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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 03-Fev-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469838419 

Artigos

LITERATURA INDÍGENA: ENTRE MEMÓRIAS1

LITERATURA INDÍGENA: ENTRE RECUERDOS

ELIANA MÁRCIA DOS SANTOS CARVALHO1 
http://orcid.org/0000-0002-4957-1176

RENATA LOURENÇO DOS SANTOS2 
http://orcid.org/0000-0003-4182-3452

1 Universidade do Estado da Bahia-UNEB. Caetité, Bahia (BA), Brasil.

2 Universidade do Estado da Bahia-UNEB. Seabra, Bahia (BA), Brasil.


RESUMO:

O presente texto retrata escritores indígenas brasileiros e sua caminhada para se efetivarem enquanto produtores de conteúdo. A pesquisa se deu por meio de uma revisão bibliográfica e audiovisual sobre os movimentos indígenas, sociais, políticos e culturais, especialmente com artigos e textos escritos por estes povos. Esse percurso foi fundamental para traçar um histórico das comunidades, associando o caminho de garantia de direitos ao desenvolvimento da literatura indígena. Trazendo as vozes dos indígenas para confirmar os fatos, o artigo demonstra que tal literatura pode ser desenvolvida de forma coletiva ou pessoal, e que independente disso sempre faz referência a todo povo, a toda ancestralidade. Também se justifica como escritos da memória oral onde descrevem suas vivências entre indígenas e brancos, na busca pelo conhecimento e pelo reconhecimento.

Palavras-chave: literatura; indígena; Brasil

RESUMEN:

El presente texto retrata a los escritores indígenas brasileños y su recorrido para se efectivarem como productores de contenido. La investigación se realizó a través de una revisión bibliográfica y audiovisual sobre los movimientos sociales, políticos y culturales indígenas, especialmente con artículos y textos escritos por estos pueblos. Este camino fue fundamental para traer una historia de comunidads que asocian el camino de la garantía de derechos al desarrollo de la literatura indígena. Trayendo las voces indígenas para confirmar los hechos, el artículo demuestra que dicha literatura se puede desarrollar de manera colectiva o personal, y que independientemente de eso, siempre se refiere a todo el pueblo, a todas ancestralidad. También se justifica como escritos de memoria oral, donde describen sus vivencias entre indios y hombres blancos, en búsqueda del conocimiento y reconocimiento.

Palabras clave: literatura; indígena; Brasil

ABSTRACT:

This text shows Brazilian indigenous writers and their journey to become effective as content producers. The research took place through a bibliographic and audiovisual review on indigenous social, political and cultural movements, especially with articles and texts written by these people. This academic path was fundamental in tracing a history of the communities associating the way of guaranteeing rights to the development of indigenous literature. When bringing the voices of indigenous people to confirm the facts, the article demonstrates that such literature can be developed collectively or personally, and regardless of that, it always refers to every people, to every ancestry. This research is also justified as oral memory writings where they describe their experiences between Indians and white man, searching for knowledge and recognition.

Keywords: literature; indegenous; Brazil

INTRODUÇÃO - DO SOCIAL À LITERATURA

As décadas de 70 e 80 do século XX foram marcantes para os povos indígenas do Brasil, pois tem início um processo de consciência política, de organização social e de luta para a garantia de seus direitos. O movimento indígena brasileiro começou como um esforço coletivo entre lideranças, povos e organizações que colocaram em pauta uma agenda de luta em comum pela terra, pela saúde, pela educação, pela cultura e por outros direitos fundamentais. Nos anos de 1970 se localiza o chamado “Indigenismo Não Governamental”, quando as universidades, organizações civis e a Igreja Católica (pastoral indígena e do Conselho Indigenista Missionário - CIMI1) se tornam atores aliados dos povos. Com o surgimento de várias organizações não governamentais (ONGs) de apoio aos índios2, quebra-se o monopólio do Estado e das velhas missões religiosas como tutores ou salvadores das comunidades indígenas, que vai, de pouco a pouco, colocando o índio como protagonista de sua história (BANIWA, 2006).

Logo depois, a década de 80, “foi um período extremamente rico, principalmente no que diz respeito às mobilizações indígenas”, incentivadas pelas organizações não governamentais que apoiavam encontros e assembleias entre os povos (BANIWA, 2006, p.73). Tudo em favor dos direitos indígenas, numa luta que culminou na conquista dos artigos 231 e 232 da Constituição de 1988. Consolida-se então a terceira etapa do movimento indígena, o Indigenismo Governamental Contemporâneo, que ampliou o vínculo dos governos com os povos indígenas, especialmente na criação de setores específicos, antes exclusivos da FUNAI, como a saúde, transferida para Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) ou a Educação Escolar Indígena, que ficou sob responsabilidade do Ministério da Educação (MEC).

Após estes 20 anos (décadas de 70 e 80) tornam-se de maior alcance e mais efetivas as intervenções do Estado, das universidades, das ONGs e/ou associações em aldeias indígenas, o fluxo do contato e do convívio entre indígenas e não-indígenas também cresce, promovendo assim o conhecimento e o acesso às tecnologias de comunicação pelos povos. Desde então puderam conhecer as ferramentas, aprender a usá-las e dar forma e registros às suas vivências, seja por meio de textos escritos, gravação de sons ou de filmes.

Neste texto observa-se a história da produção literária, realizada fora e dentro de aldeias brasileiras, que une uma tecnologia e um código criados pelos brancos, ao seu saber ancestral, num registro escrito da memória oral. Os textos, narrativas, poesias, contos indígenas aparecem como meios de lembranças das suas culturas étnicas, do contato imersivo e violento com os brancos, ou da autodeterminação dos povos, assuntos do passado e do presente registrados em palavras, acessíveis tanto para o público indígena, quanto para os demais. Para realizar esse percurso de construção teórico textual, foi basilar uma revisão bibliográfica sobre o tema principal, literatura indígena ou nativa, e outros que o complementam, como o movimento político e a literatura indianista, citando aqui Ailton Krenak e Denilson Baniwa. Boa parte da busca se deu em sites acadêmicos na internet e bibliotecas locais. Com uma vasta lista de fontes e referências, a leitura flutuante foi fundamental para a seleção final de textos, que optou em aprofundar nos conceitos centrais cunhado pelos próprios povos e suas recentes teorias, a exemplo de Graça Gráuna, Daniel Munduruku, Cacique Payaya e Olívio Jekupé.

Movimentos indígenas

Para entender como o contato entre indígenas e não-indígenas, ou brancos, chega até a produção literária, é preciso revisar um caminho histórico de trocas culturais e lutas vivenciadas por estes povos brasileiros, num constante reivindicar por direitos. Sem esquecer todo o processo violento de colonização, de escravidão, de missão nas aldeias, bem como o constante processo de organização e manutenção dos grupos3, aqui se atém especialmente do final do século XX para diante, momento que reúne acontecimentos importantes para o acesso indígena aos direitos fundamentais e à tecnologia, revendo alguns marcos decisivos das relações socioeconômico-cultural entre os povos originários e os brancos, desembocando num contato intenso e produtivo, principalmente para a identidade e para a produção literária nativa.

Primeiramente destaca-se o Estatuto do Índio, o principal documento normativo da época para os povos originários, promulgado como Lei 6.001/1973. Tal documento regulamenta sobre as relações do Estado e da sociedade civil com os indígenas, seguindo os princípios integracionistas que regiam o velho Código Civil Brasileiro, de 1916. A norma trazia em seu artigo primeiro o seguinte: “Esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”, que em linhas gerais tratava os índios como relativamente incapazes, devendo, portanto, serem tutelados por algum órgão indigenista estatal até serem integrados à comunhão nacional, reduzindo a noção de preservação apenas aos povos não integrados4 e considerando a condição indígena como algo a ser brevemente abandonado. (BRASIL, 1973).

Após o Estatuto do Índio, as reflexões teóricas sobre os indígenas brasileiros marcaram o período final da década de 70 do século XX como o começo de uma estruturação política dos povos, quebrando o silêncio institucionalizado. A análise de Viveiros de Castro, prefaciando o livro Encontros com Ailton Krenak (2015), aponta o fracasso do projeto de emancipação política proposto pela ditadura como fator pujante para as conquistas sócio, políticas e culturais dos povos indígenas. Ailton Krenak, mobilizador e coordenador da União das Nações Indígenas - UNI à época, se refere ao momento de 70 como possibilidade real de representação ao nível nacional dos povos indígenas, quando “começaram a se encontrar, começaram a ver que tinham problemas comuns e que podiam encaminhar algumas soluções juntos” (KRENAK, 2015, p.25).

Neste contexto surge a UNI, uma nova ferramenta para a efetiva organização nacional dos povos indígenas, entidade que não se definia como partido político, nem clube, nem de interesses restritos, como afirma Krenak (2015, p.27), “A União das Nações Indígenas é uma forma institucional de representação, que a gente encontrou para reunir as diferentes nações indígenas e defender organizadamente seus interesses e necessidades”.

A década de 80 foi de grande mobilização indígena no sentido de encontros e reuniões para organizar e encaminhar a UNI. Registram-se plenárias com presença de mais de 3 etnias nos anos de 1979, 1981, 1983. Em abril de 1987 os povos realizaram uma ação tida como prioridade, agrupando mais de 100 povos indígenas em Brasília para entregar a Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição, que contou 45.000 assinaturas. No filme “Índio, Cidadão?”, com direção de Rodriguarani Kaiowá, Ailton Krenak descreve a sensação desse dia, sobre a forte presença dos povos que vieram direto de suas aldeias para o Congresso, criando um “estranhamento muito grande, o pessoal entrando aqui (Assembleia) só com seus adornos, em alguns casos sem a calça e a camisa, usando alguma indumentária própria de cada povo” (ÍNDIO..., 2014, 5′ 02″).

A proposta apresentada exigia pontos fundamentais para a sobrevivência e para a demarcação das terras indígenas, para o reconhecimento da sua organização social, seus usos, costumes, línguas, tradições e direitos originários, ao direito ao usufruto das riquezas do solo como condição para economia interna das comunidades indígenas, incluindo um projeto de vida. Os povos ainda exigiram a alteração de dois artigos da Constituição, um que considerava o índio como incapaz (Lei 6.001), e o outro que tirava o direito dos índios aculturados. Sobre essa lei, Krenak critica o então presidente da Funai, Romero Jucá5, 1987, que, ao invés de apoiar o discurso em defesa das nações, acabou criando condições para os congressistas darem tratamento diferenciado aos povos indígenas que passaram por aculturação, ou seja, separando

aqueles povos indígenas que já tinham reconhecimento dos símbolos nacionais, tipo a bandeira do Brasil, falavam alguma coisa de português, tinham contato desde a década de 50, 60 com a sociedade brasileira [...] a ideia deles (congressistas) é que essa parte da nossa população não teria direito sequer a demarcação de seus territórios porque eles não eram mais índios. (ÍNDIO..., 2014, 7′ 40″).

Sobre a promulgação da Constituição em 1988, Baniwa (2006) reitera ter sido uma grande conquista para os povos indígenas, pois dedicou um capítulo (VIII) para declarar, pela primeira vez, os direitos civis das comunidades indígenas. Esse fato “impulsionou e consolidou o processo de surgimento e a existência legal das organizações indígenas, […] ao reconhecer a capacidade civil dos índios e de suas organizações”. A decisão mudou o valor cultural das comunidades, com uma sólida valorização interna de costumes, de rituais e de reafirmação das identidades étnicas. (BANIWA, 2006, p.77).

Os direitos adquiridos pela Constituição de 88 ajudaram a manter os povos indígenas vivos e, de certa forma, foi um impulso no aumento das populações indígenas pelo Brasil, bem como no retorno de algumas etnias quase extintas, num contexto de valoração das culturas e afirmação de identidades.

Nos últimos 30 anos (1990 a 2010) multiplicaram-se organizações indígenas formais no Brasil, assumindo cada vez mais ações que o Estado não efetiva, fazendo com que a sociedade civil organizada paute a causa indígena em diversos segmentos, especialmente no desenvolvimento etno-sustentável e na autogestão territorial. Consolidam-se também os espaços de representação em instituições públicas, com movimentação de verba governamental e cargos na administração pública, o que trouxe “novas conquistas, mas também novos desafios” para os povos indígenas (BANIWA, 2006, p.79).

As lutas para juntar povos de todo o Brasil, os debates sobre a Constituinte, a conquista de direitos e o surgimento de políticas públicas definidas para o povo indígena são alguns dos pontos responsáveis pela efervescência étnica nesse século, bem como pela autoafirmação como índios, ou etnogênese, como afirmou Baniwa (2006). O processo de aceitação da etnia possibilita a recuperação de um bem imaterial e vital para as comunidades, a autoestima dos povos indígenas, algo perdido ao longo de séculos de dominação colonial.

INDÍGENAS E A LITERATURA

Antes, literatura

Muitas são as definições e modificações de conceitos sobre a literatura desde Platão, há 400 anos a.C., um dos primeiros pensadores a tentar compreender o processo de criação literária. Estudos demonstram que já na origem dos registros humanos, por meio da escrita cuneiforme ou hieróglifos egípcios, as narrativas eram presentes e desenhadas em paredes e/ou placas de madeira ou argila, registravam histórias vivenciadas pelos povos para representar suas oralidades nos desenhos e/ou escritos. Assim, a narração está presente desde que o humano também está presente no mundo e a partir delas vai-se caminhando para o que hoje conhecemos como literatura.

Ferreira (2001, p.429) define literatura como “1. Arte de compor trabalhos artísticos em prosa ou verso. 2. conjunto de trabalhos literários de um país ou de uma época.” tratando da produção artística escrita na totalidade. Barthes chama atenção para o caráter educativo e formador da literatura, que nem sempre é percebido, ao afirmar que “a literatura assume muitos saberes… a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a vida nos importa… a literatura não diz que sabe alguma coisa, mas que sabe de alguma coisa” (1987, p.19).

A literatura é histórica e viva, se move, tanto no conteúdo como na linguagem, mexendo, por consequência, em suas características. Para Coelho,

A literatura é uma linguagem específica que, como toda a linguagem, expressa uma determinada experiência humana, e dificilmente poderá ser definida com exatidão. Cada época compreendeu e produziu literatura a seu modo. Conhecer esse “modo” é, sem dúvida, conhecer a singularidade de cada momento da longa marcha da humanidade em sua constante evolução. (2000, p.27).

Portanto, neste texto, entende-se como literatura um conjunto de produções escritas que se elaboram enquanto linguagem na constituição de textos de ficção ou documental.

Literatura indianista

Aqui se faz importante situar um movimento que por muito tempo ocupou um pretenso lugar de literatura indígena, com poesias e ficções que buscavam revelar ao Brasil um personagem presente no interior do país, um índio de traços caricatos, idealizado e distante dos autores, todos homens brancos e letrados. A escrita por olhos e mãos fora do contexto,- literatura indianista- tem como exemplos clássicos brasileiros a poesia de Gonçalves Dias (1823-1864) ou os romances de José de Alencar (1829-1877), ambos tendo o indígena como personagem principal e sob aspectos diferentes, descritos abaixo pela perspectiva da pesquisadora Amanda Lima,

Para o primeiro, o índio surgia como um ser intimamente ligado à natureza, possuidor de uma liberdade e tranquilidade física e espiritual, oposto, dessa maneira, à ambição e aos desejos que caracterizavam o homem civilizado. O mundo indígena, para Gonçalves Dias, evocava um universo que, apesar de todas suas guerras, ou melhor, justamente por causa delas e dos rituais tão característicos dos ameríndios, permanecia em perfeita harmonia até a chegada do europeu. Esta é a grande inovação desse escritor: retirar o caráter animalístico que os missionários implicaram aos índios e a alguns de seus rituais, como o da antropofagia, que, depois de séculos de representação deturpada, tem em “I-Juca Pirama” seu significado reabilitado como prática coerente e simbólica. José de Alencar, por sua vez, tinha um projeto que ia mais além, seguindo a linha de uma política integracionista, propunha criar um imaginário nacional mestiço, no qual o indígena se colocava como um dos elementos fundadores da civilização brasileira. Pode-se dizer que foi a partir dele que a sociedade brasileira interiorizou o “mito” da miscigenação como raiz da formação do povo brasileiro. (LIMA, 2012, p.26).

Este período indianista é anterior à trajetória da movimentação política e de produção literária indígena descrita no início deste texto, e marca a consagração de estereótipos e preconceitos para com os povos tradicionais propagados e reproduzidos até hoje, por isso essa contextualização e nomeação. A imagem deste povo revelada pela lente nesse momento era idealizada segundo seus autores, contornando personagens simbólicos, fortes e bonitos, que estariam prestes a ser incorporados à sociedade, transitando entre o ingênuo ou o ignorante. De acordo Lima, a figura real dos indígenas, marginalizados e excluídos, não condiz que a descrição literária romântica da época indianista, pois “enquanto figurava na literatura como o bom selvagem, na realidade lutava ainda por suas terras, por manter sua língua, seus costumes e sua cultura”. (2012, p. 26).

Literatura indígena

A literatura indígena são os textos escritos, ilustrados e idealizados pelos próprios indígenas, de dentro de suas vivências, sejam elas nos espaços rurais ou urbanos, e sejam individualmente ou de autoria coletiva, em sua maioria estimulados e iniciados como forma de registro das histórias orais dos avós, avôs, anciões e conhecedores da história local onde vivem os autores dessa literatura (JEKUPÉ, 2009; GRAÚNA, 2013; MUNDURUKU, 2021).

Acompanhando todo o movimento social e político indígena no Brasil, os impressos indígenas começaram a ser publicados no Brasil no final dos anos 1970. Eliane Potiguara, a primeira representante pública feminina, expôs o poema “Identidade indígena”, em 1975, como uma maneira de registrar sua trajetória e de sua família. Já o impresso pioneiro desta literatura foi em 1994 com a publicação do Todas as vezes que dissemos adeus de Kaká Werá Jekupé. O livro de Kaká Werá foi uma inspiração para as próximas publicações e traz relatos do autor sobre a suas vivências entre os dois mundos, o mundo da aldeia e o mundo branco.

Paralelo ao movimento de autoria individual, a publicação coletiva seguia rapidamente, tendo como grande estímulo tornar pública as pesquisas realizadas por professores indígenas em formação6, reforçado pela possibilidade dos livros tornarem material didático para as escolas. Também eram material de divulgação entre os povos e a sociedade externa, à época mais alheio sobre os conhecimentos e identidades tradicionais das aldeias, pontuando mais uma vez a importância dessa linha editorial. Entrevistas e registros eram realizados pelos professores indígenas em suas comunidades, com as pessoas de referência das histórias e saberes locais, que normalmente envolvem os anciões e anciãs das aldeias: quem conhece as histórias e quem guarda a memória do povo.

Com ajuda desses narradores se inicia a escrita da história de alguns povos, numa transcrição possível da vasta oralidade presente. O papel da escola foi um pilar dessa produção, por meio da tecnologia que não dominavam e assim, buscaram e registraram uma memória oral, como complementa o depoimento de Elisa Pankararu de Pernambuco, para o livro tempo de Escrita:

Do ponto de vista histórico, as sociedades indígenas são ágrafas, de tradição oral. De forma que a escrita é um elemento pós-contato, e que como consequência vem (sic) à escola, ambas junto ao colonizador. No contexto de contato que vivemos, a escrita se faz necessária nas sociedades indígenas, não como algo que venha a substituir a oralidade, mas como registro desta, como material didático, como afirmação e valorização da nossa cultura (PANKARARU, apud GRUPIONI, 2008, p. 12).

Um destaque na consolidação da escrita indígena foi a criação do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (NEArIn), em 2004, ligado ao Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI). Dentre os escritores presentes na criação do NEArIn, estavam Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Graça Graúna, Edson Kayapó, Cristino Wapichana e Olívio Jekupé. Além desses presentes no encontro em 2004, pode-se referendar outros escritores e escritoras indígenas de grande relevância7: Kaká Werá Jekupé, Lia Minapoty, Márcia Wayna Kambeba, Cacique Juvenal Payayá, Ailton Krenak, Glicélia Tupinambá, Julie Dorrico, Auritha Tabajara, Yguarê Yamã, Vãngri Kaingáng, Aline Rochedo, Denizia Kawani, Lúcia Tukuju, Nankupé Tupinambá, Telma Tremembé, entre muitos outros.

Em 2008, a promulgação da lei n.º 11.645 de 2008, que regulamenta a obrigatoriedade do Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Indígena em todos os níveis de ensino nas escolas públicas e particulares, foi mais um estímulo à escrita indígena. O movimento político e social ainda se faz necessário para haver o reconhecimento dos indígenas como sujeitos históricos e com uma responsabilidade na construção social, econômica e histórica do Brasil, como nos que diz o parágrafo 1 do artigo 26-A da lei 11.645:

§ 1.º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).

Desde então, os títulos, os autores e as vendas de literatura indígena vêm crescendo, a exemplo recente dos livros Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (2019) que entrou para a lista Nielsen Publish News ocupando o 15.º lugar da categoria Não Ficção mundial e foi o terceiro mais vendido na Feira Literária de Paraty - FLIP, em 2019. Ainda o livro A Queda do Céu, de Bruce Albert em coautoria com o xamã Davi Kopenawa (2010) que recebeu, também em 2019, o Prêmio Right Livelihood, o “Nobel” alternativo, por sua luta na defesa da floresta e da biodiversidade. Hoje essa linha editorial já soma mais de 550 títulos com diversas etnias nas autorias. Outro indicativo desse aumento são as editoras, cada vez mais abertas e com oportunidades de publicação, a exemplo do projeto “Palavra de Índio”, um selo editorial lançado por Daniel Munduruku, a Nova Tribo, de Kaka Werá Jekupé, a Coleção Vozes Ancestrais, organizada por Daniel Munduruku, além do Instituto Uka, organizado por Cristino Wapishana e Daniel Munduruku, todas promovendo a publicação e divulgação dos trabalhos indígenas pelo Brasil.

O reconhecimento da literatura indígena é uma afirmação cultural feita de dentro das aldeias e que sai ocupando espaços editoriais fora dela. Para o autor Kaká Werá Jekupé (1994) durante muito tempo a cultura indígena foi conhecida por meio da “voz” do outro, sejam de antropólogos ou cientistas sociais, sempre por meio do olhar estrangeiro, e que pela primeira vez, através do seu livro, o universo Guarani foi apresentado de perspectiva Guarani, em seu nome, por sua voz. Esse também é o pensamento do autor Olívio Jekupé, quando questiona:

[...] faz tantos séculos que o Brasil foi dominado pelos jurua kuery, não índios em guarani, e desde aquela época, tudo o que se fala sobre nossos parentes é escrito por eles. Eu não via isso como algo interessante, porque nós temos que contar nossas histórias para nossos filhos e se tiver que ser escrita, por que não pelo próprio índio? (JEKUPÉ, 2009, p. 11).

O texto escrito, apesar de ser uma tecnologia do branco, aparece no contexto indígena como ferramenta de resistência e de memória, se tornando uma ação de reflexão e de ascensão social. Para a pesquisadora Graça Graúna, a literatura indígena atual,

[...] é um lugar de sobrevivência, uma variante do épico tecido pela oralidade; um lugar de confluência de vozes silenciadas e exiladas (escritas), ao longo dos mais de 500 anos de colonização. Enraizada nas origens, a literatura indígena contemporânea vem se preservando na auto-história de seus autores e autoras e na recepção de um público-leitor diferenciado, isto é, uma minoria que semeia outras leituras possíveis no universo de poemas e prosas autóctones. (GRAÚNA, 2013, p. 15).

O mesmo ocorre com os textos do escritor Juvenal Payayá, o Cacique da aldeia Payayá no centro da Chapada Diamantina, Bahia, que acredita na força e no poder da sua literatura enquanto uma das primeiras ferramentas no processo de evolução e identidade dos povos, como descreve abaixo,

Nós fazemos literatura desde que o mundo é mundo (risos). Eu acho que sem a nossa literatura, a dos anciãos que não é o livro, é a sabedoria dada pelos encantados, a reza, nossas danças, nossas festas, pinturas, nossa cultura e tudo. Porque, você sabe, o livro, o escrito, isso só veio depois. Sem tudo isso nós não teríamos reconhecimento, e não é apenas o reconhecimento teórico, é o reconhecimento de você solicitar uma política; é as pessoas lembrarem que o povo Payayá, além de povo indígena, tem também o seu setor, o seu cacique, a sua organização, e que leva as coisas a sério. Nós, o povo Payayá, estamos desenvolvendo nossos projetos, e entre as coisas sérias também apontamos a nossa literatura. Então eu chego a dizer o seguinte: eu acho que a literatura, o livro (o escrito), foi o elemento, o elo que deu, digamos, visibilidade aos povos do mundo. E essa pergunta sua é chave, pois a literatura abre caminhos; eu acho que a literatura que a gente faz, a minha literatura, a que eu faço, ela tem um peso dentro do nosso povo, no nosso nome, isso sem dúvida nenhuma, e eu acredito que ela irá criar outros que irão continuar isso. (PAYAYÁ, 2015, Apud SANTOS, 2016, p.30 e 31).

Complementando esse pensamento em torno da escrita indígena e sua importância para os povos originários, o professor Edson Kayapó afirma em trecho gravado para o canal de YouTube do Daniel Munduruku que:

A literatura indígena tem hoje um papel fundamental no diálogo com essa constituição cidadã no sentido de pensar na construção de outros instrumentos, por exemplo, de educação. Os livros produzidos pelas editoras brasileiras e pelos não índios não servem para o nosso povo porque ela está totalmente desalinhada com nosso jeito de ser. O que serve então para formar, do ponto de vista do material didático, para a formação dos nossos povos? Obviamente que é uma produção que quem tem autoridade e legitimidade para fazer produzir serão os nossos próprios escritores indígenas. Então penso que nesse sentido a uma afinidade muito grande entre a literatura indígena e a formação do guerreiro indígena, essa é uma perspectiva, mas existe uma outra perspectiva que é muito interessante que é de pensar que a literatura indígena também é um instrumento de produção de material para formação do não índio em relação à história e cultura indígena, afinal de contas é necessário que a sociedade brasileira tenha bastante clareza do que que é isso que eles estão apelidando de índio[...]a literatura indígena certamente tem e terá essa função de informar a sociedade brasileira sobre esse jeito de ser e essa diversidade indígena, essa riqueza grande. (PROFESSOR..., 2015, 1′ 03″)8.

Para o professor Edson Kayapó a literatura indígena é tão necessária que a partir dela virão novos guerreiros, novos indígenas, novas formas de resistência. Ele associa essa literatura diretamente ao ambiente escolar, como um ponto de partida para a escrita.

A história do educador e de muitos autores coincidem e demonstram possíveis gatilhos para a escrita indígena. Muitos deles cresceram em contato com o mundo não indígena, frequentaram a escola formal para serem alfabetizados pelos brancos, contestados em sua legitimidade indígena. Todos os autores pesquisados iniciam os escritos fazendo relatos de suas experiências de vida, nos ambientes que estão. Por meio desse estudo com os brancos, do aprendizado e apropriação de tecnologias não indígenas, foi possível fazer da escrita um instrumento de identidade e valorização da história indígena.

Outra característica é que podem ser produzidos individual ou coletivamente. Segundo Graúna (2013) o período clássico da produção literária nativa deu-se como registro da tradição oral, portanto uma produção coletiva, capaz de superar os tempos com as narrativas míticas. Lima acredita ser complicado pensar autoria em escritas indígenas, pois, “muitas vezes, a história ou o conhecimento que está sendo escrito pertence a todo um povo e, por isso, vemos vários livros cuja função autor não é preenchida por uma pessoa, e sim por um povo - como povo Krenak, povo Maxakali.” (2012, p.41).

A palavra pode ser uma arma, a escrita pode ser um ato político. E alguns povos estão usando, a palavra e a escrita, como formas de autoexpressão frente a invisibilidade dada as comunidades indígenas, seja como preservação cultural dos grupos, ou como um cuidado coletivo com toda a nação.

O texto Nativo

Foi o escritor Olívio Jekupé (2006), que trouxe esse termo para o cenário atual da literatura indígena, como explica em transmissão ao vivo pelo YouTube:

Quando eu criei esse termo chamado literatura nativa, há mais ou menos uns 20 anos atrás, eu criei esse termo literatura nativa e eu recebo muita crítica ainda porque muitas pessoas não entendem o que eu falo [...] então dentro da aldeia a gente tem uma vivência guarani, então quando nós índios escrevemos um texto, as crianças nossas ela passa uma infância que é falar, é viver a cultura, uma criança aqui ela fala só guarani. Ela não sabe o mundo aí fora, quando uma criança nossa vai escrever uma história hoje, porque antigamente e hoje também, a gente continua com a história oral, mas a criança aprendeu a escrever dentro da aldeia hoje, temos escolas. Quando uma criança nossa vai escrever, ela escreve no pensamento guarani. Então pra mim, quando eu falei há 20 atrás, que nós escrevemos literatura nativa eu não estava inventando, eu não estava mentindo, eu estou falando que nós indígenas escrevemos literatura nativa porque essa é a nossa forma de vida. José de Alencar ele escreveu essa literatura indígena que é falada, mas era uma ficção criada por ele, então é diferente, por isso que eu falo que nós indígenas escrevemos uma literatura nativa, que é a nossa vida, a nossa forma de viver [...] sempre teve escritor indígena, o escritor indígena é o contador de história, não é de agora nos anos 2000 que surgiu, o escritor indígena sempre teve...nós sabemos história milenar. (FLICHINHA..., 2020, 18′ 36″).

A literatura de Olívio Jekupé (2006) e seu conceito, literatura nativa, buscam defender uma causa comunitária e afirmar as identidades e pensamentos de um povo, de uma aldeia, estimulando que os próprios grupos de identidade tomem para si a autoria de suas memórias, a autoria de suas histórias, sem mediadores. Para o autor, além desse fortalecimento interno, com a literatura nativa pode-se promover a sociedade brasileira não indígena o conhecimento sobre estes povos, suas etnias, suas cosmologias e suas crenças. Num texto publicado em seu blog, Olívio Jekupé (2018) fala sobre a importância da literatura nativa para que as pessoas entendam melhor como se vive nas aldeias sob a perspectiva indígena, por meio dela as pessoas em geral poderão saber:

Como pensamos, porque não é só escrever sobre o índio que as pessoas irão entender, pois muitos livros já se escreveram há séculos, mas trouxeram mais preconceito contra nossos povos, por isso vamos conhecer a literatura nativa pra que as coisas possam ser mais compreendido (sic). (JEKUPÉ, 2018).

Para Jekupé (2006) a literatura nativa precisa ser mais valorizada, a fim de que os indígenas possam expressar o que pensam, o que querem, sem limitar a história a uma só realidade, seja romântica, exótica ou selvagem, mas nunca a real.

E então, literatura indígena ou nativa?

A proposta de Olívio em defender o termo nativo para a literatura feita, produzida, realizada de dentro das aldeias pelos indígenas, para as aldeias e/ou para os brancos, não difere do que tratam outros autores que usam e se definem como escritores de literatura indígena, ambos descrevem e falam do mesmo lugar, de uma mesma fonte e processo de escrita original. Sendo assim, aceita-se dizer que os textos de Graça Graúna, Eliane Potiguara, de Ailton Krenak, ou Olívio Jekupé compõem uma literatura indígena, ou nativa. Sendo assim, pode-se dizer que toda literatura indígena é uma literatura nativa, mas nem toda literatura nativa será necessariamente uma literatura indígena.

Daniel Munduruku, referência em literatura indígena brasileira, com mais de 50 livros publicados e 25 anos de carreira completos agora em 2021, reforça o coro que entende o brasileiro como nativo, preferindo assim usar o termo literatura indígena para a produção originária, afinal “a literatura brasileira é nativa, toda literatura brasileira é nativa, porque o brasileiro é nativo do Brasil, mas nem todo brasileiro é indígena.” Para o autor, nascer em São Paulo faz de alguém um nativo do Brasil, mas não um indígena, “mas um Guarany, ele mais que um nativo, ele é um indígena, ele é um originário.” (MUNDURUKU, 2021).

O termo nativo, por seu significado, imprime uma questão com o lugar de quem fala, com a origem do narrador. Segundo Ferreira (2001), nativo é um adjetivo para o “1. Que é natural; congênito. 2. Que nasce; que procede. 3. Não estrangeiro; nacional” ou ainda um substantivo masculino que define um “4. Indivíduo natural de uma terra, dum país; indígena, natural, nacional” (2001, p.481). Para ambas categorias gramaticais o sentido de nativo está ligado a ser natural de um lugar, ter consciência de onde é, não ser de fora.

A segunda definição, item 4, quando coloca o conceito numa trindade: indígena, natural, nacional, pode ajudar a entender porque nem toda literatura nativa é indígena. Se o nativo é o natural e o nacional, ele também pode ser o sertanejo, o quilombola, o geraizero, ou o indígena. Daniel Munduruku diz preferir o termo indígena a nativo como uma forma de marcar esse espaço “quando eu falo de literatura indígena eu to marcando um território, marcando um território que é de uma literatura escrita por gente originária, não gente nativa”(MUNDURUKU, 2021).

No prefácio do livro Nós: Uma antologia de literatura indígena, Maurício Negro escreve que o livro reúne histórias narradas por escritores indígenas, “legítimos herdeiros de diferentes etnias”. Logo mais adiante, Negro (2019, p.9) relaciona o indígena ao nativo, quando afirma que “os indígenas são aqueles que de fato pertencem ao lugar. Nativos, como dizem […] Índio, caipira, caboclo, caiçara, ribeirinho, quilombola, camponês, interiorano - cada qual sob sua cultura, línguas, costumes, tradições e territórios.” Portanto, os indígenas pertencem a um lugar, por isso, são nativos, bem como outras comunidades que pertencem a outros lugares. O termo indígena compreende exclusivamente o indígena, diante de suas variadas etnias presentes no território. O termo nativo compreende quem é natural de um lugar, portanto mais abrangente, em se tratando do Brasil.

Sendo assim, entende-se que esse termo, literatura nativa, cunhado por Jekupé (2006), é a mesma literatura indígena citada, e pode abarcar outras escritas também, não se limita somente a essa produção. Ao contrário da literatura indianista, aquela escrita por pessoas brancas, a indígena é uma legítima representante dos povos que as escreve, falando de dentro das suas vivências comunitárias. Já a literatura nativa surge da mesma vivência das aldeias, bem como dos quilombos ou do sertão, desde que escritas e contadas por povos nativos destes lugares.

CONCLUINDO, MAS SEM ACABAR

Agora, após séculos de saberes acumulados e também violentados, os povos indígenas do Brasil escrevem em suas línguas nativas e em português, o que escutam em suas aldeias, o que dizem suas memórias, falando de dentro da história. Publicam livros, declamam poesia, exibem seus filmes, fazem transmissões ao vivo nas redes sociais, atualizam os podcasts, se comunicam pelas rádios ou trocam informações nos sites que planejam em grupo. Números crescentes na produção literária e cultural indígena podem conferir novas possibilidades de realidade, tanto para os povos quanto para os não indígenas, numa chance de conhecer e de se aproximar da realidade histórica nacional.

A literatura nativa indígena pretende despertar no leitor interessado mais uma visão sobre seu país e também registrar suas memórias orais, suas experiências de vida para as próximas gerações. São escritas de um passado quase apagado da história, capaz de demonstrar comportamentos sociais, culturais, filosóficos, políticos, educacionais e ambientais que ultrapassam o presente, o futuro, ou até o conhecimento formal.

Num crescimento tanto de pessoas9 quanto de produção literária indígena no Brasil, a leitura/escrita se reforçam como base da luta dos povos pelos seus direitos, ou como uma armadilha nesta batalha. Para Daniel Munduruku,

[…] a literatura acabou caindo pra mim como um instrumento mesmo, eu aproveitei essa oportunidade da melhor maneira que pude, para refletir, para pensar, para mim mesmo sobretudo, mas depois para colocar isso como uma pequena armadilha para a sociedade brasileira, porque a sociedade brasileira precisa dessas armadilhas de vez em quando para ela poder se despertar um pouco, eu tenho usado muito a literatura com esse objetivo.” (MUNDURUKU, 2021)10.

Na mesma linha, Amanda Lima descreveu sobre a pesquisa em literatura indígena, como algo que ultrapassa questões das letras ou das editoras, e ao fazer essa leitura ela percebia que “era mais que um livro de história de índio. Era um ato político e bem definido de um povo que busca sua afirmação.”. Político em sua maneira de lidar com uma vivência específica e peculiar de cada povo registrado, com sua realidade “única e singular”, que deve e “pode ser entendido como uma arma importante na garantia de seus direitos” (2012, p.13, 49).

Por meio da leitura das palavras, pode-se perceber que a escrita indígena é ampla, como nas letras dos torés, nos traços pintados no corpo ou cestarias e tapeçarias com seus desenhos complexos. Ler é buscar compreender que tais conteúdos não abrangem só a cultura daquele povo como também seus planos de vida, suas contribuições para a ciência, sua cosmologia, seus inúmeros problemas/soluções cotidianos, é uma ferramenta de evolução.

Portanto, este estudo indica que pela literatura indígena pode-se conhecer ensinamentos antigos e presentes que auxiliam como viver hoje e a cuidar do futuro. Falar desta literatura não acaba nesse texto, nem no próximo, mas segue, como uma provocação para quem busca se aprofundar na história do Brasil, conhecer um pouco mais das culturas originárias e das culturas modernas, num olhar mais próximo das aldeias indígenas.

REFERÊNCIAS - Livros:

BANIWA, Gersem dos Santos Luciano. O Índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil de hoje. Brasília, DF: MEC; Unesco, 2006. [ Links ]

BARTHES, Roland. Aula. São Pulo: Cultrix, 1987. [ Links ]

COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil, teoria, analise, didática. São Paulo: Moderna, 2000. [ Links ]

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Minidicionário Século XXI Escolar: o minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. [ Links ]

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2013. [ Links ]

GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. Tempos de Escrita. Rio de Janeiro: Museu do Índio, 2008. [ Links ]

JEKUPÉ, Olívio. Ajuda do Saci. São Paulo, SP: DCL, 2006. [ Links ]

JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo, SP: Scortecci, 2009. [ Links ]

KRENAK, Ailton. Encontros. Org. Sergio Cohn. Rio de Janeiro: Azougue, 2015. [ Links ]

NEGRO, Maurício. Uma antologia de literatura indígena. Organização Maurício Negro. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019. [ Links ]

STADEN, Hans. Viagem ao Brasil. São Paulo: Martin Claret, 2006. [ Links ]

Teses e Dissertações:

LIMA, Amanda Machado Alves de. O livro indígena e suas múltiplas grafias. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, da FaLe/UFMG. Belo Horizonte, 2012. [ Links ]

SANTOS, Franciele Silva. Juvenal Payayá e a literatura de autoria indígena no Brasil. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em literatura e cultura da UFBA. Salvador, 2016. [ Links ]

Legislação:

BRASIL. Lei n.º 6001, de 19 de dezembro de 1973. Dispões sobre o Estatuto do Índio. Brasília, 1973. [ Links ]

BRASIL. Lei n.º 11.645, de 10 de marco de 2008. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, 2008. [ Links ]

Relatórios:

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Indígena Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. [ Links ]

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE. Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas. In Comissão Nacional da Verdade - relatório - volume II - textos temáticos - dezembro de 2014. Disponível em: <http://cnv.memoriasreveladas.gov.br>. [ Links ]

Palestra:

MUNDURUKU, Daniel. Aula proferida durante curso de modalidade online: O caráter educativo do movimento indígena brasileiro. São Paulo: Centro Cultural b_arco, 2021. [ Links ]

Sites:

JEKUPÉ, Olívio. Literatura nativa em andamento. Artigo publicado no blog do autor em 9 de agosto de 2018. Disponível em: <Disponível em: http://oliviojekupe.blogspot.com/2018/08/literatura-nativa-em-andamento.html?m=1 > Acesso em20/03/2021 [ Links ]

MUNKURUKU, Daniel. Usando a palavra certa pra doutor não reclamar - Mundurukando três. Artigo publicado no blog do autor Disponível em: <Disponível em: http://danielmunduruku.blogspot.com.br/p/cronicas-e-opinioes.html >. Acesso em:05/04/2021 [ Links ]

Filmes:

ÍNDIO, Cidadão?Direção: Rodriguarani Kaiowá Siqueira. Distrito Federal, Brasília: 7g Documenta, 2014. MP4. (52′ 04″), son., color., português. [ Links ]

Vídeos:

FLICHINHA: Infâncias e Literaturas nativas. TV Uneb Seabra. YouTube. 2020. 1h32min10s. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GpI8hwSZcj8&t=1897s >. Acesso em:20 de julho de 2020. [ Links ]

PROFESSOR Edson Kayapó e a importância da Literatura Indígena. Daniel Munduruku. YouTube. 2015. 4min27s. Disponível em: <Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sIQ5KFhF2dU&t=137s > Acesso em: 20 de julho de 2021. [ Links ]

1A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, instituiu em 1970 a pastoral indígena, que atuava na assistência às necessidades básicas; e ainda o CIMI, que tem um papel político de articulação a favor dos direitos indígenas. (BANIWA, 2006).

2Neste texto o termo índio é colocado no mesmo sentido dado por Luciano Baniwa (2006), que ressalta a denominação como uma identidade que une, articula e fortalece internamente os povos originários, não tem um sentido pejorativo, de apelido, dado pelos brancos.

3A existência do movimento indígena organizado remonta há tempos, como é o caso da Confederação dos Tamoios (1535) que enfrentou os portugueses, liderada pelo grande rei Konyan-Bébe ou Cunhambebe, chefe dos Tamoios, um grupo dos Tupinambá do litoral paulista (KRENAK, 2015; STADEN, 2006).

4“Índios não integrados: imagem inocente do índio, nus, só falam sua língua; Índios em vias de integração: mantêm características tribais intocadas, mas já se relaciona com os costumes brancos, com uso da bandeira e língua portuguesa; Índios integrados: que votam, que falam português, que tem carro ou celular, que assistem televisão.” (BRASIL, 1973).

5Romero Jucá foi presidente da FUNAI entre 1986 e 1988, durante o governo de José Sarney e segundo o relatório final da Comissão nacional da Verdade, este foi um período de inoperância e omissão do órgão para com os povos indígenas, com ampliação de pistas de pouso para garimpeiros e expulsão dos agentes de saúde do território, esta última ligada a morte de milhares de indígenas por gripes, malária, sarampo e coqueluche (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014).

6O projeto de formação de professores indígenas foi consolidado mediante a proposta de educação formal intercultural bilíngue entre as aldeias e só funcionaria com a presença indígena preparada para assumir as salas. As formações faziam os repasses do cronograma e conteúdos para os professores locais.(LIMA, 2012, p.30).

7Esses e outros autores são citados no site da livraria Maracá, que reúne publicações originárias e incentiva a produção e publicação desse conteúdo, ver mais em <https://www.livrariamaraca.com.br/escritores-indigenas/>

8Trecho retirado do vídeo do canal YouTube do Daniel Munduruku. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=sIQ5KFhF2dU&t=137s >. Acesso em 03/2020.

9Dados sobre o crescimento das populações indígenas apontam um número de 294.131 indíviduos no ano de 1991 e de 817.963 em 2010, data do último Censo realizado no Brasil. De acordo o Censo do IBGE confirma-se um crescimento de 11,9 % no referido período. (IBGE, 2012).

10Resposta de Daniel Munduruku concedida à pesquisadora Renata Lourenço durante curso online, 2021.

1Editora-Chefe: Suzana dos Santos Gomes; Editora Adjunta: Maria Gorete Neto

Recebido: 17 de Fevereiro de 2022; Aceito: 14 de Setembro de 2022

<ecarvalho@uneb.br>

<rlourenco@uneb.br>

Eliana Marcia dos Santos Carvalho - Coordenadora do projeto, na análise dos dados e revisão da escrita final.

Renata Lourenço dos Santos - Coleta de dados, análise dos dados e escrita do texto.

As autoras Eliana Marcia dos Santos Carvalho e Renata Lourenço dos Santos declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

Editora-Chefe: Suzana dos Santos Gomes; Editora Adjunta: Maria Gorete Neto

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