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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub Apr 10, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469820700 

Artigos

NOVOS TEMPOS, NOVAS PERSPECTIVAS: RESSIGNIFICANDO A ESCRITA REFLEXIVA NA FORMAÇÃO INICIAL DE PROFESSORES NA CONSTRUÇÃO DO LETRAMENTO DIDÁTICO-DIGITAL

NUEVOS TIEMPOS, NUEVAS PERSPECTIVAS: RECONSIDERANDO LA ESCRITURA REFLEXIVA EM LA FORMACIÓN INICIAL DOCENTE EM LA CONSTRUCCIÓN DE LA ALFABETIZACIÓN DIDÁCTICO-DIGITAL

ANA PATRÍCIA SÁ MARTINS1   , Contribuiu na concepção da pesquisa, definição da metodologia, redação
http://orcid.org/0000-0002-5716-1580

DOROTEA FRANK KERSCH2  , Contribuiu na concepção da pesquisa, definição da metodologia, coleta de dados e redação
http://orcid.org/0000-0002-9335-4646

1 Universidade Estadual do Maranhão(UEMA). São Luís, Maranhão (MA), Brasil.

2 Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, Rio Grande do Sul (RS),Brasil.


RESUMO:

Nosso trabalho visa a analisar processos de (trans)formação de futuros professores de língua materna no curso de Letras para práticas de letramentos didático-digitais, a partir da escrita reflexiva em resenhas críticas. Situadas no campo interdisciplinar da Linguística Aplicada, desenvolvemos um conjunto de eventos de letramentos no, para e sobre o local de trabalho docente durante um Programa de Multiletramentos Didáticos, os quais oportunizaram o engajamento de futuros professores em projetos didáticos colaborativos em contextos escolares reais. Os resultados revelaram que o letramento didático-digital pode ser construído a partir das representações de ser e agir docentes, orientadas para os modos como esses sujeitos significam, projetam e operam a escrita reflexiva nas práticas de ensino e aprendizagem de língua materna para os multiletramentos didáticos. Argumentamos que estas práticas podem colaborar nos usos responsivo e responsável da escrita nos contextos formativos de (futuros) professores.

Palavras-chave: Escrita reflexiva; Letramento didático-digital; Formação inicial de professores

RESÚMEN:

Nuestro trabajo tiene como objetivo analizar los procesos de (trans) formación de futuros profesores de lengua materna en el curso de Letras para prácticas de literacidad didáctico-digitales, a partir de la escritura reflexiva en reseñas críticas. Ubicadas en el campo interdisciplinario de la Lingüística Aplicada, desarrollamos un conjunto de eventos de literacidad en, para y sobre el lugar de trabajo docente durante un Programa de Multiliteracidades Didácticas, que permitió la participación de futuros profesores en proyectos didácticos colaborativos en contextos escolares reales. Los resultados revelaron que se puede construir la literacidad didáctico-digital a partir de las representaciones del ser y actuar de los profesores, orientados a las formas en que estos sujetos significan, proyectan y operan la escritura reflexiva en las prácticas de enseñanza y aprendizaje de la lengua materna para las multiliteracidades didácticas. Argumentamos que estas prácticas pueden colaborar en los usos receptivos y responsables de la escritura en los contextos formativos de los (futuros) maestros.

Palabras clave: Escritura Reflexiva; Literacidad Didáctico-Digital; Formación Inicial Docente

ABSTRACT:

Our work aims to analyze the processes of (trans) formation of future Portuguese language teachers in the Languages course for didactic-digital literacy practices from reflective writing in critical reviews. Situated in the interdisciplinary field of Applied Linguistics, we developed a set of literacy events at, for, and about the teaching workplace during a Didactic Multiliteracies Program, which enabled the engagement of future teachers in collaborative didactic projects in real school contexts. The results revealed that didactic-digital literacy can be constructed from the representations of teaching being and acting, oriented to how these subjects signify, project, and operate reflective writing in the teaching and learning practices of the Brazilian mother tongue for the didactic multiliteracy materials. We argue that these practices can collaborate in the responsive and responsible uses of writing in formative contexts of (future) teachers.

Keywords: Reflective writing; Didatic-digital literacies; Teacher initial education

“DE ONDE PARTIMOS?” ALGUMAS PALAVRAS INICIAIS

O contexto atual é cada vez mais permeado pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC), as quais vêm provocando mudanças na maneira de (con)viver no mundo que nos cerca. Essa situação acaba por influenciar uma mudança de paradigma, em todos os aspectos: econômicos, sociais, ideológicos e educacionais. Ainda que pesem as peculiaridades dos espaços e dos sujeitos em um país continental como o Brasil, dados referentes ao acesso à internet e a aparelhos digitais aumentaram consideravelmente entre os brasileiros, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2019).

Assim, expressões como “sociedade do conhecimento”, “sociedade da informação” ou “sociedade informacional”, oriundos de debates a partir de Manuel Castells, Yves Courrier, dentre outros, se tornaram frequentes nos mais diferentes âmbitos de discussão acadêmica e na universidade, sobretudo, nos cursos de licenciatura, os quais não podem ficar alheios a tal conjuntura.

Essa presença das tecnologias digitais é comprovada ainda pelo destaque que têm recebido em importantes documentos políticos/legais (Organization For Economic Co-Operation And Development [OECD], 2019), sociais (CETIC.BR, 2018) e educacionais (BRASIL, 2018) que admitem possibilidades de conhecimento por meio do ambiente digital. Contudo, esse esforço teórico para o uso das TDIC ainda encontra, no contexto educacional, barreiras para ampliar os conceitos de aula, de tempo, de espaço (e mesmo de formação!), com um diálogo entre seus envolvidos.

Entendemos que as discussões sobre as tecnologias digitais e seus usos perpassam questões que são atravessadas pelas pluralidades étnicas, identitárias, sociais, econômicas, políticas, as quais precisam ser ampliadas nos cenários formativos, a fim de possamos (re) construir alternativas situadas, não somente para os sujeitos, mas COM os sujeitos, sobretudo aqueles subalternizados por uma colonialidade epistêmica histórica e cultural (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2003)

Nesse sentido, consideramos que novos contextos, novos sujeitos e novos diálogos incitam linguistas aplicados a ressignificar as pesquisas sobre a formação inicial de professores, dado o hiato ainda percebido entre a formação oferecida nas licenciaturas e as práticas sociais reais de leitura e escrita dos futuros professores de língua materna na contemporaneidade.

Diante dessas novas demandas, Pegrum et al (2016) afirmam que já começamos a vislumbrar a necessidade de competências para a participação em uma sociedade digital. Segundo os autores, instituições governamentais, empregatícias e acadêmicas têm preterido a promoção de habilidades próprias do século XXI, como “criatividade e inovação, pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas, colaboração e trabalho em equipe, autonomia e flexibilidade, aprendizagem permanente” (PEGRUM et al 2016, p.17) para participação em uma sociedade digitalmente conectada. Nessa complexa rede de habilidades requeridas, fazem-se necessários os letramentos digitais, conceituados como um conjunto de “habilidades individuais e sociais necessárias para interpretar, administrar, compartilhar e criar sentido eficazmente no âmbito crescente dos canais de comunicação digital” (PEGRUM et al 2016, p. 17).

Essa compreensão foi ocorrendo à medida que a primeira autora, em discussão com a segunda, re-lia sua prática enquanto formadora e, principalmente, na discussão das pesquisas que orientava com seus alunos. Entendemos que as tecnologias presentes na cultura contemporânea (CASTELLS, 2005) precisam ser integradas à prática pedagógica dos professores formadores e dos futuros professores1, haja vista que esses artefatos2 digitais estão cada vez mais presentes no cotidiano da humanidade, sendo necessário aos professores integrá-los e se apropriar deles criticamente como instrumentos no espaço educativo.

Dito isso, ajustando o foco deste trabalho para o contexto de formação inicial de professores, empreendemos uma pesquisa de doutoramento no período de 2016 a 20203, buscando investigar (novas) possibilidades de práticas formativas no curso de Letras de uma Universidade pública na região Sul do Maranhão. Entretanto, visando a conhecer quais/como outras práticas formativas já eram desenvolvidas nesse sentido, realizamos uma metanálise na base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD). Buscávamos teses publicadas no período de 2000 a 2018 que analisassem o letramento digital no curso de Letras, com foco no futuro professor de língua portuguesa, no intuito de conhecer a produção do conhecimento nas áreas de Educação, Letras, Linguística e Linguística Aplicada, de forma a pensar em futuros caminhos e trilhas a serem percorridos em busca da compreensão da problemática abordada.

A seleção das áreas de concentração se fez relevante em virtude de o nosso estudo estar inserido na área da licenciatura, especialmente, no Curso de Letras, ou seja, na formação inicial de professores de língua portuguesa, considerando os fenômenos que emergem na contemporaneidade com relação às práticas de ensino-aprendizagem de leitura e escrita. De acordo com o refinamento dos resultados desse mapeamento, constatamos que, apesar de se perceber na literatura acadêmica a relevância da inserção da tecnologia digital no âmbito universitário, poucas foram as teses encontradas com relação ao fomento do letramento digital dos futuros professores de língua portuguesa. Haja vista que, de um total de sessenta e uma teses de doutorado catalogadas, apenas seis tratavam, especificamente, do campo da licenciatura em Letras, cujo foco é o futuro professor de Língua Portuguesa. Assim, consideramos haver ainda uma lacuna nas produções acadêmicas quanto à formação inicial de professores nos cursos de Letras que estejam interessadas em pensar práticas de letramentos digitais sob o viés didático do futuro professor.

Os dados revelam também haver uma incidência maior de trabalhos em relação à formação inicial dos futuros professores de Língua Inglesa, no que se refere à temática do letramento digital no curso de Letras, com um quantitativo de doze teses publicadas. Dentro dessa categoria, os estudos são mais recorrentes nas atividades dos estágios de língua inglesa. Além disso, identificamos pesquisas voltadas a professores graduados em Letras que já atuam na Educação Básica. Nesses trabalhos, os objetivos da pesquisa eram direcionados ou às práticas docentes do professor em serviço ou do alunado. A maioria das pesquisas catalogadas estava focada sobre a ação, sem pensar num trabalho cooperativo ou de formação efetiva do alunado. Assim também com os da pós-graduação/mestrado/formação continuada, tendo em vista que são professores em exercício.

A metanálise realizada acerca dessas teses contribuiu para delinearmos os pressupostos metodológicos da nossa proposta de intervenção no contexto da formação inicial de professores, pensando no letramento para, no e sobre o local de trabalho docente, focando, por exemplo, no fato de que grande parte das pesquisas se deu somente no semestre do Estágio supervisionado, ou seja, nos anos finais do curso; além disso, sem uma orientação teórico-metodológica que oportunize aos discentes uma prática etnográfica (KLEIMAN, 2001; HEATH & STREET, 2008) do campo educacional em que atuarão na Educação Básica, esses futuros professores serão muito mais tarefeiros do que designers de seus letramentos (KERSCH; MARQUES, 2016), sejam eles digitais, didáticos ou não.

Em vista disso, almejamos (co) construir saberes relacionados ao campo da Linguística Aplicada, mais especificamente ao campo da formação inicial de professores de língua portuguesa, visando a discutir a complexa relação entre teoria e prática no desenvolvimento das atividades do ensino, uma vez que buscamos investigar a possibilidade de processos de (trans)formação dos futuros professores no curso de Letras, a partir de uma orientação educacional digital na perspectiva dos Multiletramentos, como uma oportunidade para eventos e práticas de letramentos acadêmico-profissionais dos futuros professores (e da própria formadora, que vai se letrando enquanto forma).

Desse modo, sistematizamos o presente trabalho iniciando com a exposição dos pressupostos teóricos que embasam nossa investigação; em seguida, apresentamos os procedimentos metodológicos que orientaram a geração de dados e nossas análises. Posteriormente, discutimos e analisamos a escrita sobre os eventos de letramento acerca do trabalho docente, para, por fim, tecermos nossas considerações acerca da construção do letramento didático-digital, a partir do uso ressignificado da escrita reflexiva em práticas formativas sobre o agir docente.

“POR ONDE ANDAMOS?” NOSSOS PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS

Tendo em vista a convicção integradora empreendida neste trabalho, assumimos o caráter transdisciplinar, transgressivo e crítico do campo da Linguística Aplicada - LA (MOITA LOPES, 2006), haja vista que:

[...] 1. O fortalecimento acadêmico para as práticas de formação de professores, ajuda aprofundar o entendimento dos processos de formação, tanto inicial quanto continuada; 2. No campo metodológico, as investigações da área têm desenvolvido inovações alinhadas com a pesquisa qualitativa e interpretativista nas ciências sociais; 3. A contribuição de ordem política dentro da academia, já que ela tem alavancado o status institucional dos formadores de professores; e 4. A contribuição da área que se relaciona a questões de transformação social, de ética e de identidade dos diversos agentes envolvidos em processos de formação de professores (MILLER, 2013, p. 100).

Nesse sentido, nossos objetos de estudo são situados - gerados em contexto específico de comunicação -; múltiplos - de tipos diversos, gerados por sujeitos que apresentam subjetividades e identidades construídas por realidades distintas que, por isso, podem apresentar motivações e engajamentos que podem variar - e, também, complexos, exigindo, assim, metodologias de geração de dados e de análise de resultados que acompanhem sua complexidade e múltiplos campos de interpretação e geração de conhecimento.

Nossa proposta de trabalho parte da premissa de que letramento não é somente ler e escrever, mas exercer as práticas sociais de leitura e escrita com os gêneros que circulam na sociedade, conjugadas com as práticas sociais de interação oral e escrita. Situadas na perspectiva de Kleiman (1995, p. 11)4 acerca dos Estudos do Letramento, entendemos o termo letramento como “conjunto de práticas sociais, cujos modos específicos de funcionamento têm implicações para as formas pelas quais sujeitos envolvidos nessas práticas constroem relações de identidade e poder”. Desse modo, compreendemos que é necessário considerar o ensino com os gêneros, a partir de situações didáticas que oportunizem os mais diversos usos e funções da leitura e escrita, levando em conta, assim, as condições de produção da linguagem para diferentes interlocutores. Portanto, neste trabalho, a formação inicial de professores é interpretada como lugar privilegiado para prática letrada e trabalho coletivo interativo, voltado à aprendizagem situada, num processo de (trans)formação para práticas didáticas multiletradas.

Pahl e Rowsell (2005, p. 23) asseguram que o letramento está ligado a nossa identidade e as nossas práticas. Conforme pontuam, a formação de nossas práticas de letramento ocorre em uma série de domínios diferentes, por exemplo, casa, escola e local de trabalho. Assim, assumir uma abordagem que entenda o letramento como uma prática social envolve uma série de pensamentos-chave, envolve reconhecer que a escola (ou universidade) é apenas um dos cenários onde o letramento ocorre. Isso reconhece que os recursos usados para ensinar em sala de aula podem ser diferentes, em diálogo com aqueles utilizados pelos alunos em suas casas. Ao problematizar as relações entre o que se aprende na escola (em nosso caso, na universidade e a formação inicial de professores) e o que se vive fora dela, as autoras elucidam a relevância de pensarmos numa perspectiva didática como um terceiro espaço. Entendem que oportunizando espaço para letramentos fora da escola (ou universidade, como no nosso caso), muitos elementos podem entrar, e isso seria uma maneira de identificar as necessidades linguísticas de um aluno, por exemplo, com base no que ele sabe e o que ele experimenta.

Desse modo, ao reconhecermos práticas de letramentos dos nossos alunos, estamos reconhecendo suas identidades. Essas identidades, então, tornam-se mais visíveis na aula, uma vez que eles podem ser incentivados a trazer, de fora da sala de aula, os marcadores de identidade que atribuem sentido. As autoras asseguram, portanto, que parte desse trabalho reconhece que as identidades podem ser expressas em artefatos e aquele pode, então, cruzar diversas práticas locais. Por isso, as escolas podem oferecer 'espaços terceiros', os quais podem permitir a identidade dos alunos para serem reconhecidos e, assim, trazer os interesses da comunidade, as formas pelas quais a comunidade funciona, o que favorece identificarmos os recursos da comunidade local que os alunos podem trazer para a escola.

Segundo Kleiman (2005, p. 12), prática de letramento é “um conjunto de atividades envolvendo a língua escrita para alcançar um determinado objetivo numa determinada situação, associadas aos saberes, às tecnologias e às competências necessárias para a sua realização”. A partir dessa definição, ratificamos ser a situação concreta o evento de letramento, que, junto com outros eventos, configura as práticas de letramento. Os estudos acerca do letramento enfatizam também a heterogeneidade de práticas situadas de uso da língua, sem estabelecer hierarquizações e/ou marginalização em relação às práticas que não sejam da esfera escolar. Assim, compreendemos como eventos de letramento as atividades que envolvam textos escritos, seja para serem lidos ou para se falar sobre eles. Entendemos, pois, que os eventos e as práticas de letramento acontecem em variados contextos sociais - incluindo a escola, a universidade e as diversas agências de letramento (KLEIMAN, 1995) - e possibilitam diferentes letramentos aos sujeitos neles envolvidos, ao mesmo tempo em que os próprios sujeitos interferem em novos eventos e práticas de letramento.

Para Kleiman (2006), a construção da identidade profissional do professor decorre de práticas específicas situadas na esfera acadêmica que envolvem jogos de poder entre os sujeitos que dela participam: professores universitários e professores em formação. Assim, é importante que, na formação inicial, as práticas de letramento acadêmico levem o futuro professor a construir sua autonomia, encontrar sua própria voz e se constituir como agente de letramento. A pesquisadora define agente de letramento como um mobilizador dos sistemas de conhecimento pertinentes, dos recursos, das capacidades dos membros da comunidade [...], um promotor das capacidades e recursos de seus alunos e suas redes comunicativas para que participem das práticas sociais de letramento, as práticas de uso da escrita situadas, das diversas instituições. Isto posto, entendemos que é possível estudar as práticas letradas materializadas nos eventos de letramento, considerando-as como pertencentes aos letramentos acadêmicos, escolares, do local de trabalho, pois a esfera de circulação é o elemento central na modalização desses conceitos. Acrescentamos, ainda, que, no âmbito da discussão sobre letramento do professor, podem-se contemplar os chamados “novos letramentos”, “letramentos multissemióticos” e “multiletramentos”

Diante disso, para investigarmos o processo de (trans) formação dos futuros professores para prática de multiletramentos didáticos através da linguagem, contamos com o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD), o qual é tomado neste artigo como um importante instrumento teórico-metodológico para analisar os discursos dos alunos de Letras ao longo de suas experiências na disciplina. Nessa perspectiva, a linguagem é vista como ponto crucial para análise e entendimento da constituição do ser humano em várias instâncias de sua existência. Para tanto, o ISD elege como uma de suas bases o projeto de Vygotsky, o qual atribui à linguagem um papel central no desenvolvimento humano, na construção das atividades coletivas, das formações sociais, dos mundos representados, nas mediações formativas e transformadoras dos indivíduos. Na teoria sociointeracionista de Vygotsky (2009), encontramos a concepção de que a aprendizagem em si é um processo social dinâmico e que funções cognitivas de alta ordem se originam no ambiente social. Assim, a mediação, que se dá através da interação entre os indivíduos e o seu ambiente, evidencia a implicação do social e dos elementos históricos e culturais nesse processo.

No intuito de situarmos os construtos utilizados em nossa análise, apresentamos a proposta de arquitetura textual conforme concebida por Bronckart (1999; 2006). Para a análise da constituição do texto, Bronckart traz a metáfora do folhado textual (BRONCKART, 2006, p. 147) para ilustrar a arquitetura textual que apresenta três camadas: a infraestrutura geral - nível mais profundo, os mecanismos de textualização - nível intermediário, e os mecanismos enunciativos - nível superficial. Esta distinção de nível de análise corresponde a uma necessidade metodológica para análise dos textos, mas Bronckart (2006, p.167) chama a atenção para evitar possíveis contradições que a disposição hierárquica de um folhado possa suscitar. Portanto, para uma melhor compreensão da metáfora, as camadas do folhado são maleáveis e se interpenetram, sendo que existe uma relação mais direta e interligada entre os tipos de discurso, os posicionamentos enunciativos e os mecanismos de temporalização.

Diante do exposto, para o desenvolvimento da nossa pesquisa, propusemos a ressignificação de uma disciplina curricular obrigatória5 do curso de Letras, Prática de Projetos Pedagógicos, com carga horária de 135h/a, em que o objetivo do programa curricular foi redirecionado para abordar perspectivas teórico-metodológicas quanto ao ensino aprendizagem da leitura e produção escrita, sob o viés dos multiletramentos críticos, visando ao diálogo das práticas acadêmicas com e em ambientes digitais, para oportunizar o desenvolvimento de letramentos didático-digitais na formação inicial de professores no curso de Letras.

Uma de nossas principais bases teórico-metodológica na construção do PROMULD e ressignificação da disciplina de Prática de Projetos é a proposta pedagógica de ensino o Projeto Didático de Gênero (PDG), defendido pelas professoras e pesquisadoras Guimarães e Kersch (2012; 2015). Conforme as autoras, com o PDG, percebemos que a preocupação, no trabalho didático, COM os gêneros e as práticas sociais reais são questões basilares para se pensar o trabalho na escola no ensino aprendizagem da língua. Além de demonstrarem de onde parte tal proposição metodológica, as autoras pontuam as etapas que definem o PDG, enfatizando o papel da orientação linguística, da leitura extensiva e da reescrita.

Assim, ao situarmos nossas atividades didáticas na formação inicial de professores de língua materna, bem como o contexto da presente pesquisa, entendemos que, para ressignificar uma proposição de desenvolvimento de projetos pedagógicos que fomentassem o desenvolvimento de letramentos didático-digitais, seria pertinente também um diálogo com uma outra proposição pedagógica: o modelo Technological Pedagogical Content Knowledge (TPACK6). Essa consideração deu-se por entendermos ser urgente nos cursos de formação de futuros professores o desafio de uma adequada integração da tecnologia à educação, por meio de gêneros que explorem elementos multimodais veiculados na cultura digital. O modelo TPACK (Technological Pedagogical Content Knowledge), em português, Conhecimento Tecnológico, Pedagógico e de Conteúdo, foi proposto por Koehler e Mishra (2008), os quais defendem que, para a adequada integração da tecnologia à educação, são necessários três componentes centrais: o conteúdo, a pedagogia, a tecnologia e as interações entre eles.

Com base nessas propostas, nossa proposição formativa foi denominada de Programa de Multiletramentos Didáticos (PROMULD). Caracterizamos o PROMULD como uma pedagogia de projetos sistematizada a partir de uma rede de atividades acadêmico-profissionais, organizadas sob a mediação colaborativa de alunos e professores, que, por meio da escrita (auto)reflexiva, busca desenvolver o ensino-aprendizagem da língua com os gêneros multimodais num dado contexto social, oportunizando a construção de letramentos didático-digitais. Desse modo, compreendemos os letramentos didático-digitais como as capacidades individuais e sociais de mobilizar ações pedagógicas que transformem artefatos digitais em instrumentos de ensino, visando às práticas situadas de uso responsivo da leitura e da escrita nas diversas instituições sociais.

Ressaltamos que consideramos nossa proposição pedagógica também a partir do que Pahl e Rowsell (2005, p. 23) denominam de terceiro espaço, ao assegurarem que o letramento está ligado com a nossa identidade e com as nossas práticas. Assim sendo, conforme pontuam, assumir uma abordagem que entenda o letramento como uma prática social envolve reconhecer que a escola (ou a universidade) é apenas um dos cenários onde as práticas de letramento ocorrem. Isso reconhece que os recursos usados para ensinar em sala de aula podem ser diferentes, em diálogo com os recursos utilizados pelos alunos em suas casas e outros contextos mais.

Além disso, consideramos a aprendizagem como participação social e essa experiência só se dará enquanto processo que for vivenciado no mundo através do compromisso como algo significativo (WENGER, 2001). Desse modo, demonstramos na Figura 01 a representação do processo desenvolvido durante o PROMULD com os futuros professores de língua materna.

Fonte: Elaborado pela primeira autora.

Figura 01 Ciclo do PROMULD 

Como é possível observar na Figura 01, a nossa proposta (trans) formativa foi ilustrada com refrência a um processo cíclico, através do qual foi possível oportunizar, gradualmente, num continuum, a construção e o desenvolvimento de letramentos didático-digitais com os futuros professores de língua materna, a partir de práticas de letramento alicerçadas na produção responsiva de gêneros textuais em diálogo com os letramentos do professor para e no local de trabalho. Assim, a seleção de cada gênero textual estava implicitamente relacionado ao sentido social implicado na sua prática profissional7.

Inicialmente, com a produção dos relatos pessoais, uma produção escrita, individual, solicitada no primeiro encontro da disciplina, visamos a mapear as práticas sociais de leitura e escrita dos (futuros) professores em relação ao acesso à internet e aos seus usos das tecnologias digitais dentro e fora das salas de aula. Em seguida, já no processo de insersão dos futuros professores nos cenários escolares reais, foi solicitada a produção de entrevistas com os docentes e observação semiestruturada, a fim de que produzissem um relatório com informações sistematizadas sobre o contexto com qual atuariam em duas práticas didáticas.

De posse dos relatórios com tais informações, foi possível partilharmos em nossas aulas no curso de Letras, em rodas de conversas, os principais fatores que implicavam as peculiaridades de cada escola colaboradora no projeto e, assim, iniciarmos o processo de construção dos projetos didático-digitais. Vale ressaltar que o planejamento dessas ações didáticas partiam de problemas sociais identificados pelos futuros professores quando de sua imersão nas escolas com seus futuros alunos. Assim também a seleção do/s gêneros textuais propostos nas atividades a serem realizadas.

Entendendo o processo de reescrita como elemento formador, após a partilha das versões iniciais de tais projetos, discutimos colaborativamente as propostas para que, posteriormente, os futuros professores pudessem apresentá-las aos docentes nas escolas e, quando necessário, fazer as devidas adequações, sempre com a preocupação de pensarmos e desenvolvermos uma ação em rede, envolvendo a universidade, a escola, os alunos , a comunidade.

Finalizada a experiência de desenvolvimento dos projetos, os futuros professores foram convidados a produzirem uma resenha, com o propósito de avaliarem suas experiências durante a proposta formativa do PROMULD, dentro de uma perspectiva da alteridade em que pesem as peculiaridades vivenciadas por cada um nos cenários escolares.

É preciso enfatizar que a principal peculiaridade do PROMULD reside na crença de que é necessário oportunizarmos aos futuros professores uma formação compreendida como processo, em que a construção do trabalho didático com os gêneros é inseparável dos contextos no e para o local de trabalho; especialmente, com os gêneros multimodais que circulam em suportes/ambientes digitais dentro e/ou fora do ambiente acadêmico e escolar. Ademais, acreditamos que propor aos futuros professores uma postura etnográfica nos contextos escolares e fazê-los refletir sobre, por meio da escrita com gêneros da esfera acadêmico profissional, lhes permitirá um maior agenciamento na aprendizagem, ao construírem conhecimentos a partir de si e com os outros.

Diante disso, (re)construímos nosso programa da disciplina e nascia, então, uma proposição teórico-metodológica, a qual denominamos de Programa de Multiletramentos Didáticos (PROMULD), pensando em novos tempos e, por isso, novos letramentos. Basicamente, o programa da disciplina está sintetizado na Figura 02, tendo por base as informações mencionadas quanto às etapas expostas na Figura 01.

Fonte: Elaborado pela primeira autora.

Figura 02 Esquema programático da disciplina de PPP, após o PROMULD 

De acordo com a perspectiva bakhtiniana dialógica da linguagem, entendemos que os sentidos dos discursos são construídos pelas relações estabelecidas ideologicamente entre seres sociais, numa situação de interação verbal, portanto, seu entendimento passa pelo entendimento prévio das relações estabelecidas entre os sujeitos, das instâncias sociais em que esses sujeitos se enunciam e dos contextos sociais, imediato e mediato, em que se desenrola a interlocução. Desse modo, buscando investigar a escrita reflexiva acerca do processo de (trans) formação dos futuros professores na construção do letramento didático-digital, através da responsabilidade enunciativa, discorremos a seguir sobre o processo de geração de dados, a seleção dos colaboradores e as categorias analíticas.

NOSSOS COMPANHEIROS NA CAMINHADA...

Com relação aos escritos que circulam em ambientes no e para o local de trabalho dos futuros professores, no uso do mecanismo enunciativo das vozes e da modalização, surgem marcas textuais peculiares, as quais podem ser relacionadas aos papéis sociais que os interlocutores ocupam dentro e fora da universidade, dentro e fora das escolas em que regem as aulas durante a graduação. Ou seja, o uso do mecanismo enunciativo das vozes e da modalização está relacionado às representações interiorizadas dos produtores textuais acerca da situação de ação de linguagem particular na qual se encontram envolvidos nesses lugares sociais.

De acordo com Bronckart (1999, p. 321), essas representações interiorizadas “são construídas na interação com as ações e com os discursos dos outros e, mesmo quando são alvos de uma reorganização singular[...] continuam portando os traços dessa alteridade constitutiva”. Entendemos, pois, que a presença das vozes enunciativas e da modalização nos escritos dos futuros professores é reveladora dos traços da inserção destes em uma rede de representações interiorizadas que se entrelaçam e se interpenetram porque construídas (e partilhadas) coletivamente dentro de uma formação sócio-histórica comum.

Nossa proposição interventiva se deu no curso de Letras, durante o semestre de 2017.2, com alunos do 4º período noturno. Vinte e sete alunos participaram da disciplina naquele semestre, os quais colaboraram em diferentes instâncias e níveis, dado o maior ou menor engajamento nas atividades propostas pelo nosso programa de multiletramentos didáticos. Contudo, para o presente trabalho selecionamos três futuros professores, dentre aqueles que participaram de todas as atividades propostas e tiveram um número mínimo de faltas na disciplina8. Sistematizamos no Quadro 01 algumas informações acerca dos colaboradores selecionados9, a fim de contextualizarmos suas produções.

Fonte: Elaborado pela primeira autora.

Quadro 01 Perfil dos Colaboradores selecionados 

Em vista disso, consideramos examinar como os futuros professores avaliam seus processos de desenvolvimento do letramento didático-digital, a partir da escrita reflexiva na produção de resenhas críticas. O gênero resenha crítica é entendido neste trabalho como um prolongamento da disciplina, em que os futuros professores, ao apropriarem-se do seu processo (trans) formativo, refletem discursivamente acerca da construção do letramento didático-digital. Isso nos possibilita, assim, identificar a quem e como é atribuída a responsabilidade de um determinado agir linguageiro, as diferentes vozes que são colocadas explícita ou implicitamente em cena e as relações entre essas vozes e a voz da instância enunciativa e, portanto, o debate social que elas evidenciam (MACHADO; BRONCKART, 2009, p. 64)10.

“AONDE CHEGAMOS?” ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

Entendendo a escrita fundamental no processo de (trans)formação docente, lembramos as palavras de Nóvoa (2009), quando afirma que:

O registro escrito, tanto das vivências pessoais como das práticas profissionais, é essencial para que cada um adquira uma maior consciência do seu trabalho e da sua identidade como professor. A formação deve contribuir para formar nos futuros professores hábitos de reflexão e de autorreflexão que são essenciais numa profissão que não se esgota em matrizes científicas ou mesmo pedagógicas, e que se define, inevitavelmente, a partir de referências pessoais (NÓVOA, 2009, p. 32).

Conforme argumenta o autor, nosso trabalho pretende discutir uma experiência vivida num lugar privilegiado para refletirmos acerca de eventos de letramento acadêmico-profissional: a formação inicial no curso de Letras licenciatura. Desse modo, passemos às análises das materializações linguageiras do agir dos futuros professores. Para isso, parafraseando Carnin (2015), consideramos a escrita sobre o agir (textos produzidos em situação de formação que refletem sobre práticas docentes - aqui, as Resenhas).

Conforme reiterado ao longo deste trabalho, entendemos a escrita como um elemento identitário de formação (KLEIMAN, 2007) e consideramos o PROMULD como prática de letramento acadêmico-profissional. Por isso, os discursos que constituem os dados de análise foram produzidos no interior de uma esfera de atividade que lhe atribuiu determinadas particularidades. Esses discursos integram as resenhas críticas sobre os eventos de letramento ocorridos no semestre 2017.2, as quais foram produzidas pelos futuros professores, a fim de oportunizar feedbacks11 avaliativos acerca de práticas formativas realizadas dentro e fora da universidade.

Compreendemos que é por meio de atividades sociolinguageiras que o ser humano participa de avaliações sociais e desenvolve critérios coletivos de avaliação, julgando, portanto, as ações dos outros, suas ações relativas às suas capacidades de ação (poder-fazer), às suas intenções (querer-fazer) e às suas motivações (razões de agir), sabendo que elas mesmas serão, por conseguinte, objeto dessas avaliações (BRONCKART, 1999; 2006). Nesse sentido, tais discursos inserem-se no contexto particular do programa de multiletramentos didáticos e, em razão desse contexto sociodiscursivo, sua produção é marcada pela presença da professora orientadora (a partir da posição de interlocutora imediata), como também das professoras supervisoras, dos alunos e dos colegas do curso de Letras.

Esses sujeitos constituem as condições imediatas de produção das resenhas críticas e, em estreita relação uns com os outros, incidem em grande influência sobre elas. Consequentemente, a apreensão dos discursos que constituem as resenhas atravessa, necessariamente, a compreensão da integração desses elementos na composição do contexto imediato de sua produção. Desse modo, nos questionamos: como os letramentos didático-digitais dos futuros professores são constituídos pela língua(gem), catalisados pela/na escrita reflexiva e sinalizados pelas vozes enunciativas nos eventos de letramento?

Numa leitura inicial de todas as resenhas produzidas, notamos regularidades nos discursos dos futuros professores, que marcam claramente, através das modalizações e das vozes enunciativas, avaliações recorrentes sobre o outro e sobre si, seus pontos de vista e a emergência de índices do letramento didático-digital construído ao longo do programa. Assim sendo, detalharemos nossas análises da escrita reflexiva nas resenhas, a partir das condições de produção e do nível enunciativo das resenhas elaboradas pelos futuros professores.

CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DAS RESENHAS

Mais comumente, as pesquisas relacionadas aos discursos dos futuros professores (ou estagiários) elegem os relatórios do estágio supervisionado. O relatório de estágio é um dos registros mais utilizados pelas universidades brasileiras, isso ocorre em função da sua própria estrutura linguístico-discursiva, como afirmam Leurquin e Barros (2013):

[...] (1) é nele que o aluno registra sua experiência, como pesquisador observador do agir professoral; (2) é através dele que o aluno dialoga com seus pares (colegas da turma, professores e estudiosos da área); (3) é com ele que também podemos trabalhar a construção do letramento do professor em formação; e (4) pode ser que a partir dele consigamos intervir na política de formação de professores, de ensino e aprendizagem; (5) é por meio dele que o aluno é avaliado (LEURQUIN; BARROS, 2013, p. 7).

Como elucidam as autoras, os registros realizados durante o estágio supervisionado, por meio do gênero relatório de estágio, constituem um importante instrumento na apreensão do processo de constituição identitária de professores em formação inicial. Entretanto, consideramos que a escrita da resenha crítica, ao final do nosso PROMULD também nos permitiu fazer circular sua visão do estatuto da profissão docente, uma vez que as representações, avaliações, julgamentos flagrados em seus discursos nos permitem analisar o modo como cada indivíduo se posiciona sobre uma determinada atividade e como foi se constituindo ao longo da disciplina. Além disso, essas representações, uma vez interiorizadas pelos futuros professores, tornam-se uma espécie de guias para as suas ações futuras (BRONCKART; MACHADO, 2004).

De acordo com os autores, analisar os textos ou as redes discursivas “[...] que se constrói(em) na e sobre uma determinada atividade para chegar a compreender a natureza e as razões das ações verbais e não verbais desenvolvidas e o papel que a linguagem aí desempenha” nos auxilia(m) no desenvolvimento do agir do professor (BRONCKART; MACHADO, 2004, p. 136, grifos dos autores). Dessa forma, como argumenta Bazerman (2006, p. 10), além de o gênero dar forma às nossas ações e intenções, é também “um meio de agência e não pode ser ensinado e divorciado da ação e das situações dentro das quais aquelas ações são significativas e motivadoras”. Assim, entendemos que as resenhas produzidas pelos futuros professores são ferramentas para que estes possam abstrair as condições de uso da linguagem, para que possam desenvolver habilidades de entender e produzir textos para se comunicar melhor (letramento) e serem reconhecidos no contexto da academia e da organização social.

Diante do exposto, observamos as orientações da professora formadora para a produção das resenhas críticas ao final da disciplina:

“Olá querid@s,

Estamos chegando à reta final da nossa jornada em pensar didaticamente, de fato, a produção de gêneros multiletrados com alunos da Educação Básica. Muitos foram os desafios e obstáculos... Alguns foram possíveis de serem contornados, outros nem tanto. Mas isso é o que acontece quando nos propomos a dialogar com as reais práticas do cotidiano escolar e, assim, experenciar o que é ser professor, além dos muros da universidade.

A produção dessa atividade é crucial para avaliarmos as atividades desenvolvidas ao longo do semestre, assim como para avaliarmos o papel de cada um nesse processo. Por isso, atentem que as resenhas terão como interlocutores a professora e os colegas da turma. Peço que atentem ao roteiro de questionamentos12na produção de seus textos e postem no nosso grupo do Facebook, até o prazo combinado. A resenha deve ser produzida com a formatação em Word, fonte Arial, tamanho 12, espaçamento simples entre linhas e 1,5 entre parágrafos, com, o mínimo de duas laudas”.

Como podemos observar, no texto de orientação, são demarcados pela professora formadora os critérios estabelecidos para a produção das resenhas, tanto quanto à estrutura e formatação do texto, quanto à funcionalidade do gênero em questão. A apreciação valorativa do gênero em questão, enquanto instrumento essencial no processo formativo desenvolvido, é delineada, por exemplo, com o uso do adjetivo ‘crucial’ e com a ênfase ao verbo ‘atentem’ no modo imperativo. No total, foram postadas vinte e cinco resenhas, ou seja, todos os concluintes da disciplina de Prática de Projetos produziram os textos, sendo a extensão destes de três a quatro laudas digitadas. Vale ressaltar que, embora reiterada a importância da atividade, esta não era obrigatória nem serviria de base para atribuição de nota na disciplina.

Levantamos a hipótese de que um dos motivos que influenciou na postagem das resenhas por parte de todos os concluintes deveu-se ao engajamento e ao agenciamento que os futuros professores construíram individual e coletivamente durante os eventos de letramento. Além disso, percebemos a implicação da professora formadora em coordenar todo o processo de aprendizagem sob a perspectiva sociointeracionista, como demonstra o uso constante de pronomes e verbos na primeira pessoa do plural: estamos, nossa, nos propomos, avaliarmos, nosso, etc.

É preciso ressaltar, contudo, que um dos objetivos da postagem das resenhas ser solicitada no grupo fechado do Facebook era no intuito de compartilhar as percepções e avaliações entre todos da turma, comentando os textos uns dos outros, mesmo porque isso foi informado em um dos encontros presenciais da disciplina. Porém, essa discussão não ocorreu no grupo do Facebook, apenas no encontro presencial final da disciplina, em que, numa grande roda de conversa, comentamos e refletimos sobre as apreciações de todos.

Ao serem questionados acerca da falta de comentários no grupo do Facebook sobre as resenhas dos colegas, em sua maioria, os futuros professores afirmaram: “não nos sentimos a vontade para comentar, ali, por escrito, uma avaliação que era particular do outro, já que cada um tinha sua opinião. Mas, agora, aqui, todo mundo falando, fica mais confortável comentar13. Inicialmente, interpretamos essa situação como falta de atenção dos futuros professores, pois, no calor do contexto, era a professora quem cobrava a presteza dos acadêmicos. Todavia, ao refletirmos e analisarmos os dados catalogados, o papel social de pesquisadora nos fez entender que aquela aparente falta de interesse e assiduidade na atividade, na verdade, consistia no agenciamento identitário14 dos futuros professores ao posicionarem-se segundo suas crenças e julgamentos.

Consideramos relevante essa explicação, tendo em vista que o presente trabalho é decorrente de uma pesquisa-ação, que, em sua premissa principal, visa à investigação sobre a ação, objetivando um aprimoramento das nossas práticas, (trans) formando nosso agir. No Quadro 02, então, sistematizamos as informações sobre o contexto sociodiscursivo de produção das resenhas críticas na ultima semana de aula da disciplina.

Fonte: Adaptado de Bronckart (1999, p. 93) e Reichmann (2015, p. 74).

Quadro 02 Representações dos mundos físico e sociosubjetivo das Resenhas 

Apresentados os fatores constituintes do contexto de produção das resenhas críticas, analisaremos o nível organizacional. Iniciaremos pelo plano global do texto e, em seguida, veremos os tipos de discurso e os mecanismos enunciativos evidenciados nas avaliações de seus processos de desenvolvimento do letramento didático-digital, a partir da escrita reflexiva.

ANÁLISE DO NÍVEL ORGANIZACIONAL E DOS MECANISMOS ENUNCIATIVOS

Para a caracterização dos aspectos mais específicos dos textos, identificamos, primeiramente, o plano geral que os constituiu, apresentando a configuração formal e temática que os moldou. Essa análise nos permite, segundo Bueno (2007, p. 82), “[...] perceber que temas ou que aspectos de um tema foram privilegiados, menosprezados ou esquecidos nos textos”. Essa organização do plano global do texto foi realizada nesse trabalho, a partir de um roteiro prefigurativo, como explicado anteriormente. Logo, foram agrupados em dois eixos: no Eixo I, os questionamentos dos tópicos Sobre a Disciplina e Sobre o ensino de Língua Portuguesa; e, no Eixo II, os dos tópicos Sobre mim e Sobre meu Grupo. Desse modo, para examinarmos o nível organizacional e os mecanismos enunciativos das resenhas críticas, optamos em sistematizar nossas análises a partir dos dois eixos citados acima.

No Eixo I - Sobre a Disciplina/ Sobre o ensino de Língua Portuguesa, concentram-se os questionamentos referentes ao objetivo da disciplina, à metodologia empreendida, às atividades propostas, à avaliação da professora, às práticas que dialoguem com gêneros e tecnologias digitais, assim como possíveis sugestões e/ou críticas à professora, para futuros planejamentos didáticos.

No Eixo II - Sobre mim e Sobre meu Grupo, estão agrupados os questionamentos sobre a autoavaliação nas participações das aulas e atividades, individuais ou em grupo; sobre as facilidades e obstáculos do trabalho em equipe; sobre a construção/desenvolvimento dos PDDs; sobre suas identidades, enquanto acadêmicos e futuros professores de língua materna.

Na primeira parte da planificação textual das resenhas, identificamos os parágrafos que avaliavam aspectos referentes às atividades desenvolvidas na disciplina e às percepções dos futuros professores acerca do ensino de Língua Portuguesa. Notamos que, nesse eixo, predominaram segmentos de tratamento temático do tipo de discurso misto interativo-teórico, tendo em vista que percebemos a preocupação dos produtores em apresentar informações relacionadas às coordenadas de um mundo teórico, logo, autônomas, ao estabelecerem os fatores constituintes da disciplina e do ensino de língua. Por outro lado, percebemos também que, ao considerar os interlocutores previstos e a finalidade na produção das resenhas, os futuros professores buscaram ancoragem nas coordenadas do mundo interativo, portanto, implicadas, uma vez que possuíam conhecimento da situação de ação da linguagem. Vejamos no Quadro 03 alguns dos segmentos tratamento temático do discurso misto interativo-teórico do Eixo I nas Resenhas.

Fonte: Elaborado pela primeira autora

Quadro 03 Segmentos tratamento temático do discurso misto interativo-teórico do Eixo I 

É possível perceber a regularidade temática nos segmentos discursivos do eixo I, em que os futuros professores avaliam e refletem sobre as atividades desenvolvidas ao longo da disciplina, bem como seus parâmetros formadores e suas finalidades no/para o processo de ensino aprendizagem. Ainda que não seja predominante o uso de marcadores linguísticos que denotem a primeira pessoa do singular e/ou do plural, notamos a valoração positiva e o posicionamento apreciativo constantes nos discursos dos futuros professores, principalmente, com a presença de adjetivos (maior, melhor, importantes, essenciais, fundamental, relevantes), advérbios (muitas vezes, certamente, bem distantes, várias, às vezes, quando, muito mais, não) e organizadores argumentativos (mas, pois, apesar).

Reichmann (2015), com base em Grande (2010) e Koch (2010), ressalta o valor dos organizadores argumentativos em análises de enunciados de futuros professores, quando estes se posicionam acerca de suas formações. A autora pondera, por exemplo, que “cada enunciado iniciado por ‘mas’ envolve uma contraposição argumentativa e, simultaneamente, a (re)construção de um lugar, de uma identidade” dos futuros professores e da professora formadora (REICHMANN, 2015, p. 129).

Sustentadas em Bronckart (1999; 2011), além desses índices linguísticos, detectamos na dimensão configuracional do discurso teórico-misto do eixo I um posicionamento enunciativo dos futuros professores que sinaliza um continnum entre o eixo da conduta, valor deôntico, e o eixo apreciativo. Essa verificação é evidenciada em trechos como: “é preciso que haja a interação, ou seja, o compartilhamento de ideias e experiências; precisa ser mais comum na nossa formação enquanto professor; é preciso rever formas e metodologias quando os imprevistos ocorrem”. Entendemos que, por um lado, os futuros professores, apoiados nos valores, nas opiniões e nas regras constitutivas do mundo social construído durante a disciplina, avaliam os fatores necessários a uma formação colaborativa, sociointeracionista e que associa teoria à prática. Por outro, também se posicionam na apreciação desses aspectos, a partir de um mundo subjetivo, sendo a voz que é a fonte desse julgamento e apresentando o que consideram como benéfico e pertinente em sua formação e em seu agir.

Desse modo, ao refletir por meio da escrita da resenha crítica acerca da prática de letramento empreendida durante a disciplina, os futuros professores revelaram em seus posicionamentos enunciativos dialogar e convergir com as perspectivas teórico-metodológicas do programa de multiletramentos didáticos. Inferimos, pois, ter havido a adesão à prática formativa proposta. Contudo, a evidente sintonia entre a perspectiva formativa e a avaliação dos futuros professores não significa uma mera relação de causa e efeito. Pelo contrário, tais avaliações atestam o redimensionamento identitário na postura enquanto (futuros) professores, ao apropriarem-se do lugar e da voz de quem tem legitimidade para avaliar. Essa compreensão, oportunizada pelos eventos de letramento dentro e fora do âmbito universitário e materializada no exercício da reflexão da escrita situada, lhes permitiu uma leitura responsiva de suas práticas e dos sujeitos com e para os quais as desenvolveu. Por isso, argumentamos que os futuros professores apropriaram-se do processo de seus letramentos didático-digitais.

No eixo II das resenhas, por sua vez, identificamos uma relação de implicação maior na avaliação de si e dos outros no engajamento das atividades propostas, assim como na apreciação dos principais obstáculos enfrentados durante os eventos de letramento para e no local de trabalho do (futuro) professor. A fim de examinarmos mais detalhadamente esse posicionamento enunciativo dos futuros professores, sistematizamos alguns segmentos de tratamento temático do discurso relato interativo no Eixo II das Resenhas.

Fonte: Elaborado pela primeira autora

Quadro 04 Segmentos de tratamento temático do discurso relato interativo no Eixo II 

Conforme demonstrado no Quadro 04, os segmentos temáticos arrolados no eixo II das resenhas críticas caracterizam a predominância do relato interativo, uma vez que os segmentos se organizam, enunciativamente, numa ancoragem temporal, marcada pelo pretérito perfeito e imperfeito como tempos predominantes (foi, pude, procurei, foram, fez, deixei, possuíam, sugeri, predominou, falou, teve, somou), bem como com organizadores que apontam a origem do espaço-tempo dos eventos e temáticas evocados, que, nesses exemplos, situavam-se em torno da descrição do processo de avaliação das experiências formativas vivenciadas (na sala de aula, fora da sala de aula, anteriormente, atual, fora da universidade, durante a disciplina, no primeiro momento, após as primeiras aulas nas escolas, na escola, neste mundo).

Nessa organização discursiva, as ações dos futuros professores são apreendidas em um eixo temporal evocado, posteriormente, em relação aos parâmetros da situação de produção das resenhas críticas, entretanto, a implicação do agente-produtor foi marcada pela forte presença dos pronomes e desinências verbais em primeira pessoa do singular (eu), como comprovados nos termos: minha, pude participar, vi, me comportando, me dedicando, meu, eu avalio, posso citar, mim. Essa implicação também denota a responsabilização e tomada de consciência dos futuros professores em avaliar suas participações e seu grupo de trabalho nos eventos de letramento. Percebemos que, nos segmentos expostos, os futuros professores admitem que poderiam ter se engajado um pouco mais nas aulas e nas interações iniciais dentro da universidade, porém mostram que essa participação foi mais significativa durante as ações desenvolvidas no local de trabalho, nas escolas.

Haja vista termos como premissa em nosso projeto formativo a aprendizagem como participação social e que essa experiência só se dará enquanto processo que for vivenciado no mundo através do compromisso como algo significativo (WENGER, 2001), consideramos que essa apreciação mais positiva dos eventos fora dos muros da universidade, em contato real com as práticas sociais letradas e os sujeitos que constituem a escola, se deve ao ‘novo papel’ assumido pelos futuros professores, numa reconfiguração identitária a partir da interação, na orquestração de vozes de outros (interiorizadas) e de si (internas) que ecoam em textos empíricos escritos por professores em formação (KLEIMAN; MATÊNCIO, 2005).

Kleiman (2006) argumenta que, com base no exame dos recursos linguísticos utilizados pelo professor ou aluno em formação, nos seus textos orais e escritos, que são indícios da posição enunciativa assumida, é possível inferir posicionamentos identitários do autor do texto, isto é, aqueles posicionamentos que têm a ver com sua identidade profissional. Nesse sentido, destacamos alguns trechos em que esse realinhamento como futuro professor é registrado nas resenhas: “me comportando como uma futura professora de Língua Portuguesa, me dedicando aos alunos e estudando mais [...]”; “Como futura professora de Língua Portuguesa, pude notar [...]” (Vânia); “Após as primeiras aulas nas escolas, falou mais forte a identidade como futuro professor de língua portuguesa” (Mauro); “Como futura professora de língua portuguesa, acredito que [...]” (Maria).

Nesse processo de mobilização da identidade profissional, os futuros professores ratificam a construção de seus letramentos didático-digitais, quando do desenvolvimento dos projetos didático-digitais, uma vez que, na avaliação do seu agir em relação às ações pedagógicas desenvolvidas para e no local de trabalho do professor, apresentam marcadores apreciativos daquilo que consideram relevantes na transformação dos artefatos digitais em instrumentos de ensino: “pude notar que os multiletramentos são essenciais no ensino de L.P, pois os recursos digitais utilizados são fundamentais para o diálogo com a realidade do aluno atual” (Vânia); “de fato, houve transformação em minhas concepções teóricas e metodológicas referentes ao ensino de língua portuguesa e o uso dos recursos digitais, em consequência do conhecimento adquirido e a prática vivenciada” (Mauro); “acredito que propostas didáticas que dialogam o ensino de língua portuguesa com os ambientes e recurso tecnológicos digitais têm a somar com o ensino, pois, neste mundo cada vez mais digital, é preciso que nas instituições escolares se promova o letramento didático com esses recursos, visto que fazem parte da nossa prática social e dos discentes, e podem tornar o ensino mais atrativo e dinâmico” (Maria).

Como Lankshear e Knobel (2007, 2008) explicam, novas práticas letradas envolvem um “novo ethos”, que leva em consideração diferentes padrões de valores, prioridades e sensibilidades mobilizados em práticas letradas. Ainda que nosso objetivo não seja discutir minuciosamente a questão do ethos, enfatizamos que oportunizar novas práticas formativas para e no local de trabalho do professor corrobora para o seu agenciamento na mobilização de recursos que prefiguram e constituem seu agir. No caso em particular, motivados e desafiados a participar de eventos de letramento acadêmico-profissional em sua formação inicial, em que as ações pedagógicas dialogassem com os artefatos digitais e a multimodalidade da linguagem, os futuros professores empreenderam em suas apreciações ressignificações de saberes pré-construídos, constituindo-se atores de seu próprio trabalho e, consequentemente, do seu processo de letramento didático-digital.

Nesse sentido, a investigação da escrita reflexiva e avaliativa das resenhas críticas nos mostrou que a reflexão, enquanto atividade de confrontamento, de pensar sobre si mesmo e sobre os outros, sua prática e sua formação, foi relevante no processo de formação e de desenvolvimento do letramento didático-digital dos futuros professores, uma vez que entendemos que essa prática pode oportunizar momentos significativos de compartilhamento de saberes para, sobre e no local de trabalho do professor. A reflexão e avaliação de eventos de letramentos voltados à construção de um terceiro espaço entre ensino e tecnologia, oportunizadas pela produção escrita dos futuros professores, materializou a escrita reflexiva destes acerca de suas experiências durante o PROMULD, bem como possibilitou a tomada de consciência de seu letramento didático- digital, isto é, revelou as capacidades individuais e sociais de mobilizar ações pedagógicas que transformem artefatos digitais em instrumentos de ensino, visando às práticas situadas de uso responsivo da leitura e da escrita nas diversas instituições sociais.

“CONTINUANDO A CAMINHADA...” CONSIDERAÇÕES (NUNCA!) FINAIS

Após tecermos um estado da arte, em nível nacional (na BDTD), verificamos uma carência de pesquisas sob o viés intervencionista, em que tanto os professores formadores quanto aqueles em formação inicial fossem incitados a ressignificar suas práticas de letramento, diante das tecnologias digitais, sobretudo, pesquisas que oportunizassem pensar, propor, desenvolver e refletir sobre perspectivas didáticas no ensino em que os artefatos digitais sejam tomados em contextos reais de aprendizagem, sem tornarem-se meros suportes e/ou recursos. Observamos também a lacuna quanto a pesquisas que investigassem o ensino e formação desses professores através de um trabalho pedagógico reflexivo, a partir da aprendizagem COM os gêneros textuais que efetivamente dialogassem com os eventos e práticas de letramento dos professores em formação e com os contextos reais das escolas de nível básico.

Essa constatação motivou-nos a desenvolver um estudo sob a perspectiva da pesquisa-ação em nosso contexto de trabalho: uma universidade estadual, pública, na região sul do estado do Maranhão, tendo em vista a urgência de uma formação e didatização dos saberes científicos sob a perspectiva dos multiletramentos, que dialogasse com as práticas letradas acadêmicas, mas também com as práticas sociais dos futuros professores, de modo que fossem considerados os contextos sociais, históricos e culturais de produção discursiva.

Nossa proposta teve como objetivo principal analisar processos de (trans) formação de futuros professores de língua materna no curso de Letras para práticas de letramentos didático-digitais, a partir dos mecanismos de responsabilidade enunciativa na escrita reflexiva sobre o trabalho docente. Ademais, acreditamos que propor aos futuros professores uma postura etnográfica nos contextos escolares e fazê-los refletir, por meio da escrita com gêneros da esfera acadêmico profissional, lhes permitiria um maior agenciamento na aprendizagem, ao construírem conhecimentos a partir de si e com os outros.

Na investigação da escrita reflexiva e avaliativa das resenhas críticas, identificamos a relevância da reflexão, enquanto atividade de confrontamento, de pensar sobre si mesmo e sobre os outros, em sua prática e em sua formação. No intuito de examinarmos como os futuros professores apreciavam a construção e o desenvolvimento de seu letramento didático-digital, observamos uma reconfiguração identitária em sua postura responsiva. Por meio da reflexão na escrita situada, nossos colaboradores tomaram consciência da necessidade de seu agenciamento no processo formativo, tomaram consciência de seu papel ativo na construção da sua capacidade de mobilizar ações pedagógicas que transformem artefatos digitais em instrumentos de ensino, visando às práticas situadas de uso responsivo da leitura e da escrita nas diversas instituições sociais.

Ademais, frisamos a relevância do diálogo universidade e escolas da educação básica em momentos anteriores ao estágio supervisionado, tendo em vista que, ao oportunizarmos eventos de letramentos acadêmico-profissionais aos futuros professores no contexto docente, temos, enquanto professores formadores, o discernimento dos licenciados será maior e melhor, quanto à compreensão do conjunto de problemáticas, de conflitos, de contradições, de possibilidades dos novos processos de formação, da percepção como parceiros de profissão em formação, suscitando, portanto, um novo compromisso para práticas de(s)coloniais.

Quanto às contribuições desta pesquisa para os campos da Educação e da Linguística Aplicada (LA), consideramos que levar em conta as vozes dos sujeitos que constituem e constroem os eventos de letramento sobre seu próprio agir profissional é adotar uma postura ética, crítica e engajada da LA. Kleiman (2013), ao discutir os rumos da pesquisa na LA do Brasil, destaca as contribuições de uma reflexão sobre a descolonialidade do conhecimento na formulação de problemas de pesquisa e participação social do linguista aplicado, o que envolve uma postura ética com os grupos periféricos nas relações de poder e saber. Nesse sentido, entendemos que oportunizar aos futuros professores, bem como à professora formadora, práticas formativas no e para o local de trabalho, com base na reflexão do seu agir por meio da escrita e de eventos colaborativos de interação universidade/escola, é apontar a importância da linguagem como instrumento no/pelo qual crenças, identidades e papéis sociais são ressignificados. É (des)construir os espaços discursivos de ensino-aprendizagem.

À guisa de conclusão, enfatizamos a importância de propostas formativas que fomentem o trabalho coletivo, a participação dos futuros professores na resolução de problemáticas reais em contextos educativos, a inclusão da prática como conteúdo de formação, a reflexão dos artefatos digitais e ambientes tecnológicos como possibilidades de ensino aprendizagem das múltiplas linguagens, enfim, almejamos que a pesquisa seja parte integrante do processo formativo (de alunos e professores), sendo a oportunidade de abertura a novos horizontes e desafios. Assim, compreendemos que a pesquisa, inicialmente, sobre eles, tornou-se com eles, mas, sobretudo, tomamos consciência que era sobre próprio letramento didático-digital da primeira autora. Ao final desta pesquisa sentimos que estamos recomeçando...

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1O uso do termo “futuros professores” justifica-se pelas nossas premissas teóricas (KLEIMAN, 2001; MACHADO, 2004; KERSCH & CARNIN, 2016, 2017; REICHMANN, 2015) as quais entendem que, pelo seu uso, demonstramos que nossos colaboradores da pesquisa ocupam um entre-espaço social e discursivo, um entre-lugar peculiar, no qual são relevantes seus papéis enquanto alunos, no ambiente universitário e também professores, quando desenvolviam seus projetos didáticos digitais nas escolas da rede básica.

2O conceito de artefato é adotado nesse trabalho, a partir de Machado e Bronckart (2009), referindo-se a tudo aquilo que se destina a uma finalidade da origem humana, podendo ser material (utensílio, máquinas objetos), imaterial (programa de computador) ou simbólico (signos, metodologias, esquemas, planos de aula etc.). Assim, o instrumento existe “se o artefato for apropriado pelo e para o sujeito” (MACHADO E BRONCKART, 2009, p. 38, grifos dos autores). Ou seja, são atribuídas funções ao artefato, contudo, quando o sujeito se apropria do objeto, adaptando-o de acordo com seus objetivos específicos, temos o instrumento.

3Os resultados apresentados nesse trabalho fazem parte de uma pesquisa macro disponibilizada na tese de doutorado da primeira autora.

4Acerca do processo histórico de construção do conceito de letramentos no Brasil, vale destacar os estudos pioneiros desenvolvidos por Magda Soares, desde o ano de 1995, quando apresentou pesquisa seminal na Reunião da Anped: "Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas".

5A opção por ressignificarmos os objetivos originais da disciplina deu-se em virtude de acreditarmos que sendo obrigatória, a participação e engajamento pudessem ser maiores, haja vista ser uma perspectiva totalmente nova na formação ofertada no curso.

6A sigla TPACK passou a ser utilizada após recomendação dos próprios autores e outros teóricos que discutiam o framework, afirmando que dessa maneira facilitaria sua pronúncia. TPACK aparece na literatura acadêmica no artigo dos autores Harris, J., Mishra, P., & Koehler, M. Technological pedagogical content knowledge and learning activity types: curriculum-based technology integration reframed. Journal of Research on Technology in Education, 41(4), 2009, 393-416. Disponível em: https://files.eric.ed.gov/fulltext/EJ844273.pdf

7Todas as produções textuais foram propostas a partir de um roteiro de orientação previamente disponibilizado e explicitado pela professora orientadora do projeto formativo e primeira autora deste artigo.

8Ademais, conforme descritos no Quadro 01, os colaboradores selecionados compunham um corpus com práticas sociais de leitura e escrita, em geral, distintas, bem como, formações acadêmicas e profissionais diferenciadas. Características estas que julgamos relevantes para investigarmos os processos de construção de letramentos didático-digitais, dada à variedade de sentidos que aqueles atribuíam aos seus usos da leitura e da escrita, como também, de suas práticas sociais com os gêneros e os artefatos digitais. As informações foram geradas a partir de Relatos autobiográficos produzidos na primeira semana da disciplina.

9Ressaltamos que a pesquisa realizada foi devidamente submetida ao Comitê Ético de Pesquisa da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - RS. Deste modo, utilizamos pseudônimos para nos referirmos aos nossos colaboradores.

10Tivemos como inspiração teórico-metodológica para a produção das resenhas (auto)avaliativas estudos que argumentam positivamente acerca da prática etnográfica na educação, tais como Kleiman (2001), Heath & Street (2008), Burton (2009) e Nóvoa (2009).

11O termo feedback é interpretado nesse trabalho enquanto prática avaliativa formativa, em que os futuros professores avaliam a si próprios, aos colegas, seus alunos e a professora orientadora do PROMULD, ou seja, todos os sujeitos que coenunciam seu agir. Para maiores detalhes do feedback como prática formativa, sugerimos a obra da pesquisadora Valerie J. Shute (2007), na qual é apresentada a conceituação do termo e explicitados seus tipos.

12Os questionamentos de orientação para a produção das resenhas foram organizados em blocos temáticos: Sobre a Disciplina; Sobre seu Grupo; Sobre Mim e Sobre o Ensino de Língua Portuguesa.

13Registro gerado a partir da gravação em áudio de um dos últimos encontros presenciais da disciplina.

14Entendemos que “[...] a construção de posicionamentos identitários emerge de movimentos baseados tanto na diferença como na similitude do sujeito em relação ao outro (eu/outro; eu/ espelhamento do outro), [buscando] perceber as marcas da singularidade, de individualidade, de exclusão do outro e aquelas que revelam a condição de pertença a um grupo, a uma coletividade - a apropriação/assimilação de características dos valores, crenças desse grupo” (SILVA; MATENCIO, 2008, p. 5).

Recebido: 18 de Maio de 2020; Aceito: 10 de Outubro de 2022

anamartins1@professor.uema.br

doroteafk@unisinos.br

Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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