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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.38  Belo Horizonte  2022  Epub 03-Maio-2022

https://doi.org/10.1590/0102-469826053 

Palavra aberta

POR QUE ESTUDAR (COM) AS MÍDIAS? COMUNICAÇÃO E EDUCAÇÃO COMO PRÁTICAS COMPREENSIVAS, REFLEXIVAS E EMANCIPATÓRIAS

WHY STUDY (WITH) THE MEDIA? COMMUNICATION AND EDUCATION AS UNDERSTANDING, REFLECTIVE AND EMANCIPATORY PRACTICES

¿POR QUÉ ESTUDIAR (CON) LOS MEDIOS? LA COMUNICACIÓN Y LA EDUCACIÓN COMO PRÁCTICAS COMPRENSIVAS, REFLEXIVAS Y EMANCIPATIVAS

1 Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia, GO. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte(UERN). Mossoró, RN, Brasil. andrebonsanto@gmail.com


RESUMO:

Propomos, neste texto, apresentar breves reflexões sobre a importância de se estudar (com) as mídias, pensando-as como um conjunto de práticas e processos comunicacionais capazes de (re)configurar nossas experiências cotidianas, identidades e valores. Dotadas de um potencial compreensivo, reflexivo e emancipatório, as mídias nos fazem saber e sentir, criam vínculos e afetos, sendo palco também de ordenamentos, disciplinas, produtos do poder e da ideologia. Estar atento a estas particularidades é fundamental para que saibamos construir um olhar crítico na e para a educação, principalmente em um contexto onde prolifera-se sobremaneira uma onda desinformativa, oriunda de nossa chamada era da “pós-verdade”. Para se educar com as mídias é preciso que saibamos, sobretudo, nos educar para as mídias, perceber nuances, intencionalidades, captar e destrinchar sentidos de seus textos e contextos. Objetivamos, com isso, uma maior problematização sobre como nós professores/educadores /pesquisadores podemos pensar, analisar e utilizar as mais variadas narrativas midiáticas dentro do universo didático e pedagógico, mas também no cotidiano de nossas práticas sociais, comprometidas com uma formação cidadã, crítica e responsável.

Palavras-chave: Mídias; educação; práticas comunicacionais

ABSTRACT:

We propose in this text to present brief reflections on the importance of studying (with) the media, thinking of them as a set of communicational practices and processes capable of (re)configuring our daily experiences, identities and values. Endowed with a comprehensive, reflective and emancipatory potential, the media make us know and feel, create bonds and affections, and are also the stage for orders, disciplines, products of power and ideology. Being attentive to these particularities is essential for us to know how to construct a critical look at and for education, especially in a context where a “misinformation wave” proliferates, originating from our so-called “post-truth” era. In order to be educated with the media, it is necessary that we know, above all, to educate ourselves for the media, to perceive nuances, intentionalities, to capture and untangle meanings from their texts and contexts. With this, we aim at a greater problematization about how we, teachers/educators/researchers can think, analyze and use the most varied media narratives within the didactic and pedagogical universe, but also in the daily life of our social practices, committed to a citizen formation, critical and responsible.

Keywords: Media; education; communicational practices

RESÚMEN:

Proponemos en este texto presentar breves reflexiones sobre la importancia de estudiar (con) los medios, pensándolos como un conjunto de prácticas y procesos comunicacionales capaces de (re)configurar nuestras vivencias, identidades y valores cotidianos. Dotado de un potencial comprensivo, reflexivo y emancipatorio, los medios de comunicación nos hacen conocer y sentir, crean vínculos y afectos, y son también escenario de órdenes, disciplinas, productos del poder y la ideología. Estar atentos a estas particularidades es fundamental para saber construir una mirada crítica sobre y para la educación, especialmente en un contexto en el que prolifera una ola desinformativa, originada en nuestra era de la llamada “posverdad”. Para educarnos con los medios es necesario que sepamos, sobre todo, educarnos para los medios, percibir matices, intencionalidades, captar y desenredar significados de sus textos y contextos. Con ello, apuntamos a una mayor problematización sobre cómo nosotros, docentes/educadores/investigadores podemos pensar, analizar y utilizar las más variadas narrativas mediáticas dentro del universo didáctico y pedagógico, pero también en la vida cotidiana de nuestras prácticas sociales, comprometidas con una formación ciudadana, crítico y responsable.

Palabras clave: Medios de comunicación; educación; prácticas comunicacionales

INTRODUÇÃO

Por que estudar (com) as mídias? Começamos este texto nos apropriando da já clássica e fundamental reflexão de Roger Silverstone (2005) para pensarmos sobre a centralidade que as mídias - sejam elas noticiosas, publicitárias, de entretenimento, lúdicas, educativas e/ou informativas - exercem na configuração de nossas experiências cotidianas, identidades e valores. Não há como escaparmos à mídia que, de antemão, deve aqui ser entendida como uma dimensão essencial da cultura contemporânea: desde suas materialidades técnicas - os chamados “meios de comunicação” - até os mais diversos ambientes simbólicos, linguagens e processos de mediação social que daí se constituem (SILVERSTONE, 2005). Recorremos constantemente à mídia para apreender e compreender o mundo que nos cerca. Isso porque vivemos, cada vez mais, em uma sociedade midiatizada, capaz de moldar e orientar nossas práticas e relações sociais (HJARVARD, 2014). É nela, com ela e a partir dela que produzimos, consumimos e compartilhamos vivências, sentidos e significados.

Enquanto cidadãos, profissionais e educadores partícipes desta realidade, temos como dever nos questionar - e incitar o questionamento - sobre as condições de produção, transmissão, circulação e recepção das formas simbólicas produzidos nas/pelas mídias e o espaço de sociabilidade que a partir delas são potencializados. As mídias, seus atores e discursos estão inseridos em um processo complexo, partilhado social, cultural e historicamente por instituições que produzem efeitos a partir de determinadas intencionalidades. Há batalhas ideológicas, discursivas e de sentido que são travadas dentro da mídia e pelo poder por ela exercido. Desta forma, estudar (com) as mídias é estudar tanto o seu papel na formação da experiência cotidiana, quanto o papel da experiência na formação da mídia e dos sujeitos que a constituem (SILVERSTONE, 2005).

A mídia nos ensina, nos forma e nos informa. Com a mídia também ensinamos, mas é importante que saibamos, sobretudo e de maneira cada vez mais urgente e consciente, estudar as mídias em seu processo de formação cidadã; estudá-las de forma ética e comprometida para que possamos construir as bases para uma prática reflexiva e criticamente orientada.

Pesquisa recente divulgada pelo IBGE em abril de 2020 nos mostra, por exemplo, que o percentual de domicílios brasileiros com acesso à televisão (96,4%) e telefone celular (93,2%) é significativamente alto. Deste total, 79,1% dos domicílios possuem acesso à internet, seja por meio de computadores, tablets e/ou telefones celulares.2 Ainda que desconsideremos o recorte por classe, faixa etária e região, estes índices nos mostram o gradativo e exponencial acesso da população às novas tecnologias de informação e comunicação, que se utiliza desses meios para acessar e consumir conteúdos os mais diversos.3 Fato é que, em um cenário onde prolifera-se cada vez mais o acesso, produção, consumo e circulação desses conteúdos, uma situação paradoxal de constante desinformação tem se fortalecido. Informação em demasia não é sinônimo de comunicação e conhecimento de qualidade. Pelo contrário. A explosão de narrativas no universo digital vem acompanhada muitas vezes por discursos de ódio e notícias falsas deliberadamente enviesadas, criadas muitas vezes para causar engajamento e motivar agendas políticas específicas. Decorre daí a proliferação de discursos revisionistas e negacionistas, que chegam a questionar acontecimentos históricos tidos como legítimos e até mesmo posições hegemônicas da ciência, como é o caso do aquecimento global e a utilização das vacinas para cura e prevenção de determinadas doenças (SACRAMENTO; PAIVA, 2020; COSTA, 2020).

Este delicado panorama nos remete, portanto, a um problema estrutural da/na educação. A chamada era da “pós-verdade” impõe importantes desafios aos educadores que se debruçam cotidianamente a pensar novas possibilidades no processo ensino-aprendizagem em sala de aula. (COUTINHO, 2020; SANTOS; ALMEIDA, 2020). Nos abre possibilidades, ao mesmo tempo, para ampliar as discussões sobre a importância de se estudar (com) as mídias, tanto no combate à desinformação, quanto na tentativa de construir um olhar mais crítico sobre como e de que forma as narrativas midiáticas são fundamentais no processo de constituição de nossas identidades e valores, de nosso modo de partilhar um comum na relação com o outro, de nosso ser e estar no mundo (GUTIÉRREZ, 2021; NERY; REGO, 2020).

É importante ressaltar que preocupações dessa ordem são relativamente recentes, ainda que desenvolvidas de forma mais clara desde meados dos anos 1990 no Brasil. Iniciativas pioneiras protagonizadas pelo Núcleo de Comunicação e Educação da ECA/USP, - tendo como referência os trabalhos do professor Ismar de Oliveira Soares (2011; 2017; 2018), - foram responsáveis por consolidar o campo da chamada “Educomunicação” no país. De conceito plural e multifacetado, podemos definir o termo como uma “metodologia pedagógica” que se utiliza das mídias nas práticas e processos educacionais, propiciando assim um relacionamento crítico e dialógico entre as interfaces da comunicação e da educação: uma espécie de estudar com as mídias. Além disso, há de se pensar em um outro processo fundamental dessas práticas, que consiste propriamente em estudar as mídias: uma educação para as mídias, uma pedagogia das mídias que está preocupada não apenas em ensinar com narrativas, textos, jornais, filmes e produtos midiáticos, mas que ensine a direcionar um olhar crítico a essas próprias mídias (BÉVORT; BELLONI, 2009; TUFTE; CHRISTENSEN, 2009). Ou seja, para se educar com as mídias deveríamos, primeiramente e principalmente, nos educar para as mídias: saber ler seus textos, sons e imagens, apreender seus sentidos, significados e intencionalidades de forma crítica e comprometida com a realidade em que estamos inseridos.

Esta é uma problemática que tem se mostrado bastante urgente e atual não apenas pelo cenário acima delineado, mas sobretudo pelas recentes políticas educacionais decorrentes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que, em sua versão final publicada em 2018, ampliou o debate sobre a importância da alfabetização/letramento digital e o uso das tecnologias de informação e comunicação no ambiente escolar. O documento normativo da BNCC enfatiza a necessidade de uma melhor compreensão e utilização destas tecnologias em sala de aula como uma das competências gerais da educação básica. Para isso, é necessário que professores e alunos estejam aptos a apreender as mídias de forma “crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais [...] para se comunicar, acessar e disseminar informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo e autoria na vida pessoal e coletiva.” 4

É neste sentido que se direcionam as preocupações deste trabalho, com o objetivo de apresentar algumas breves reflexões teóricas e orientações práticas sobre a importância de se estudar (com) as mídias. A proposta é de incitar um debate para que sejamos capazes de perceber nuances, intencionalidades, captar e destrinchar sentidos, relações de poder e estratégias ideológicas que perpassam o complexo e multifacetado universo de narrativas textuais, sonoras e imagéticas que aqui podemos denominar simplesmente de “mídias”. Falamos, portanto, não apenas das tecnologias de comunicação e informação, mas da cultura e das mediações que perpassam os seus usos. A mídia se constitui por textos e contextos, por atores e discursos. Espera-se que este breve texto auxilie em um melhor entendimento de como nós, professores/educadores/pesquisadores podemos pensar, analisar e utilizar as mais variadas narrativas midiáticas dentro do universo didático e pedagógico, mas também no cotidiano de nossas práticas sociais, comprometidas com uma formação cidadã, crítica e responsável.

AS MÍDIAS NOS FAZEM SABER E SENTIR: A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

Antes de tudo é importante pontuar que o discurso das mídias não é construído de maneira desinteressada. Ele não pode ser visto como algo que simplesmente “reflete” a realidade de forma objetiva e transparente, como na forma de um espelho. As mídias constroem a realidade a partir de interesses os mais diversos, uma vez que elas estão inseridas em uma estrutura técnica-organizacional (são instituições/empresas que produzem conteúdos muitas vezes visando lucro e/ou reconhecimento), social (são produzidas por pessoas, que agem em um contexto social, cultural e político específico) e simbólica (visam construir e reformular sentidos, crenças e valores, no constante diálogo com o outro).

Quando formos discutir, analisar e interpretar uma narrativa ou produto das mídias, seja ela uma notícia de jornal, um filme/documentário, uma peça publicitária, ou até mesmo postagens e compartilhamentos em redes sociais, precisamos nos ater aos diferentes lugares de construção de sentido que perpassam aquilo que Charaudeau (2006) definiu como as três instâncias da máquina midiática:

(1) Produção: é o lugar de produção do discurso. Quem fala? Quem produz o texto? Quais são os efeitos visados? Visando atingir qual público? Aqui precisamos entender a lógica organizacional das instituições que produzem os discursos. Se for um texto de jornal, por exemplo, discutir e analisar o que caracteriza um jornal; quais são seus diferentes formatos; quais atores o produzem; quais suas possíveis linhas editoriais; com que público dialogam. É fundamental que saibamos situar histórica e socialmente a produção e a característica destas mídias, antes mesmo de analisar os seus produtos.

(2) Produto: é o lugar de construção de sentido do próprio texto. O produto em si. Aqui é importante entender e analisar as estruturas internas do texto e suas narrativas. Se for um noticiário de televisão, por exemplo, discutir e analisar como estas narrativas são construídas e apresentadas; como são explorados os “efeitos” simbólicos e de sentido; perceber como a televisão explora som e imagem, os testemunhos e relatos; os enquadramentos de câmera, o som e a performance dos apresentadores. Além disso, é importante reforçar que uma análise crítica e mais eficiente sobre os produtos (2) da mídia precisa levar em consideração os textos em relação ao seu contexto de produção (1) e em diálogo com um possível universo de recepção (3) destas obras.

(3) Recepção: é o lugar das condições de interpretação do discurso, da recepção e do consumo. Como nós, enquanto um pretenso público-alvo destas mídias, recebemos, interpretamos e damos sentido aos seus textos e imagens? Como os significamos e ressignificamos? Aqui nos cabe perceber que este processo não se dá de forma linear. As mídias não apenas transmitem uma informação, elas procuram nos comunicar algo. Apreendemos ativamente os significados da mídia e a partir dela criamos o nosso próprio universo de sentido. Um exercício fundamental aqui é analisar como os próprios alunos potencializam esse universo de recepção simbólica das mídias. Explorar neles e com eles um olhar crítico que os façam perceber as nuances e intencionalidades presentes na produção (1) e nos produtos (2) da mídia através do ato de recepção (3), daquilo que nos chega como textos e imagens midiatizadas.

As mídias nos fazem ver/saber sobre determinada realidade, mas também nos fazem “sentir” o mundo que nos cerca. Para isso, elas se utilizam de técnicas diversas que tem como objetivo não apenas nos informar, mas formar nossas identidades, estimular sensações, nos seduzir, convencer. Entender o processo de produção (1), o produto (2) e a recepção (3) das mídias nesta lógica circular e dialógica é fundamental para que possamos perceber as intencionalidades presentes no ato discursivo. Desta forma, também conseguimos desnaturalizar uma imagem muito presente no senso comum de que as mídias simplesmente nos “manipulam”, como se fossemos consumidores meramente passivos, facilmente enganados por uma mídia toda poderosa, instituição onipresente capaz de modelar nossas vidas e consciências. Se somos “manipulados”, também “manipulamos” os discursos da mídia, uma vez que temos senso crítico e capacidade de interpretar os seus produtos, dar a eles novos significados e sentidos práticos à nossa realidade cotidiana. É papel do professor exercitar esse olhar, mostrando por um lado como se dá a construção e circulação dos produtos da mídia e, por outro, explorando uma atitude crítica dos alunos como sujeitos ativos no processo de reconfiguração destes discursos, como algo que constitui as suas próprias identidades, saberes e valores.

AS MÍDIAS CRIAM VÍNCULOS E AFETO: A APREENSÃO DA REALIDADE

Queremos com isso deixar claro que as mídias não podem ser vistas como meros canais transmissores de informação. Quando falamos das mídias não estamos tratando, portanto, apenas dos veículos de comunicação social e suas tecnologias, como o jornal, o rádio, a televisão, a internet, etc. Pensar (com) as mídias significa também inserir esses discursos na cultura que os constitui. É pensar que as mídias produzem e transmitem informação, mas que estas só ganham algum sentido na e pela comunicação. Comunicação, muito além da simples informação, é partilha, criação de vínculos, laços sociais, identidade e pertencimento. É pela comunicação que reconhecemos a existência de nós mesmos e do outro, que negociamos e aprendemos a (con)viver em sociedade.

A simples informação não cria comunicação. Vivemos hoje um cenário de grande explosão da informação, potencializada pelas novas tecnologias de mídia. Temos acesso a conteúdos diversos de maneira simples e prática, literalmente na palma de nossas mãos. Com um clique podemos nos conectar com pessoas do outro lado do mundo. A tecnologia nos mantém conectados, nos informa, mas até que ponto podemos afirmar que ela de fato nos aproxima? Um programa de televisão, uma notícia de jornal, uma postagem nas redes sociais geralmente nos informa sobre a algo, mas nem sempre comunica de maneira eficiente. Mais informação não é sinônimo de melhor comunicação (WOLTON, 2001).

Cabe também aos professores, nas partilhas cotidianas com seus alunos, exercitar este lado social, mais compreensivo, que faz parte das práticas comunicacionais. Comunicar é trocar experiências, é uma relação que transcende o universo das mídias. Vai além do próprio texto e das imagens que elas produzem. Uma educação para as mídias preocupada com estas questões necessita problematizar as estratégias utilizadas por estes discursos para captar nossos afetos e sentidos (SODRÉ, 2006). Como isso me toca? O que consigo apreender de um texto, de uma imagem, de um discurso? O que, para mim, isto significa? Como orienta minha experiência no mundo, na relação com o outro, na sociedade em que vivo? Como ajuda a constituir minha identidade, a enxergar e reconhecer o diferente? Uma simples dinâmica em sala de aula, que se utilize das mídias para incitar um diálogo entre diferentes grupos, pode ser uma excelente estratégia para se discutir, por exemplo, temas complexos que afetam diretamente o cotidiano dos alunos, como questões relativas à identidade de gênero, raça, classe e política. Não há sociedade, identidade e partilha de um “comum” sem a comunicação. Estudar (com) as mídias pode, assim, ser um grande facilitador para despertar o senso crítico e preparar nossos alunos para apreender a realidade de forma mais complexa, plural e solidária.

AS MÍDIAS TAMBÉM ORDENAM E DISCIPLINAM: O “CONTROLE” DA REALIDADE

As mídias constroem, nos fazem ver e sentir uma determinada realidade. Nos dão a possibilidade de criar vínculos, laços sociais e identitários, de partilhar um “comum” pela comunicação. Mas não podemos esquecer que elas muitas vezes produzem relações desiguais de poder e dominação. Conforme já dissemos acima, as mídias são instituições sociais capazes de construir e nomear o mundo, mas elas fazem isso a partir de interesses e estratégias próprias. O que está em jogo neste processo é a busca por reconhecimento, legitimidade e autoridade. As mídias precisam atestar que aquilo que elas dizem pode ser considerado verdadeiro: se apareceu na mídia, é verdade; a realidade é aquilo que aparece nas mídias, que a partir dela ganha visibilidade, relevância e entra para o debate público.

Não queremos afirmar com isso que a mídia (re)produz “a” verdade dos acontecimentos, nem que esta seja a única possível. Mas é assim que os seus discursos precisam ser vendidos e é assim que muitas vezes são construídos. As mídias precisam legitimar seu poder e esse poder está baseado na credibilidade das informações que relatam. De que adianta eu consumir algo que não acredito ser verdadeiro? Aqueles que detêm o poder da mídia sabem disso muito bem e exploram suas narrativas na tentativa de garantir a sua autoridade. Quando formos analisar criticamente as mídias precisamos levar em conta, portanto, que elas carregam consigo, ainda que de forma velada, a seguinte premissa: “sabemos o que dizemos”, “temos o poder de dizer aquilo que sabemos”, “acreditem em mim, a realidade é essa, eu sou capaz de lhes dizer a verdade”.

Importante entendermos que as mídias, além de construir a realidade, também a ordena e disciplina. A partir do seu poder de dizer aquilo que acontece no mundo, as narrativas midiáticas nos dão a ver uma realidade que é muitas vezes “ordenada” por parâmetros e restrições: aquilo que é considerado desejável e/ou aceito como legítimo por determinada sociedade, contexto histórico e cultural. O que deve e o que pode ser dito? O que é possível mostrar? De que forma posso definir o certo e o errado, o bom e o mau, o verdadeiro e o falso? Estas questões perpassam relações de poder e dominação que muitas vezes “disciplinam” nosso olhar sobre as coisas, nossa conduta, nossos julgamentos e ações cotidianas (GOMES, 2003).

Decorre daí outro aspecto importante de porquê precisamos estudar criticamente o discurso das mídias: porque elas também nos educam, nos impõe valores, visões de mundo, normas de comportamento; nos dizem o que comer, o que vestir, como agir e se comportar política e socialmente. Elas “controlam” a realidade, neste sentido, porque impõem uma dada realidade como a verdadeira realidade, sancionando assim o que deve ser feito e o que deve ser visto. Isso é possível ser identificado de forma clara no jornalismo, quando as notícias nos mostram diariamente o que está “acontecendo” no mundo: há atitudes corretas e questionáveis, há um certo e um errado, há mocinhos e vilões, verdades e mentiras. Também é possível perceber este olhar “disciplinar” em simples programas de auditório e entretenimento quando, por exemplo, seus apresentadores estão discutindo questões de estética e beleza (o que é “correto” utilizar, como homens e mulheres devem se portar e vestir?) ou questões morais, de comportamento e relacionamento (o que é ser um “bom” cidadão, um “bom” marido”, uma “boa” esposa?).

Ampliar o olhar de nossos alunos para questões que envolvam o poder e a dominação simbólica dos discursos produzidos pela mídia é inerente a uma pedagogia crítica, social e responsável da comunicação. Isso porque, é importante reforçar mais uma vez, não estamos nos referindo à mídia como uma instância toda poderosa que simplesmente “manipula” a realidade. Há lógicas desiguais de controle e dominação e as mídias são parte fundamental neste processo, criando estereótipos, condicionando valores e orientando ações. Uma pedagogia crítica das mídias poderá ser assim realizada se soubermos explorar o poder de emancipação e resistência que nós, enquanto indivíduos em sociedade, extraímos e potencializamos dos discursos que nos são direcionados.

AS MÍDIAS SÃO PRODUTOS E (RE)PRODUTORAS DE IDEOLOGIAS: DOMINAÇÃO E RESISTÊNCIA

O que discutimos até agora está relacionado à ideia de que as mídias produzem discursos e significados que nos afetam de alguma forma. E se nos afetam é porque seus efeitos não são isentos de intencionalidades, de certa ideologia e visão de mundo. Aprender a criticar e interpretar os textos de mídia é entender que os discursos estão inseridos em uma disputa por legitimação de poder e sentido. É por isso que não há como entendermos um texto de mídia, uma notícia de jornal, um programa de televisão, um canal e/ou portal da internet, apenas pelo que eles dizem, pelo texto em si. Todo texto se insere em um contexto, social e historicamente bem delimitado. Estudar (com) as mídias é também compreender como estes textos dialogam com uma realidade que os transcende. É ser capaz de saber articular sua produção à lógica cultural, econômica e política da sociedade que os produzem, recebem e ressignificam.

Se quisermos entender como se constitui a “cultura da mídia” (KELLNER, 2001) sob a qual estamos inseridos, precisamos estimular um olhar crítico que saiba se direcionar para múltiplos olhares e perspectivas. A análise de filmes em sala de aula, por exemplo, pode ser muito bem trabalhada neste sentido. E podemos fazer isso com qualquer tipo de narrativa e formato, não apenas com aqueles que supostamente teriam mais a nos ensinar, como é o caso dos documentários. Peguemos como exemplo filmes clássicos de ação, aparentemente despretensiosos e nada “educativos”, mas grandes sucessos de bilheteria e público, como a série “Rambo”. Um análise crítica desta obra - e de outras, que dialoguem com a mesma temática - poderia nos suscitar uma série de reflexões e debates, desde que inseridos em seu contexto histórico/social, político e cultural: como o filme trata a questão do nacionalismo, do militarismo, da política internacional, no contexto da Guerra Fria? Como os personagens “bons” (Estados Unidos) e “maus” (Vietnã) aparecem na história, legitimando uma série de estereótipos, crenças e visões de mundo? Indo além, é possível realizar com o filme uma discussão sobre gênero? De que forma Rambo é apresentado como um modelo de masculinidade, virilidade, em oposição ao universo feminino?

As narrativas midiáticas, portanto, incorporam discursos e posicionamentos ideológicos através de uma gama de representações que muitas vezes induzem os indivíduos, direta ou indiretamente, a construir suas opiniões e valores sobre a realidade em que vivem. Ensinar a criticar esses posicionamentos é justamente o papel de uma educação com as mídias. É saber que onde há poder e dominação há disputa e possíveis resistências. Um filme pode falar sobre muita coisa, mas é possível também entender o que ele diz justamente pelo que não mostra. Isso significa que não há leitura de um texto fora do seu contexto de produção e da esfera de recepção que o ressignifica. É necessário inseri-lo no debate de sua época, e parece não haver lugar para se fazer isso de maneira mais eficiente do que no ambiente de partilha e troca comum proporcionado pela escola. Dito de outro modo, para finalizar: é possível sim ensinar com um filme, usando-o como instrumento didático e pedagógico. Mas para fazermos isso de forma crítica e significativa precisamos também ensinar sobre o filme, dentro do contexto em que nos propomos a trabalhar. Novamente, é de fundamental importância que saibamos ver as mídias para além de um mero veículo de informação, ou simples “conteúdo” a ser aplicado em sala, mas como uma prática que engloba um processo mais amplo de comunicação social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A COMUNICAÇÃO EM SALA DE AULA E FORA DELA, O PORQUÊ DE SE ESTUDAR (COM) AS MÍDAIS

Por que estudar (com) as mídias? Encerramos nossa discussão com a mesma pergunta que orientou todo o percurso deste trabalho para reforçar seu objetivo mais contundente: não há como escaparmos à mídia porquê ela não diz respeito apenas aos meios e às tecnologias de comunicação, mas a uma prática social intrínseca aos atos de construção e reconstrução de sentido. As mídias nos (in)formam, nos afetam, nos significam algo, pois as utilizamos comumente na partilha com o outro. A mídia, no sentido que aqui procuramos explorar, não pode ser vista como mero canal reprodutor de informação, mas como algo que potencializada a comunicação, o comum em ação (SODRÉ, 2014). O produto (2) da mídia, entendido sem o seu contexto de produção (1) e recepção (3), conforme exploramos acima, não produz nada de significativo para a experiência humana, além da mera informação deslocada de seu contexto.

A proposta deste trabalho foi a de orientar, ainda que de forma breve e bastante pontual, alguns olhares sobre como podemos estudar (com) as mídias no universo pedagógico e escolar. Direcionar uma leitura crítica, teórica, com breves orientações práticas, sobre a importância de se pensar a comunicação como uma experiência fundamental de emancipação humana. Pensar a comunicação no ambiente escolar a partir das mídias se mostra cada vez mais urgente e necessário, ainda mais se levarmos em conta o delicado cenário sob o qual estamos imersos. Um cenário onde nunca estivemos tão conectados, produzindo e consumindo tanta informação, mas que, ao mesmo tempo, vemos proliferar discursos de ódio, intolerância política, racial, religiosa e de gênero das mais diversas ordens. Onde, portanto, parece nos faltar cada vez mais diálogo e uma comunicação solidária e compreensiva para com o outro. É papel de nós professores, como cidadãos críticos e conscientes, dentro e fora da sala de aula, estarmos atentos à centralidade e à dinâmica das mídias, para assim melhor entendermos o que somos, o que queremos e como nos constituímos enquanto sujeitos em sociedade.

REFERÊNCIAS

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2IBGE (2020). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. Acesso à internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101705_informativo.pdf Acesso em: 02 de setembro de 2020.

3Com relação ao universo dos jovens e o contexto educacional, sugere-se consultar a pesquisa “Juventudes e conexões”, publicada pela Fundação Telefônica Vivo (2018), em parceria com a “Rede Conhecimento Social” e o “IBOPE Inteligência”. Disponível em: http://fundacaotelefonicavivo.org.br/wp-content/uploads/pdfs/juventudes-e-conexoes-3edicao-completa.pdf Acesso em: 02 de setembro de 2020.

4BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018, p. 9. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf Acesso em: 03 de setembro de 2020.

1Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Goiás (UFG). Goiânia, GO. Professor Colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e Humanas (PPGCISH) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Mossoró, RN. <andrebonsanto@gmail.com>

Recebido: 29 de Outubro de 2020; Aceito: 17 de Agosto de 2021

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