois ovos ou costurar um rasgo de um paletó não significa que todos sejam cozinheiros ou alfaiates). Formam-se, assim, historicamente, as categorias especializadas para o exercício da função intelectual, formam-se em conexão com todos os grupos, mas, sobretudo, em conexão com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em correlação com o grupo social dominante (GRAMSCI, 2007, §1, p. 1516-1517).

Contudo, o alargamento do caráter intelectual a todos os seres humanos não implicava na inexistência de distinções em graus e exercício prático dessa intelectualidade. Gramsci diferencia categorias de intelectuais de acordo com o modo como foram constituídas, a função que exercem e com o caráter da atividade intelectual: tradicional, orgânico, cosmopolita e nacional-popular. Todas traduzíveis ao nosso tempo.

Ainda nesse esforço de compreensão a respeito do alargamento conceitual de intelectual, Gramsci se preocupa com o intelectual que chamará de vulgar, superficial e oportunista. É nesse sentido que elaborará as conceituações de brescianismo e lorianismo, formulações pouco estudadas, mas que apresentam grande importância na organização do tecido social. E, nesse momento histórico em que vivemos, para compreendermos melhor como, apesar da inconsistência de pensamento e concatenação reflexiva e crítica com a realidade concreta, determinados sujeitos chegaram ao poder, parece mais que oportuno nos debruçarmos sobre essa categoria de intelectuais. Para tanto, o texto será ordenado de modo a discutir a conceituação gramsciana de intelectual e suas diferentes estirpes, buscando abarcar a amplitude dessa formulação e o lugar que os intelectuais assumem na luta política e social, inerente à organização da vida humana.

A amplitude da conceituação de intelectuais gramsciana, centrada, fundamentalmente, na função de influência organizativa no tecido social, nos permite traduzir essas categorias ao nosso tempo.

Remontar o sentido e toda extensão da conceituação de intelectual no pensamento de Antonio Gramsci é relevante também na constituição de mais uma categoria explicativa, que nos auxiliaria no entendimento do que possibilitou a ascensão do bolsonarismo ao poder, premissa fundamental no debate de como podemos pensar e construir caminhos efetivos para sua superação.

INFLUÊNCIAS NO DELINEAR DA ACEPÇÃO DE INTELECTUAL GRAMSCIANO E O NEXO COM A HEGEMONIA

Gramsci compreende a importância dos intelectuais como protagonistas, enquanto elos de mediação entre os grupos sociais, elementos- chaves do intercâmbio entre as classes, da intervenção ideológica, política e, por isso, prática, nas massas, na conformação de uma vontade política compartilhada. Ordenadores do vínculo orgânico entre a esfera ideológica e a esfera econômica que compõem e organizam o tecido social. Por isso, a teoria da hegemonia está intimamente relacionada à teoria dos intelectuais em Gramsci. Não à toa, o autor cita 1724 vezes o termo “intelectual” ao longo dos 29 Cadernos do cárcere.

O ambicioso projeto de estudo da história dos intelectuais anunciado por Gramsci já na carta de 19 de março de 1927, enviada para a cunhada Tatiana, antes mesmo que recebesse autorização para escrever na prisão, se tornou uma veia pulsante dos Cadernos do cárcere. Podemos tributar uma gama de formulações, como o próprio desenvolvimento do conceito de Estado Integral e o caderno sobre Americanismo e Fordismo, ao amadurecimento das reflexões gramscianas impulsionadas por essa proposição. Expressão da relevância extensa que a capacidade organizativa dos intelectuais imprime na sociedade e que Gramsci apreendeu habilmente ao longo de seu esforço analítico desempenhado enquanto esteve preso na prisão fascista.

Todo o contexto histórico vivido e clamoroso naquele momento, após a morte de Lenin, e os crescentes conflitos que prejudicavam a aliança entre operários e camponeses e deflagraram a ruptura no grupo dirigente russo corroboraram para que as desconfianças de Gramsci crescessem em relação à maneira como o jogo político estava sendo conduzido na URSS, comprometendo o estabelecimento do socialismo (GRAMSCI, 1964; VACCA, 2008).

As situações históricas concretas das sociedades capitalistas ocidentais com sua sociedade civil complexa exigiam outra luta e condução política.

Entretanto, não é possível dizer que Gramsci rechaçasse completamente a ideia jacobina e pregasse que a hegemonia compreendia apenas a luta política democrática. Distinguia apenas as estratégias de disputas de poder nos diferentes tempos/circunstâncias sociais e históricas, ao mesmo tempo que desenvolvia uma leitura enriquecida do próprio jacobinismo, ampliando a visão de possibilidade estratégica com o mesmo objetivo (FROSINI, 2014).

É a função organizativa em determinado grupo social que delineia o papel do sujeito enquanto intelectual naquele meio. Em consonância com a proposição da 11ª tese sobre Feuerbach, “os filósofos só interpretaram o mundo de diferentes maneiras, do que se trata é de transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2002, p. 103), Gramsci demarca que os intelectuais são mais que intérpretes, são agentes ativos da sociedade civil, terreno privilegiado de circulação de ideologias e práticas e, portanto, de relações que culminam na hegemonia de determinada concepção, encaminhamentos e organização da sociedade. Na acepção gramsciana, a função do intelectual é tão complexa quanto essencial para a vida social.

No excerto do Caderno 12, Gramsci aborda o tema dos intelectuais indicando que o lugar ocupado por eles na sociedade moderna era definido pelo desenvolvimento histórico do Estado e por sua ampliação:

A relação entre os intelectuais e o mundo da produção não é imediata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é mediada, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo conjunto das superestruturas, do qual os intelectuais são precisamente os “funcionários”. (GRAMSCI, 2007, Q12 §1, p. 1518-1519).

Os intelectuais são sujeitos-chaves na manutenção ou no combate de ideologias. No trecho retirado do Caderno 4, Gramsci reforça sua interpretação da posição dos intelectuais na sociedade civil, pela relevância que apresentam na obtenção do consenso e na construção da hegemonia:

Os intelectuais têm uma função na “hegemonia” que o grupo dominante exercita em toda a sociedade e no “domínio” sobre ela que se encarna no Estado, e esta função é precisamente “organizativa” ou conectiva: os intelectuais têm a função de organizar a hegemonia social de um grupo e o seu domínio estatal, isto é, o consenso dado pelo prestígio da função no mundo produtivo e o aparato de coerção para aqueles grupos que não “consentem” nem ativamente nem passivamente ou para aqueles momentos de crise de comando e de direção em que o consentimento espontâneo passa por uma crise. Desta análise resulta uma extensão muito grande do conceito de intelectuais, mas apenas assim me parece possível chegar a uma aproximação concreta da realidade (GRAMSCI, 2007, Q4, §49, p. 476).

O próprio autor frisa o alargamento que a conceituação de intelectuais adquire no bojo do estudo e da análise que empreende. Também o faz em uma correspondência a Tatiana, escrita em Turi, em 7 de setembro de 1931:

O estudo que fiz sobre os intelectuais é muito amplo como esquema e não creio que existam livros na Itália sobre esse assunto. Existe, por certo, muito material erudito, mas disperso em um número infinito de revistas e arquivos históricos locais. Por outro lado, eu amplio muito a noção de intelectual, não me limitando à noção corrente que se refere aos grandes intelectuais. Este estudo leva também a certas determinações do conceito de Estado, que comumente é entendido como Sociedade política (ou ditadura, ou aparelho coercitivo para amoldar a massa popular ao tipo de produção e à economia de dado momento) e não como um equilíbrio da Sociedade política com a Sociedade civil (ou hegemonia de um grupo social sobre a sociedade nacional inteira, exercida através das chamadas organizações privadas, como a Igreja, os sindicatos, as escolas etc.), e justamente na sociedade civil em particular operam os intelectuais (Benedetto Croce, por exemplo, é uma espécie de papa leigo e instrumento eficacíssimo de hegemonia, ainda quando, vez por outra, esteja em desacordo com este ou aquele governo etc.) (GRAMSCI, 2013, p. 456-457).

Elucida-se a correlação entre o aprofundamento do conceito de intelectual com o conceito de Estado. As percepções de como o poder é concebido e de como a hegemonia é atingida possibilitam uma melhor reflexão sobre a configuração do Estado e a influência dos intelectuais na disseminação ou no combate de concepções de mundo.

Como Gramsci reitera:

Autoconsciência crítica significa, histórica e politicamente, criação de uma elite de intelectuais: uma massa humana não se “distingue” e não se torna independente “para si” sem organizar-se (em sentido lato), e não existe organização sem intelectuais, isto é, sem organizadores e dirigentes, sem que o aspecto teórico de nexo teoria e prática se distinga concretamente em um estrato de pessoas “especializadas” na elaboração conceitual e filosófica (2007, Q11, §12, p. 1386).

Todo grupo social alicerça-se em seu corpus intelectual que é ideológico-prático, condição indispensável à sustentação hegemônica. No que se refere à construção da hegemonia das classes subalternas, processo no qual a elevação intelectual das massas é pressuposto para a criação de uma nova consciência, de uma nova sociedade, é de vital relevância estratégica a formação e a atuação de intelectuais para uma efetiva reforma intelectual e moral.

A tomada de consciência das contradições vivenciadas na sociedade é a primeira condição para a mobilização social. O que novamente reforça a importância da questão formativa, da atuação do intelectual para o confronto com concepções de mundo arraigadas. Enquanto questionadores e mediadores, os intelectuais em atuação formativa e organizada potencializam o necessário antagonismo para uma vontade coletiva operante.

Sendo a intelectualidade uma capacidade intrinsecamente humana, o que difere, portanto, é que nem todos os seres humanos exercem essa função de intelectuais na sociedade. Nem todos assumem essa posição e nem todos tiveram uma formação que lhes possibilitasse atuar de maneira influente e organizativa. O que não impede que venham a obtê-la no futuro, o que, novamente, notabiliza o papel educativo, pedagógico, de toda relação de hegemonia.

E é por isso que Gramsci defendia um progresso intelectual de massa, achava que era fundamental a construção de novas subjetividades e uma nova personalidade histórica, daí confere à educação um lugar tão importante. Ele está preocupado com a educação das massas, não com uma formação para a vida privada; ele defende uma formação para coletividade, para o espírito público, para que as pessoas tenham condições de construir coletivamente formas mais organizadas e estruturadas de luta pela emancipação humana. Não à toa a máxima do Gramsci era a defesa de uma escola unitária de cultura geral humanística, plena de historicidade e noções concretas, que abordasse noções de direitos e deveres desde o ensino mais elementar, que explorasse o equilíbrio da capacidade de trabalhar manualmente e intelectualmente, visando à formação integral dos sujeitos, tornando-os capazes de “pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (GRAMSCI, 2007, Q12, §2, p. 1457).

DIFERENTES CATEGORIAS DE INTELECTUAIS

Orgânico, tradicional, nacional-popular e cosmopolita

Os intelectuais orgânicos são aqueles verdadeiramente vinculados à classe que representam enquanto atuantes na teoria e na prática. Podem, então, ser encontrados intelectuais orgânicos tanto da classe dominante quanto da classe trabalhadora.

Como enfatiza Semeraro:

São orgânicos os intelectuais que, além de especialistas na sua profissão, que os vincula profundamente ao modo de produção do seu tempo, elaboram uma concepção ético-política que os habilita a exercer funções culturais, educativas e organizativas para assegurar a hegemonia social e o domínio estatal da classe que representam (SEMERARO, 2006, p. 377-378).

Gramsci destaca que esses intelectuais devem:

possuir certa capacidade técnica, não somente na esfera circunscrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um organizador de massa de homens, deve ser um organizador da “confiança” dos que investem em sua empresa, dos compradores de suas mercadorias etc.). (2007, Q12, §1, p. 1513-1514).

Como Gramsci já trazia no Caderno 4, § 49 e reitera com mais ênfase no Caderno 12, §1:

o erro metodológico mais difundido me parece o de ter buscado este critério de distinção no que é intrínseco às atividades intelectuais, em vez de buscá-lo no conjunto do sistema de relações no qual estas atividades (e, portanto, os grupos que as personificam) se encontram, no conjunto geral das relações sociais (2007, Q12, §1, p. 1516).

Podemos dizer que a questão fundamental dos intelectuais é política, porque a função é política, justamente porque o que o faz adquirir essa posição é essa capacidade de ligar corações e mentes, corroborar com certa forma de ver o mundo que, evidentemente, nunca se restringe a esse campo, mas encaminha condutas. É exatamente o caráter organizativo que determina o sujeito enquanto intelectual na sociedade.

Os intelectuais tradicionais, originários de um modo de produção anterior, perduram em seu espaço de influência e organização, apesar da mudança predominante da forma de produção e organização política e social (como os eclesiásticos, que eram os intelectuais orgânicos do sistema feudal).

Já na obra “Alguns temas da questão meridional”, de 1926, Gramsci apontava que no Sul da Itália predominavam intelectuais tradicionais, com forte marca religiosa, tradicionalista, arraigada com uma concepção monopolista ideológica, que vinculava os camponeses aos grandes proprietários rurais. No Norte, por sua vez, naquela condição industrial, predominavam intelectuais urbanos, que cresceram com a indústria, estavam ligados à sua fortuna e, em geral, como ocorre significativamente com muitos intelectuais urbanos, eram bastante estandardizados. (GRAMSCI, 2007).

Nas relações de força, os intelectuais tradicionais são sujeitos que apresentam valor estratégico na luta pela hegemonia. Deveriam ser disputados para que pudessem vir a representar, aliados aos intelectuais orgânicos, os mesmos interesses do grupo social que disputa a hegemonia. Por essa razão, afirma que:

uma das características mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela assimilação e pela conquista “ideológica” dos intelectuais tradicionais, assimilação e conquista que são tanto mais rápidas e eficazes quanto mais o grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios intelectuais orgânicos (GRAMSCI, 2007, Q12, §1, p. 1517).

Eis por que Gramsci trata da:

soldadura entre intelectuais orgânicos de um grupo social e intelectuais tradicionais, função que pode cumprir em dependência da sua função fundamental de elevar os membros “econômicos” de um grupo social para a qualidade de “intelectuais políticos”, isto é, de organizadores de todas as funções inerentes ao orgânico desenvolvimento de uma sociedade integral, civil e política (GRAMSCI, 2007, Q4, §49, p. 478).

A organicidade ideológica e prática de determinado grupo social é estabelecida por meio da atuação de seus intelectuais, executores do influxo político na condução de um projeto de sociedade.

Os intelectuais não são, portanto, sujeitos imparciais ou neutros, inclusive pela impossibilidade de isenção da história e do grupo em que atuam em prol de uma concepção de mundo da qual são representantes e difusores.

Outra categoria interpretativa é de intelectuais cosmopolitas, que são aqueles que se debruçam sobre questões universais e não sobre as demandas nacionais e as problemáticas cotidianas. Para Gramsci, historicamente, no sentido corrente de sua atividade intelectual, a maioria dos intelectuais italianos apresentava caráter cosmopolita.

O cosmopolitismo era um elemento constituidor em consonância com a própria edificação tardia da Itália enquanto nação unificada, com a “ausência do caráter nacional da cultura” (GRAMSCI, 2007, Q5, §123, p.651). No Caderno 3, o autor aponta essa característica dos intelectuais italianos:

Os intelectuais e os especialistas italianos eram cosmopolitas e não italianos, não nacionais. Homens de Estado, capitães, almirantes, cientistas, navegadores italianos não tinham um caráter nacional, mas sim cosmopolita (GRAMSCI, 2007, Q3, §80, p. 360).

A Itália historicamente apresentou uma exportação intelectualista, não constituindo uma tradição nacional de atuação dos seus intelectuais. Gramsci insiste:

Para a Itália, o fato central é exatamente a função internacional ou cosmopolita dos seus intelectuais que é causa e efeito do estado de desagregação em que permanece a península desde a queda do Império Romano até 1870 (GRAMSCI, 2007, Q4, §49, p. 479).

E reitera esse ponto no Caderno 5:

a Itália, por sua função “cosmopolita”, durante o período do Império Romano e durante a Idade Média, sofreu passivamente as relações internacionais, isto é, no desenvolvimento da sua história, as relações internacionais prevaleceram sobre as relações nacionais (2007, Q5, §55, p. 589).

Gramsci opõe-se à visão de intelectual universalista imparcial de Julien Benda, por não conceber alheamento da história e apartidarismo. Julgava que a mera defesa de princípios gerais de liberdade e justiça, desligados das lutas sociais e das questões nacionais-populares, era vazia, por não traduzir as demandas das massas, nem viabilizar práticas políticas e sociais.

Por sua vez, os intelectuais nacionais-populares seriam aqueles “que se sentem ligados organicamente a uma massa nacional-popular” (GRAMSCI, 2007, Q14, §18, p. 1676), sujeitos capazes de sair do campo das ideias e das divagações universais e chegar ao povo pensando e atuando sobre o cotidiano e os problemas da sociedade em que se inserem. Em sua acepção, “cada movimento intelectual torna-se ou torna-se novamente nacional se houver uma ‘ida ao povo’” (GRAMSCI, 2007, Q8, §145, p. 1030). Por isso, considera que:

O problema da criação de uma nova classe intelectual consiste, portanto, em elaborar criticamente a atividade intelectual que cada um possui em determinado grau de desenvolvimento, modificando sua relação com o esforço muscular-nervoso no sentido de um novo equilíbrio e fazendo com que o próprio esforço muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade prática geral, que inova perpetuamente o mundo físico e social, torne-se o fundamento de uma nova e integral concepção do mundo. [...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentânea dos afetos e paixões, mas numa inserção ativa na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não apenas orador puro - mas superior ao espírito matemático abstrato; da técnica-trabalho chega à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual permanece “especialista” e não se torna “dirigente” (especialista + político) (GRAMSCI, 2007, Q12, §3, p. 1551).

Já que a distinção entre os sujeitos no que se refere à intelectualidade deve-se a “natureza de seu papel e da sua função social” (PAGGI, 1984, p. 320), importava, fundamentalmente, a elaboração crítica dessa intelectualidade, existente em todas as pessoas, em alguma medida, para a construção de uma nova concepção de mundo que possibilitasse na prática a disputa real pela tradução de um novo mundo estruturado sob outras relações sociais e de produção. Uma vez entendido que o papel dos intelectuais era de “determinar e organizar a reforma moral e intelectual, isto é, adequar a cultura à função prática” (GRAMSCI, 2007, Q11, §16, p. 1407-1408), tornava-se imprescindível a formação e atuação de intelectuais que aliassem a dimensão internacional, não apartando do mundo e das suas defluências as questões nacionais-populares.

Gramsci parece recuperar as proposições de Lenin presentes na obra “Que fazer?”, ao relacionar espontaneísmo com consciência organizada. Dessa maneira, compreende que é preciso superar o espontâneo partindo do simples, do real, ou seja, partindo do senso comum para alcançar a consciência organizada, a filosofia, outra maneira de conceber as relações existentes e, principalmente, o modo como elas podem ser conduzidas.

O autor evidencia sua posição sobre a tarefa dos intelectuais ao apresentar Dostoiévski como um intelectual nacional-popular, ao mesmo tempo em que revela uma crítica aos intelectuais italianos historicamente distantes dessa questão.

Em Dostoiévski existe o poderoso sentimento nacional-popular, isto é, a consciência de uma “missão dos intelectuais” para o povo que talvez seja “objetivamente” constituído de “humildes”, mas deve ser liberado dessa “humildade”, transformado, regenerado. No intelectual italiano, a expressão dos “humildes” indica uma relação de proteção paternalista, o sentimento “arrogante” de uma própria indiscutível superioridade (GRAMSCI, 2007, Q9, §135, p. 1197).

A ausência de intelectuais italianos ligados à massa refletia a falta de um caráter nacional-popular também na literatura e na arte, o que representava uma “debilidade nacional e estatal” (GRAMSCI, 2007, Q14, §35, p. 1692-1693).

Gramsci também aborda esse aspecto ao ressaltar a ausência dessa especificidade nacional-popular também na literatura:

falta uma identidade de concepção de mundo entre “escritores” e “povo”, ou seja, os sentimentos populares não são vividos como próprios pelos escritores, nem os escritores desempenham uma função “educadora nacional”, isto é, não se propuseram e nem se propõem ao problema de elaborar os sentimentos populares após tê-los revivido e deles se apropriado (2007, Q21, §5, p. 2114).

A literatura na Itália “é separada do desenvolvimento real do povo italiano, é de casta, não sente o drama da história, isto é, não é popular-nacional” (GRAMSCI, 2007, Q6, §44, p. 720).

Desse modo, Gramsci diferencia “nacionalismo” de “nacional-popular”. A seguinte passagem mostra essa distinção: “países onde existem nacionalismo, mas não uma situação ‘nacional-popular’, isto é, onde as grandes massas populares são consideradas como gado” (2007, Q6, §135, p. 799).

Um caráter “nacional-popular” implica a consideração real do povo enquanto integrante fundamental e constituidor da nação, da cultura, da língua, dos costumes e não como coadjuvantes de uma ordenação imposta.

É nesse sentido que Gramsci aponta:

Estes dois pontos fundamentais - formação de uma vontade coletiva nacional-popular, da qual o moderno Príncipe é ao mesmo tempo o organizador e a expressão ativa e operante, e reforma intelectual e moral - deveriam constituir a estrutura do trabalho (2007, Q13, §1, p. 1561).

Por isso, afirma que:

Um sistema de governo é expansivo quando facilita e promove o desenvolvimento a partir de baixo, quando eleva o nível da cultura nacional-popular e, portanto, torna possível uma seleção de “excelências intelectuais” numa área mais ampla (GRAMSCI, 2007, Q6, §170, p. 821).

O nexo entre intelectuais e hegemonia configura-se na proposição de um indispensável plano estratégico que vincule a elevação cultural do povo e a constituição da vontade coletiva para outra ordenação social, não mais calcada na desigualdade que imprime a subalternidade às massas.

Os intelectuais nacionais-populares ligados ao povo teriam condições de passar “do saber ao compreender, ao sentir e vice-versa, do sentir ao compreender, ao saber” (GRAMSCI, 2007, Q11, §67, p. 1505). E, assim, com a luta política e o trabalho educativo e cultural, rompendo o silêncio do solitário saber intelectual e a dor do sentir cotidiano, construindo novas relações sob um novo senso comum, edificar uma nova hegemonia.

Evidencia-se assim que a forma de existir do intelectual é pela política na concepção gramsciana. E, consequentemente, fica clara também a importância educativa e cultural na condução estratégica de luta política e social. Vale ressaltar que apontar o papel educativo na concepção gramsciana não é rebaixar o seu cunho revolucionário, ao contrário, é elevá-lo. A educação e a cultura organizam a política, ao mesmo tempo que são em si a mais acentuada expressão do exercício político.

Partido como intelectual coletivo

Para Gramsci, não apenas o intelectual enquanto indivíduo tem o seu peso no processo de construção da hegemonia, mas assim também poderíamos compreender o intelectual enquanto organismo, que é o partido, em uma acepção alargada. Sobre a importância do partido, afirma:

O moderno príncipe, o mito-príncipe não pode ser uma pessoa real, um indivíduo concreto, só pode ser um organismo; um elemento complexo da sociedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Esse organismo já está dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula na qual se sintetizam germes da vontade coletiva que tendem a tornar-se universais e totais (GRAMSCI, 2007, Q13, §1, p. 1558).

O partido assume um caráter preponderante no arranjo das relações sociais para organização coletiva dos sujeitos, aliado hoje a outras formas de atuar politicamente e ordenar as lutas coletivas, como os inúmeros movimentos sociais.

O partido almejado deveria ser o lócus da formação de intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, exercendo uma atuação sem corporativismos e clientelismos. E, para adquirir uma função de fato democrática e hegemônica na sociedade, era imprescindível exercê-la antes internamente, como destaca Gramsci:

A função hegemônica ou de direção política dos partidos pode ser avaliada pelo desenvolvimento da vida interna dos próprios partidos. Se o Estado representa a força coercitiva e punitiva de regulamentação jurídica de um país, os partidos, representando a adesão espontânea de uma elite a tal regulamentação, considerada um tipo de convivência coletiva para qual toda a massa deve ser educada, devem mostrar em sua vida particular interna terem assimilado, como princípios de conduta moral, aquelas regras que no Estado são obrigações legais. Nos partidos, a necessidade já se tornou liberdade, e daí nasce o enorme valor político (isto é, de direção política) da disciplina interna de um partido e, portanto, o valor de critério que tem tal disciplina para avaliar a força de expansão dos diferentes partidos. Deste ponto de vista, os partidos podem ser considerados como escolas da vida estatal. Elementos de vida dos partidos: caráter (resistência aos impulsos das culturas ultrapassadas), honra (vontade destemida ao sustentar o novo tipo de cultura e de vida), dignidade (consciência de operar por um propósito superior) etc. (2007, Q7, §90, p. 919-920).

Gramsci opõe-se à visão do partido como síntese de interesses representados por determinados sujeitos capacitados. Discorda da distinção entre os sujeitos na formação do partido, porque acredita que isso causaria uma ruptura com a classe trabalhadora, o que comprometeria o seu próprio papel e desconsideraria a sua função formativa no processo educativo das massas. Considerava que “apenas uma forte elevação cultural dos militantes poderia deter os fenômenos de autoritarismo presentes na vida do partido” (PAGGI, 1984, p. 315).

Gramsci atribui caráter histórico e político ao processo de constituição do partido e, mais uma vez, inova ao alargar sua acepção. Em resposta à posição de Bordiga, formulará posteriormente, no cárcere, as seguintes considerações:

Que todos os membros de um partido político devam ser considerados como intelectuais é uma afirmação que pode prestar-se à ironia e à caricatura; contudo, se refletirmos bem, nada é mais exato. Será preciso fazer uma distinção de graus; um partido poderá ter uma maior ou menor composição do grau mais alto ou do grau mais baixo, mas não é isto que importa: importa a função, que é diretiva e organizativa, isto é, educativa, isto é, intelectual (GRAMSCI, 2007, Q12, §1, p. 1523).

O partido não é um simples agente formador de opinião; tem a missão de empreender um corpo teórico-prático que designe um modo de pensar, ser e agir, “fabricar o fabricante” (GRAMSCI, 2007, Q19, §24, p. 2018). Para isso, adquire a tarefa fundamental de ocupar uma posição na vida das pessoas que antes era preenchida pela religião, que “deve mobilizar as vontades” individuais e coletivas, “organizá-las, dar-lhes homogeneidade e sentido” (DIAS, 1996, p.11). Afinal, “somente em um terreno organizado podem ser determinadas as condições do sucesso político” (PAGGI, 1984, p. 336).

Entretanto, convém ressaltar que, embora o partido detenha uma atribuição pedagógica, é uma forma organizativa construída historicamente pelos sujeitos e para eles, no anseio de responder às suas lutas concretas. Não apenas deve fornecer caminhos e respostas como deve estar pronto a colhê-los da sociedade. O partido não só “ensina”, mas também “aprende”. Não é somente “professor”, mas constitui-se ele próprio em “aluno”, na medida em que, concatenado às circunstâncias e à luta das classes subalternas, deve ressignificar suas estratégias, seu lócus de atuação, redimensionando seu peso em cada forma de luta.

O partido, como “pensador coletivo”, deve orientar a prática política cotidiana. As situações concretas e as contradições postas no terreno de disputas da sociedade civil não são monolíticas e exigem que o “educador seja também educado”. Organizador das massas em prol da construção hegemônica, o partido político deve estar sempre pronto a questionar suas práticas e a se reinventar, aprendendo com os movimentos sociais, com as dores das massas, para que continue representando e expressando uma vontade coletiva.

Lorianismo e brescianismo: intelectuais escusos

Ainda em relação à categorização de intelectuais, Gramsci afirma que toda sociedade desenvolve um corpo intelectual que utiliza o conhecimento de maneira leviana, propagandística, ideologicamente a favor de seus interesses de classe por sentirem seus privilégios ameaçados, e contribuem para impregnar na mentalidade coletiva uma imagem caricata da realidade. Compreende ser quase uma “lei geral do desenvolvimento humano”, como afirma no artigo "La compagnia di Gesù", do Avanti, publicado em 9 de outubro de 1920 (GRAMSCI, 1987, p. 707).

O ensaio realizado por Francesco De Sanctis sobre a obra "L'Ebreo di Verona" de Antonio Bresciani foi a inspiração fundamental para o desenvolvimento da conceituação gramsciana de “brescianismo”, que viria a adquirir, conjuntamente com o “lorianismo”, um caráter de categoria analítica dos intelectuais no pensamento gramsciano.

A novela política "L'Ebreo di Verona" tinha as narrativas de folhetins como inspiração, era antirrepublicana e inflamava sentimentos de terror e ódio nas pessoas. Teve um papel importante no ápice das batalhas entre clero e liberais. Essa crítica ao padre Bresciani se estendia à Companhia de Jesus, que, com sua produção e atuação, inculcava nas classes médias um ódio à revolução liberal. Tanto que no Caderno 3, parágrafo 13, Gramsci emprega “jesuitismo” e passará a usar como um sinônimo de brescianismo. A exploração da fé a favor de uma concepção de mundo que deflagrava preconceitos políticos, deturpava a realidade, era arduamente mobilizada nessas produções.

Se em um primeiro momento a crítica desanctiana à obra de Bresciani suscita a denúncia gramsciana sobre a falsificação da história, posteriormente, com o desenvolvimento das reflexões que empreenderá, adquirirão maior atenção os mecanismos literários de construção de mistificações e seus alcances, como construções narrativas que delineavam os dirigentes socialistas e comunistas como sujeitos sem escrúpulos, sedentos por poder, riqueza e manipuladores do povo.

Em uma carta de 7 de abril de 1930, endereçada à cunhada Tatiana, Gramsci afirma que na literatura italiana “há uma tradição essencialmente sectária” e faz referência direta a Bresciani, apontando que para ele “todos os patriotas eram canalhas, velhacos, assassinos etc, enquanto os defensores do trono e do altar, como então se dizia, eram todos anjinhos vindos à terra para fazer milagres” (2013, p. 332).

Outros autores além de Bresciani, como Mario Puccini (GRAMSCI, 2007, Q3, §64, p. 345), Luigi Capuana (GRAMSCI, 2007, Q3, 73, p. 349), Ugo Ojetti (GRAMSCI, 2007, Q5, §101, p. 630), Angello Gatti (GRAMSCI, 2007, Q6, 2, p. 685), Enrico Corradini (GRAMSCI, 2007, Q7, 82, p. 914), Giovanni Papini (GRAMSCI, 2007, Q8, 105, p. 1002), entre outros, apresentam obras com caracterizações estereotipadas e tom irônico, que terminam por criar uma ideia falsa da vida política italiana. A produção literária da época contribuía para uma deformação hipócrita do quadro histórico nacional, como ocorreu com o período de maior efervescência de luta dos trabalhadores, o chamado Biênio Rosso. Gramsci denominou esses autores, que apresentavam uma representação superficial e sectária da realidade social, política e suas lutas, contribuindo para a difusão de ideias antidemocráticas, como “os filhotes do padre Bresciani”.

Gramsci, em sua vigilante sagacidade e perspicácia, estende atenção a essas produções literárias e denuncia a falta de caracterização histórica, as representações mecânicas, os clichês estereotipados, a linguagem elementar repleta de erros e os empregos de termos vulgares e caricatos que as caracterizam e que poderiam torná-las subestimadas por serem consideradas de pouca estirpe. No entanto, esses fatores acabam por resultar em uma mistificação profunda da realidade, sobretudo do mundo popular e dos fenômenos que construíram sua história, dada a aderência que conseguem. Dessa maneira, reflete sobre a função social da literatura, evidenciando a sua não “inocência” e neutralidade; ao contrário, transparecendo como ela se constitui em arma em jogo. Poderíamos estender essa função às outras formas de linguagens predominantes hoje, principalmente, com a internet e as redes sociais.

Para Gramsci, o brescianismo é “antiestatal e antinacional” (2017, Q9, §42, p. 1122), expressão da demonstrada incapacidade dos intelectuais italianos de compreender e representar o povo, a vida e a luta das classes populares. Esse aspecto é considerado por ele de suma importância, tanto que dedicou um caderno especial à temática dos subalternos, o caderno 25. Gramsci questionava o caráter marcadamente cosmopolita dos intelectuais italianos, em sua constatada incapacidade de, efetivamente, se apropriar da questão nacional popular, de se ligar ao povo. Assim como critica a acepção folclórica que é atribuída aos intelectuais que buscam se debruçar sobre o povo ou, como emprega, os “simples”. E a tradição literária italiana, desde Manzoni, traz essa marca.

Gramsci já no caderno 1, parágrafo 24, esboça as linhas gerais do leque variado de obras literárias contemporâneas que, apesar de distintas narrativas, convergem em abordagens superficiais que desconsideram os problemas da realidade e a dialética social, as contradições que nos abatem e os mecanismos e fenômenos estruturantes das desigualdades, reduzindo às formulações simplistas e à caricatura dos sujeitos, por vezes, desumanizando-os e bestializando-os. De modo geral, apresentam uma visão maniqueísta das lutas de classes: de um lado, os burgueses como detentores dos valores a serem cultuados, da moral, da família; do outro, os proletários, baderneiros, amorais, tumultuadores da ordem social.

Gramsci denuncia “a parcialidade e miopia ideológica”, como bem aponta Musitelli (2004), a presunção e a hipocrisia constitutiva. Ao longo de suas reflexões no cárcere, apontou: deturpação, “o uso demagógico de termos como revolução (GRAMSCI, 2007, Q9, §10, p. 1102); a consideração exclusivamente estética da política e da moralidade (GRAMSCI, 2007, Q9, §ll, p. 1103); a polêmica como fim em si e o diletantismo moral insuperável” (GRAMSCI, 2007, Q9, §24, p. 1926).

É surpreendente a capacidade de Gramsci de atentar à tendência reacionária da produção literária contemporânea e do risco que isso representa, sobretudo, aos mais vulneráveis na organização do tecido social, pela validação de um modus operandi que os fragiliza enormemente.

Outro termo forjado por Gramsci nessa acepção é o conceito de lorianismo, assim chamado em referência ao seu principal expoente, o economista e sociólogo positivista Achille Loria, para designar uma categoria emblemática de intelectuais oportunistas e alheados de rigorosidade no desenvolvimento científico, bastante influentes na formação da cultura nacional, como ele mesmo descreve:

Loria não é um caso teratológico individual: ao contrário, é o exemplar mais completo e acabado de uma série de representantes de certa camada intelectual de determinado período histórico; em geral, daquela camada de intelectuais positivistas que se ocuparam da questão operária e que estavam mais ou menos convencidos de terem aprofundado, revisto e superado a filosofia da práxis. (GRAMSCI, 2007, Q28, §1, p. 2325).

Gramsci, desde o período de seu trabalho jornalístico e de militância, apontou de modo veemente sua oposição à s ideias disparatadas de Loria. Chegou a apontá-lo como “um cérebro incapaz de pensar”, em um artigo publicado no Il Grido del Popolo, de 9 de janeiro de 1918, intitulado exatamente "Achille Loria". Também satirizou sua teoria de que a fome poderia ser combatida com a colocação de visgo nas asas dos aviões, o que facilitaria a caça de pássaros. Um outro exemplo de teoria ilógica de Loria, referido por Gramsci no Caderno 28, parágrafo 1, é a conexão entre “misticismo e sífilis”, misticismo entendido como toda atitude não positivista ou materialista vulgar.

Loria foi também duramente criticado por Engels no "Prefácio" e nas "Considerações suplementares" ao terceiro livro de "O capital"; por Antonio Labriola, considerado o precursor do marxismo na Itália, na obra “Em memória do Manifesto dos comunistas”, de 1895; e até por Benedetto Croce na obra “As teorias históricas do prof. Loria”, de 1896.

O Caderno 28, caderno especial sobre a temática do Lorianismo, em seus dezoito parágrafos, é dedicado a essas figuras, apontando suas obras e incongruências, de maneira mais próxima às polêmicas que Gramsci travava em suas exposições jornalísticas durante sua militância.

Inicialmente pensado para designar uma camada de intelectuais italianos, pela acurada leitura de seu tempo, Gramsci compreende que “todo período tem o seu lorianismo mais ou menos completo e perfeito, e que todo país tem o seu” (2007, Q28, §1, p. 2325) conjunto de intelectuais que desenvolvem argumentações e produções ancoradas em elucubrações simplistas, de fácil aderência às massas, por revestirem-se de uma aparente lógica que, no entanto, encobre a complexidade e as contradições da ordenação social, e que não podem ser expostas com formulações débeis e inconsistentes. Prossegue:

o hitlerismo revelou que a Alemanha alimentava, sob o aparente domínio de um grupo intelectual sério, um lorianismo monstruoso, que rompeu a crista oficial e se difundiu como concepção e método científico de uma nova “oficialidade” (GRAMSCI, 2007, Q28, §1, p. 2325).

O que Gramsci considerava emblemático e enfatizava como um aspecto que não poderíamos deixar de atentar é:

Que Loria pudesse existir, escrever, elucubrar e publicar por sua conta livros e livraços, nada de estranho: existem sempre os descobridores do moto perpétuo e os párocos que publicam continuações de Jerusalém Libertada. Mas que ele tenha se tornado um pilar da cultura, um ‘mestre’, e que tenha encontrado ‘espontaneamente’ um imenso público, eis algo que nos leva a refletir sobre a debilidade, mesmo em épocas normais, das resistências críticas que, não obstante, existiam: deve-se pensar como, em épocas anormais, de paixões desencadeadas, seja fácil aos Loria, apoiado por forças interessadas, superar todos os obstáculos e infectar por décadas um ambiente de civilização intelectual ainda débil e frágil (GRAMSCI, 2007, Q28, §1, p. 2325).

Entender como - apesar da “falta de organicidade, ausência de espírito crítico sistemático, negligência no desenvolvimento da atividade científica, ausência de centralização cultural, frouxidão e indulgência ética no campo da atividade científico-cultural” (GRAMSCI, 2007, Q28, §1, p. 2321) - os lorianos conseguem ampla difusão na sociedade é fundamental para compreender a fragilidade da organização cultural e a crise da civilização moderna.

A CONCEPÇÃO DE INTELECTUAL GRAMSCIANA COMO PRISMA PARA PENSAR O BOLSONARISMO

A apresentação da concepção de intelectual gramsciana desenvolvida até aqui, com seu largo espectro e modos de atuação (que podem ser traduzidos ao nosso tempo, sobretudo de larga difusão da internet e das redes sociais), mas com marcador fundamental de impacto influenciador e organizativo, mostra-se como recurso relevante na compreensão da atual ordenação do tecido político social brasileiro, que possibilitou a ascensão de Jair Bolsonaro ao poder e, apesar de toda crise vivida, ainda sustenta um percentual significativo de apoiadores. A importância da criação de novos modelos analíticos para compreensão desse cenário político é destacada por Avelar:

A ascensão de Bolsonaro representa, sobretudo, a quebra completa do modelo com que uma disciplina, a ciência política, tentava entender a realidade brasileira a partir de um conceito, o presidencialismo de coalizão. É coerente com a sua história que a ciência política brasileira tenha previsto e esperado que o campo político se recompusesse em 2018 e o segundo turno fosse disputado de novo por duas coalizões lideradas por PT e PSDB, ou pelo menos por duas coalizões situadas entre a centro-esquerda e a centro-direita. A eleição brasileira de 2018 é a história do espetacular fracasso dessa expectativa. Tendo dirigido sua atenção durante duas décadas ao jogo parlamentar-executivo das negociações e formações de blocos, cristalizado no conceito de presidencialismo de coalizão, a ciência política se viu pouco equipada para entender o terremoto bolsonarista. (AVELAR, 2021, p. 231).

A ascensão de Bolsonaro ao poder resulta da convergência entre forças constitutivas da direita e extrema direita no Brasil, conforme destacado por Araújo e Carvalho:

A rigor, o Bolsonarismo está para além da figura de Jair Bolsonaro, embora esta figura grotesca e bizarra tenha significados sociopolíticos, trazendo à baila marcas históricas da formação social brasileira e da nossa própria cultura política, materializadas no conservadorismo, no machismo, no racismo, na misoginia, nas discriminações de múltiplas naturezas. Bolsonaro parece bem encarnar a perspectiva colonialista de submissão, elitismo e violência, a atravessar a história do País, reatualizando-se no reacionarismo político-cultural, em pauta no Brasil do Presente. (ARAÚJO; CARVALHO, 2021, p. 151).

Nesse sentido, mesmo levando em consideração períodos autoritários presentes na história do Brasil, tais como o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937 - 1945) e a Ditadura Militar (1984 - 1985), o autoritarismo presente no bolsonarismo apresenta novas configurações que devem ser consideradas e que são destacadas por Chauí:

Estamos acostumados a identificar o fascismo com a presença do líder de massas como autocrata. É verdade que, hoje, embora os governantes não se alcem à figura do autocrata, operam com um dos instrumentos característicos do líder fascista, qual seja, a relação direta com “o povo”, sem mediações institucionais e mesmo contra elas. Também, hoje, se encontram presentes outros elementos próprios do fascismo: o discurso de ódio ao outro - racismo, homofobia, misoginia; o uso das tecnologias de informação que levam a níveis impensáveis as práticas de vigilância, controle e censura; e o cinismo ou a recusa da distinção entre verdade e mentira como forma canônica da arte de governar. (CHAUÍ, 2019, p. 1).

Na perspectiva apresentada pela autora, os governantes, que passam a ter sua atuação se aproximando do gestor presente nas empresas privadas, criam a imagem de serem os representantes legítimos do verdadeiro povo, com o qual mantém uma relação direta por meio das redes sociais, sem a necessidade de uma mediação institucional, e colocando em dúvida a legitimidade das instituições ligadas aos poderes legislativo e judiciário.

Entretanto, uma ressalva se mostra relevante: circunstâncias concretas específicas tornaram o regime fascista exitoso na Itália. Ele “foi o ponto nevrálgico da crise da civilização europeia do pós-guerra, não tendo sido, portanto, casual que o fascismo tenha nascido ali” (FRESU, 2019, p. 18). E, justamente, para não cairmos no equívoco de simplesmente transpor a designação do fascismo para outros regimes reacionários e autoritários, é necessário diferenciá-lo enquanto concepção de mundo e regime de governo.

A raiz que viabiliza o fascismo é a mesma vertente criadora de teorias irracionais de raças, com a divisão da humanidade em raças superiores e inferiores biologicamente pautadas. Assumir aqui, portanto, o uso do termo fascismo não mais como um fenômeno político social circunscrito a sua forma de governo estrita, mas enquanto uma categoria possível de análise das contradições humanas - enquanto a sua viabilização concreta é também expressão politicamente organizada do ódio racial, pela percepção do diferente como adversário a ser eliminado -, torna possível a captura do sentido da política como violência, conjugados, portanto, em fermento fundamental para difusão do fascismo no terreno social.

Nesse contexto, Chauí (2019) ressalta que as formas e expressões do pensamento crítico tornam-se alvo de perseguição, uma vez que é forjada uma divisão da sociedade entre “o bom povo”, que os apoia, e “os diabólicos”, que os contestam. O discurso presente é o de ódio ao diferente representado em grupos minoritários, tais como imigrantes, migrantes, refugiados, LGBTQIA+ e outros. Os adversários políticos passam a ser denominados como “os corruptos”, mesmo que a corrupção seja a prática prioritária adotada dentro do governo. A justificativa sempre se pauta em uma teoria da conspiração comunista, que seria liderada por intelectuais e artistas de esquerda.

Tendo em vista esse exercício de caracterização em linhas gerais do bolsonarismo, a concepção de intelectual desenvolvida por Gramsci mostra-se elucidativa para o entendimento dessa configuração política presente no Brasil. Um primeiro exemplo relaciona-se à distinção abissal entre um suposto nacionalismo, pregado pelo atual governo Bolsonaro e seus apoiadores, e o que seria um caráter nacional-popular, que considerasse efetivamente a história, as problemáticas, necessidades e anseios populares.

Os conceitos de “brescianismo e lorianismo” desenvolvidos por Gramsci, mostram-se presentes na construção do discurso e na lógica de atuação do bolsonarismo. A criação de uma imagem caricata da realidade vem associada a um discurso de mudança, em que são adotadas medidas presentes na ideologia do neoliberalismo como solução para a crise econômica, juntamente com uma narrativa pautada no fundamentalismo religioso de igrejas neopentecostais, empenhada em combater uma suposta ameaça comunista, que defende valores contrários à preservação da “família tradicional” e seus respectivos valores morais.

As argumentações simplistas brescianas e lorianas aderem e sedimentam-se no senso comum, modelando convicções e operando sobre a vida prática. Na acepção gramsciana, as ideias e concepções são vividas nas massas como convicção, como bem nos mostra: “nas massas como tais, a filosofia não pode não ser vivida como uma fé” (GRAMSCI, 2007, Q11, §12, p. 1390). A convicção que orienta conduta se constitui, portanto, em força política, material e social. Por conseguinte, a crença popular é uma força social e política, expressando a efetividade histórica de uma concepção de mundo. Desse modo, os brescianos e lorianos, com suas abordagens superficiais, contribuem para a passividade das massas, dificultando leituras críticas da realidade, que abordam a complexidade e as contradições que envolvem o tecido social. Assim, confundem e freiam a organização dos subalternos, corroborando e alimentando respostas reacionárias às crises.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A extensão que a conceituação de intelectual adquire no pensamento gramsciano corresponde à sua importância no tecido social, correlacionando-se ao aprofundamento do conceito de Estado. Na concepção gramsciana, todos os seres humanos são intelectuais porque nenhuma atividade humana pode prescindir de alguma dimensão intelectual. A diferenciação que Gramsci estabelece entre eles, de acordo com a gênese, função e caráter da sua atividade (orgânico, tradicional, cosmopolita, nacional-popular, brescianos e lorianos) esclarece o alcance da conceituação e o peso que os intelectuais apresentam para toda ordenação política e social. E essas categorias podem ser traduzidas à atualidade, sobretudo, enquanto expressam a função organizativa e conectiva, portanto, política, que a influência de como pensam e agem certos sujeitos exerce na sociedade. Ratifica-se, assim, no delineamento de sua estratégia de ação, a essencialidade da organicidade entre o quadro de intelectuais e as classes subalternas para a efetivação de um projeto revolucionário emancipador.

Os intelectuais desempenham papel imprescindível na luta política por serem os principais intérpretes da sociedade civil, os elementos conectivos entre o campo ideológico e o econômico, disseminadores de ideologias, agentes ativos do combate ou da manutenção de determinada concepção de mundo e, exatamente por isso, fomentadores da vontade coletiva, da atuação prática das massas e do consenso necessário à hegemonia de um grupo social. Por isso, se mostram fundamentais, tanto para o grupo que está no poder, para a obtenção do consenso, quanto para os grupos subalternos que precisam se unificar e assumir uma concepção de mundo coerente e crítica, que possa ser difundida socialmente na postulação da posição hegemônica.

Por sua posição historicista, Gramsci não pode concordar com a visão de intelectual universalista imparcial. Em sua ótica, é inconcebível uma atuação intelectual apartidária, pelo fato de não compreender a possibilidade da neutralidade e do apartidarismo em nenhuma esfera humana. Por essa razão, defende a formação de intelectuais que compreendam e atuem sobre as necessidades das massas, mas sem segregar-se do mundo. Intelectuais orgânicos e nacionais-populares que se comprometam com a luta dos subalternos por a terem sentido como eles sentem e por a terem traduzido na elaboração necessária à idealização de uma concepção de mundo a ser difundida. Há um elo indispensável entre a atuação dos intelectuais (e, portanto, da educação e cultura) e a proposição gramsciana de luta política.

A importância destinada aos intelectuais justifica o papel do partido, em sua acepção alargada. Intelectual coletivo é o agente teórico e prático na estruturação de um percurso hegemônico, por ser o primeiro alvéolo da vontade coletiva, motor da práxis das massas. Possui um claro papel formativo político ao fomentar consciência e organizar os ímpetos individuais e coletivos. Todavia, não deve colocar-se como superior à classe que representa. É importante que o partido seja parte da classe e não um órgão condutor autoritário. Afinal, enquanto organismo criado pelos sujeitos para auxiliá-los no enfrentamento dos problemas, na busca de respostas e ações por outras relações sociais capazes de criar novas possibilidades de arranjo político e social, deve também aprender com a vivência e o sentir deles. O partido deve atuar como “mestre” e “aluno” no seio da sociedade.

Gramsci assinala a importância de movimentos espontâneos dos subalternos, mas ressalta que eles não devem ser deixados à espontaneidade. Para que adquiram coesão e força para se autoafirmar e entrar em condições de vitória no jogo político, necessitam de uma direção consciente, o que reitera o papel dos intelectuais e das organizações educativas, culturais e políticas. A emancipação cultural é o primeiro passo na trilha pela nova hegemonia capaz de superar a subalternidade das massas.

O lugar dos intelectuais está irremediavelmente circunscrito no papel ativo humano da construção de todo tecido social, político e econômico. De maneira consciente ou não, toda concepção de mundo influi em práticas sociais, que ordenadas e congregadas ganham força política e motora de proposições organizativas da arena social.

A distinção estabelecida entre intelectuais não está em natureza, mas no grau e campo de atuação, em extensão de reflexão, atuação e influência sobre questões da realidade ou limitada a elementos mais abstratos, descolados dos problemas nacionais-populares.

Não é à toa que o projeto de uma reforma intelectual e moral é a maior proposição gramsciana. E a árdua e indispensável tarefa é essa, a de edificação de uma reforma intelectual e moral para uma tradução ativista mobilizadora das massas e, consequentemente, viabilização de um projeto revolucionário emancipatório humano.

As conceituações de “brescianismo e lorianismo” desenvolvidas por Gramsci, mais que instrumento de classificação histórico-literária, elevadas ao cunho de categoria interpretativa, alcançam uma substancial relevância para o desenvolvimento de leituras e análises mais contundentes de fenômenos decisivos para o tessitura do nosso atual momento político e social, e consequentes reflexões e ações críticas indispensáveis para a construção coletiva de respostas que se contraponham em conteúdo, mas que se assemelhem na difusão em massa.

Em nosso país, a desorganização da cultura levou a um movimento de massa que tornou o bolsonarismo possível. Se não podemos imputar a responsabilidade do nosso atual quadro político nacional unicamente à influência de sujeitos medíocres, que assumem a função de intelectuais na organização social, certamente eles apresentam decisivo peso nessa composição. Nesse sentido, as categorias de brescianismo e lorianismo nos são muito caras para entender o nosso atual bloco histórico e, consequentemente, para as reflexões que teremos que empreender na busca pela sua superação.

Vivemos em um momento de crescente expansão de lorianos e brescianos. Se pensarmos no alcance do discurso de “ditadura cultural marxista”, no ataque sistemático à educação, às ciências como um todo, nos ataques à democracia e à soberania nacional, faz todo sentido pensar, como destaca Gramsci, que “os grupos intelectuais que exprimiam questões lorianas na realidade desprezavam, não só a lógica, mas a vida nacional, política e tudo mais” (GRAMSCI, 2007, Q28, §17, p. 2335).

O nosso juízo de valor sobre a intelectualidade de certos sujeitos não muda o alcance que eles adquirem politicamente, nem a função que assumem se conseguirem comunicar, conjugar essa ligação de coração e mente em largos estratos.

Pensando no momento em que estamos vivendo, sob a regência de um governo que podemos considerar também resultante de uma nova roupagem de um “brescianismo e lorianismo” nessa era digital, com uma transmutação dessas formulações falaciosas em memes de alcance imediato em massa, aliado a um alargado assédio à organização escolar e à cultura, capilarizando-se e materializando-se em atitudes, práticas cotidianas que ferem os direitos humanos, o desafio de construção de uma reforma intelectual e moral ganha urgência na mesma medida da sua complexidade e impõe essa tarefa histórica a todos que discordam desses absurdos e não se furtam de forjar humanidade, apesar das monstruosidades cotidianamente vivenciadas.

O que fica, em linhas gerais, é que intelectualidade importa, tanto mais quanto mais organiza, inevitavelmente, mesmo a intelectualidade abjeta, o que acena para o irrenunciável desafio de luta coletiva por políticas de educação de massa, pelo direito à educação e a cultura como esteira permanente de uma construção política e social de disputa hegemônica e luta permanente.

REFERÊNCIAS

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2A pesquisa original que possibilitou o presente estudo foi realizada com bolsa Capes.

Recebido: 28 de Abril de 2021; Aceito: 07 de Julho de 2022

O autor declara que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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