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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub May 15, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469838758 

Artigos

IMPACTOS DOS CONTEXTOS EMERGENTES NA AULA UNIVERSITÁRIA: TENSÕES E PERSPECTIVAS

IMPACTOS DE LOS CONTEXTOS EMERGENTES EN EL AULA UNIVERSITARIA: TENSIONES Y PERSPECTIVAS

LUI NÖRNBERG1  , Conceituação e concepção do desenho do estudo, análise dos dados e redação do manuscrito
http://orcid.org/0000-0002-0075-9733

MARIA JANINE DALPIAZ RESCHKE2  , Coleta de dados, redação do manuscrito, análise e interpretação dos resultados
http://orcid.org/0000-0002-3456-749X

JULIANA BITTENCOURT GARCIA1  , Interpretação dos resultados, revisão crítica do conteúdo
http://orcid.org/0000-0002-6467-5264

1 Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Pelotas, RS, Brasil.

2 Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Taquara, RS, Brasil.


RESUMO:

Pensar a universidade em contextos emergentes requer considerar que, se a universidade de outrora errou por dar excessiva ênfase ao passado, a de hoje se vê impelida pelo presente inexorável e pelo futuro imprevisível, forçando-a a rever as suas concepções e as práticas pedagógicas desenvolvidas na aula universitária. O recorte do estudo que aqui apresentamos se deteve a analisar de modo qualitativo três relatos de práticas protagonizadas e apresentadas por participantes do XI Seminário Internacional de Educação Superior (XI SIES) da Rede Sul-brasileira de Investigadores da Educação Superior (RIES), realizado em 2018 na Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Os trabalhos selecionados obedecem ao critério de apresentar, pelo menos, duas das dimensões de inovação, pois entendemos que uma prática inovadora deve apresentar, pelo menos, duas das dimensões propostas por Cunha (2006). Os trabalhos elegidos apresentaram duas dimensões relacionadas e com maior destaque, são elas: Ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e Reorganização da relação teoria/prática. Os autores que sustentaram este trabalho foram, principalmente, Santos (2010), Franco (2012), Didriksson (2008), Cunha (1998, 2006), Morosini (2014), Tardif (2002) e Shulman (1989), orientando a análise pretendida na compreensão dos contextos emergentes ou no campo das práticas pedagógicas e da inovação. Os desafios são muitos, mas o estudo evidenciou o interesse e o protagonismo de professores e estudantes na direção de uma prática pedagógica mais significativa e emancipatória.

Palavras-chave: pedagogia universitária; inovação; prática pedagógica

RESUMEN:

Pensar la universidad en contextos emergentes exige considerar que, si la universidad de antaño se equivocó al dar excesivo énfasis al pasado, la universidad de hoy se ve impulsada por el inexorable presente y el imprevisible futuro, lo que la obliga a revisar sus concepciones y prácticas pedagógicas en la clase universitaria. El corte del estudio que aquí presentamos, se detuvo a analizar cualitativamente tres informes de prácticas protagonizadas y presentadas por los participantes del XI Seminario Internacional de Educación Superior (XI SIES) de la Red Sur Brasileña de Investigadores de Educación Superior (RIES), realizado en 2018 en la Universidad Federal de Pelotas. Los trabajos seleccionados cumplen el criterio de presentar, al menos, dos de las dimensiones de la innovación, porque entendemos que una práctica innovadora debe presentar, al menos, dos de las dimensiones propuestas por Cunha (2006). Los estudios seleccionados presentaron dos dimensiones relacionadas con mayor énfasis: Ruptura con la forma tradicional de enseñar y aprender y Reorganización de la relación teoría/práctica. Los autores que apoyaron este trabajo fueron, principalmente, Santos (2010), Franco (2012), Didriksson (2008), Cunha (1998, 2006), Morosini (2014), Tardif (2002) y Shulman (1989), orientando el análisis pretendido, ya sea en la comprensión de los contextos emergentes, o en el campo de las prácticas pedagógicas y la innovación. Los retos son muchos, pero el estudio evidenció el interés y el protagonismo de profesores y alumnos hacia una práctica pedagógica más significativa y emancipadora.

Palabras clave: pedagogía universitaria; innovación; práctica pedagógica

ABSTRACT:

Thinking about the university in emerging contexts requires considering that, if the university of yore was wrong to give excessive emphasis to the past, today's is driven by the inexorable present and the unpredictable future, forcing it to review its conceptions and pedagogical practices in university class. The scope of the study presented here focused on a qualitative analysis of three reports of practices carried out and presented by participants of the XI Seminário Internacional de Educação Superior (XI SIES) of the South Brazilian Network of Higher Education Investigators, held in 2018 at the Universidade Federal de Pelotas. The selected works obey the selection criterion of presenting, at least, two of the most prominent and related dimensions of innovation, they are: Break with the traditional way of teaching and learning and Reorganization of the theory/practice relationship because we understand that an innovative practice must present at least two of the dimensions proposed by Cunha (2006). The authors who supported this work were mainly Santos (2010), Franco (2012), Didriksson (2008), Cunha (1998, 2006), Morosini (2014), Tardif (2002) and Shulman (1989), guiding the intended analysis, whether in the understanding of emerging contexts, or in the field of pedagogical practices and innovation. The challenges are many, but the study showed the interest and protagonism of teachers and students in the direction of a more significant and emancipatory.

Keywords: university pedagogy; innovation; pedagogical practice

INTRODUÇÃO

A educação superior no contexto contemporâneo vem enfrentado significativos desafios. Santos (2010) e Barnett (2005), entre outros autores, têm trazido contribuições sobre esse cenário, estimulando um processo de autorreflexão que resulte em mudança de rumos em tempos de complexidade. Certamente são muitos os desafios e de diferentes ordens. As exigências sociais, que cobram um compromisso maior da produção do conhecimento e dos dispositivos de formação, são evidentes e inexoráveis. A democratização do conhecimento, as mudanças no mundo do trabalho, a cobrança por respostas às demandas sociais e culturais e as novas culturas estudantis, entre outras demandas, estão a exigir reflexões contínuas sobre as práticas acadêmicas e sobre as responsabilidades que recaem sobre a milenar instituição.

A história informa, com dados significativos, as mudanças que ocorreram ao longo dos séculos e que impactaram a universidade, numa confirmação de que ela é uma célula social que é produzida e, ao mesmo tempo, produz impactos civilizatórios. Numa perspectiva contemporânea, tratar das crises da universidade vem ocupando estudiosos e sustentando estudos e pesquisas nas suas diferentes dimensões. Também a legislação que impacta os seus fazeres aporta novas perspectivas que atingem suas finalidades e culturas. Essas, por sua vez, exigem novos formatos e iniciativas para as práticas pedagógicas que realiza, incluindo o ensino, a pesquisa e a extensão.

A compreensão desse contexto tem sido responsável pelo interesse de grupos de pesquisa que se debruçam sobre os temas relacionados à educação superior. É o caso da Rede Sul-brasileira de Investigadores da Educação Superior (RIES), que congrega estudiosos de diferentes instituições e, recentemente, tomou o tema da Universidade em Contextos Emergentes como objeto de um Projeto de Investigação. Cada Instituição de Ensino Superior (IES) participante do Projeto assumiu um foco de análise dentro desse contexto, incluindo a docência, a gestão, a prática pedagógica, a internacionalização e os estudantes. Coube ao Grupo de Investigação sobre Pedagogia Universitária (GIPU), ligado ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), abordar a prática pedagógica que vem sendo atingida pelas novas configurações acadêmicas, políticas e culturais.

Entendendo que a prática pedagógica se manifesta pelo currículo e pela aula universitária, foram definidos três estudos de casos como objeto de análise. Um deles se deteve a analisar a experiência do curso de Medicina Veterinária com as turmas de estudantes provenientes do Programa Nacional de Educação na reforma Agrária (PRONERA), dada a excepcionalidade que foi atribuída a essa experiência. Outro estudo investigou o impacto do Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que pela diversidade cultural e social dos estudantes, estaria exigindo mudanças na aula universitária e nos saberes docentes. O terceiro trabalho, aproveitando as experiências apresentadas no XI Seminário Internacional de Educação Superior (XI SIES) da RIES, acontecido na UFPel em 2018, tomou para análise trabalhos apresentados no evento, indicados pelos pares, como decorrentes de experiências potencialmente inovadoras. O XI SIES teve a Prática Pedagógica como tema central e os Contextos Emergentes como pano de fundo.

Neste texto, abordamos o terceiro caso e nos detivemos na análise do conteúdo que apresentavam, com vistas a perceber o seu potencial inovador e que indicadores apresentavam sobre essa perspectiva. Partindo dos resumos, logo ampliamos a leitura compreensiva dos textos completos, através de Análise de Conteúdo. Apoiados nas contribuições de Cunha (2006), assumimos que uma prática inovadora deve apresentar, pelo menos, duas das dimensões de inovação propostas pela autora. Esse foi o critério utilizado para seleção dos textos. Tomamos aqui três relatos que indicaram potencial para discutir a possibilidade de inovação na aula universitária. Os autores que favoreceram as análises foram, principalmente, Santos (2010), Franco (2012), Didriksson (2008), Cunha (1998, 2006), Morosini (2014), Tardif (2002) e Shulman (1989), cujos textos auxiliaram a análise pretendida, tanto na compreensão dos contextos emergentes quanto no campo das práticas pedagógicas e da inovação.

OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR: A INSURGÊNCIA DOS CONTEXTOS EMERGENTES

O conceito de contextos emergentes é amplo e capaz de incorporar múltiplas compreensões. Entretanto, compreendemos os contextos emergentes na perspectiva da análise das demandas com origem exógena à universidade. Podem ser elas oriundas das políticas globais e das mudanças tecnológicas decorrentes do mundo do trabalho, bem como das políticas de democratização do acesso e permanência de novos públicos nas IES. Essas demandas muitas vezes são externas à tradição da universidade, ou seja, são iniciativas que não nasceram no próprio ambiente acadêmico, mas vêm de fora, cobrando iniciativas e reflexões sobre as práticas usuais (CUNHA, 2020).

A educação superior vem sendo atingida por diferentes necessidades formativas, impostas pela sociedade contemporânea e marcadas por grandes transformações. Dentre elas, destaca-se o impacto das tecnologias digitais, em que a transmissão de informações ocorre de maneira cada vez mais acelerada, favorecendo o processo de globalização, não só político-econômico, mas também cultural. Tal processo coloca a educação superior como um ponto estratégico de consolidação e disseminação de diretrizes nacionais e supranacionais, a partir da atuação dos organismos internacionais. Nas últimas décadas, o desenvolvimento de uma agenda política procurou articular a educação com os interesses econômicos nacionais e, ao mesmo tempo, enfatizou a educação sob controle da lógica de mercado, definindo-a como um bem privado e competitivo. Nesse contexto, a universidade passou a ser um dos dispositivos que inserem os países no mundo globalizado.

Em meio a esses desafios, há ainda a convivência com as determinações da Lei de Diretrizes e Bases (Lei N.º 9.394/1996 - LDB), com as políticas de avaliação externa (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior - SINAES) e com as propostas do Conselho Nacional de Educação (CNE), que protagonizam mudanças nos currículos dos cursos de graduação no Brasil, envolvendo bacharelados, licenciaturas e cursos superiores de tecnologia. As alterações permitem mudanças na composição da carga horária dos componentes curriculares e das unidades de estudo. Conforme as determinações postas nos documentos supracitados, os novos currículos caracterizam-se por uma formação sólida, articulando teoria e prática vinculada ao mundo da vida e do trabalho (KRAHE; SILVA; NESI, 2013).

De acordo com Krahe, Silva e Nesi (2013), as mudanças apresentadas vão sendo aos poucos incorporadas pelas IES e registradas nos documentos institucionais com Projeto Pedagógico Institucional (PPI) e os Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPCs), o que, segundo as autoras, impacta de modo significativo a docência. Para Lucarelli (2000),

O estudo dos processos de ensino e aprendizagem em/na aula universitária se constitui, no terceiro milênio, num campo de preocupação e desafio para os interessados na análise da instituição universitária, na qualidade de suas práticas e de seus resultados, em termos tanto de formação como de produção do conhecimento. (LUCARELLI, 2000, p. 35).

A educação no ensino superior é impactada pelas transformações na organização do trabalho e pelas modificações na conjuntura econômica. Novas exigências se apresentam e convocam a universidade a enfrentar o mundo das profissões em mudança e o advento de novas especialidades, até então, não reconhecidas no âmbito acadêmico. Ocorre a necessidade de um perfil profissional que inclui e potencializa a criatividade e a inovação. Essas transformações e necessidades exigem maior nível de conhecimento e capacidade de se manter em aprendizagem permanente durante a vida profissional. Essas são questões que impelem a educação superior a utilizar estratégias diferenciadas para responder às expectativas sociais e econômicas contemporâneas.

As mudanças, certamente, também exigem uma ampla responsabilização dos agentes políticos e dos gestores universitários e põem em questão o papel docente e as práticas de ensinar e aprender. Esperam-se mudanças que envolvam os saberes e habilidades do professor, afastando-os da perspectiva histórica da transmissão da informação para incorporar os pressupostos da pesquisa no ensino. Para tal, é preciso valorizar a dúvida como ponto de partida da aprendizagem, como um princípio metodológico constituidor de outros saberes. É também fundamental a incorporação do protagonismo dos estudantes na construção desses saberes, imbricado pelas diferenças culturais, econômicas, históricas, políticas e sociais.

Para alcançar uma prática pedagógica inovadora no sentido da ruptura epistemológica, é necessário olhar para os sujeitos dessas práticas, docentes e estudantes, e suas condições de vida e atuação acadêmica. No caso da docência, as políticas que tratam da formação do professor para o exercício no ensino superior têm sido negligentes, falando apenas em uma preparação no espaço da pós-graduação stricto sensu, conforme a última LDB. Estudos mostram que esses espaços de formação privilegiam os saberes da pesquisa que, posteriormente, serão valorizados na carreira do docente e no prestígio que os professores alcançam no espaço acadêmico e social (GARCIA, 2022). Cumprem, inclusive, com o imaginário dos que assumem a docência na universidade, entendendo-a como o lugar de fazer pesquisa. Para o exercício da docência, ficam os saberes experienciais, alicerçados nos modelos e trajetórias históricas que deixaram marcas sobre este ofício. Pouco se assume a docência como profissão fundada nas condições de ensinar e aprender.

Esse cenário, sustentado pela lógica do quem sabe fazer sabe ensinar, vem sendo substituído pelo quem sabe pesquisar sabe ensinar. Trata-se de uma falácia, pois sem abrir mão da condição investigativa do professor, os saberes da docência são de outra matriz e, numa dimensão profissional, precisam estar sustentados por bases teóricas em diálogo com a prática. Por outro lado, cada vez mais as condições emocionais e culturais que envolvem a relação professor-alunos se tornam vetores da qualidade da docência e da prática pedagógica, assumindo a docência como uma ação complexa.

De parte dos estudantes, ainda que tenham havido incentivos legais para estimular o ingresso e permanência de públicos ampliados, as políticas são frágeis quanto à sua permanência e condições de financiamento. Um quadro que se agudiza em contextos de realidades desiguais e reconhecimentos estáveis. Portanto, esse quadro exige uma leitura arguta e uma capacidade teórico-prática que muitos docentes não trazem de suas formações anteriores, mas que interpelam o exercício da docência universitária constantemente.

Compreendendo esse cenário como parte de nosso estudo, maior curiosidade nos assolou para compreender as experiências inovadoras e os contextos e condições que favoreceram sua existência. Ainda não se percebe com nitidez a base teórica em que se assentam as inovações por eles protagonizadas. Essa condição não é explícita, porque pouco conhecem as teorias, visto que são manifestações construídas a partir das práticas e com uma dose de sensibilidade para propor as alternativas. Vale ressaltar, também, que a nossa amostra é diferenciada, uma vez que envolve docentes que espontaneamente se inscreveram no evento para apresentar suas experiências. Pressupõe-se um interesse e sensibilidade com o campo de ensino e um desejo de partilhar feitos e questionamentos, ainda que nem sempre com as condições mais favoráveis para tal.

A UNIVERSIDADE BRASILEIRA E OS CONTEXTOS EMERGENTES

Nos contextos, suas emergências mobilizadoras manifestam-se de acordo com as demandas de cada país, região e universidade. Na América Latina, elas são caracterizadas principalmente por um sistema de educação superior complexo, heterogêneo, segmentado socialmente e em constante expansão e interiorização, bem como por uma especial demanda social pela educação superior, além da presença da internacionalização (DIDRIKSSON, 2012). No Brasil, os contextos emergentes mais evidentes decorrem das políticas de expansão, diversificação e privatização, marcadas, também, por tendências democratizantes, mas articuladas pela centralização estatal. Dispomos de uma educação superior com distintos formatos de IES, que vem incluindo um contingente de novos docentes e discentes e reorganizando currículos. As exigências da sociedade, marcadas pela lógica do mercado e da globalização, convivem com a tradição acadêmica e com a perspectiva da formação cidadã.

Morosini (2014), apoiada nas ideias de Espinoza e Gonzales (2012), caracteriza os contextos emergentes como espaços de transição entre dois extremos. O primeiro seria um modelo weberiano de educação tradicional, no qual a universidade representa um espaço de geração de conhecimento para a sociedade e de reprodução cultural da nação, voltada ao bem social, na qual a ciência e a tecnologia estão orientadas para o desenvolvimento científico. No segundo, um modelo de educação superior neoliberal associado à ideia de uma universidade orientada para atender às demandas dos perfis estipulados pelo mercado de trabalho, centrada na transferência de tecnologia reivindicada pelo setor produtivo, com uma gestão caracterizada pela eficiência e autofinanciamento. Rescke, Nörnberg e Costa (2019) ressaltam que

pensar a universidade em contextos emergentes requer considerar que, se a universidade de outrora errou por dar excessiva ênfase ao passado, a de hoje se vê impelida pelo presente inexorável e pelo futuro imprevisível, forçando-a a rever as suas concepções e as práticas pedagógicas na aula universitária. (RESCKE; NÖRNBERG; COSTA, 2019, p. 2).

Esse cenário tem sido indutor de movimentos que analisam e questionam o paradigma tradicional de ensinar e aprender e que procuram novas referências que respondam à condição da complexidade. Para tal, temos defendido a importância de uma ruptura epistemológica que compreenda o conhecimento como relativo e em mudança, capaz da diversificação de olhares e compreensões sobre os fenômenos em estudo (CUNHA, 2006).

Pela própria compreensão de conhecimento que respalda essa posição, questionamos as respostas únicas para situações universais e nos afastamos dos modelos e técnicas descontextualizadas como panaceia para resolver todos os desafios. Ao contrário, apostamos numa docência com competência para o artesanal, compreendida como a capacidade do professor, com base nos seus conhecimentos profissionais - campo de conhecimento, ciência pedagógica e seus estudantes -, de armar práticas pedagógicas situadas, com significado para seus protagonistas. Nesse sentido, ainda que haja regularidades, cada experiência com os estudantes é única e irrepetível, mesmo que mantenha uma base de sustentação ampliada, o que anuncia a inovação. Pedroso e Cunha (2008) reiteram que a

[...] inovação pressupõe alterações na concepção de conhecimento presidido pela ciência moderna. Portanto, não se refere somente a arranjos metodológicos ou somente a inclusão de aparatos tecnológicos. Incorpora, necessariamente, uma nova epistemologia que se traduz nas práticas de aula [...]. (PEDROSO; CUNHA, 2008, p. 144).

Os estudos de Shulman (1989) apontam os diferentes tipos e modalidades de conhecimento que os professores dominam, configurando uma epistemologia própria. Sua contribuição é importante porque traz de volta ao centro da discussão a questão do conhecimento que os professores têm dos conteúdos de ensino e do modo como esses conteúdos se transformam no ensino, destacando o papel estruturante da dimensão educativa nesse processo. O autor nos auxilia na compreensão de como os professores mobilizam os saberes que dominam para ensinar os saberes que ensinam.

Apoiados nesses pressupostos teóricos e com lentes flexíveis, que se afastam dos modelos prévios, o recorte do estudo que aqui apresentamos se deteve a analisar três relatos de práticas protagonizadas e apresentadas por participantes do XI Seminário de Educação Superior da RIES, buscando evidências que indicassem a presença de iniciativas inovadoras para responder aos novos tempos.

O ESTUDO E SUA METODOLOGIA

Os trabalhos apresentados no XI Seminário Internacional de Educação Superior da RIES estavam organizados a partir de cinco eixos temáticos: a) Prática Pedagógica e Internacionalização; b) Prática Pedagógica e Currículo; c) Prática Pedagógica e a Aula universitária; d) Prática Pedagógica e a Gestão acadêmica; e) Docência e Contextos Emergentes.

De acordo com o objetivo da pesquisa, todos os 151 resumos apresentados no evento foram analisados com o intuito de identificar indícios de práticas inovadoras na aula universitária. Destes, 53 resumos foram selecionados obedecendo ao critério de apresentar, pelo menos, uma das dimensões de inovação. Neste estudo, apresentamos a análise qualitativa de três trabalhos completos, pois, apoiados no conceito de Cunha (2006), entendemos que uma prática inovadora deve apresentar, pelo menos, duas das dimensões propostas pela autora. Para Cunha (2006), o conceito de inovação

[...] requer uma ruptura necessária que permita reconfigurar o conhecimento para além das regularidades propostas pela modernidade. Ela pressupõe, pois, uma ruptura paradigmática e não apenas a inclusão de novidades, inclusive as tecnológicas. Nesse sentido envolve uma mudança na forma de entender o conhecimento. (CUNHA, 2006, p. 24-27).

A partir dessa concepção, apresentamos sete dimensões que nos auxiliaram a destacar as iniciativas identificadas como inovadoras na análise dos trabalhos. Conforme Cunha (2006), são elas: a) Ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; b) Gestão participativa, por meio da qual os sujeitos do processo inovador sejam protagônicos da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados; c) Reconfiguração dos saberes, com a anulação ou diminuição das clássicas dualidades entre saber científico/saber popular, ciência/cultura, educação/trabalho, etc.; d) Reorganização da relação teoria/prática, rompendo com a clássica proposição de que a teoria precede a prática, dicotomizando a perspectiva globalizadora; e) Perspectiva orgânica no processo de concepção, desenvolvimento e avaliação da experiência desenvolvida; f) Mediação, assumindo a inclusão das relações socioafetivas como condição da aprendizagem significativa; g) Protagonismo, rompendo com a relação sujeito-objeto historicamente proposta pela modernidade, reconhecendo que tanto os alunos quanto os professores são sujeitos da prática pedagógica e, mesmo em posições diferentes, atuam como sujeitos ativos das suas aprendizagens.

A complexidade da análise indicou que teriam de ser selecionadas algumas das dimensões em blocos e, para tal, tomamos como critério aquelas que apareciam com maior ênfase: Ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e reorganização da relação teoria/prática. Essa não foi uma escolha aleatória, mas sim justificada, porque entre as dimensões existe um especial impacto nas experiências apresentadas.

DIALOGANDO COM OS ACHADOS

Para analisar os dados, debruçamo-nos sobre os trabalhos selecionados, buscando evidências que indicassem a presença das dimensões que destacamos acima. Como é de se prever, uma prática ou proposição pode conter mais de uma dimensão de inovação, o que significa que não há uma relação linear entre elas. Nossa intenção foi identificar as ênfases das dimensões mais presentes na prática pedagógica enunciada nos relatos, como uma tendência a ser compreendida.

Certamente o estudo provocou muitas possibilidades de análise e compreendemos que poderia ser desdobrado em diversas combinações. Para exploração neste artigo, escolhemos três experiências analisadas que chamaram atenção pela qualidade e possibilidade analítica para o objetivo da investigação. Para identificá-las, foram denominadas como texto 1, texto 2 e texto 3.

RUPTURA COM A FORMA TRADICIONAL DE ENSINAR E APRENDER

O processo educativo no âmbito da educação superior reivindica a investigação de movimentos que anunciem novas possibilidades de construção e reconstrução pedagógica do conhecimento científico mais próximas de perspectivas interdisciplinares e complementares, assentadas na condição ético-existencial da formação humana. Essa formação tem se alterado, pois os educandos que frequentam os bancos universitários nos contextos emergentes são outros, advindos das políticas de expansão e acesso e das mudanças demográficas que repaginaram a aula universitária. Arroyo (2014, p. 83) corrobora ao dizer que “[...] todo o processo educativo, formal ou informal, não pode ignorar, mas tem de incorporar, as formas concretas de socialização, de aprendizado, de formação e deformação a que estão submetidos os educandos”.

Essa condição é reforçada pela influência das novas tecnologias de comunicação e interação, que estão cada vez mais presentes na vida cotidiana, em especial na do “Homo Zappiens”, expressão utilizada pelos autores Veen e Vrakking (2009) para denominar a geração atual e o seu processo de aprendizagem, que é balizado por diferentes espaços educativos e de trabalho. Esses espaços estão em constante movimento de ressignificação e extinção, como é o caso de algumas profissões. Arroyo (2014) nos provoca a pensar novas alternativa questionando-nos

[...] Como pensar os currículos, conteúdos e metodologias, formular políticas e planejar programas educativos sem incorporar os estreitos vínculos entre as condições em que educadores reproduzem suas existências e seus aprendizados humanos? (ARROYO, 2014, p. 83).

A ruptura com a forma tradicional de ensinar e a inclusão da inovação na aula universitária são entrecruzadas pelas condições subjetivas/objetivas do professor, que é quem detém o papel principal no processo de ensinar/aprender. Esse movimento exige uma visão de mundo e compreensão epistemológica que se distancie da perspectiva positivista da modernidade. Esses são apontamentos feitos pelos estudos realizados por Leite (2001, 2002), Lucarelli (2004), Fernandes (1999), Cunha (1998) e Cunha et al. (2002). Porém, as autoras alertam para o fato de que o refreamento das iniciativas inovadoras se dá pela conjuntura política e cultural presente na sociedade alicerçada pelos projetos pedagógicos das instituições e condicionadas pelas demandas e pelas políticas educacionais.

Entretanto, essas condições se dão numa perspectiva dialética entre o macrossistema educativo e o microespaço da aula universitária. Ou seja, não se pode esperar um processo de mão única, mas um vai e vem de energias que emergem dos diferentes pontos de partida. Se por um lado as macropolíticas são fundamentais como sustentáculo das mudanças, por outro elas precisam da energia pontual das instituições e seus atores para se concretizar.

O que se observou nas experiências relatadas foi um investimento em mudanças pedagógicas que, independente do ponto de chegada, levam em conta o ponto de partida e contextualizam o que realizaram. Não podem ser avaliadas somente com indicadores comuns, mas exigem a compreensão dos contextos em que foram produzidas para verificar o avanço que representam. Santos (1988) alerta que o grau da ruptura é que mede a inovação e não o ponto de chegada, pois uma experiência pode ser pouco inovadora num contexto e muito em outro. Se levarmos em conta as culturas dos campos científicos e profissionais que alicerçam os diversos cursos universitários, é possível identificar essas diferenças. E é por isso que na universidade as pedagogias são no plural.

REORGANIZAÇÃO DA RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA

Compreendemos a formação de professores como práxis social produzida e produtora do que a produz. Ela é constituinte, constituidora do estar/ser professor (NÖRNBERG, 2008), ou seja, a práxis é uma atividade humana. Pimenta (2012) corrobora ao afirmar que a práxis é uma prática que se faz pela atividade humana de transformação da natureza e da sociedade, consolidando-se em uma atitude diante do mundo, da sociedade e do próprio homem, o que nos possibilita dizer que a formação docente como práxis humana é a elaboração da realidade na determinação da existência.

Sendo assim, a formação representa uma dimensão privilegiada da docência, pois exige a confluência das posições teóricas em propostas de intervenção prática, ou, como afirma Freire (1998, p. 24), “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática um ativismo”. Medeiros e Cabral (2006, p. 5) afirmam que “[...] o exercício da ação docente requer preparo. Preparo que não se esgota nos cursos de formação, mas, para o qual há uma contribuição específica enquanto formação teórica em que a unidade teoria e prática é fundamental para a práxis transformadora”. A literatura que discute a interação entre teoria e prática é vasta, no entanto, apesar dos avanços da literatura, das pesquisas e dos estudos, ainda há desafios para o alcance da práxis, que exige intencionalidade e capacidade para construí-la. É por meio da práxis como atividade humana que os professores modificam o seu mundo e a si mesmos, criando possibilidades de intervenção, transformando os princípios e regularidades, gerando novas formas de se relacionar e existir. Nesse sentido, a formação docente como práxis humana é a elaboração da realidade na determinação da existência, ou, nas palavras de Kosik (2002, p. 240), “o homem cria a sua própria eternidade na práxis [...] e, portanto, historicamente nos seus produtos”.

O texto 1 trata da inserção da disciplina de Libras nos cursos de Fonoaudiologia. O Decreto Federal N.º 5.626/2005 determina que esta disciplina seja obrigatória, não apenas nos cursos de formação de professores, mas também nos cursos de Fonoaudiologia. Para melhor entendermos a problematização, é preciso considerar que a história da educação de surdos é marcada pelo domínio de ações que tinham como meta habilitar a voz e a audição das pessoas surdas, negando assim a importância da aquisição da linguagem de sinais.

Dentro desse contexto, a inserção da disciplina de Libras nos cursos de Fonoaudiologia, a partir do decreto, apresenta-se como uma prática rupturante com a forma tradicional de ensinar e aprender, porque reconecta duas áreas importantíssimas para a formação do fonoaudiólogo que são a educação e a saúde. A interlocução entre essas áreas altera a compreensão curricular e provoca mudanças epistemológicas no campo disciplinar, possibilitando uma prática com ênfase na oralidade que não nega mais a língua de sinais, mas articula-se com ela. Possibilitando o reconhecimento dos sujeitos surdos como portadores de saberes e culturas facilita o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e, por conseguinte, a aprendizagem da segunda língua. Cabe ressaltar que a inclusão da disciplina de Libras nos cursos de Fonoaudiologia tem como propósito formar profissionais preparados para dialogar com os surdos através da língua de sinais, proporcionando assim que o objetivo final, que é a aprendizagem da Língua Portuguesa como segunda língua, seja alcançado.

O texto 1 traz ainda em seu bojo evidências da reorganização da relação teoria/prática, uma vez que provoca alterações nas práticas desenvolvidas pelo profissional de Fonoaudiologia. Práticas essas que passaram um longo período negando a linguagem de sinais, argumentando que sua aquisição prejudicaria a aprendizagem da língua oral. Essa postura baseava-se em procedimentos do campo clínico, que se dava por meio de exercícios e treinamentos visando reabilitar a audição e a voz. A inserção desse novo componente curricular faz com que o fonoaudiólogo passe a desenvolver a sua prática no âmbito do bilinguismo, o que implica na conexão interdisciplinar entre as áreas da educação e da saúde, como dito anteriormente. Cunha (2006) alerta que

[...] a prática é sempre única e multifacetada. Requer, por essa condição, uma intervenção refletida da teoria numa visão interdisciplinar. Compreender a relação teoria-prática ou prática-teoria na sua interface constitutiva se constitui num eixo fundante da inovação paradigmática. (CUNHA, 2006, p. 64).

A alteração relatada na prática do texto 1 nos permite pensar na importância da aula universitária na construção dos sentidos para aqueles que se formam, provocando outras formas de estar/ser professor na dinamização da prática a partir dos problemas vivenciados, o que poderá ser ampliado na medida em que rompemos com a maneira tradicional de produzir conhecimento, “[...] aprendendo como se processa em nós o conhecimento sobre o ensino e para o ensino” (ABDALLA, 2006, p. 92). Certamente essa experiência traz indícios de inovação, uma vez que adere à ruptura paradigmática através do reconhecimento de outras formas de produção de saberes (CUNHA, 2006). Nesse contexto, a produção de outros saberes supera mera reprodução, possibilitando o processamento significativo, que é implicado pela reflexão e possibilita a produção de outras formas de existência e humanização (PIMENTA, 2012).

No texto 2, a autora busca no tripé ensino, pesquisa e extensão as condições para tencionar e romper com a tradicional forma de ensinar e aprender. Para Cunha (2011), o estreitamento dos laços entre o pesquisar, o ensinar e o aprender requerem saberes próprios, que considerem o estudante, a cultura e as condições objetivas e contextuais da aprendizagem. O texto descreve a produção de sentido através da realização de ações sociais propostas a duas turmas de primeiro semestre na disciplina de Introdução à Administração, dos cursos da área de Negócios. A autora do texto afirma que a responsabilidade social é um conteúdo de suma importância para a formação dos profissionais da administração e que, na maioria das vezes, esse conteúdo é tratado no âmbito da aula, resumindo-se a explanações de exemplos abstratos. Esse tipo de postura docente faz com que tal conceito se pareça mais com uma teoria a ser compreendida do que com uma prática inerente ao dia a dia do gestor.

A professora pesquisadora planejou a organização e execução das aulas de modo que o conceito de responsabilidade social fosse um tema transversal aos demais conteúdos e que fosse trabalhado por dentro das ações sociais. Para realizar as ações sociais, os estudantes foram organizados em grupos e tinham a responsabilidade de planejar, organizar, dirigir e controlar a ação. É nessa outra forma de aprender e ensinar que se gesta a ruptura paradigmática, pois conforme os resultados apresentados no texto, o fato de os estudantes trabalharem com comunidades marginalizadas possibilitou a ampliação do seu entendimento sobre a responsabilidade social enquanto desafio real e emergente. Percebemos que as experiências que ultrapassam os muros da universidade mobilizam e corporificam a ruptura paradigmática. Gentili (1998, p. 122) corrobora ao dizer que as práticas pedagógicas, ao submergir na realidade “sujando-nos da vida social”, rompem com a suposta inocência de seu fazer.

A prática descrita no texto 2, por abordar a produção de sentido utilizando a responsabilidade social como tema tensionador das aprendizagens na disciplina de Introdução à Administração, evidencia em seus resultados a presença da dimensão de inovação reorganização da relação teoria e prática. A corporificação dessa dimensão se dá na imersão feita pelos estudantes na realidade através do desenvolvimento das ações de responsabilidade social. A experiência possibilitou aos estudantes produzirem sentido relacionados à prática da administração, aprendendo a rever suas expectativas e a perceber que os conteúdos estão presentes não só na sala de aula, de maneira teórica, mas também na vida real das diferentes comunidades, tendo sua aplicação elegida conforme suas necessidades. A unidade entre teoria e prática, nos lembra Cunha (2006, p. 67), “[...] nasce da leitura da realidade”. Gramsci (1989, p. 21) reforça essa ideia ao dizer que a relação entre teoria e prática “[...] não é um fato mecânico, mas um devir histórico [...]”, que constitui a formação da autoconsciência do intelectual orgânico.

O texto 3 trata do tema curricularização da extensão, que se refere ao Plano Nacional de Educação 2014-2024, o qual definiu, dentre suas estratégias, a integralização de, no mínimo, dez por cento do total de créditos curriculares dos cursos de graduação por meio de programas e de projetos de extensão em áreas de pertinência social. Ao fazê-lo, enfatizou a intersecção de demandas comunitárias com os objetivos acadêmicos e impôs às IES o desafio de repensarem suas concepções, práticas e políticas extensionistas. Ressaltamos que a presente análise não tem como foco conceituar e problematizar a curricularização, entretanto, ela se apresenta como propulsora da inovação pedagógica.

Nunes e Silva (2011) e Xavier e Fernandes (2008) explicam que, através da extensão, a visão convencional da aula é ampliada, podendo o acadêmico obter conhecimentos fora da universidade e o ensino ir além do professor-aluno, com sujeitos e objetos do dia a dia. Cunha (2006, p. 66), quando se refere à dimensão ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender, a qual é identificada na proposta de curricularização da extensão apresentada no artigo analisado, assegura que a adesão à ruptura paradigmática pressupõe “compreender o conhecimento a partir de uma perspectiva epistemológica que problematiza os procedimentos acadêmicos [...]”. Elton (2008, p. 148) corrobora com afirmação feita pela autora e argumenta que “as universidades devem propor à docência problemas ainda não resolvidos e, portanto, como um modo de investigação”. Entretanto, o autor salienta que essa perspectiva está distante das práticas acadêmicas.

A ruptura epistemológica com a forma tradicional de ensinar e aprender configura-se em um processo que exige reflexões sobre a prática como ponto de partida e de chegada na construção do conhecimento. Esse movimento dialético se relaciona implicitamente com a reorganização da relação teoria/prática. O texto 3, por abarcar as questões referentes à curricularização da extensão, acaba implicando diretamente essa reorganização, que é condição fundante para que a extensão faça parte do currículo universitário e da formação acadêmica dos estudantes e, provavelmente, seja o indicador mais presente nas práticas pedagógicas que rompem com a lógica acadêmica tradicional. Segundo Cunha (2018), na perspectiva tradicional, a teoria sempre antecede a prática e adota uma espécie de supremacia sobre ela. A curricularização da extensão tem sido o caminho para desconstruir a ideia de uma universidade onipotente centrada na supremacia teórica, que mantém “encastelados na torre de marfim” (SANTOS, 2001) os intelectuais alheios à realidade (PAIVA et al., 2018).

As pesquisas no campo da prática pedagógica no âmbito da aula delineiam algumas condições e, entre elas, estão a necessidade de perceber a docência e a investigação como atividades complementares que se beneficiam mutuamente, a necessidade de adotar a postura epistemológica da incerteza (BARNETT, 2008), e a necessidade de construção da aula junto aos educandos (ANASTASIOU; ALVES, 2004). Como Shulman (1989), concordamos que a relação orgânica com o conhecimento de referência é a fonte de exemplos e formas de lidar com as dificuldades de entendimento dos alunos com relação aos conteúdos trabalhados.

Essas demandas também estão implicadas na curricularização da extensão na universidade, pois esta poderá possibilitar a construção de uma outra forma de relacionar os processos de ensino e aprendizagem, contribuindo para a criação de uma nova aula universitária, não reduzida a questões didáticas e metodológicas, mas articulada à educação como prática social e ao conhecimento como produto historicamente e culturalmente situado, em uma relação dialética envolvendo sujeitos, saberes e experiências (FERNANDES, 2003). A curricularização da extensão possibilita a emersão de uma “universidade da proximidade” (SANTOS, 2005), reafirmando ruptura epistemológica com a forma tradicional de ensinar e aprender e por conseguinte reorganização da relação teoria/prática. Docência e boniteza (FREIRE, 2001) de mãos dadas tramando a sustentabilidade do processo de formação humana, que também se dá dentro e fora da universidade.

Ao analisar os trabalhos que nos serviram de referência para a pesquisa, localizamos descrições de práticas na direção da não dicotomização entre teoria e prática. Nessas condições, a prática é percebida como fonte constituidora dos processos inovadores, pois seu significado ultrapassa as ideias de confirmação e aplicação da teoria. Superar a dicotomia entre teoria e prática no campo da educação requer considerar que os aspectos epistemológicos e conceituais que envolvem essa relação estão implicados na e pela relação entre os sujeitos que são portadores de diferentes saberes. Freire (1998, p. 24) reforça essa ideia ao dizer que “a reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática, sem a qual a teoria pode ir virando blá-blá-blá e a prática um ativismo”.

A ciência moderna possibilitou conhecimentos significativos para o processo de evolução intelectual, tanto que nos trouxe até aqui. Porém, é chegado o momento de se despedir dos lugares conceituais, não mais condizentes com as expectativas e necessidades da pluralidade humana, possibilitando com isso um salto qualitativo em que a busca do “conhecimento volte a ser uma aventura encantada” (SANTOS, 2001, p. 74). Na modernidade, os currículos e o próprio conceito de formação acadêmica apresentavam essa lógica dominante que precisa ser superada. Nesse sentido, é de suma importância que a universidade promova práticas que provoquem a superação da lógica dominante, para que os estudantes, no futuro, desenvolvam o papel de agentes de mudança, porque “a educação é instrumento social, político e econômico, não para produzir, de forma isolada, a mudança social, mas para servir de instrumento para que os sujeitos sociais sejam sujeitos do processo de mudança” (BELLONI; MAGALHÃES; SOUSA, 2000, p. 38).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sentido que estimulou o interesse em desenvolver este estudo foi a tentativa de identificar as práticas pedagógicas inovadoras desenvolvidas por professores e estudantes que procuram avançar na direção de uma outra epistemologia. Buscamos compreender essas práticas inovadoras, em que as implicações da racionalidade técnica na forma de ensinar e aprender tenham sofrido transformações e a relação teoria e prática não seja dicotômica. Nesse sentido, a análise de trabalhos apresentados no XI Seminário de Educação Superior da RIES anunciou o movimento de ações inovadoras que rompem com a forma tradicional de ensinar e aprender e reorganizam a relação teoria e prática, incluindo elementos oriundos do cotidiano dos estudantes e do mundo da vida e do trabalho.

Certamente, foi pouco identificada nos relatos uma fundamentação teórica do campo da pedagogia universitária, como era de se esperar. Os docentes possuem saberes que se transformam em práticas, como as analisadas por nós. Entretanto, a não ser por indicações bibliográficas de seus campos específicos, pouco aparecem autores que são estudiosos da prática pedagógica universitária. Essas experiências, se não sistematizadas a partir de provocações como a do XI SIES, tendem a se perder com frágil sistematização e reconhecimento no espaço acadêmico.

Por essa razão, movimentos como o evento que nos deu base para o estudo podem se constituir como um importante dispositivo de promoção e divulgação do campo metodológico do ensino e da aprendizagem, no âmbito da universidade, em contextos emergentes. Foi possível perceber que a superação da dicotomia entre teoria e prática parece ser alcançada nas experiências em que o fenômeno social e epistêmico é compreendido na sua totalidade. Ouvir o professor e o aluno fazerem a leitura de sua vida cotidiana, os significados que atribuem ao seu percurso de formação e suas expectativas de vida se constituem numa condição importante para a aprendizagem, que os reconhece como protagonistas do seu processo formativo.

Há muito o que pesquisar sobre as práticas inovadoras na aula universitária. Mas também é preciso visibilizar o que está sendo feito, considerando que “a prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer” (FREIRE, 1998, p. 43). Um processo de reflexão crítica construtiva e rupturante concebe a prática docente como um processo de investigação na ação, estimulando o desenvolvimento intelectual mais complexo, amenizando a reprodução calcada no escutar, copiar e repetir (BEHRENS, 2005). Os desafios são muitos, mas o estudo evidenciou o interesse e o protagonismo de professores e estudantes na direção de uma prática pedagógica mais significativa e emancipatória. Nossa intenção é valorizar o já realizado para estimular o avanço em direção à qualidade pedagógica da universidade.

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1Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e garantem a sua precisão e integridade em todos os aspectos.

Recebido: 14 de Março de 2022; Aceito: 09 de Outubro de 2022

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