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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub May 02, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469838405 

Artigos

FORMAÇÃO E DOCÊNCIA COMO PHRONESIS: SENDO E APRENDENDO A SER

FORMACIÓN Y DOCENCIA COMO PHRONESIS: SIENDO Y APRENDIENDO A SER

LUIZ GILBERTO KRONBAUER1  , Pesquisador dos aportes bibliográficos, participação ativa na análise hermenêutica dos textos no original alemão, redação e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0002-4083-6094

PAULO EVALDO FENSTERSEIFER2  , Pesquisador dos aportes bibliográficos, participação ativa na análise hermenêutica dos textos cotejando o original alemão, com as traduções em espanhol e português e redação do texto
http://orcid.org/0000-0002-4914-5281

1Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Santa Maria, RS, Brasil.

2 Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí). Ijuí, RS, Brasil.


Resumo:

Inspirados na noção aristotélica de Phronesis, desenvolveu-se uma reflexão sobre a formação docente na perspectiva do aprender como exercício que se faz e se refaz continuamente, numa atitude reflexiva e, teoricamente, sustentada. Aproximou-se o conceito de vida contemplativa ao de docente reflexivo e, com isso, buscou-se avançar na direção da práxis como processo dialético de ação-reflexão-ação, pano de fundo de uma formação inicial de professores/as que entretece teoria e prática como horizontes de uma docência viva. Esta releitura da filosofia prática de Aristóteles faz-se acompanhar da interpretação que Hans-Georg-Gadamer realiza em sua obra Wahrheit und Methode, valendo-se dos conceitos de sabedoria prática, de mimesis, da produtividade do conceito de experiência e da atualidade hermenêutica de Aristóteles, e que estruturam o texto que segue.

Palavras-chave: Formação de professores; sabedoria prática; mimesis; hermenêutica filosófica

Resumen:

Inspirados en la noción aristotélica de Phronesis, se desarrolló una reflexión sobre la formación docente en la perspectiva del aprender como ejercicio que se hace y se rehace continuamente, en una actitud reflexiva y, teóricamente, sostenida. El concepto de vida contemplativa fue aproximado al del profesor reflexivo y, con eso, se buscó avanzar en la dirección de la praxis como proceso dialéctico de acción-reflexión-acción, trasfondo de una formación inicial de profesores/as, que entrelaza la teoría y la práctica como horizontes de una docencia viva. Esta reinterpretación de la filosofía práctica de Aristóteles viene acompañada de la interpretación que Hans-Georg-Gadamer realiza en su obra Wahrheit und Methode, utilizando los conceptos de sabiduría práctica, de mimesis, de la productividad del concepto de experiencia y de la actualidad hermenéutica de Aristóteles, que estructuran el texto que sigue.

Palabras clave: Formación de profesores; sabiduría práctica; mimesis; hermenéutica filosófica

Abstract:

Inspired by the Aristotelian notion of Phronesis, we developed a reflection on teacher formation, in the perspective of learning as an exercise continuously done and redone, grounded on a reflexive and theoretical attitude. We approximated the concept of the contemplative life to one of the reflexive teachers aiming to advance toward praxis as a dialectic process of action-reflection-action, the background to pre-service education of teachers, which intertwines theory and practice as the horizon of a “living teaching”. This re-reading of Aristotle’s practical philosophy is followed by Hans-Georg-Gadamer’s interpretation, in his work Wahrheit und Methode, using the concepts of practical wisdom and mimesis, the productivity of the concept of experience, and Aristotle’s hermeneutic topicality, which structure the following text.

Keywords: Teacher education; practical wisdom; mimesis; philosophical hermeneutics

A RELAÇÃO ENTRE O FAZER E O SABER: DIALÉTICA DE PRÁTICA E TEORIA

Do lado da teoria pode-se esperar o que Aristóteles pressupõe para o desenvolvimento da “sabedoria prática”: ter referências para qualificar a nossa reflexão sobre a prática, o que recoloca, de saída, a questão da dialética da práxis. Há dois elementos, inseparáveis um do outro, envolvidos neste processo de formação. De um lado, “cada qual julga bem as coisas que conhece, e dessas coisas ele é bom juiz. Aquele que foi instruído a respeito de um assunto é bom juiz nesse assunto” (EN I, 1095a 5)1, o que é condição (não garantia) para refletir com propriedade e profundidade, a fim de aprender com as próprias vivências, que é o outro lado da mesma questão. Prossegue, então, Aristóteles: ainda falta a estes “a experiência dos fatos da vida”, não bastando a teoria, pois eles não “são sequer bons ouvintes neste tipo de assunto”. A experiência dos fatos da vida, contudo, não depende simplesmente de se ter vivenciado ou não uma determinada situação; depende da teoria e da vivência, mas, quanto a esta, de como se a vivenciou, pois, como no caso da ética, aqui “o defeito não depende da idade, e sim do modo de viver e de seguir um após o outro cada acontecimento que lhe depara a paixão” (EN I, 1095a).

Reconhece-se a validez destas ideias para pensar a formação inicial e continuada de docentes, no sentido de que o acesso às teorias precisa acontecer não somente em vista da prática, mas para aprender com a prática. As duas condições andam juntas2, para lembrar o conceito de “unidade dialética da Práxis” (FREIRE, 1976, p. 49). De acordo com Aristóteles, “é preciso ter sido instruído em assuntos de tal natureza”, e, em segundo lugar, “haver vivenciado os fatos da vida” (EN 1095b) para poder tirar as lições de aprendizagem prática mediante a atitude de prestar atenção e de refletir, numa expressão mediante a “atitude contemplativa”.

Seguindo essa linha de raciocínio, a teoria só faz sentido quando articulada com a prática de formação. A teoria como “preparação para” futuras práticas é vazia, e a prática sem uma boa teoria é inócua, porque não serve para aprender, para adquirir sabedoria prática. Somente a vivência dos fatos da vida pode dar suporte prático para a aprendizagem desse tipo de saber, porém, por outro lado, a reflexão sobre vivências pressupõe que tenhamos as condições intelectuais para a mesma, que tenhamos referências teóricas que possam qualificar a reflexão e oportunizar a aprendizagem, no caso, do “ser docente”.

Quanto à sua especificidade, a aprendizagem de ser docente assemelha-se a outra aprendizagem, seja ela teórica, seja ela prática. Normalmente ela inicia por um processo mimético. Há que se ter bons exemplos a seguir, para, a partir deles, com base em sua própria prática e em confronto com a teoria, construir seu próprio modo de ser docente, tornando-se cada vez mais sábio, prudente e equilibrado diante das situações concretas do cotidiano. Na sequência, recorre-se, mais uma vez, às sábias ponderações do filósofo sobre a questão metodológica, porém de fundo epistemológico.

A práxis humana tem uma especificidade que a distingue do fazer meramente teórico das ciências da natureza e das ciências formais, como a matemática e a lógica. A aprendizagem, na prática, e o processo de aquisição de sabedoria prática, assim como a natureza da própria práxis, comporta uma grande variedade de possibilidades e de opiniões. Aristóteles refere-se diretamente à ética e à política, e nós colocamos no centro da práxis o processo de formação humana em geral - a educação -, pois, pela definição do próprio autor, a práxis é aquela atividade mediante a qual não se busca a qualidade de um produto a ser produzido (poiésis) ou a episteme sobre um assunto de física ou de astronomia, mas é a atividade mediante a qual se visa à “perfeição do próprio agente”, ou seja, à realização humana, que ele também chamou de felicidade.

Neste caso, todavia, não há como definir, de modo decisivo, em que consiste essa realização e uma vida boa e feliz; não há como saber, de antemão, como e para onde dirigir o processo da busca. É neste sentido que afirma o filósofo:

[...] ao tratar de tais assuntos e partindo de tais premissas, devemos nos contentar em indicar a verdade apenas aproximadamente e em termos gerais e buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que a admite a natureza do assunto. [...] não seria menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas exatas de um retórico (EN 1094b).

Nesta citação o autor deixa claro que adota uma metodologia adequada à natureza do assunto e que ele se contenta com as conclusões possíveis dentro desses limites. Atualmente poder-se-ia afirmar que essa é a distinção mais importante que se pode fazer entre o quantitativo, muito própria às ciências da natureza e às estatísticas de índices em ensino, por exemplo, e o qualitativo, no qual prevalece uma lógica mais flexível, que o filósofo denomina de retórico. Isso repousa sobre uma distinção corrente na cultura grega, que já havia sido formulada por Platão e que Aristóteles traz para a filosofia prática.

De um lado, nas matemáticas e nas ciências da natureza, em que se pressupõe lidar com o que é constante, adota-se uma forma de medida exata denominada de “poson”, rigorosamente quantitativo. Nas coisas humanas, que são como são, mas que podem ser diferentes porque dependem de nossa deliberação e decisão de ação, adota-se um padrão de medida que busca o aproximado e a justa medida em relação à coisa, que se chama “poion”. É um modo de medir “em que se alcança a medida interna da coisa, o adequado ele mesmo. Isso nós o conhecemos, por exemplo, do bem-estar harmônico, que conhecemos por saúde” (GADAMER, 2000, p. 19). Isso é o que caracteriza o qualitativo.

Desta distinção podemos derivar a diferença entre o conhecimento teórico das coisas naturais e o conhecimento prático das coisas humanas. A educação, por exemplo, é uma atividade semelhante à aprendizagem de uma arte, em que se precisa buscar constantemente o equilíbrio, como aprender a andar de bicicleta, com a diferença de que, depois de haver aprendido essa arte, pode-se andar de bicicleta mecanicamente. Já no caso da educação há que se continuar fazendo e aprendendo o tempo inteiro, buscando o justo termo em cada ocasião e situação, isto é, nunca se terá aprendido de uma vez! Assim é em toda práxis, pois nela busca-se algo que não se sabe, com precisão, em que consiste. Há que se ir fazendo e aprendendo; talvez aprendendo mais de que é necessário continuar aprendendo do que aprender a como fazer daqui para diante. Na educação, o daqui para frente é campo aberto ao imprevisível, desafio e risco; mais aventura histórica do que repetição de fórmulas que já deram certo3.

Isso leva-nos de volta ao entendimento de Aristóteles sobre a aprendizagem, que é a aprendizagem de um modo de ser e está intimamente ligada ao ideal mais amplo e mais importante para a vida. Afinal, quem quer ser docente busca ser reconhecido por esse “ser uma/um boa/bom docente”, isto é, ser reconhecido pelos outros como quem atingiu virtude naquilo que faz; reconhecimento que pressupõe algumas coisas implícitas, como “ser bom”, como qualidade atribuída ao que se faz e, neste caso especialmente, ao que se é. Está-se, pois, diante do problema da precisão de que falamos anteriormente, porque não há um consenso definitivo sobre o que seja o bem independentemente da situação em questão.

Aristóteles, como se pode perceber, reconhece este problema no que diz respeito à ética e à política. Da parte dos autores deste texto, faz-se relação à educação, pois entende-se que esta se relaciona com ambas, dado que as ações morais ganham importância dentro do contexto maior da pólis. A ética é fundamental, mas o bem maior para os gregos, e, consequentemente, a arte mais importante, é a política, uma vez que ela visa o bem comum da sociedade como um todo, e que é construído pelos indivíduos que a ele se dedicam de modo virtuoso, justo e com espírito de gratuidade pública. Como os seres humanos não nascem predispostos a isso, precisam ser educados para buscarem, ao mesmo tempo, o bem particular, na forma de autorrealização ou felicidade, e o bem comum; daí para nós a essencial politicidade da educação. A exemplo da pólis, que deve “dedicar o melhor de seus esforços para fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de ações nobres” (EN I, 1099), a educação, em sua essencial politicidade, é toda perpassada desse estofo ético de prover uma formação de gente com sensibilidade social, espírito de solidariedade e colaboração e senso de justiça e de respeito à dignidade de cada pessoa. Quando se pensa em termos de políticas públicas, a educação realiza aquilo que o Estado lhe exige, mas, em contrapartida, um Estado com o mínimo de sensatez espera que a educação vise a habilitar cada educando a se tornar um cidadão apto a auxiliar na construção do bem comum e a buscar sua própria autorrealização. Trata-se de apostar que só se terá uma pólis virtuosa se virtuosos forem seus cidadãos.4

RECUPERANDO A MIMESIS PELO RECONHECIMENTO

A partir da interpretação que Hans-Georg-Gadamer, na obra Verdade e método - traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica5, faz do conceito de mimesis, pode-se compreender melhor a tese aristotélica de que toda aprendizagem, seja ela prática, teórica ou técnica, inicia com ela. Para esclarecer isso, conforme já vimos, o autor faz considerações sobre “o modo de ser do jogo” (GADAMER, 1998, p. 190). Lembrando brevemente, no espetáculo acontece algo que, em seu movimento de idas e vindas, não há um fim previsível, e que os sujeitos do jogo (espetáculo) não são os jogadores. Os atores não são os sujeitos, mas o próprio jogo/espetáculo, que é jogado, à despeito da vontade subjetiva de cada jogador/ator. No caso do espetáculo, isso fica mais evidente, uma vez que aí a primazia se desloca continuamente de um lado para outro, do ator ao espectador, de acordo com o acontecer da representação. O primado é do jogo, ainda que os jogadores tenham se preparado detalhadamente para decidir o jogo por meio de suas jogadas; quer dizer, não existe um bom jogo sem estratégias, esmerada preparação, reiterados treinamentos, ensaios práticos, etc. No seu acontecer, porém, é o próprio jogo que conduz o movimento. Isso completa-se na representação teatral ou na interpretação de uma música, ao dirigir-se para o espectador. Aí percebe-se que jogar é estar-em-jogo, ou, mais precisamente, o jogo transforma-se em configuração que se abre para o lado do espectador na forma de representação. O ator, intérprete, permanece em processo; ele está lançado, enquanto a sua atuação continua. Disso ele aprende que nada está definitivamente dado. Há que continuar a aprender, a fazer de novo e a se refazer neste acontecer do jogo, do espetáculo. Na dinâmica de aprender a ser docente também acontece coisa semelhante.

Quando pensamos sobre o processo mimético da transformação em configuração e sua consolidação na representação, somos levados a admitir “que algo, de uma só vez e em seu conjunto, torna-se outra coisa.” É mais do que modificação, que incide apenas sobre o “modo” de ser, e não muda a substância da coisa. Afirmar que alguém está transformado significa que ele não é mais o que era e que aquilo que se representa agora, no jogo ou no espetáculo, é o verdadeiro. Isso é assim quando se trata do dramaturgo e do compositor, não só do ator e do intérprete, “nenhum deles tem um ser-para-si próprio, que eles afirmam no sentido de que seu jogo significaria que só estão jogando” (Idem). Não há apenas um disfarce, modificação da aparência, até porque, mesmo no disfarce, aquele que se disfarça não quer ser percebido por detrás do disfarce; ele quer ser reconhecido como sendo o outro que ele está representando. O recurso ao “modo de ser da obra de arte” é porque, para Gadamer, “ela é um mundo totalmente transformado, no sentido de que algo, de uma vez só e no seu conjunto, se torna outra coisa, de maneira que essa outra coisa, que é enquanto transformada, passa a ser seu verdadeiro ser, em face do qual seu ser anterior é nulo” (1998, p. 188).6

Aristóteles (Poética, 4, 1448b) afirma isso ao tratar do conceito de mimesis. Imitando, a criança começa a brincar, fazendo o que conhece e confirmando, assim, a si mesma. O prazer com que a criança se fantasia não pretende ser um esconder-se, uma simulação, a fim de que se adivinhe e se reconheça quem está por trás disso, mas, ao contrário, ela está representando, de tal modo que apenas o representado é. O que a criança representa é o que deve ser, e se há algo que deva ser adivinhado é exatamente isso. “Terá de ser reconhecido o que ali está, por exemplo, Batman, Superman, e não o Artur, o Pedro ou o Carlos (GADAMER, 1998, p. 191).

O recurso ao modo de ser do jogo como espetáculo (Spiel) é para mostrar a estrutura de abertura a possibilidades e imprevistos, ou a tese de que a “experiência mostra que na vida nada se repete”. Por isso, não pode haver uma fórmula a ser aplicada de modo geral. Se levar isso à sério, pode-se entender que também na experiência de ser docente não pode haver uma distinção, senão apenas metodológica, entre formação/transformação inicial e continuada, porque, no sentido da phronesis, ambas acontecem ao modo da experiência, isto é, como saber prático que resulta nesse processo de dialetização teoria-prática.

Quem está no processo de formação docente está numa situação similar à de quem está jogando e que vivencia o jogo como uma realidade que o sobrepuja e que ganha seu inteiro significado somente quando se abre para o lado do espectador, ou seja, na representação (GADAMER, 1998, p. 185). A experiência docente também é como um jogo em aberto, que vai se completando ao fazer-se espetáculo, isto é, colocando o espectador no lugar do jogador. Quando se toma essa reviravolta como traço fundamental do modo de ser docente, tudo passa a acontecer em razão daqueles que estão do outro lado; é para eles, não para o jogador/ator, para quem e em quem se joga/representa. O outro (espectador/estudante) tem uma primazia metodológica, pois é para ele que o conteúdo de sentido acontece. De certa forma, a diferença entre ator e espectador anula-se porque o que acontece aí é um fenômeno vivo, que os iguala: é experiência, abertura, aprendizagem. Quando não se experimenta isso na fruição estética da interpretação de uma música, por exemplo, quando isso não acontece, pode-se afirmar que a representação foi malsucedida.

Quando o jogo se transforma em configuração isso se completa; o jogo humano forma sua real consumação em ser arte7, e, por ela, o jogo alcança sua idealidade ao mostrar que ele (jogo/espetáculo) tem uma autonomia em relação ao jogador. A partir daí entende-se que a mimesis não consiste em repetir mecanicamente o que outra pessoa já fez, mas em recuperar o sentido de conhecimento/reconhecimento que nela acontece, pois “quem imita alguma coisa deixa isso ser aí, o que ele conhece e como ele conhece.” (GADAMER, 1998, p. 191).

O gosto que as crianças têm de representar remete à alegria do reconhecimento, no sentido de que só se pode compreender o jogo da arte tendo em vista o “sentido do conhecimento” que se encontra na imitação. Assim, percebe-se que, na imitação, acontece o que é representado - é a relação mímica originária. Quem imita alguma coisa deixa ser aí “o que conhece e como o conhece” (GADAMER, 1998, p. 189). Do mesmo modo, “o jogo ou o espetáculo, ele mesmo, é de tal maneira uma transformação que para ninguém continua a existir a identidade daquele que joga (representa).” (Idem). A subjetividade dos atores não mais existe como algo à parte, intocado; o que existe é o que eles representam.

Quando, na Poética (1448b), Aristóteles afirma que a representação “artística faz parecer agradável até mesmo o que é desagradável”, ele está apontando para o verdadeiro sentido do conhecimento da mimesis: reconhecimento. O que propriamente se experimenta numa obra de arte é “em que medida conhecemos e reconhecemos algo e a nós mesmos nela”. E não se trata de rever o que já se conhecia. “A alegria do reconhecimento reside no fato de identificarmos mais do que somente o que é conhecido”. É como que a intuição que nos faz perceber que “isso é novo e é assim mesmo”. “O conhecimento alcança seu ser verdadeiro e se mostra como o que é apenas através do reconhecimento” (GADAMER, 1998, p. 192). O que é casual e secundário desaparece no reconhecimento que acontece na arte por meio da representação, pois “agora se reconhece o que é representado”. Isso é assim porque a imitação e a representação não são repetição figurativa, mas conhecimento da natureza daquilo que se representa. Para mostrar o sentido que isso significa, pode-se afirmar que a imitação-representação é “ex-tração” (Hervorholung), que está também no espetáculo (vinculação): imitar é interpretar (GADAMER, 1998, p. 193).

Assim, ao considerar-se que a representação da arte é “o modo de ser próprio”, entende-se que o reconhecimento que nela está em obra é conhecimento da essência; ou a essência do espetáculo (jogo) e da obra de arte está no representar-se8, no sentido que “através de sua representação, se dirige aos espectadores” (GADAMER, 1998, p. 194), de tal maneira que o espectador passa a ser parte integrante do objeto (jogo, espetáculo), apesar de todo o distanciamento de contraposição. A obra, ela mesma, acontece na representação (execução e mimesis). Por isso que se enuncia “assisti a tal peça”, e não “fui ver o ator tal”. Nisso está a verdade da arte, do lúdico, porque o espetáculo só acontece onde ele é representado. “A encenação de um espetáculo teatral não pode ser separada do lúdico como algo que não pertence ao seu essencial” (GADAMER, 1998, p. 195). A obra encontra-se na execução, na representação; é “energeia e ergon”. Isso é de tal modo decisivo que “o ser da arte não pode ser determinado como objeto de uma consciência estética”. Ao contrário, “o comportamento estético é mais do que sabe de si mesmo”. Ele é uma parte do processo do ser de sua representação e pertence essencialmente ao jogo como jogo (“lúpus”: a lição, o fazer, o jogar, o brincar, o lúdico). Não se trata, porém, de satisfazer uma necessidade lúdica, mas “de entrar na existência da própria poesia”. Ou, inversamente, “a obra poética só se torna espetáculo quando representada”, quando acontece a representação do próprio ser da poesia (GADAMER, 1998, p. 196).

Parece que agora se compreende a expressão “transformação em configuração”. O jogo, o espetáculo, é “configuração” porque, mesmo que ele dependa de seu tornar-se representado, ele “é um todo significante e, como tal, pode ser representado e entendido em seu sentido repetidas vezes.” Por outro lado, a configuração é também jogo (Spiel), que alcança seu pleno ser a cada novo tornar-se representado. Gadamer (1998) acentua, desse modo, a mútua pertença de ambas as partes, contra a abstração da “diferenciação estética”. A ela opõe a indiferenciação estética como elemento constitutivo real da consciência estética. Isso não significa, porém, que haja repetição mecânica entre uma e outra representação, pois, a cada vez, de modo diverso e novo, acontece a verdade da poesia, da peça, etc. Pode-se afirmar que nada se repete ao se repetir; logo, não há propriamente repetição.

Como? “o que é imitado na imitação, formulado pelo poeta (dramaturgo), representado pelo ator, reconhecido pelo espectador, é de tal modo o que se tem em mente, aquilo onde reside o significado da representação, que, na forma poética ou na representação, nem chegam a ser realçados.” (GADAMER, 1998, p. 196). A diferenciação entre a composição poética e sua concepção é secundária, porque “o que o ator representa e o espectador reconhece são as formulações e a própria ação (energeia), tal qual foram pensadas pelo poeta”: é a dupla mimesis, quando o poeta representa e o ator representa, mas o que se torna existente em um e em outro é a mesma coisa. Ou seja, “a representação mímica da encenação leva isso a ser-aí” (GADAMER, 1998, p. 196)9.

Gadamer (1998) continua sua argumentação destacando que “a dupla diferenciação da obra poética e de sua matéria, e, da obra poética e da sua encenação, corresponde a uma dupla indiferenciação tida como a unidade da verdade, que se reconhece no jogo da arte” (p. 196-197). Isso é tão decisivo que o espectador que reflete sobre a “concepção que está à base da encenação” ou que pretende entender a fábula encenada a partir de sua origem, ou, ainda, que reflete sobre o desempenho do ator como tal, “cai fora da efetiva experiência estética do espetáculo”. Essa possível diferenciação não é da experiência estética, é do crítico de arte, que, para sê-lo, precisa se privar do direito à experiência, por que essa o transformaria ao trazê-lo para dentro do espetáculo, desde onde já não teria a objetividade de crítico que supõe ter. Para quem vive a experiência, então, isso é indiferente porque aí acontece um todo de sentido, que é o acontecer da verdade da obra, de tal modo que nesta experiência sequer há diferença possível entre o acontecer no palco e o acontecer ao vivo, por exemplo, de uma tragédia. Sem isso não poderia haver “catarse”. As diversas possibilidades de encenar, representar, determinada personagem, não depende da variação subjetiva de atores; ela é sustentada pela própria obra. As variações na representação subordinam-se ao padrão de representação correta (GADAMER, 1998, p. 198). Embora isso pareça problemático, há que se aceitar que uma representação de qualquer jeito, sem estar em sintonia com o essencial da personagem, não efetiva sua verdade. Isso tem a ver com um modelo a seguir, e, no caso específico,

[...] a tradição que é criada por um grande ator, regente ou músico, na medida em que o modelo continua operante, não é um obstáculo para a livre criação, mas ele se fundiu de tal maneira com a própria obra que o confronto com esse modelo não evoca menos a reformulação criativa posterior de todo artista do que o confronto direto com a obra (GADAMER, 1998, p. 199).

De modo semelhante, há muitas maneiras “corretas” de ser docente, assim como há muitas formas de representação correta, supondo uma referência, sem que a licenciosidade “criativa” do intérprete tome a obra dramatúrgica ou poética apenas como motivação para produzir efeitos aleatórios. Canonizar uma determinada interpretação, todavia, igualmente descaracteriza a genuína tarefa da interpretação, assim como a imitação mecânica e meramente técnica de um modelo de ser docente descaracteriza o próprio ser da docência. Quando se busca uma “correção” com base num padrão fixado, “não se faz justiça à vinculabilidade genuína da obra, que vincula cada intérprete de uma forma própria e imediata e lhe retém a desobrigação através da mera imitação de um modelo” (GADAMER, 1998, p. 199).

Por outro lado, também seria falso “limitar a liberdade do bel prazer reprodutivo a exterioridades e a fenômenos marginais e, antes, não conceber o todo de uma reprodução, ao mesmo tempo, como obrigatório e livre” (GADAMER, 1998, p. 200). Num certo sentido, a interpretação é um fazer segundo um anterior (Nachschaffen), mas isso não significa que ele segue mecanicamente um ato criativo precedente. O modelo é a figura de uma obra criada que alguém trouxe à representação na medida em que aí encontrou sentido. É este o sentido da afirmação que mostra que a mimesis supõe o reconhecimento de que o modo de ser do modelo faz sentido.10 Supor, porém, que haja uma única representação correta não faria jus à finitude da nossa existência histórica. Correta é toda forma de representação na qual se efetiva a verdade da obra, que excede a um modelo único. Por isso a essência da mimese não é mera representação demonstrativa, que poderia ser mecanicamente repetida. Quem imita tem de realçar algo, e nisso mostra-se como intérprete.

APREENDENDO A SER DOCENTE: ATUALIDADE HERMENÊUTICA DE ARISTÓTELES

A Phronesis11 é um saber de experiência no sentido de haver vivenciado com intensidade e com atitude reflexiva e contemplativa para aprender com tais vivências, que podem ser de natureza teórica e prática. Essa atitude supõe as condições necessárias à reflexão para poder se tornar cada vez mais sábio e experiente por meio dessa contínua dialética entre as vivências cotidianas e a reflexão que as acompanha12. Tem-se de esclarecer previamente que experiência não é sinônimo nem de sensações tampouco de repetição mecânica. Esse conceito pode ser entendido desde a metáfora do “exército em fuga”, de Aristóteles, pois, aqui e ali, a partir da fuga dos fenômenos cambiantes, começa-se a perceber algo comum e, assim, aos poucos, pelos reconhecimentos que vão se acumulando e que são chamados de experiências, forma-se a unidade da experiência. Pela experiência dispõe-se expressamente daquilo que se experimenta nos moldes de um conhecimento comum (GADAMER, 1998, p. 177). Aristóteles pergunta: Onde e como um exército em fuga começa a se deter? Com certeza não é pelo fato de o primeiro soldado ter parado ou o segundo ou o terceiro. “Não podemos afirmar que o exército se detém quando um determinado número de soldados fugitivos parou de correr, nem tampouco quando o último soldado tiver parado. Não é com ele que o exército começa a se deter, uma vez que já começou a se deter bem antes” (GADAMER, 1998, p. 178).

Não há como saber nem como controlar e afirmar como começa, prossegue e, enfim, o exército se detém e volta a obedecer à unidade de comando. Isso pode ser comparado à Phronesis. Aqui mostra-se a atualidade hermenêutica de Aristóteles em ajudar a pensar sobre como se pode adquirir sabedoria prática. Como é que se aprende a se tornar docentes cada vez mais sábios, isto é, mais experientes? Já antecipou-se a implicação dos dois aspectos fundamentais dessa aprendizagem. De um lado, há que se vivenciar, ter a prática, para dela tirar as lições, mas, de outro, a atitude de docente reflexivo supõe que se tenha boas referências, em duplo sentido, exemplos que inspiram e suporte teórico para se poder refletir por conta própria e, assim, não se ter a necessidade de, simplesmente e o tempo todo, tentar repetir mecanicamente os modelos que inspiram. A sabedoria prática de ser docente há que estar constantemente acompanhada da autonomia, no agir e no pensar, para que a aprendizagem seja, de fato, algo que promova modos de subjetivação, de auto(trans)formação.

É nesse sentido que se insiste que a Phronesis é imprescindível ao verdadeiro fazer pedagógico, à docência que se assume como educação. O que, no entanto, isso tem a ver com a atualidade de Aristóteles? Começa-se com a ideia geral, de Gadamer, de que o núcleo do problema hermenêutico é que a tradição tem de ser entendida cada vez de uma maneira diferente, e que isso coloca o docente diante da relação entre o geral e o particular. Compreender é, em cada circunstância, um caso especial de aplicação de algo geral a uma situação concreta e particular13. Segundo Gadamer (1998, p. 465), “Aristóteles não aborda o problema hermenêutico nem sua dimensão histórica, mas trata somente da apreciação correta do papel que a razão deve desempenhar na atuação ética”, isto é, nas tomadas de decisão. Nesse caso, como em toda “práxis”, não há uma fórmula a ser simplesmente aplicada ou um modelo a ser reproduzido mecanicamente.

Para entender a natureza da práxis é oportuno retomar a distinção que Aristóteles faz entre esta e o saber-fazer produtivo e teorético a que se fez referência nas páginas iniciais deste artigo. O saber da práxis educativa, que em sua essência tem a especificidade do saber do ethos, também se distingue claramente do saber teorético, da physis, no sentido que este último trata de explicitar as leis que regem os fenômenos da natureza e que, segundo a concepção dos gregos, são constantes, enquanto o saber da práxis se refere às ações, cujas normas de procedimento são estabelecidas pelas pessoas e poderiam ser de outra maneira, uma vez que o critério para decidir sobre o certo e o errado, o bem e o mal, pode ser definido apenas em linhas gerais.14

Diante do modelo grego de “teoria”, que é a matemática, as ciências humanas não lidam com algo inalterado/inalterável, mas com o saber do ser humano sobre si mesmo, como agente. Neste caso o ser humano sabe que lida com coisas que nem sempre são como são, pois podem também ser diferentes. É nisso que Aristóteles se baseia para afirmar que esse tipo de assunto comporta grande variedade de opiniões, e que o saber, neste caso, serve para orientar o fazer, mas é um saber prévio que está, ele mesmo, em constante questionamento. Nisso ele se diferencia do saber teórico e, igualmente, do saber técnico. Há, da mesma forma, distinção entre o saber teórico e o saber prévio da téchne que é um saber de experiência também, mas que não basta para a tomada de decisão eticamente correta ou para a “práxis” em geral. Existe, pois, grande diferença entre saber fazer “coisas” e o “saber-se” do saber ético e phronesis política, uma vez que nelas o que se busca não é a qualidade de um produto externo ao produtor, mas a perfeição do próprio agente como tal, em sua própria ação. Considera-se a semelhança dos dois saberes para a atuação. No caso da decisão moral não se trata apenas de aplicar o conhecimento prévio, embora ele esteja também pressuposto neste caso.

Na práxis, está-se sempre tentando encontrar o equilíbrio, a justa medida em relação à própria coisa em questão, o “poion”, sabendo que o que está em questão são os próprios docentes em processo de formação, em conformidade com certo modelo que eles mesmos consideram melhor, uma vez que, na práxis, diferentemente da poiésis, em que se busca a finalidade externa da “qualidade” do produto, objetiva-se “à perfeição do próprio agente”, sem saber com precisão o que isso significa: visa-se à realização humana, que não se pode definir ao modo de uma lei da natureza, pois depende de cada cultura, época e modo de vida. O problema colocado por Aristóteles (EN 1094b) é de que o bem não comporta a mesma precisão conceitual de um problema da natureza e que dele só se pode ter uma definição geral, mas sempre com relação a si em situações práticas, posição que inspira Gadamer (p. 466), ao afirmar que “aquele que atua deve ver a situação concreta à luz do que se exige dele em geral”, e, nesse caso, “um saber geral que não seja aplicável à situação concreta permanece sem sentido”, podendo, mesmo, atrapalhar mais do que ajudar nas tomadas de decisão cotidianas.

Para Gadamer (1998, p. 466-467), essa exigência do saber prático confere relevância moral ao problema do método e exige um critério de demarcação entre o que pode ser objeto de um procedimento matemático, preciso, e o que deve ser tratado com uma lógica diferente da meramente formal, que o filósofo grego denominou de retórica. Assim é com relação à definição do que se supõe ser o fim visado em cada ação, o bem (EN., 1,1094a). É preciso conhecer em que consiste, para não ser como “arqueiros que não sabem onde está o alvo de sua pontaria”, mas só podem conhecê-lo em linhas gerais. Mais adiante o autor salienta que “temos que nos contentar em indicar a verdade aproximadamente e em termos gerais”,

Pois é próprio do homem culto buscar a precisão, em cada gênero de coisas, apenas na medida em que o admite a natureza do assunto. Evidentemente, não seria menos insensato aceitar um raciocínio provável da parte de um matemático do que exigir provas exatas de um retórico (EN., 3, 1094b).

A exemplo da ética, portanto, em toda práxis, de modo geral, não se pode falar de uma exatidão, de nível máximo, como a que fornece a matemática. “Aqui se trata de tornar visível o perfil das coisas e ajudar, de certo modo, a consciência moral com este esboço de mero perfil” do critério geral, isto é, o bem (GADAMER, 1998, p. 467), que serve de mera ajuda, porque o sujeito da ação deve saber e decidir por si mesmo, por sua consciência moral, usando sua própria razão para interpretar o fato particular e aplicar a ele a noção de bem, para que sua ação tenha verdadeiro valor moral. A isso soma-se a condição de que somente está preparado a receber esta ajuda especial quem tem maturidade existencial, quem foi já educado no exercício do uso prático da razão e tem certa vivência da natureza do assunto ou do problema específico com que se defronta. As duas coisas se entrelaçam o tempo todo - a vivência dos fatos da vida e certo conhecimento geral sobre o assunto, que oportunizam uma reflexão mais rigorosa e, com isso, podem levar à sabedoria prática, que é quase sinônimo de experiência: Phronesis.

Na sequência da Ética a Nicômaco (1095a), Aristóteles afirmou que aquele que foi bem instruído pode julgar bem, mas que não se trata de mero conhecimento teórico. Há que se ter experiência dos fatos da vida e quem não a tem não é, sequer, bom ouvinte nesse tipo de assunto. Para evitar ambiguidade, o autor emenda afirmando que, embora os jovens não estejam preparados para discutir esse tipo de assunto, pela falta de experiência, o “defeito não depende da idade, mas do modo de viver e de seguir um após outro cada objetivo que lhe depara a paixão”15.

A partir disso, Gadamer (1998, p. 467-468) adverte que não se pode esperar dessa “ajuda” mais do que ela pode dar e que só quem foi educado ou que já tem sabedoria prática pode ter um comportamento moral e constantemente correto. No caso da ética e da práxis educativa, fica ainda mais claro que se trata do problema hermenêutico da pertença entre o intérprete e o que está mesmo em questão. Aqui não é possível um conhecimento objetivo, ao modo das ciências naturais, pois o “conhecido” afeta aquele que conhece: “É algo que ele tem de fazer”, com base em sua ponderação e decisão. Para fazê-lo, ele busca conselho em si mesmo.

Aristóteles arrola grande gama de aspectos a serem levados em conta para descrever os fenômenos e fazer a distinção entre téchne e a arte de aplicação da lei pelo jurista, que se caracteriza pela “equidade”, isto é, na “correção da lei” em vista da justiça no caso concreto, diante da qual a lei, mesmo sendo a mesma para todos, é “sempre diferente, porque a realidade humana é sempre diferente” e é a ela que se aplica a lei. Gadamer (1998, p. 476) ressalta que isso vale para a ação humana em geral: as teorias não são verdades imutáveis que constituem um ideal arbitrário. A distinção que o autor faz entre téchne e práxis visa, ainda, a mostrar que o saber técnico não pode jamais suprimir o saber ético, especialmente devido à peculiaridade da relação entre meios e fins no caso do agir moral. A ação boa na técnica é aquela que é eficiente para produzir o fim buscado, mas, no caso da ética, isso não é suficiente, pois a ação é moralmente boa somente se os meios forem virtuosos. Isso é também assim na educação; dependendo do caso específico, o acento recai sobre os meios mais do que sobre os fins visados.

Outro aspecto fundamental na teoria de Aristóteles para a formação e atuação docentes é que ele mostra que o saber prático não é um saber simplesmente ensinável como a téchne e a teoria, porque ele supõe a vivência e é um saber de experiência. A phronesis equivale à experiência, mas de algo muito especial, que é a capacidade de ponderação ou, como salienta adiante, “junto à phronesis, pois, na virtude da ponderação reflexiva, aparece o entendimento”, mas que não é suficiente para a boa decisão diante do outro. Aí entra um fator especificamente humano: além da disposição de espírito, da sabedoria prática, há que desejar fazer o bem, ser solidário com o outro, posto que as outras capacidades de “sabedoria prática” podem ser utilizadas também para fazer o mal aos outros, e “nada é tão terrível, tão espantoso e até tão aterrador como o exercício de capacidades geniais para o mal” (GADAMER, 1998, p. 481).

Aristóteles esclarece as condições para a ação moral virtuosa, que se toma como referência também para a práxis educativa, afirmando que uma ação somente é boa se aquele que a pratica tem ciência de que sua ação é virtuosa; ele se decide por fazer a ação porque a reconhece como boa e age movido por um caráter firme (EN., 1105a-1105b). Essas condições - saber que a ação é virtuosa, agir voluntariamente e fazer a escolha não por mero interesse próprio, mas porque a ação é virtuosa, agir com virtude, isto é, com firmeza de caráter - é que diferenciam a ação virtuosa das ações que visam a atingir simplesmente bons resultados, isto é, das ações por interesse16. O ser humano, porém, não nasce com essas virtudes; ele precisa ser educado para compreendê-las e fazer com que sejam constitutivas do seu caráter moral.

CONCLUSÕES

Pode-se discordar de uma série de afirmações do filósofo Aristóteles com base em muitos conhecimentos de várias ciências que se desenvolveram na modernidade. No caso da educação, principalmente as contribuições da psicologia e de suas derivações. Não se pode, entretanto, simplesmente ignorar a contribuição e a atualidade de Aristóteles na colocação do problema da aprendizagem humana em geral, que faz reinterpretar alguns conceitos de, inclusive, superar os próprios preconceitos para com eles. Por exemplo, o papel da imitação, da repetição em toda a aprendizagem humana, como constitutivo da mesma, mas numa acepção diferente da meramente mecanicista, que vigora desde o advento da ciência moderna e dos processos de fabricação que dela decorrem.

Outra questão muito atual, e que faz pensar, é que o referido filósofo já fazia uma importante distinção entre procedimentos epistemológicos, quando se tratava da matemática e das coisas regidas por leis supostamente fixas (Physis), como a natureza, e das coisas humanas e do saber referente a elas, e entre o fazer coisas que resultam em produtos separados de quem os produz e o fazer que visa à perfeição do agente, entre poiésis e práxis; distinção que está em paralelo com outra de cunho mais metodológico.

Reconhecer a dignidade do saber phronético permite não cair na tentação de querer estabelecer um saber epistêmico acerca da docência, um saber “à prova de contextos”, como se tratasse de um objeto abstrato aos moldes das ciências formais. Também afasta dos tecnicismos, que agora, atualizados pelas novas mídias, prometem um fazer destituído de escolhas ético-políticas. O saber phronético, cabe destacar, é um saber vivo, que se refaz em cada nova situação. Seu inacabamento não é defeito, mas virtude, espécie de antídoto a uma educação sempre em risco de esclerosamento.

Enfim, considerar a especificidade da tarefa educativa e da formação para o exercício da docência, levou a buscar, na noção de phronesis, inspiração para superar a polaridade entre episteme e téchne, evidenciando que, embora sendo ambas relativas à educação, como são para a ética e a política, são insuficientes para dar conta da complexidade e da dinamicidade desta dificílima responsabilidade que é acolher as novas gerações com vistas à inclusão e à renovação do mundo comum. Aristóteles anteviu isso; Gadamer ajudou a restabelecer a potencialidade deste pensamento; e a nós coube revisitar esta tradição de pensamento visando aos desafios do tempo presente. Espera-se, com isso, contribuir para um debate que deveria ser de todos que apostam nas virtudes republicanas, sabendo que suas potencialidades e fragilidades são finitas como seus artífices.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1984a. (Coleção Os pensadores). [ Links ]

ARISTÓTELES. Poética. Tradução Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural , 1984b. (Coleção Os pensadores). [ Links ]

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. São Paulo: Paz e Terra, 1976. [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método - traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução Flávio Paulo Meurer. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998. [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg. Gesammelte Werke 1 - Hermeneutik I. Tübingen: Ed. Mohr Siebek, 1999. [ Links ]

GADAMER, Hans-Georg. Da palavra ao conceito. In: SILVA DE ALMEIDA, Custódio Luís; FLICKINGER, Hans-Georg; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica nas trilhas de Hans-Georg-Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. [ Links ]

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. 2. ed.São Paulo: Loyola, 1996. [ Links ]

1As citações da Ética a Nicômaco são da tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. São Paulo: Abril Cultural, 1984. (Coleção Os pensadores). Usamos a convenção internacional para as citações de edições críticas de obras clássicas que visa facilitar que o leitor encontre a passagem citada com precisão, independente da língua, editora, data, página da tradução citada.

2É o que se lê na justificativa de muitos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC), especialmente insistindo para não deixar a prática somente para os semestres finais, mas também não largar para o campo de estágio alguém sem a mínima noção geral sobre educação e sobre as implicações teórico-metodológicas ínsitas à prática.

3Segundo Gadamer (1998), o saber que aí se faz necessário é uma “boa disposição de espírito” (p. 481) que se pode designar de “inteligência de navegação”.

4No uso atual da linguagem, estende-se raciocínio semelhante à saúde e à educação, por exemplo, em expressões como “cidades saudáveis” e “cidades educadoras”.

5Este livro de Gadamer foi publicado em primeira edição em 1960. Em 1999, a Universidade de Tübingen publicou as obras completas pela Editora Mohr Siebek. Verdade e Método é o primeiro volume com o título: Gesammelte Werke 1 - Hermeneutik I. Para as citações neste texto utilizamos a tradução de Flávio Paulo Meurer, 2ª edição, Editora Vozes, 1998.

6Seria essa a força do perfil profissional constante nos PPCs dos cursos de formação docente? O que não significa que todas as egressas da pedagogia de um curso saiam “formatadas” no mesmo molde. Vejamos continuando a leitura.

7Daí a dificuldade de tratar a docência como “trabalho” no sentido de uma téchne automatizada, na qual o melhor que pode acontecer já está antecipado no modelo idealizado. A docência, a aula como fenômeno vivo, sempre pode surpreender positiva ou negativamente, mas, de qualquer forma, é um acontecimento que permite sempre novas aprendizagens.

8O que permite afirmar a inexistência de uma essencialidade, no sentido metafísico, alheio à historicidade que atravessa o fenômeno, por trás do qual, arrisca-se afirmar, nada se esconde.

9O Romeu, de Shakespeare, e o representado pelo autor, é o mesmo, ainda que haja muitas possibilidades de representá-lo. Quando se afirmar que o ator representou do seu jeito não se pode entender que ele não representou a personagem, mas que fez aparecer uma possibilidade de ser deste.

10Essa é uma ideia que sustenta a tese central da Bildung: uma educação que visa a efetivar traços de uma imagem de ser humano que tem alguns elementos definidos e que não podem ser ignorados pelo educador.

11Na ética a Nicômaco (1141b 10 e 1142b 30), Aristóteles define a Phronesis como a capacidade de deliberar bem em situações concretas e no uso correto da razão na atuação ética, que parece ser o esperado da sabedoria prática de educadores/as.

12Essa atitude reflexiva, porém, não significa um afastamento do mesmo grau que, por exemplo, caracteriza o crítico de arte. Pode-se considerar que é uma reflexão “com” e não “sobre”.

13Isso permite asseverar que “não existe aula de...”, como em abstrato, pois, coerente com esta perspectiva teórica, a aula está sempre vinculada a um contexto que não lhe é exterior. O planejamento que a antecede não pode ter o caráter de um script - “a prova da experiência”. Usando uma analogia, deve ser como um comprimido efervescente que se dissolve na água, confundindo-se com o meio.

14Para uma compreensão mais detalhada desta distinção, ver OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética e sociabilidade. 2. ed. São Paulo: Loyola, 1996. p. 55: Aristóteles; a especificidade do saber prático; de modo específico as notas 16 e 17 nas páginas 59 e 60.

15Seria este o caso de um idoso que não aprendeu com as suas vivências; não se tornou uma pessoa experiente, porque lhe faltou atitude reflexiva para tirar as lições de vida das vivências para, assim, fortalecer-se com elas e tornar-se mais virtuoso.

16Analogamente, pode-se considerar que o sentido de uma escola republicana não é o sucesso dos alunos em processos avaliativos (vestibular, Enem...), mas a qualificação dos sujeitos que se ocuparão de assuntos comuns em uma esfera pública. Se na consecução deste objetivo se utilizassem processos avaliativos, meritocráticos, eles não deveriam ofuscar o sentido maior.

DECLARAÇÃO DE CONFLITO DE INTERESSE

19Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

Recebido: 16 de Fevereiro de 2022; Aceito: 24 de Agosto de 2022

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