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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 01-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469837031 

Artigos

ACOMPANHAMENTO PEDAGÓGICO HOSPITALAR A CRIANÇAS COM CÂNCER EM PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

SEGUIMIENTO PEDAGÓGICO HOSPITALARIO A NIÑOS CON CÁNCER EN EL PROCESO DE ALFABETIZACIÓN

EMANUELLE DA SILVA FERREIRA1  , Coleta de dados, análise dos dados e escrita do texto
http://orcid.org/0000-0003-2397-4548

ANA CLÁUDIA RODRIGUES GONÇALVES PESSOA1  , Coordenadora, participação na análise dos dados e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0002-7791-3209

1 Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, Pernambuco (PE), Brasil


RESUMO:

O presente estudo tem como objetivo geral analisar o acompanhamento pedagógico hospitalar realizado no setor de oncologia de um hospital público do Recife no que se refere às crianças em processo de alfabetização. Os objetivos específicos são verificar o conhecimento dos pais e professoras da oncologia sobre as leis que asseguram a continuidade do processo ensino-aprendizagem no ambiente hospitalar; analisar se e como ocorre a relação entre a escola e as professoras da oncologia no processo de alfabetização das crianças; averiguar as ações do pedagogo no atendimento hospitalar no setor de oncologia. Realizamos pesquisa com abordagem qualitativa utilizando como ferramentas de coleta de dados, observações e entrevistas semiestruturadas. Através do estudo, foi possível constatar que o acesso à pedagogia hospitalar proporciona a criança e ao adolescente em situação de hospitalização, não só a continuidade do processo de escolarização, mas oferece perspectiva de futuro, contribui para a tão almejada cura, para o prosseguimento de projetos de vida. Ressaltamos a necessidade do desenvolvimento de novas pesquisas que visem contribuir com a continuidade do processo ensino-aprendizagem das crianças em tratamento, em especial às que estão em processo de alfabetização.

Palavras-chave: Alfabetização e letramento; pedagogia hospitalar; crianças com câncer

RESUMEN:

El presente estudio tiene como objetivo general analizar el seguimiento pedagógico hospitalario realizado en el sector de oncología de un hospital público de Recife en relación con los niños en proceso de alfabetización. Los objetivos específicos son verificar el conocimiento de los países y de los profesores de oncología sobre las leyes que aseguran la continuidad del proceso de enseñanza-aprendizaje en el ambiente hospitalario; analizar si y cómo ocurre la relación entre la escuela y los profesores de oncología en el proceso de alfabetización de los niños; averiguar las acciones del pedagogo en la atención hospitalaria en el ámbito de la oncología. Realizamos una investigación con un enfoque cualitativo, utilizando como instrumentos la recopilación de datos, las observaciones y las entrevistas semiestructuradas. A través del estudio, fue posible verificar que el acceso a la pedagogía hospitalaria proporciona a los niños y adolescentes en situación de hospitalización, no sólo la continuidad del proceso de escolarización, sino que también ofrece perspectiva de futuro, contribuye a la tan deseada cura, a la continuación de los proyectos de vida. Enfatizamos la necesidad de desarrollar nuevas investigaciones que tengan como objetivo contribuir a la continuidad del proceso de enseñanza-aprendizaje de los niños en tratamiento, especialmente los que están en proceso de alfabetización.

Palabras clave: La alfabetización y la educación; la pedagogía hospitalaria; los niños con cáncer

ABSTRACT:

The present study aims at the general analysis of the pedagogical hospital monitoring carried out in the oncology sector of a public hospital in Recife with regard to children in the literacy process. The specific objectives are to verify the knowledge of parents and teachers of oncology about the laws that ensure the continuity of the teaching-learning process in the hospital environment; analyze whether and how the relationship between the school and how oncology teachers occur in the children's literacy process; investigate the actions of the educator in hospital care in the oncology sector. We conducted research with a qualitative approach, using data collection, decoding and semi-structured changes as tools. Through the study, it was possible to verify that the access to hospital pedagogy offers a child and adolescent in a situation of hospitalization, not only the continuity of the schooling process, but offers a perspective for the future, I contributed to a cure so desired, for the continuation of life projects. We emphasize the need to develop new research aimed at contributing to the continuity of the teaching-learning process of children undergoing treatment, especially those who are in the process of literacy.

Keywords: Literacy and literacy; hospital pedagogy; children with cancer

INTRODUÇÃO

O processo de alfabetização de crianças no nosso país é repleto de desafios. Segundo Sá e Pessoa (2016), pesquisas constatam consideráveis índices de reprovação e expressivo número de alunos que encerram o ciclo sem estar efetivamente alfabetizados. De acordo com Morais (2012), estar plenamente alfabetizado ultrapassa as práticas de memorização de códigos, caracteriza-se como um movimento de compreensão de um sistema notacional.

Defendemos, assim como Morais (2012) e Soares (1998), que o processo de alfabetização é satisfatório quando o aluno consegue ler, produzir e relacionar-se através de diferentes gêneros orais e escritos com autonomia. Contudo, no decorrer do processo, os estudantes podem deparar-se com alguns entraves, dentre eles: a ruptura das concepções que haviam estabelecido sobre o universo da leitura e da escrita ao longo das suas vivências; a elaboração de novos conceitos, que em muitos casos, geram dificuldades para realização de uma articulação lógica; a utilização da mesma metodologia e didática para alfabetizar sujeitos diferentes.

As dificuldades se intensificam no caso das crianças com câncer, perante os tratamentos invasivos e longos, a rotina hospitalar, as limitações físicas, a constante angústia que permeia os procedimentos médicos dolorosos e principalmente, o afastamento da rotina escolar. Este afastamento causa impactos imensuráveis à criança, pois a inserção no ambiente escolar e as vivências no meio social são essenciais para o progresso do processo de alfabetização.

As atividades de letramento e as interações sociais auxiliam na consolidação de aprendizagens eficientes não só de conteúdos e habilidades, mas também na promoção de valores, proporcionando o desenvolvimento global do sujeito. Kleiman (2002) destaca a importância dos alunos participarem de atividades de letramento no cotidiano pedagógico por incorporarem:

práticas sociais, situadas em contextos específicos, culturalmente determinados; Foco na prática coletiva, da qual cada um participa segundo sua experiência, sua capacidade; Práticas diversificadas, segundo instituições, objetivos, identidades e papéis dos participantes, etc. Objetivos: realização de tarefas específicas. Ler/escrever com alguma outra finalidade (prazer, escape, aprendizagem, contato, etc.). A unidade básica privilegiada é o texto e a produção de sentido. Além desses, também gêneros dos domínios discursivos do cotidiano familiar, da publicidade, da burocracia, do comércio, da política, etc (KLEIMAN, 2002, p.100).

A impossibilidade de participar destes momentos aflige a criança em tratamento, favorecendo severas perdas no desenvolvimento de habilidades significativas, em consequência disto, o fracasso e a evasão escolar tornam-se desafios a serem enfrentados. Matos e Mugiatti (2009) definem essa realidade como “Enfermidade social”, ocasionada pela segregação decorrente da doença que põe em xeque dois vieses tidos socialmente como essenciais: a saúde e a educação.

O surgimento da doença promove a manifestação de uma série de aspectos negativos que perpassam o tratamento, como: perda de cabelo, indisposição, amputações, dependência dos pais, constantes sentimentos de compadecimento das pessoas e outros percalços que afetam diretamente o desenvolvimento psicológico da criança e o processo de aprendizagem. Sendo o último, intensamente afetado diante da interrupção do processo formativo por conta da incapacidade de frequentar o principal ambiente de aprendizagem formal, a escola, impactando o desenvolvimento de competências intelectuais e a interação com os pares.

Na perspectiva de dar continuidade ao processo de escolarização, surgiu por volta de 1935, em Paris, a Pedagogia Hospitalar. Atualmente dispõe de duas metodologias: a Hospitalização Escolarizada e a Classe Hospitalar. De acordo com Matos e Mugiatti (2009), a Hospitalização Escolarizada caracteriza-se como uma estratégia diferenciada em consideração ao contexto que envolve o escolar enfermo, presta-se uma atenção especial às peculiaridades que envolvem a doença naquele momento, e o grau de escolaridade do aluno. Diante desses fatores, cria-se uma proposta pedagógica individual, respeitando as necessidades e particularidades do aluno, considerando também a conjuntura escolar que o estudante é oriundo, através de contato com a professora da turma regular em que se encontra matriculado. O contato com a professora da escola de origem é crucial, pois favorece a continuidade do processo ensino-aprendizagem através da troca de informações sobre os avanços e as dificuldades do aluno, como também no fornecimento de atividades que serão aplicadas pela professora do hospital, de modo criativo e lúdico.

A Classe Hospitalar executa um serviço bem parecido com o das salas de aulas regulares, em conjunto, de modo heterogêneo, considerando todas as especificidades supracitadas. Em suma, funciona em turmas multisseriadas, intercalando momentos de ensino dos conteúdos regulares, com momentos de descontração e brincadeiras que também devem fazer parte do processo ensino- aprendizagem, em especial as interações sociais que são indispensáveis para o desenvolvimento de habilidades significativas.

Visando amenizar as dificuldades com as quais os estudantes enfermos se deparam, os regulamentos e as Leis em prol da pedagogia hospitalar certificam o acompanhamento pedagógico na tentativa de dar continuidade ao processo de ensino-aprendizagem no período em que a criança estiver impossibilitada de frequentar a escola regular. A Lei 13.716, sancionada em 2018, o mais recente suporte legal em vigor, assegura o prosseguimento do processo de escolarização das crianças em tratamento domiciliar ou hospitalar. A supracitada Lei foi integrada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), garantindo a ininterrupção dos estudos através de suporte pedagógico e educacional diferenciado.

Entretanto, é notório no currículo dos cursos de licenciatura, sobretudo de Pedagogia, a ausência de discussões sobre práticas pedagógicas direcionadas à atuação do pedagogo em ambiente hospitalar (MOURA, 2014). Diante das competências investidas a esses profissionais no prisma atual, as lacunas no processo formativo tornam-se imensuráveis, considerando as múltiplas funções que envolvem suas atividades, sobretudo, a atuação no ambiente hospitalar. De acordo com TUFFI (2011,p.1066):

O professor tem um papel importantíssimo (...) sua atuação é fundamental para o sucesso das relações de ensino aprendizagem dentro do hospital. Portanto, ao se candidatar a uma vaga para atuar na educação hospitalar, o professor deverá estar consciente do que lhe será exigido ao desempenhar esta função. Para que seu trabalho atenda às expectativas do referido serviço, é necessário que ele possua um perfil próprio para este fim.

Com base nos elementos supramencionados, constata-se a necessidade de um trabalho mais intensivo e o desenvolvimento de novas pesquisas que visem contribuir com a continuidade do processo ensino-aprendizagem ao escolar enfermo, em especial os que estão em processo de alfabetização.

O objetivo geral deste artigo é analisar o acompanhamento pedagógico hospitalar realizado no setor de oncologia de um hospital público do Recife no que se refere às crianças em processo de alfabetização. Os objetivos específicos são: verificar o conhecimento das mães e professoras da oncologia sobre as leis que asseguram a continuidade do processo ensino-aprendizagem no ambiente hospitalar; analisar se e como ocorre a relação entre a escola e as professoras da oncologia no processo de alfabetização das crianças; identificar as ações do pedagogo no atendimento hospitalar no setor de oncologia.

PROCEDIMENTOS

Iniciamos a etapa de coleta de dados realizando entrevista semiestruturada, individualmente, previamente agendada, com uma das professoras da classe hospitalar . Optamos por esta técnica por oferecer flexibilidade ao entrevistador, podendo fazer adaptações de acordo com a condução do processo (Lüdke e André,1986).

Todos os roteiros utilizados no estudo (de observações e entrevistas) foram elaborados com base em nossos objetivos. No caso do roteiro de entrevista com a professora, elaboramos questões norteadoras distribuídas em três blocos: ações do pedagogo/professor hospitalar, escola de origem/classe hospitalar, leis da pedagogia hospitalar.

Por meio do Termo de Confidencialidade preservamos as identidades dos sujeitos, não as divulgando, identificando-os com nomes fictícios na análise de dados, como também, todos os entrevistados assinaram um Termo de Consentimento livre e esclarecido, que continha informações essenciais sobre nosso trabalho, através da assinatura os entrevistados declararam ciência da participação na pesquisa.

As entrevistas foram gravadas, posteriormente realizamos a transcrições das falas, como meio de evitar a perda de dados importantes. Ressaltamos que após a transcrição, as gravações de posse da pesquisadora foram destruídas.

Para fins de complementação, realizamos três observações da atuação das pedagogas na classe hospitalar, planejamos as observações definindo antecipadamente “o que” e “como” observar (LUDKE e ANDRÉ, 1986, p. 35-36):

Na fase de planejamento deve estar previsto também o treinamento do observador. Segundo Patton (1980), para realizar as observações é preciso preparo material, físico, intelectual e psicológico. O observador, diz ele, precisa aprender a fazer registros descritivos, saber separar os detalhes relevantes dos triviais, aprender a fazer anotações organizadas e utilizar métodos rigorosos para validar suas observações. Além disso, precisa preparar-se mentalmente para o trabalho, aprendendo a se concentrar durante a observação, o que exige um treinamento dos sentidos para se centrar nos aspectos relevantes(LUDKE e ANDRÉ, 1986, p. 35-36).

Utilizamos a técnica de observação direta por possibilitar ao investigador efetiva aproximação dos sujeitos, diante da sua imersão no campo de pesquisa, ferramenta muito utilizada nas pesquisas qualitativas, pois “na medida em que o observador acompanha in loco as experiências diárias dos sujeitos, pode tentar apreender a sua visão de mundo, isto é, o significado que eles atribuem à realidade que os cerca e às suas próprias ações” (LUDKE e ANDRÉ, 1986, p.26).

Com o diário de campo tomamos nota dos aspectos observados, decidimos utilizá-lo por favorecer a descrição real do ambiente e o registro das nossas impressões sobre o que estávamos observando. No roteiro de observações, buscamos compreender como ocorre o acompanhamento pedagógico hospitalar das crianças com câncer em processo de alfabetização na classe hospitalar. Observamos também as ações do pedagogo em âmbito hospitalar e como se dão as relações da escola de origem das crianças com as professoras da classe hospitalar.

Por fim, realizamos entrevistas semiestruturadas com três mães de crianças hospitalizadas, com o objetivo de verificar o conhecimento que elas possuíam sobre as Leis que asseguram a continuidade do processo ensino-aprendizagem aos estudantes em tratamento. O roteiro foi composto por duas questões norteadoras sobre as Leis da pedagogia hospitalar.

Nossa análise de dados se manteve na perspectiva central da pesquisa, qualitativa, nos atendo as opiniões dos sujeitos e as indagações levantadas. Utilizamos a técnica de análise de conteúdo de Bardin (2011), executando a referida etapa em três fases: 1- pré-análise; 2- exploração do material; 3- tratamento e interpretação dos resultados. Detalharemos nos tópicos seguintes o resultado das análises realizadas.

O PEDAGOGO E SUAS MULTIFACES NO AMBIENTE HOSPITALAR

Para tratarmos das ações do pedagogo no ambiente hospitalar, devemos inicialmente, considerar que os alunos que eles recebem estão em um estado extremamente peculiar, implicando diretamente na atuação e nos mecanismos que utilizam para alcançar os objetivos didáticos. Foi possível presenciar em diversos momentos, o frequente estresse gerado pelas dores promovidas pela doença, constantes intervenções médicas (inúmeras trocas de medicações quimioterápicas, aferições de temperatura, exames laboratoriais, avaliações médicas, auscultas, interrupções pelos alarmes das bombas de infusão...) nos momentos das aulas, durante contações de histórias, atividades com livros didáticos, pinturas e jogos.

As observações nos fizeram perceber a complexidade que envolve a prática docente no ambiente hospitalar, destaca-se a exigência de uma série de habilidades, além do “simples” ato de ensinar e mobilizar conhecimentos. Na entrevista com a professora, comprovamos as multitarefas que envolvem a atuação do pedagogo nesses espaços. Ao pedirmos para definir um perfil para o pedagogo hospitalar: “Algumas características seria ser flexível, porque tudo muda o tempo todo, precisa gostar de estudar, ser tranquilo em relação à mudança, conseguir se ressignificar diante das perdas, diante das dificuldades, ser dinâmico... então, essas são algumas das características (Professora Paula)”.

Articulamos o discurso da professora e as observações que fizemos, com os pontos elencados por Tuffi (2011) ao traçar o perfil do pedagogo hospitalar: estabilidade (controle) emocional diante das situações (momentos de dor, perdas, frustrações); aptidão para trabalhar em grupo, pois o campo de atuação é frequentemente compartilhado com médicos, enfermeiros, dentistas, nutricionistas, e outros profissionais da área da saúde; iniciativa e dinamismo, principalmente frente às turmas multisseriadas onde os alunos estão em séries e níveis distintos, como também lidar com uma carga horária reduzida na presença de tantas especificidades; ética profissional, respeitar as necessidades e as particularidades das crianças, do mesmo modo as limitações promovidas pela patologia; afetividade na atuação pedagógica, estabelecer uma relação de confiança com as crianças, possibilitando que elas se sintam a vontade para compartilhar sentimentos, angústias e anseios, demonstrar carinho, cuidado e respeito, questões fundamentais para o desenvolvimento emocional, social e intelectual; contribuir com o restabelecimento da autoestima da criança; instigar o ser pesquisador e adaptar-se a diferentes metodologias, em especial as que a pedagogia hospitalar dispõe: hospitalização escolarizada e classe hospitalar.

No decorrer das observações, conseguimos perceber o desempenho das características descritas acima nas professoras da classe hospitalar. A aptidão para trabalhar em grupo, tornou-se um dado constante nos três dias de observações, diante da quantidade de interrupções (16) nos momentos das aulas.

Na turma multisseriada da classe hospitalar, apesar da carga horária reduzida (cada aluno só pode permanecer uma hora por dia), são rotineiras as interrupções realizadas por médicos para examinar as crianças, enfermeiras trocando medicações, as mães oferecendo água aos filhos, doutores da alegria, voluntários caracterizados de super-heróis, grupos de religiosos e outros, que influenciam diretamente na dinâmica das aulas. Em meio às contações de histórias e momentos de realização de atividades, tornou-se comum ouvir o angustiante som dos alarmes das bombas de infusão dispararem, os ruídos de “respire fundo” dos médicos auscultando as crianças na própria classe, a tortura no semblante das crianças ao serem “convocadas” a fazer exames laboratoriais.

Podemos citar como aspecto unânime entre as docentes, a habilidade de retomar a aula e o foco das crianças após as pausas, notoriamente já adaptaram suas práticas ao contexto, permeado por diferentes sujeitos, com distintas funções, porém, incisivamente articulados, evidenciando a ética profissional, iniciativa e dinamismo, presentes principalmente pelo fato de lidar com as particularidades que permeiam o ambiente hospitalar: “bem, a gente trabalha dentro do hospital da oncologia, mas a nossa função é totalmente pedagógica, é uma escola da prefeitura dentro do hospital, dando continuidade à escolarização daquele estudante que não pode frequentar sua escola de origem lá no município que mora (Professora Paula)”.

Percebemos nitidamente que os papéis do professor nesses espaços vão além dos parâmetros pedagógicos, ampliam-se os objetivos didáticos, incorporam-se novos desafios não prevalentes em escolas regulares. Notamos isso nos momentos em que as professoras preocuparam-se com a hidratação das crianças, os semblantes de inquietude ao questionar se os tratamentos estavam sendo eficazes, nas vezes que perguntaram se elas estavam indispostas, se tinham energia para continuar as atividades, na mobilização para envolver nas atividades a conjuntura das crianças no intuito de amenizar o sofrimento.

Na classe, a afetividade perpassa a prática pedagógica das professoras. Estava evidente a relação de confiança estabelecida entre as docentes e as crianças, fundamental para a condução do processo ensino-aprendizagem. Sempre que concluíam as atividades, os alunos faziam questão de mostrá-las o que haviam feito, para receber elogios e palavras de motivação. Ações que repercutiam positivamente no restabelecimento da autoestima das crianças. Por vezes, presenciamos a visita de ex- alunos da classe, passavam para abraçar as docentes, proferir palavras de saudade e expor a positiva recuperação pós-tratamento, reforçando o laço afetivo existente entre ambas as partes que se mantém até mesmo quando o tratamento se finda, permeado por respeito e admiração.

Essa atmosfera prevaleceu nas relações das professoras com as mães das crianças, que inclusive predominavam enquanto acompanhantes da Oncohematologia infantil. Depositam expressiva confiança no trabalho das professoras. Concentravam-se sempre próximas à classe, esperando o término das atividades, vez ou outra adentram para verificar se as crianças estão precisando de algo.

Através de grupo no whatsapp, as professoras e as mães estavam em constante comunicação, compartilhando fotos de atividades que as crianças faziam na classe, as superações e avanços, momentos lúdicos, de descontração, e sanando dúvidas.

Em um dos trechos da fala da professora, notamos o contraste existente entre a forma que o professor é visto na escola, e na visão projetada quando atua em outros espaços, no caso o ambiente hospitalar:

Na escola nós somos protagonistas, já no hospital nós não somos tão protagonistas, porque a escola ela não pode é prejudicar, desautorizar, desestruturar ou desequilibrar o trabalho realizado pela saúde, então, vamos fazer o trabalho na perspectiva de contribuir, na perspectiva de fazer com que esse estudante consiga retomar a rotina, voltar a aprender, mas que tudo isso nós vamos trabalhar com ele não seja um fator de negligência para prejuízo da saúde dele, que nesse momento é prioridade (Professora Paula).

Os impasses que surgem na mediação do processo de escolarização no mencionado local, foram revelados no discurso da professora e constatado por nós nas observaçõs, tendo as docentes a incubência de gerenciar uma gama de atribuições pedagógicas e administrativas.

A PRÁTICA DOCENTE E O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO NA CLASSE HOSPITALAR

Manter conexão com a escola de origem é fundamental para o compartilhamento de informações sobre o processo de escolarização do estudante enfermo. Esta intermediação ocorre pelo fato das crianças ficarem durante meses hospitalizadas, sendo a maioria do interior do estado de Pernambuco e de outros Estados do nordeste. Evidentemente, torna-se impossível a ida à escola no município em que o estudante está matriculado.

Diante desse contexto, quando admitidas no hospital onde se localiza a classe hospitalar em questão, os pais das crianças que se encontram desde o grupo IV da educação infantil até os anos iniciais do ensino fundamental, recebem uma série de orientações.

As professoras da classe hospitalar entram em contato com a escola de origem por meio de uma carta de encaminhamento, apresentando o que é a classe hospitalar, qual sua função, metodologias utilizadas. Solicitam também os dados pessoais do aluno, informações acerca do processo ensino-aprendizagem, dificuldades e o programa de ensino que o município ou a escola segue.

Os dados supracitados foram fornecidos pelas professoras da classe e também pelas mães entrevistadas, sendo possível exemplificarmos no trecho abaixo (pseudônimo de Isabel):

Eu recebi toda a orientação, assim que ela internou, no primeiro internamento que ela teve aqui a professora me chamou na sala dela e começou a me explicar... Eu não entendia como ia ser o processo, eu disse: como é que vai ser?... a escola dela lá, aí quando ela explicou tudo ela disse: olhe, eu quero entrar em contato com a escolinha dela de Campina Grande pra elas me passarem tudo, que a gente acompanha pra ela não perder o ano. Aí foi quando eu entendi que era importante ( Isabel).

As docentes da classe hospitalar conduzem o ensino de todas as áreas de conhecimento, de forma flexibilizada, adaptando-se às condições dos estudantes. Durante as observações, conseguimos acompanhar o processo: as atividades chegam à classe hospitalar através do email e whatsapp, as professoras fazem a catalogação das atividades, analisam e preparam o material de acordo com o que a escola de origem encaminhou, em seguida, anexam nas pastas individuais dos alunos. Ressaltamos que essas informações também são repassadas aos pais. Elemento presente no discurso da mãe:“ a escola manda as tarefas pra cá, porque tem que acompanhar o conteúdo que dão lá, que ela (a professora) aqui, vai dando continuidade pra não perder nada (Flávia)”.

É válido reforçar, que as atividades enviadas pelas professoras da escola de origem passam por um processo de análise, adaptação e adequação ao contexto em que a criança se encontra, sendo o dia do planejamento semanal das docentes da classe hospitalar (sexta-feira), destinado a esses trâmites. Salientamos que é um momento crucial de discussão entre as professoras para definição de as ações didáticas mais adequadas a cada conteúdo, sobretudo, compartilharem anseios, dificuldades e avanços das crianças, como também decidir quais os melhores recursos didáticos a serem utilizadas, temáticas relevantes a serem trabalhadas e o que deve ser priorizado naquele momento para cada aluno.

As particularidades que envolvem a esfera hospitalar tornam o planejamento pedagógico um grande dilema para os professores, alcançar os objetivos didáticos diante de todo o contexto que circunda o ambiente, em contrapartida, as especificidades dos estudantes, uma carga horária diária de apenas 1 (uma) hora de permanência de cada aluno na classe, evidencia um grande desafio. Em relação a esse ponto, a professora Paula alegou:

Interessante colocar a necessidade de ser resiliente, de não se um profissional rígido (...) quando a gente estuda planejamento, a gente compreende que o planejamento é um instrumento flexível, então na classe ele vai ser muito mais flexível, diante da especificidade, diante da peculiaridade do trabalho, diante desta classe. Então, a gente vai... encontra a criança de um jeito e depois a gente vai encontrar de um outro. Se faz todo um planejamento pra aquele estudante, com um tempo pedagógico de uma hora, que é o orientado, e aí ele tá com a mão de acesso que ele escreve livre e depois ele tá com acesso na mão de escrita, aí depois você não vai poder fazer uma atividade de escrita com ele naquele dia ou naquele momento. Então a gente vai precisar reorganizar, então a criança estava de um jeito e depois teve um intercorrência... e aí, quando que você vai realizar a atividade, vai buscar formas, estratégias, metodologias de organizar a vida daquele estudante, que sejam atividades significativas porque o tempo que temos para trabalhar com ele é pequeno (Professora Paula).

A declaração da docente relaciona-se ao que Fonseca (2008) defende sobre a sistematização do planejamento na classe hospitalar, que deve ser ajustado às necessidades e ao que desperta a atenção dos alunos, correndo o risco de deparar-se com caminhos que, embora não estivessem planejados, possam provocar mudanças no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem.

Pontuamos que as professoras trabalham também datas de eventos históricos (acompanhamos a semana da consciência negra), por meio de atividades lúdicas, respeitando sempre o estado das crianças. Sabemos que diante do intenso tratamento, momentos de indisposição, fadiga, enjoos são frequentes na rotina da classe, as professoras mostraram-se sempre alertas a essas situações, frequentemente questionando os alunos sobre como se sentiam.

Ao chegar ao setor de oncologia, as docentes passam em todos os leitos para verificar as condições das crianças e fazer uma avaliação (registram no quadro o nome, ano de ensino e se terá ou não condições de ir à aula) sobre quais estudantes estão em condições de se deslocar até a classe para participar da aula. As que se encontram impossibilitadas de sair do leito, realizam as atividades adaptadas para o seu quadro clínico, no próprio quarto, com uma das docentes. Esse tipo de metodologia, Matos e Mugiatti (2009) definem como hospitalização escolarizada. Constatamos que na classe hospitalar são executadas as duas metodologias da pedagogia hospitalar: a classe hospitalar e a hospitalização escolarizada. Além de acompanharmos durante as observações, esse dado foi reforçado na fala das mães entrevistadas “quando ela pode ir pra salinha vai, quando não pode a professora vai pra o leito e dá aula lá (Isabel)”.

Observamos a aplicação da metodologia da hospitalização escolarizada perante a impossibilidade das crianças de sair do leito (em alguns casos isso ocorre sob ordem médica). No segundo e no terceiro dia, foram utilizadas as duas metodologias, as que puderem ir à classe hospitalar, foram, as que estavam impossibilitadas, receberam atendimento no leito.

De acordo com a professora:

Todas as crianças ao entrarem na classe passam por uma avaliação diagnóstica, porque mesmo que ela esteja no segundo ano, por exemplo, inclusive temos vários no segundo ano...cada um tem um nível de entendimento e ‘’de aprendizado diferente e isso nos dará uma base de como os conteúdos serão trabalhados (Professora Paula).

Na classe, a avaliação diagnóstica é um elemento chave, norteia a forma como as professoras elaboram e conduzem o plano de trabalho dos alunos. Frisamos que, de acordo com as professoras, eles podem ser matriculados em qualquer período do ano, seus desempenhos são registrados em relatórios individuais.

No caso das crianças que ingressam na oncologia infantil sem matricula ativa em escola, efetua-se na rede municipal do Recife, especificamente na escola instalada no campus da universidade onde está situada a classe.

Ao indagar a professora Paula sobre o processo de alfabetização das crianças da classe hospitalar, obtivemos a seguinte resposta: “No processo de alfabetização a gente trabalha como na rede, análise fonológica, partindo do que a criança compreende dessa relação fonema e grafema, aí a gente vai trabalhando a consciência fonológica e vamos ampliando o processo de escrita e de aprendizagem” (Professora Paula).

Diante das nossas vivências na classe, em relação ao processo de alfabetização, percebemos que alinha-se a perspectiva do alfabetizar letrando. A cada dia da semana, trabalha-se uma área do conhecimento (disciplina) específica, na porta da classe é fixado um cronograma com essa distribuição, contudo, as práticas de alfabetização e letramento são diárias, de modo transversal, perpassando todas as disciplinas.

As professoras partem dos conhecimentos prévios das crianças para incorporar nas atividades situações cotidianas, de modo que elas possam compreender e exercer a função social da leitura e da escrita. Presenciamos, por exemplo, a construção de uma árvore genealógica (por meio de charadas, as crianças tinham que adivinhar e nomear o grau de parentesco); produção do gênero textual diário; construção de histórias coletivamente, a cada dia as crianças criavam trechos da história e a professora registrava no quadro, com o objetivo de posteriormente produzirem um livro com as histórias produzidas pelas crianças da classe hospitalar e publicá-lo; contação de histórias problematizando situações que permeiam a vida em sociedade, como preconceito, racismo; atividades de produção de palavras com o alfabeto móvel, escrita dos nomes das figuras geométricas, confecção de bonecas “abayomis”, busca de nomes africanos para as bonecas na semana da consciência negra; e outras, evidenciando a importância das práticas de letramento no processo de apropriação do sistema de escrita alfabético.

Testemunhamos um contínuo estímulo à leitura, sempre ao término das aulas, as crianças eram convidadas pelas professoras para ir ao cantinho de leitura, disponível na classe, onde ficam dispostos os livros. Selecionavam um exemplar e levavam até os leitos para lê-los. As professoras sempre sugeriam livros, geralmente gêneros literários e livros informativos sobre como lidar com o câncer, sobre a oncologia, com uma linguagem coloquial e lúdica, mas também, deixavam as crianças a vontade para escolher os livros que mais as atraiam. No caso das crianças que sofreram alguma amputação, as docentes faziam questão de pegá-las nos braços e levá-las até o cantinho da leitura para escolherem o livro, momento que revela a afetividade que transpõe o trabalho das docentes. Já as crianças que estão impossibilitadas de sair do leito, as professoras selecionavam e levavam os livros até elas, que esperavam ansiosamente pela visita.

Sempre que os alunos devolviam os livros, as professoras perguntavam o que tinha achado da leitura, se haviam gostado do livro. Vale ressaltar que o cantinho de leitura da classe hospitalar é um espaço relativamente novo, inaugurado em agosto de 2019.

Além das temáticas planejadas, no decorrer das aulas, surgiam indagações principalmente relacionadas à escrita de palavras. As professoras apropriavam-se dessas indagações para promover novos desafios, incentivando o grupo a ajudar os colegas a desvendar suas dúvidas, estando o alfabeto móvel sempre a postos para essas situações de produção de palavras.

Diante da forma como as crianças são dispostas na classe (na maioria das atividades cada mesa acomodava cinco alunos), era constante a interação entre eles. Durante as atividades, os que se encontravam em hipóteses de escrita mais avançadas, auxiliavam os que estavam no inicio do processo, gerando conflitos e reflexões acerca do funcionamento do SEA. Destacamos que a mediação do professor nessa fase, influencia frontalmente no significado que os alunos atribuirão as habilidades da leitura e escrita. Em relação a essa questão, Kleiman (2007) destaca:

A diferença entre ensinar uma prática e ensinar para que o aluno desenvolva uma competência ou habilidade não é mera questão terminológica. Na escola, onde se predomina uma concepção da leitura e da escrita como competências, concebe-se a atividade de ler e de escrever como um conjunto de habilidades progressivamente desenvolvidas até se chegar a uma competência leitora e escritora ideal: a do usuário proficiente da língua escrita. Os estudos do letramento, por outro lado, partem de uma concepção de leitura e de escrita como práticas discursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem.(KLEIMAM, 2007, p.02).

LEIS DA PEDAGOGIA HOSPITALAR: AS DICOTOMIAS ENTRE TEORIA E PRÁTICA

Apesar dos aportes jurídicos em prol da pedagogia hospitalar existirem desde 1969, infelizmente paira a impraticabilidade dos veículos legais. Por um lado estão os poderes públicos que não demonstram o mínimo de interesse em executar o que as Leis, decretos, diretrizes, instruções normativas e regulamentos pregam, por outro está a população que desconhece os direitos assegurados por meio desses dispositivos, consequentemente, há lacunas na propagação dessas informações, resultando na ausência de mobilizações e reivindicação em prol da causa. Para driblar esse descaso, as classes hospitalares em exercício, amparam-se nas leis da educação especial. De acordo com a docente da classe:

Em relação ao arcabouço legal, ele ainda é frágil, de uma forma geral o MEC anteriormente em 2000, estava muito mais próximo, tem inclusive o documento (classes hospitalares e atendimento pedagógico domiciliar orientações e estratégias) (...) a nível nacional as classes hospitalares elas buscam estar ligadas à educação especial de uma forma geral, diante disso a gente acaba utilizando todo arcabouço da garantia do direito nessa perspectiva da educação inclusiva (Professora Paula).

A docente entrevistada demonstrou conhecer o arcabouço legal da pedagogia hospitalar. No decorrer da entrevista, realizou um panorama da “linha do tempo jurídica”, partindo dos primeiros dispositivos legais, até os que estão em vigor atualmente. Relacionamos essa condição, ao fato dela ser a pioneira nesse campo de atuação no Estado de Pernambuco (a primeira professora, da única classe hospitalar de Pernambuco), justificando o nível de propriedade ao se referir ao percurso histórico/jurídico.

No que concerne o município do Recife, a docente afirmou que mesmo havendo um decreto municípal regendo as classes hospitalares, foram inúmeros os desafios encontrados no processo de implantação:

A nível municipal do Recife, quando eu fui pra lá para que fizéssemos a implantação da classe hospitalar, uma das lutas foi assegurar a legislação, existe um decreto municipal que institui a classe hospitalar, de 2015, e também existe a instrução normal que saiu em setembro de 2015, porque um institui a classe hospitalar e o outro informa, explica, orienta de que forma essa classe hospitalar vai funcionar. Agora, cada Estado, o MEC não tem esse direcionamento e como não conseguiu ainda reorganizar toda essa parte, cada estado faz de sua forma (Professora Paula).

Com a sanção da lei 13.716 no ano de 2018, com o escopo de assegurar em âmbito nacional o acompanhemento pedagógico hospitalar aos alunos da educação básica impossibilitados de frequentar a escola por conta de tratamento de saúde, a nível hospitalar ou domiciliar, renovaram-se as esperanças dos professores das classes hospitalares, justamente pelo fato do dispositivo ser acrescido a LDB, que é a mais relevante lei do nosso país no que se refere à educação:

Estamos na perspectiva de transformar esse trabalho pedagógico numa modalidade de ensino...a alteração a nível nacional da LDB de 2018, indica mais fortemente o direito desse estudante que está em tratamento para dar continuidade à escolarização, mas ainda precisa de uma regulamentação maior, de diretrizes, de instruções normativas que façam com que esse direito seja assegurado (Professora Paula).

As três mães entrevistadas, afirmaram não possuir conhecimento sobre as Leis da pedagogia hospitalar antes dos seus filhos serem admitidos na classe. As informações acerca dessas Leis, da importância da classe hospitalar e do funcionamento dela, foram fornecidas pelas professoras no momento em que as crianças iniciaram o tratamento na oncologia infantil:

Nunca ouvi que ela teria direito não, certo?! Eu fiquei sabendo já depois de uns meses que era um direito garantido deles, em relação à escola, também não conhecia a classe, só fiquei sabendo que existiria a escola exatamente no dia que minha filha internou, que a professora conversou comigo (Bruna). Só fiquei sabendo aqui, eu não sabia que existia não. Quando eu cheguei aqui que eu vi, eu disse: meu Deus! assim... tudo, tudo é novo, eu nunca tinha acompanhado, nunca tinha entrado num hospital desses de criança com câncer. Eu vim ver tudo aqui (Isabel). Não, nunca ouvi falar (Flávia).

Diante do relato das mães, refletimos sobre as consequências que a ausência da divulgação e principalmente da execução do que a legislação promete, oferece a esse público que se afasta da escola para se submeter a tratamentos. Põe-se em xeque os princípios expostos na constituição Federal que tratam a educação como um direito universal: “a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”(BRASIL, 1988). Percebemos que a partir do momento que o indivíduo está frente a um processo de adoecimento, é obrigado a encarar cruelmente a neutralidade do Estado e a imparcialidade social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que receber um diagnóstico de câncer gera imensuráveis impactos, principalmente quando se refere ao adoecimento infantil. Altera-se a dinâmica da família, a rotina da criança, surgem as inseguranças que permeiam a evolução da doença e o prognóstico, a concepção de finitude que infelizmente ainda está intrinsicamente ligada ao câncer.

O acesso à pedagogia hospitalar proporciona à criança e ao adolescente em situação de hospitalização não só a continuidade do processo de escolarização, mas promove perspectiva de futuro, contribui para a tão almejada cura, para o prosseguimento de projetos de vida: “a classe hospitalar não é simplesmente para dar continuidade a escolarização, ela tem outros fatores, ela contribui na melhora desse paciente que está em tratamento, ela diminui as dores, as angustias, os medos...(Professora Paula)”.

A classe hospitalar Semear, projeta as crianças para outro universo, na curta carga horária diária que dispõe, de forma lúdica, intercala os conteúdos regulares com brincadeiras, respeitando as particularidades de cada criança. Traz a tona às potencialidades que existem dentro de cada sujeito, minimizando o estresse que permeia o contexto hospitalar, isto, reverbera no significado que os alunos atribuem a esse espaço:

Minha filha prefere a escola daqui do que a escola normal, pra você vê... e aqui ela está por conta do tratamento, mas a escolinha deixa ela tão bem que ela prefere...ela diz: eu gosto da escolinha do hospital. Acho que é porque distrai, não é só aquilo igual na escolinha normal, não é aquilo igual ao pé da letra (Isabel).

Constatamos que possibilitar a continuidade do processo de alfabetização dessas crianças é crucial para manter a ligação com a vida em sociedade, mecanismos importantes para o desenvolvimento global da indivíduo, repercutindo em aspectos cognitivos, emocionais, afetivos, comportamentais e sociais. Nossa pesquisa possibilitou a percepção da emergente necessidade das crianças impossibilitadas de frenquentar a escola participarem de efetivas práticas de letramento, além da garantia de um direito, o acesso às práticas que envolvem as habilidades de leitura e escrita repercutem na visualização de novas perspectivas que muitas vezes são ceifadas pelo diagnóstico. Diante disso, constatamos que as contribuições vão além do viés da escolarização, o processo de alfabetização desse público tão peculiar é enxergado como sinônimo de esperança e resistência.

Ressaltamos a urgência que existe em torno do surgimento de novas pesquisas em prol da

pedagogia hospitalar, da propagação do acompanhamento pedagógico e da criação de politicas públicas que ponham em prática os aportes legais, dessa forma, que sejam de fato assegurados os direitos, em âmbito nacional, estadual e municipal. Torna-se imprescindível, que nós enquanto sociedade, lutemos para reivindicar a efetivação dessas garantias.

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Recebido: 18 de Novembro de 2021; Aceito: 25 de Setembro de 2022

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Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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