INTRODUÇÃO
O presente texto busca apresentar uma ação crítico-formativa de língua portuguesa articulada, de modo crítico-colaborativo junto com formadoras da Secretaria de Educação do Estado do Acre, doravante, SEE-AC, em 2019, na revisita aos conceitos dos gêneros discursivos, da sequência didática e dos multiletramentos. Todavia, antes de fazê-lo, consideramos necessário retomar algumas discussões relacionadas ao ensino de língua portuguesa e à formação de professores no Brasil para refletir quais fatores colaboram, de acordo com os índices apresentados pelos exames nacionais - Saeb; Prova Brasil; Enem - e exame internacional - PISA, para um sistema de ensino deficitário e insuficiente visando a atender as demandas dos educandos brasileiros.
Em continuidade, compreendemos que o ensino de língua portuguesa é orientado, em sintonia com os documentos oficiais, como Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) e Base Nacional Comum Curricular (BNCC), para uma concepção dialógica da linguagem, em processo de interlocução entre os falantes, realizado nas mais diferentes situações comunicativas, práticas sociais e em momentos específicos da história. Nessa perspectiva, buscamos uma intersecção entre os conceitos de gêneros discursivos (BAKHTIN, 2016), sequência didática (DOLZ, NOVERRAZ e SCHNEUWLY, 2004) e multiletramentos (NEW LONDON GROUP, 1996; COPE; KALANTZIS, 2000; 2013a; 2013b), no sentido de evidenciar que todas as atividades humanas encontram-se ligadas ao uso da linguagem (BAKHTIN, 2016) e, por seus usos e formas serem multiformes, faz-se necessário compreender sobre validade de tais conceitos como objetos de ensino-aprendizagem para os envolvidos no sistema educativo.
Na sequência, delineamos sobre a ação crítico-formativa, pensada a partir das proposições de Engeström (2011, p. 599-600) acerca das intervenções formativas, ao considerar o participante capaz de definir o objeto de estudo de acordo com o problema detectado pelo grupo, analisar os objetivos e os conceitos teóricos que emergem nas discussões para, na reflexão-na-ação e sobre-a-ação (SCHÖN, 2000), ressignificar a atividade educativa. Assim, na seção seguinte, a ação crítico-formativa forneceu mecanismos para analisarmos quais os sentidos e significados apresentados pelas formadoras da SEE-AC aos conceitos discutidos e, então, apresentamos as considerações finais.
ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA - INTERAÇÃO E DIÁLOGO
Pensar no ensino de língua portuguesa é debruçar-se sobre as linguagens que são multiformes e, quem sabe, infinitas. Todavia, convencionou-se, erroneamente, associar o ensino de português a tão-somente aprender a ler, a escrever as normas gramaticais, de modo descontextualizado, sem considerar as diversas práticas sociais, nas quais estamos inseridos. Nas últimas duas décadas diferentes teóricos (FARACO, 2016; BUNZEN, 2011; KOCH, 2000; SANTOS, 2000; ROJO, 2005; 2007) propõem repensar o que chamamos de ensino de português, pois as linguagens ocupam espaços diferenciados em nossas vidas sociais e utilizamos as linguagens em contextos, situações e tempos definidos no momento da enunciação.
Com o advento da globalização e das tecnologias de informação e comunicação (TDICs) mais do que nunca é preciso rever o ensino de língua portuguesa no campo das linguagens líquidas (SANTAELLA, 2007, p. 24), nas quais imagens, diagramas, sons, fotos deslizam uns para os outros, de modo que se sobrepõem, complementam-se, confraternizam, separam-se e entrecruzam-se, perdendo a estabilidade dos suportes antes considerados fixos.
Moita Lopes (2013), ao fazer uma leitura de Rampton (2006) e Chouliaraki e Fairclough (1999), argumenta que os processos sociais, culturais, políticos, econômicos, entre outros, devem ser compreendidos, na vida moderna, por meio das hibridizações dos mais variados tipos, da hipersemiotização e da superdiversidade, dos fluxos entre as fronteiras físicas e virtuais, de um mundo onde nada de relevante se faz sem discurso (MOITA LOPES, 2013).
Em face dessa realidade, o ensino de língua portuguesa, ao estar articulado com a “vida que se vive” (MARX e ENGELS, 2007), atua e age de modo ativo na rede das linguagens, no lugar de incertezas, em um mundo em constante transformação. Essas mudanças são significativas e solicitam uma nova compreensão sobre a linguagem em si mesma, em que temos que elucidar os aspectos de sentidos linguísticos que foram e ainda são negligenciados no contexto educativo.
O ensino da norma gramatical não faz mais sentido se estiver desconectado da vida humana. O ensino tradicional levanta questionamentos sobre a sua validade, em relação à pertinência social. A linguagem presentifica-se como multimodal, com o uso de recursos de texto escrito, desenho, vídeo, áudio, imagens e animação (DEMO, 2008), os quais se articulam para passar informação. Compreender como esses textos são produzidos, quais sentidos produzem, que ideologias perpassam, como são tecidos e ligados, para quais finalidades, com quais objetivos e para quem, são funções do ensino de língua portuguesa, que busca desenvolver um cidadão crítico, ciente do que acontece ao seu redor, capaz de intervir e transformar a sociedade em que vive.
Desse modo, preparar o educando para leituras e escritas - multimodais e multissemióticas - diversas, para utilizá-los de maneira coerente e coesa em contextos situados, nas mais diferentes esferas da atividade humana é uma das funções da educação. Acrescente-se que toda comunicação humana ocorre por meio dos gêneros discursivos, que carregam consigo tipos temáticos, composicionais e estilísticos de enunciados relativamente estáveis (BAKHTIN, 2016) que dão forma às nossas ações e intenções (BAZERMAN, 2011), de modo que ao envolver os participantes no processo educativo, pode gerar ações significativas e motivadoras.
Bakhtin (2016) afirma que a língua penetra na vida através dos enunciados concretos realizados e, através desses enunciados concretos, a vida penetra na língua. Assim, nesse dialogismo constante, na interação com o outro não livre de conflitos e tensões, torna-se fundamental compreender como as diferentes linguagens circulam nas diferentes esferas comunicativas e quais mecanismos são necessários para que o educando formule seu próprio repertório e adquira mobilidade para circular nesses ambientes. Ter essa concepção é fundamental para o ensino de língua portuguesa.
Dito isso, ao vivermos em uma sociedade superdiversa (VERTOVEC, 2007), dividida em grupos sociais que pleiteiam interesses divergentes, os discursos produzidos por esses membros servem como uma “arena de lutas” (VOLÓCHINOV, 2017) entre as vozes sociais, o que significa ser o lugar da contradição, da argumentação, pois a base dialética do discurso é a exposição de uma tese e sua refutação (FIORIN, 2016). Sendo assim, mobilizar espaços de ações crítico-formativas atua como terreno fértil para o ensino de língua portuguesa, desde que as questões abordadas considerem a natureza situacional, aberta às incertezas; deliberativa, que não se ancora nas fraquezas dos pontos de vistas conflitantes e, transformadora, que busca quebrar com hegemonias (MATEUS, 2016).
FORMAÇÃO DE FORMADORES DE LP - TENSÕES E EVOLUÇÕES
Tratar da formação de formadores de maneira integrada, flexível e progressiva foi um dos pontos apresentados na Lei 4.024/61, primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) e, ao longo do tempo, vem sendo rediscutida, revista e modificada a fim de atender aos mais variados contextos educativos presentes no Brasil. Alvo de severas críticas, o modelo de formação de formadores de língua portuguesa no Brasil passa por tensões e, aos poucos, evolui no intuito de tornar concreta algumas das ações solicitadas pelo MEC. Tensões porque se questiona o como sair de práticas tradicionais de ensino que insistem em permanecer nas salas de aula, como uma educação bancária e desconexa da vida dos educandos e, em evolução por, finalmente, compreendermos não ser mais possível desconsiderar esse movimento cada vez mais glocal (KUMARAVADIVELU, 2006) por qual todos nós passamos.
Quanto à formação de formadores podemos verificar o Plano Nacional de Formação Docente proposto pelo MEC e de fácil acesso no site que, a despeito dos inúmeros cortes sofridos na educação brasileira nos últimos cinco anos, indica algumas ações afirmativas, tais como: Formação no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa; ProInfantil; Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica - Parfor; Proinfo Integrado; e-Proinfo; Pró-letramento; Gestar II; Rede Nacional de Formação Continuada de Professores1. Não nos cabe, neste momento, discutir cada um deles, mas, assim como bem discutido por Nóvoa (2009) e demais estudiosos sobre formação docente (PIMENTA; GONÇALVES, 1995), (SEVERINO, 2011), (TARDIF, 2002), (SAVIANI, 1982) e (CANDAU, 1982), cabe-nos refletir como esses discursos e propostas tornaram-se pouco efetivas na educação brasileira.
Um dos dilemas presentes nos discursos sobre formação docente reside na questão da escola ainda não se encontrar apta a responder aos desafios impostos pela contemporaneidade. Não há como negar que o modelo escolar vigente, em muitos casos, substituiu a força do trabalho infantil, a rua e se tornou o lócus de interação, socialização e de formação. Entretanto, a escola como a conhecemos está em crise. Nóvoa (2019) apresenta que, nos próximos 20 ou 30 anos, acontecerá uma complexa metamorfose na escola, sendo, mais do que nunca, necessário haver uma articulação entre as universidades, a profissão docente e as escolas. A nosso ver, essa metamorfose começou a ocorrer, mesmo que por força de uma pandemia mundial de SARS-CoV-2, por nós conhecida como COVID-19.
Essa metamorfose imposta pelo vírus fez com que muitos professores, gestores e alunos passassem a interagir por meio das tecnologias digitais de informação e comunicação - TDICs. Esse repensar a educação, a escola, o ensino-aprendizagem, a formação foi revisto porque as noções de tempo, espaço e cadências foram ressignificados. Ribeiro (2021) nos apresenta que durante a pandemia saímos de um modelo de escola ligado a um “tempoespaço” (RIBEIRO, 2021, p. 32) em que todos estamos juntos, confinados ao mesmo tempo nas mesmas salas, várias horas por dia, sob rígidas regras que modelam nossos corpos e mentes em um ambiente bastante regulado para um modelo fluido, menos rígido, mais dinâmico, aos quais não estávamos habituados. Segundo a autora, o “ensino remoto” incomodou, provocou, tirou-nos do lugar “espaçotempo” (RIBEIRO, 2021, p. 33) presencial ao qual nos acostumamos e isso desestabilizou mais ainda a educação e a formação docente.
A metamorfose discutida por Nóvoa (2019) aconteceu bem mais rápido do que pensávamos. Não estávamos preparados para uma mudança tão radical de ensino, mesmo que os documentos já orientassem para o ensino mediado pelas tecnologias digitais. Não houve a formação adequada para usarmos os recursos digitais, para estarmos conectados pelo computador e pela internet por várias horas. Essas mudanças ocorreram em meio a tantas outras que ainda não solucionamos e o fosso entre a formação de qualidade ficou ainda mais visível, assim como as desigualdades sociais e educativas.
De toda forma, a formação de formadores precisa estar engajada com o que acontece na sociedade e em constante revisão e reformulação sobre o agir pedagógico. Isso significa que qualquer tentativa de reformular o papel dos educadores deve partir da questão mais ampla que é encarar o propósito da escolarização e das escolas como esferas públicas democráticas que fortalecem o ser e o social, a partir de uma linguagem política em que os envolvidos na educação e, em especial, os educadores, forneçam as condições ideológicas e materiais necessárias para a educação de cidadãos críticos e com coragem cívica, para que se sintam como cidadãos ativos e pertencentes a uma sociedade democrática. (GIROUX, 1997).
Sabemos não ser tarefa fácil, todavia, assim como apresentado por Candau e Lelis (2011) acreditamos que, ao relacionar teoria-prática constituindo-as como um elo indissociável, assim como compreender as tramas, a complexidade da formação dos professores no Brasil em todas as suas dimensões - teóricas, experienciais, culturais, políticas, ideológicas, simbólicas, dentre outras - pode ocorrer a metamorfose necessária para a criação de novos ambientes, espaços educativos onde a colaboração e o trabalho comum desenvolvem e estimulam a criação de cidadãos críticos capazes de transformar a realidade em que se encontram (NÓVOA, 2019).
INTERSECÇÃO PELO DIÁLOGO ENTRE OS GÊNEROS DISCURSIVOS, A SEQUÊNCIA DIDÁTICA E OS MULTILETRAMENTOS
Buscamos uma intersecção entre conceitos como gêneros discursivos, sequência didática e multiletramentos para o ensino de LP como forma de compreender a relevância social para as questões de ensino-aprendizagem. Os documentos oficiais PCN (BRASIL, 1996); PCNEM (BRASIL, 2000); BNCC (BRASIL, 2017; 2018) orientam para que questões que articulam leitura, escrita e oralidade ocorram a partir das práticas de linguagens, pelo diálogo, por práticas sociais não somente vivenciadas, como também orientadas para desempenhar novas ações na contemporaneidade.
Ao refletirmos sobre a teoria bakhtiniana, língua, enunciado e gêneros discursivos se inter-relacionam, já que é na interação entre falantes, em situação concreta, que estes se originam, ampliam-se e ressignificam-se mediante seus usos nas mais diferentes esferas da comunicação humana. Bakhtin (2016) destaca que cada enunciado forma um elo complexo e organizado de outros enunciados, em uma dialogização interna da palavra, em que o discurso de outrem encontra-se presente no do próprio falante e evidencia que todo discurso é atravessado, ocupado pelo discurso alheio.
Por estar ocupado pelo discurso alheio, os gêneros discursivos são diversos e inesgotáveis, pois são inúmeras as possibilidades da atividade humana e os gêneros acompanham a evolução social, (re)construindo todo o repertório oral e escrito (BAKHTIN, 2016) a depender do momento sócio-histórico e cultural que se encontram inseridos. Destaca ainda o fato de, ao nos comunicarmos por meio de certos gêneros discursivos, em “termos práticos”, significa que os empregamos de forma segura e habilidosa, entretanto, em “termos teóricos” (BAKHTIN, 2016, p. 38), podemos desconhecê-los inteiramente.
Nas proposições do autor, os gêneros discursivos nos são apresentados quase da mesma forma com que nos é dada a língua materna: a dominamos livremente, até o momento em que começamos a fazer o estudo teórico sobre ela. A língua materna - composição vocabular e estrutura gramatical - nos é conhecida pelos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos, na comunicação discursiva viva com as pessoas, e não a partir dos dicionários e das gramáticas.
É no estudo teórico dos gêneros discursivos, ou melhor, na teoria-prática que a sequência didática (SD) proposta por Dolz, Schneuwly e Noverraz (2004) configura-se como um procedimento eficaz para desenvolver, de modo orientado e sequenciado, uma prática de linguagem e levar o educando a dominá-lo de maneira eficaz para atuar em situações comunicativas situadas.
Diante dessa proposição, adotar os gêneros discursivos como objeto ou ‘megainstrumento’ de aprendizagem (DOLZ; SCHNEUWLY; NOVERRAZ, 2004, p. 75) assume-se que estes operam, em contextos situados, como forma de legitimação discursiva; que revelam nas relações sócio-histórico-culturais posicionamentos individuais e coletivos promotores de conhecimento e de mudança social. Essa perspectiva levou inúmeros pesquisadores-educadores, como Lerner (2002), Mendonça (2006), Kemiac e Lino de Araújo (2010), Gonçalves (2012), Costa-Hübes e Ortega (2017), Barros e Maia (2018) e o próprio Dolz (2016) a discutirem e readaptar a SD, pois consideram a realidade educacional brasileira - social, econômica e cultural, dentre outros - bastante diversa da proposta pelo grupo genebrino.
Destacamos a perspectiva de Costa-Hübes e Ortega (2017) por estarem inseridas na concepção dialógica da linguagem, a qual ganha vida na interação entre os falantes. Para as autoras, o estudo do gênero, definido como modelo didático de gênero (MDG), considera aspectos como o contexto de produção, a esfera de circulação, a finalidade discursiva, os interlocutores envolvidos no momento da enunciação, dentre outros, com fins de possibilitar um maior entendimento do conteúdo temático, da construção composicional e das marcas linguísticas, para serem usadas e ressignificadas na vida. Dolz (2016), por sua vez, alia a SD com a engenharia didática, definindo-a como o campo didático que “organiza, transforma e adapta os saberes sobre a língua e as práticas discursivas para o ensino” (DOLZ, 2016, p. 241). Ao conceber os projetos escolares, a engenharia didática elabora dispositivos, atividades, exercícios, materiais escolares e novas tecnologias da comunicação escrita, visual e audiovisual para que, diante das inovações encontradas, orientem as intervenções do professor, no contexto desenvolvido.
Acreditamos, tais como os autores supramencionados, que a SD precisa estar articulada com as situações de aprendizagem vivenciadas pelos educandos. Diante de um país continental como o Brasil, a SD proposta precisa vincular-se à realidade local, ampliando o repertório linguístico e proporcionando mecanismos para que o educando tenha mobilidade de agir em diferentes contextos. Ademais, pensamos a SD como uma rede didática2, em que o uso da escrita e da leitura perpassam por recursos multissemióticos/multimodais (KRESS; VAN LEEUWEN, 2001), sendo necessário repensar o ensino dos gêneros discursivos em formas híbridas, mediante o uso das tecnologias da informação e comunicação. Nessa perspectiva, a SD, como sequência de atividades ordenadas em torno de um único gênero, ganha novo sentido diante dos multiletramentos. Essa rede didática de atividades solicita novas atitudes do engenheiro (DOLZ, 2016) para que todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem transformem o objeto de estudo, a si próprios e ao mundo em que vivem.
Essa transformação na educação foi pensada pelo The New London Group (NLG, 1996)3 ao propor a pedagogia dos multiletramentos. Os autores pertencentes a esse grupo refletiram sobre a mudanças pelas quais o mundo passava na ordem do trabalho, da cidadania, da cultura, da economia e das identidades, de modo que era preciso repensar o currículo e as propostas educativas. O prefixo “multi” indica a multiplicidade de linguagens, significados e culturas que vivenciamos cotidianamente e, ao rever, no campo educacional como são desenvolvidas as atividades marcadas pelas “superdiversidades”, pois envolvem uma “variedade de significantes variáveis capazes de afetar onde, como e com quem as pessoas convivem” (VERTOVEC, 2007, p. 1), tornou-se necessário apropriarmo-nos dos multi - conhecimentos, habilidades, procedimentos, competências - que viabilizam a inserção dos educandos em contextos culturais diversificados.
Seguindo o mesmo propósito, Kalantzis e Cope (2009b) enfatizam ser o dever da escola proporcionar projetos futuros relacionados às dimensões da diversidade produtiva (no âmbito do trabalho), do pluralismo cívico (no âmbito da cidadania) e das identidades multifacetadas (no âmbito da vida pessoal). Isso porque, na modernidade líquida e fluída (BAUMAN, 2001) e das linguagens líquidas (SANTAELLA, 2007) em que vivemos, proporcionar espaços educacionais e de ações crítico-formativas são imprescindíveis para promover uma reflexão crítica e colaborativa sobre quem somos, o que pretendemos e o que faremos diante de uma sociedade em constante mudança.
Assim, os gêneros discursivos, a SD revisitada e os multiletramentos conectam-se em rede de atividades no sentido de que é na linguagem e pelas linguagens, no diálogo-dialético necessário em uma sociedade plural, que podemos criar possibilidades de criar espaços educativos realmente colaborativos para romper com um ensino que (ainda) insiste em se apoiar em paradigmas mais antigos.
AÇÃO CRÍTICO-FORMATIVA - UM MODO DE OLHAR A FORMAÇÃO DE FORMADORES
A ação crítico-formativa é desenvolvida por/para formadores, de modo crítico-colaborativo e busca a transformação dos sujeitos envolvidos no processo. O percurso permite compreender as diversas leituras de mundo que envolvem os sujeitos, constituídos sócio-histórico-culturalmente em contextos situados. A relação dialógica-dialética entre os envolvidos permite revisitar-rediscutir conceitos considerados cristalizados, com fins de propor (re)construções e, ao compartilhar o que foi produzido, discutido, confrontado e avaliado com os outros, podemos realizar novas leituras de mundo, capazes de transformar os sujeitos envolvidos na ação crítico-formativa.
A ação crítico-formativa compreende, em sintonia com Magalhães (2010), que a colaboração deve ser uma ação conjunta, cujo foco está na construção de determinado objeto, envolvendo intenção para agir, falar e ouvir o outro, e ser ouvido, pedir esclarecimentos, aprofundar as discussões, pedir ou responder a um participante para clarificar ou retomar algo dito, relacionar necessidades, atitudes, ações, objetivos, além de envolver ações intencionais para pontuar possíveis contradições (MAGALHÃES, 2010, p. 29). Essas ações podem envolver todos os participantes que compõem a rede escolar, inclusive o educando, que é o foco principal da educação e teria muito a oferecer nas formações.
Parece-nos que a ação conjunta é mais um desafio que precisa ser enfrentado e, como pontua a autora supracitada, muitas das ações desenvolvidas na/para a escola são complexas, contraditórias e encontram-se apoiadas em questões de poder e em propostas curriculares que não se efetivam como deveriam nas escolas públicas, nos mais diferentes cantos do Brasil. Nóvoa (2009a), similarmente, destaca que a educação vive um tempo de grandes incertezas e de muitas perplexidades. Esse tempo de incertezas constrói discursos no campo científico, no qual há a repetição de conceitos, de ideias, das mesmas propostas, sendo que esse ‘discurso gasoso’ (NÓVOA, 2009a, p. 27) pode interferir nos modos de se pensar e agir do formador.
É no pensar e no agir não contaminados pelo discurso gasoso, mas com a finalidade de mobilizar ações e reações sobre as questões de educação, que a ação crítico-formativa proposta buscou desenvolver, no espaço de formação de formadores, a transformação de sentidos e significados de conceitos que parecem cristalizados. Para alcançar os objetivos estabelecidos na ação crítico-formativa é preciso construir uma relação de confiança, de escuta e de respeito a fim de definir a condução da formação. Na ação crítico-formativa proposta, estávamos abertos a refletir, de maneira crítica-colaborativa, os sentidos e significados atribuídos aos gêneros discursivos, à sequência didática e aos multiletramentos, com o intuito de atingirmos os resultados negociados.
Conforme apresentado anteriormente, a ação crítico-formativa pautou-se na metodologia proposta por Magalhães (2004, 2009, 2011), Pesquisa Crítica de Colaboração - PCCol -, na qual as participantes envolvidas atuaram, de modo crítico, colaborativo e reflexivo, nas atividades desenvolvidas, de modo a intervir e transformar a realidade existente e nas intervenções formativas (ENGESTRÖM, 2011, p. 599-600), pois considera o ser humano como agente, dotado de intencionalidade, tal que, na interação, é capaz de interpretar e reinterpretar os desafios propostos.
Nesse sentido, o autor salienta que o princípio da dupla estimulação proposto por Vygotsky leva a um conceito de intervenções formativas diferente daquele voltado às intervenções lineares, já que o sujeito, ao ser colocado diante de uma situação-problema, é orientado por meio de artefatos culturais a utilizar e transformar a situação-problema em uma atividade mediada e produtora de novos conhecimentos, novas possibilidades de aprendizagem (VYGOTSKY, 2005). Concordamos com a perspectiva de Engeström (2011), ao salientar que as intervenções formativas podem ser úteis para quem busca um sujeito que não apenas se aproprie dos conhecimentos, mas que busque novos conceitos sobre o agir/fazer/pensar o mundo.
Esse pensar o mundo, de modo global e local, obrigou-nos a repensar as propostas de formação de formadores, renomeadas para ações crítico-formativas, haja vista que por meio de um tema comum, os sujeitos se envolvem no complexo movimento do desenvolvimento social, revisitam conceitos e ressignificam o objeto de estudo. Para Engeström (2011), quatro aspectos de intervenções formativas devem ser considerados. Situo-os no quadro abaixo, assim como as ações crítico-formativas, formulados por Oliveira (2020, p. 98):
Ao apresentar as intervenções formativas, Engeström (2011) argumenta que a escola sofre intervenções diretas de agentes externos como diretores, gestores, jornalistas, parceiros, comunidade, igreja, entre outros, sendo que, eles próprios organizam suas próprias intervenções. Para o autor, as intervenções formativas auxiliam no refletir e no agir de se pensar em intervenções realmente efetivas no contexto escolar. Desse modo, para nós, essa proposta do autor nos auxiliou a desenvolver ações crítico-formativas que considerassem todo o percurso da ação desenvolvida e não se baseasse apenas nos resultados a serem alcançados. Isso porque, ao considerar o processo, é possível refletir criticamente sobre a ação e, assim, reconsiderar o que não foi consolidado e verificar como a ação em desenvolvimento impacta a teoria-prática do formador, com vistas para uma reconstrução colaborativa de nova ação crítico-formativa.
Salientamos que assumimos a palavra ‘ação’ no lugar de ‘intervenção’ por estarmos em sintonia com Bakhtin (2017) ao afirmar ser “[...] na ação, no ato, com o que me é dado para realizar [...]” (BAKHTIN 2017, p. 98) que podemos transformar uma realidade existente, ou seja, como participante da vida real, seja “o que for e em que condição me for dada, eu preciso agir a partir do meu lugar” (BAKHTIN 2017, p. 98) para alterar o meu contexto, a minha realidade e, como ato responsável, juntos podemos buscar novos sentidos e significados para as ações pedagógicas dos envolvidos no processo formativo.
Por essa razão, as ações crítico-formativas consideram o sujeito dentro do processo, já que não há conhecedor melhor da própria realidade em que está inserido do que o educador. Ele, enquanto sujeito ativo e agente, pode nos dizer o que é pertinente dentro das ações apresentadas. Essa diferença entre os termos ação e intervenção nos é bastante significativa. A nosso ver, Engeström (2011) propõe alguém como norteador desse processo, o que não significa ser alguém que pertença ao contexto em que se encontra e, se considerarmos que “ser realmente na vida significa agir” (BAKHTIN, 2017, p. 99), a ação crítico-formativa não acontece apenas como capacitação dos professores; a ação ocorre com eles e não sobre eles (PIMENTA, 2012) como projeto integrado, articulado, em que as relações dialógicas e dialéticas existem como forma de enfrentar os problemas existentes na atividade educativa. Ao buscar as soluções praticáveis, os professores em conjunto com os seus alunos podem atuar, significativamente, no contexto em que se encontram, e para além dele.
Outro aspecto significativo para nós é o conceito de auto-heteroecoformação (FREIRE; LEFFA, 2013) por terem a ação como ponto de partida. Ao serem movimentos que ligam a autoformação, pela ação do eu como sujeito individual e social; a heteroformação, pela ação dos indivíduos uns sobre os outros, na escuta ativa; e a ecoformação, pela ação do ambiente sobre os indivíduos (FREIRE; LEFFA, 2013, p. 69), essa visão acontece no sujeito quando se depara com questões em que se faz necessário o processo de (des)(re)construção do conhecimento, do agir pedagógico, de modo a se tornar “protagonista e responsável pelo mundo em que vive” (FREIRE; LEFFA, 2013, p. 75).
A ação é movimento eterno e assim podemos responder à questão “por que é que fazemos o que fazemos na sala de aula?” (NÓVOA, 2013, p. 16), uma pergunta que nos obriga a refletir sobre o nosso próprio agir pedagógico. Mais uma vez, deixamos em evidência que qualquer ação crítico-formativa proposta e desenvolvida precisa ser articulada com os membros da comunidade escolar por serem eles que conhecem as realidades e as dificuldades dos educandos nos contextos em que se encontram. Não há o sujeito ‘assujeitado’ (PÊCHEUX, 1997), já que é por meio de uma educação crítica e reflexiva que os formadores podem compreender como ocorreram (ou não) os processos entre o desenvolvimento proximal e o potencial (VYGOTSKY, 1998) de seus alunos e revisitar de modo a reconstruir, colaborativamente, o objeto de estudo para uma melhor aprendizagem.
AÇÃO CRÍTICO-FORMATIVA - REVISITA AO GÊNERO DISCURSIVO, SEQUÊNCIA DIDÁTICA E MULTILETRAMENTOS
Visando a situar o contexto de produção de nossa pesquisa, passamos a descrever todo o percurso da ação desenvolvida por nós. A ação crítico-formativa ocorreu em janeiro de 2019, em um período de mudanças no Governo Estadual, tendo em vista que o partido que, há mais de 20 anos, administrava capital e município, perdera as eleições em 2018. Isso acarretou em mudanças na Secretaria de Educação e Cultura, SEE-AC, que passou a contar com novo quadro de gestores, coordenadores e formadores.
Mesmo diante do impasse de poder ou não realizar a ação crítico-formativa, as formadoras mostraram-se dispostas a participar, desde que houvesse o consentimento da Diretoria da SEE-AC, o que ocorreu na segunda quinzena de janeiro. Durante o tempo de espera, diferentes textos foram enviados para tecer a ação crítico-formativa e a rede de atividades, de modo que mantivemos contato via WhatsApp e e-mails, mesmo na incerteza da realização da ação crítico-formativa.
Ressaltamos que a nova Diretora de Ensino, ao disponibilizar as formadoras, considerou que, em dado momento, estas fossem multiplicadoras da ação crítico-formativa apresentada. Diante disso, as formadoras apresentaram alguns questionamentos acerca da pedagogia dos multiletramentos e da necessidade de se apropriarem da teoria, pois teriam de fazer parte das formações continuadas futuras, justamente por conta da implantação da BNCC nas escolas.
Diante desse cenário, as análises das transcrições dos dados apresentados referem-se a dois encontros presenciais, cujo objetivo foi compreender quais eram os sentidos e significados atribuídos pelas formadoras aos gêneros discursivos, sequência didática e multiletramentos. Para o desenvolvimento da ação crítico-formativa, o tema gerador, “Os perigos das Fake News na era da (des)informação”, auxiliou nos estudos sobre o gênero notícia, sobre a SD e os multiletramentos.
Conforme enunciado anteriormente, os textos foram enviados antecipadamente às formadoras e, para efeitos de estudos, foram priorizados os capítulos I e IV da obra Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos, das autoras Roxane Rojo e Jacqueline Peixoto Barbosa (2015), o texto da Nova Escola, Cuidado com a fábrica de mentiras, e uma resenha Por uma Pedagogia dos Multiletramentos: Ontem, Hoje e Sempre, de Oliveira, Ferreira e Machado (2017).
O estudo, por envolver seres humanos, foi aprovada pelo Comitê de Ética da PUC-SP, no registro de nº 1.793.720, CAAE 59300516.6.0000.5482. As formadoras assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido, sendo que seus nomes foram substituídos. O professor-formador será identificado pela sigla P-F. Vejamos nos excertos abaixo quais sentidos e significados foram apresentados pelas formadoras aos conceitos discutidos na ação crítico-formativa.
A pergunta de P-F: (1) parte do tema da ação formativa, estabelecendo relação com a BNCC e como iriam redesenhar a SD utilizando os multiletramentos. Essa pergunta considera o conteúdo temático apresentado anteriormente pelas formadoras, relacionado às discussões sobre SD e multiletramentos, sem focalizar os conceitos teóricos.
A formadora Maria (1) atribui sentidos aos multiletramentos em relação à sequência didática, ao argumentar que ambas partem de uma produção inicial. Ocorre um equívoco na questão da produção inicial. A SD desenvolvida pelo grupo genebrino destaca que após a apresentação da situação e uma breve contextualização do gênero escolhido para ser estudado, os educandos elaboram uma produção inicial escrita do gênero, uma primeira versão, que visa mostrar ao educador em que zona de desenvolvimento o educando se encontra.
Por sua vez, a prática situada ou experienciamento (KALANTZIS; COPE, 2005) parte do conhecido, do que faz parte da vida diária do educando, do conhecimento situado e contextualizado. O conhecimento que o aluno traz de suas vivências é valorizado e estabelece relações com as novas experiências às quais será exposto no decorrer do ensino-aprendizagem. A exposição da formadora parece indicar, mesmo que de modo não verbalizado, que ela considera que tanto a SD quanto os multiletramentos utilizam o conhecimento prévio do educando, a realidade vivenciada.
Em continuidade, a formadora procura diferenciar a produção inicial da prática situada com o uso da conjunção adversativa, atribuindo o sentido de que a prática situada parte de uma realidade vivenciada pelo educando na comunidade, na escola. Os pesquisadores do NLG (1996) buscaram estabelecer como diferença entre a pedagogia dos multiletramentos e as concepções pedagógicas mais conservadoras, a prática, ou seja, o como fazer. Para isso, estabeleceram quatro momentos: prática situada, instrução evidente, concepção crítica4 e prática transformadora, integrados em uma prática social.
A realidade vivenciada pelo educando na comunidade, na escola, conforme exposto pela formadora, vai ao encontro do que Rojo e Moura (2012) discorrem: a prática situada tem um significado particular e específico, pois remete a um projeto didático envolvido com as práticas que fazem parte da cultura do aluno, com os gêneros e os designs disponíveis para essas práticas, de modo a relacioná-los com outras práticas, advindas de outros espaços culturais, como públicos, de trabalho, comunidade, e outras esferas.
Na sequência do excerto, a formadora atribui o sentido de que, seja no ambiente digital ou não, o importante é o professor trabalhar com os multiletramentos. Esse sentido pode ser encontrado em Rojo e Moura (2012, p. 8), ao salientar que trabalhar com multiletramentos “pode ou não envolver (normalmente envolverá) novas tecnologias de comunicação e de informação (“novos letramentos”)”, todavia, o importante é que parta das culturas de referência do educando e de gêneros, mídias e línguas por ele conhecidos, na busca do enfoque crítico, pluralista e democrático, na busca de fazê-lo agente do próprio conhecimento.
De maneira semelhante, Lankshear e Knobel (2006; 2007; 2013) aludem para o fato de que não há práticas sociais de letramentos sem significados, assim como não há sentido fora da prática. É necessário fazer uso de ações, raciocínio e ideias para atuar em um mundo onde “a multiplicidade cultural das populações e a multiplicidade semiótica de constituição dos textos” (ROJO; MOURA, 2012, p. 13) se encontram presentes tanto no espaço público quanto privado, sendo dever da escola (professor e formador) estimular a visão crítica em relação ao que acontece ao seu redor.
Chama a atenção o sentido atribuído pela formadora de que é possível criar mecanismos para trabalhar com os multiletramentos e que, primeiramente, isso seria função do educador. Ao final de sua reflexão, no entanto, utiliza a locução pronominal “a gente pode criar” como se também assumisse a responsabilidade de “criar mecanismos” para o uso dos multiletramentos nos espaços de ações formativas. Em continuidade, com base no tema da ação formativa, discutimos os perigos das fake news na era da (des)informação. Vejamos o excerto seguinte.
Maria (2), em resposta à P-F (2), atribui um sentido de que para usar as redes sociais é preciso curadoria. A formadora está embasada no texto de Rojo e Barbosa (2015), quando estas argumentam que, no contexto de hiperinformação, as ações de curar, seguir, curtir, comentar ganham destaque. Aludem para o fato de que o conceito oriundo das artes, a curadoria (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 123), é designado para verificar ações e processos próprios do universo das redes, já que “tanto conteúdo e tanta informação abundantes, dispersos, difusos, complementares e/ou contraditórios e passíveis de múltiplas interpretações” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 124) precisam de reordenamentos que os tornem inteligíveis.
As autoras revelam que curadoria implica escolhas, seleções de conteúdos e informações, na forma de apresentá-los e hierarquizá-los, sendo um enunciado concreto que precisa ser observado nos estudos sobre os gêneros que circulam na esfera digital. Podemos supor que o processo de curadoria não é algo fácil de ser realizado, já que solicita do usuário que selecione cuidadosamente as informações que circulam no ambiente digital, que indague sobre o que foi divulgado, onde foi publicado, os propósitos, enfim, uma tomada crítica sobre os textos multissemióticos que circulam no facebook, o que não é tarefa fácil para educandos.
A pergunta de P-F (3), com foco no conteúdo e no que foi apresentado pelas formadoras, indaga como esse levantamento seria feito. Shalom (1) atribui o sentido de que teria de partir dos próprios educandos, para depois instruí-los. A formadora situa superficialmente alguns princípios da pedagogia dos multiletramentos, relacionados ao como fazer. De acordo com o texto seminal do NLG (1996) e com Kalantzis e Cope (2005), a prática situada (experienciamento) parte do conhecido, do que faz parte da vida diária do educando, o conhecimento é situado e contextualizado. A instrução evidente (conceituação) busca definir e aplicar os conceitos, para que o conhecimento seja construído como um todo.
O foco da prática situada é motivar o educando para o conhecimento consciente, que desenvolva a prática reflexiva e a criticidade no processo do conhecimento na/para prática, embora Cope e Kalantzis (2000) ressaltem que não é um processo garantido, já que a aprendizagem é única para cada educando. O importante é que a ação conduza para o desenvolvimento e não para o julgamento.
Na instrução evidente, todas as intervenções são consideradas nas atividades de aprendizagem. O professor mantém uma postura colaborativa e proporciona ao educando mecanismos para que possa cumprir tarefas mais complexas, tendo a compreensão da validade da tarefa desenvolvida e sua relação com outros aspectos que estão sendo assimilados.
A formadora não deixou explícito como faria a instrução evidente, quais seriam as intervenções, as atividades, e não foi indagado como isso ocorreria numa ação crítico-formativa proposta. Em sequência, a formadora atribuiu o sentido de que, nas notícias on-line, é preciso identificar as intenções, a função, quem escreveu, o gênero. Bakhtin (2016) evidencia que todos os campos da atividade humana se encontram ligados ao uso da linguagem em diferentes formas e em diferentes contextos.
É no enunciado concreto, proferido por integrantes de dado campo da atividade humana, que se refletem as finalidades, o conteúdo, o estilo e a construção composicional. Ao circular no ambiente digital, o texto manifesta múltiplas formas que integram escrita, sons, gestos, expressões fisionômicas e corporais, que o configuram como multimodal e contribuem para a construção de novos significados.
Brait e Pistori (2012) ressaltam que o estudo sobre o gênero discursivo é um ato realizado por sujeitos organizados socialmente de uma determinada maneira. Trata-se de uma totalidade temática, orientada pela realidade, marcada por um tempo e um espaço. Dentre as características dos gêneros, as autoras chamam atenção para uma dupla orientação da realidade. A primeira, considerada a partir da exterioridade, está relacionada à vida, ao tempo, ao espaço e à esfera ideológica a que o gênero se filia. Isso significa que o enunciado, ao ser produzido em um tempo real (oral, escrito ou multimodal), apresenta ouvintes e/ou leitores, em reação ao que é enunciado, em interação.
A segunda também se relaciona à vida, mas está voltada para a interioridade do gênero, para as formas, as estruturas e o conteúdo temático, analisados em sua totalidade. Para as autoras, a segunda orientação, marcada por aspectos linguísticos, não pode ser desvinculada da noção de esfera ideológica, que envolve e constitui a “produção, circulação e recepção de um gênero” (BRAIT; PISTORI, 2012, p. 383) associado à vida, no sentido cultural, social, político e econômico.
A formadora Maria (1), ligada ao tema da ação formativa, parece indicar que alguns aspectos apresentados por Brait e Pistori (2012) são necessários no momento da apresentação do gênero, para que o estudo não fique na superficialidade. Entretanto, nesse momento, não explicou como seria desenvolvido. No excerto abaixo, ela procura apresentar a instrução evidente ligada ao tema.
A formadora atribui um sentido ligado ao tema da formação, fake news, ressaltando que a instrução pode mostrar que a mídia manipula as informações. A esse respeito, Marques de Melo e Assis (2016) argumentam que se tem a ideia equivocada de que tratar de gêneros é o mesmo que abordar somente as particularidades linguísticas e/ou textuais das matérias que as mídias fazem circular. Ao contrário, apesar de ser fator importante, essa atividade exige a adoção de técnicas adequadas em suas ações, comportando modos de fazer próprios e que se encontram ligados a “universos culturais ou ideológicos” (MARQUES de MELO, 2003, p.17) direcionadores das formas e dos conteúdos a que a sociedade tem acesso.
As ações ligadas a universos culturais ou ideológicos postulados pelos autores e salientados pela formadora parecem trazer à tona o fato de que uma das etapas da produção jornalística, a seleção dos dados, pode determinar o que permanece e o que é descartado, o que é informação ou não e, a depender do veículo da comunicação, a notícia pode vir a ser manipulada em detrimento da filosofia ideológica de onde ela circula.
Sobre a questão ideológica, Volóchinov (2017) destaca que tudo o que é ideológico ‘reflete e refrata’ (VOLÓCHINOV, 2017, p.92) outra realidade que se encontra situada fora dos seus limites. Tudo que é ideológico pode ser chamado de signo e, sem ele, não há ideologia. Para o autor, qualquer corpo físico pode ser percebido como a imagem de algo, como “encarnação” (VOLÓCHINOV 2017, p.92) nesse objeto único, que faz dele um produto ideológico.
Como todo discurso é ideológico e dirige-se a alguém, em uma resposta potencial, essa orientação a um outro pressupõe, inevitavelmente, que se considere a relação sócio-hierárquica entre os interlocutores (VOLÓCHINOV, 2013, p. 168). Na esfera jornalística, a posição sócio-hierárquica pode determinar conhecimentos e práticas relevantes para serem compartilhadas no social, bem como conduz os posicionamentos que os sujeitos atuantes na esfera jornalística devem tomar e/ou falar em nome da empresa.
Ademais, Volóchinov (2017) destaca que no universo dos discursos verbais multiformes, que abarca todas as formas e todos os tipos de criação ideológica estável, o modo de reagir aos acontecimentos da vida e do dia a dia encontra-se relacionado a outros tipos de manifestações e interações por meio de signos. Esses signos, na interação verbal, envolvem os gestos, a expressão facial, o gesticular, entre outros.
Na esfera digital, outros mecanismos foram desenvolvidos e, ao comentar ou compartilhar as informações, é possível inserir os emoticons, emojis ou criar memes em relação à notícia lida, bem como incluir caracteres gráficos que expressam algum tipo de opinião sobre a notícia veiculada.
De modo semelhante ao que ocorre na interação verbal face a face, no ambiente digital os sujeitos encontram-se ligados às condições concretas de determinada situação social e reagem com extrema sensibilidade aos acontecimentos que ocorrem no meio social, conferindo credibilidade às informações lidas sem que ocorra a curadoria necessária antes do compartilhamento das notícias.
Para a formadora, o sentido atribuído de que a notícia pode ser manipulada por conta do recorte efetuado, sendo necessário ver como aparece em outros jornais, encontra relevância na discussão proposta por Brait e Pistori (2012) ao apresentarem um estudo que envolvia o gênero editorial. Para as autoras, o estudo pode ser desenvolvido pela forma composicional ou pela forma arquitetônica.
Quando se opta pela forma arquitetônica, o estudo de um gênero e dos textos que o constituem considera suas dimensões internas e externas, de modo a explicitar as inter-relações valorativas e dialógicas que o caracterizam enquanto possibilidade de compreender a vida, a sociedade e atuar junto a elas. Um dos procedimentos é especificar a seção/caderno em que o gênero aparece (impresso e digital) e compará-lo com outros, para que o educando perceba que não é um texto autônomo, mas faz parte dos gêneros jornalísticos informativos e/ou opinativos que caracterizam a imprensa contemporânea.
Esse contato real com os outros textos, evidenciado pela formadora, estimula atitudes responsivas diante das notícias veiculadas no ambiente digital, de modo que ao serem consideradas na forma arquitetônica, pode propiciar ao educando uma participação mais efetiva na construção do próprio conhecimento, com o meio em que vive e com a sociedade, de modo a intervir e transformar.
Em seguida, Maria (3) atribui o sentido de que as notícias podem ser manipuladas não apenas nas redes sociais, mas também pela grande imprensa que constrói outro sentido, que é a ideologia do jornal. Volóchinov (2017) destaca que, no interior de dada esfera ideológica, há profundas diferenças, já que fazem parte dela as imagens, os símbolos, as normas e, assim, sucessivamente. Cada campo possui função específica na unidade da vida social, no entanto, o caráter sígnico é o traço comum a todos os fenômenos ideológicos.
Desse modo, o caso levantado pela formadora parece indicar que o signo ideológico, como fenômeno do mundo externo, refrata uma posição que ocorre em determinado grupo social que, muitas vezes, por estarem associados a crenças e valores comuns, compartilham das mesmas ideologias a fim de convencer outros grupos sobre a informação apresentada. A teoria vygotskyana discute que toda atividade humana precisa ser compreendida nas condições concretas de produção, na relação com o trabalho, como atividade em que o homem transforma a si e ao ambiente social.
Vygotsky (2005) argumenta que os “sentidos podem modificar as palavras, ou melhor, que as ideias frequentemente mudam de nome” (VYGOTSKY, 2005, p. 182) de modo que se influenciam e se modificam. Pode-se considerar que o sentido atribuído pela formadora quanto à manipulação das notícias encontra-se relacionado aos significados, apresentados em diferentes linguagens, em que circulam as informações e que, no pensamento, associa-se a sentidos específicos, expressos pela formadora.
A formadora também atribui o sentido de que é preciso levar o educando a ter alguma coisa crítica, o que nos permite inferir que se trata do enquadramento crítico explicitado pelo NLG (1996) e depois reformulado para análise crítica (KALANTZIS; COPE, 2005). Cope e Kalantzis (2009b) destacam que, na análise crítica, a aprendizagem envolve certo tipo de capacidade crítica, pois o objetivo é que os educandos construam a criticidade a partir da realidade concreta, contextual e significativa, a prática situada.
Na análise crítica, é possível para o educando avaliar as perspectivas, os interesses que existem por trás de determinado significado ou ação (COPE; KALANTZIS, 2009b), pois ela solicita do participante a prática reflexiva e a reavaliação dos conceitos estudados, de modo que, na prática transformadora, consiga construir o que foi aprendido, com base nos valores e objetivos discutidos durante a ação de aprendizagem.
Para a formadora, o sentido atribuído à análise crítica, mesmo sem se lembrar o nome do conceito, é de que o como dos multiletramentos é importante para que o aluno aprenda a tirar suas próprias conclusões sobre o que aprende. Esse posicionamento articula-se ao que dizem Kalantzis e Cope (2005) sobre a análise crítica: é o momento em que se busca entender o que foi estudado e relacionar criticamente com o contexto vivenciado. Esse momento é crucial para compreender como se articulam os objetivos, as ações e intenções, os motivos que levam as pessoas a adotarem determinados pontos de vista sobre o objeto de estudo.
Observamos ao longo dos excertos analisados que, para as formadoras, o estudo do gênero discursivo notícia ficou vinculado ao tema da ação crítica-formativa proposta, ou seja as fake news. Ao interagirmos por diferentes meios de comunicação, especialmente mídias e redes sociais, as notícias falsas são propagadas sem que ocorra a curadoria necessária. Esse tema, como uma prática social vivenciada não apenas pelas formadoras, mas pela sociedade de modo geral, local e global, mostrou-se relevante e apareceu no discurso das formadoras.
Quanto ao conceito de SD, a discussão parece indicar que as formadoras consideram a necessidade de haver a produção inicial e que se parta da realidade dos alunos para desenvolver as oficinas, todavia, pouco foi discutido sobre o conceito de SD. Já, em relação aos multiletramentos, percebe-se uma maior interação por parte das formadoras nas discussões levantadas. Algumas das formadoras tentaram manter uma postura crítica diante do que foi apresentado, mesmo sentindo insegurança sobre os conceitos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desenvolver ações crítico-formativas para contextos de formação de formadores, seja no âmbito educacional, como no caso de formação de formadores de língua portuguesa, seja em outras esferas comunicativas, articulam imprescindíveis e imprevisíveis movimentos pautados no conhecimento-na-ação (SCHÖN, 2000), como uma reflexão em e sobre a ação desenvolvida pelo profissional. Fazer parte, estar in situ, compreendendo as vivências e solicitações dos participantes faz com que a agência criadora possa aparecer, os conflitos e confrontos são importantes para revisitar conceitos e estabelecer nova agenda para questões que envolvem ensino-aprendizagem.
Acreditamos que é na ação crítico-formativa que teoria-prática pode ser discutida, que os conceitos são revistos e que os sentidos e significados do objeto proposto são (re)negociados para que os participantes, de modo crítico-colaborativo, articulem mecanismos para superarem as dificuldades encontradas.
Esse olhar constante na reflexão-na-ação e sobre-a-ação (SCHÖN, 2000) durante a ação crítico-formativa proposta precisou estar articulada com as práticas sociais das participantes, no intuito de proporcionar uma atualização no modo de agir, uma revisão da teoria-prática, rumo a desenvolver futuras ações crítico-formativas encadeadas ao mundo experienciado. A ação crítico-formativa tem como cerne a colaboração, o conflito, a tensão, a contradição e a co-construção do objeto do conhecimento e, em sintonia com Magalhães (2010), a intenção propositiva foi que ocorresse um movimento para a transformação da realidade vivenciada pelas participantes, para conceitos que consideram internalizados, cristalizados.
Nessa perspectiva, a ação crítico-formativa não se reduziu ao treinamento ou à capacitação das formadoras, mas a uma constante reflexão sobre nossas certezas, sobre o saber tácito, as verdades enunciadas, ensinadas e para uma auto-heteroecoformação (FREIRE; LEFFA, 2013) necessária quando tratamos, principalmente, de educação.