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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 20-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469840555 

Artigos

CURRÍCULOS E SIGNOS ARTÍSTICOS EM TORNO DE UMA EDUCAÇÃO CONTRACULTURAL

CURRÍCULOS E SIGNOS DE LAS ARTES EN TORNO A UNA EDUCACIÓN CONTRACULTURAL

JANETE MAGALHÃES CARVALHO1  , Coordenadora do projeto, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0001-9906-2911

SANDRA KRETLI DA SILVA1  , Subcoordenadora do projeto, participação ativa na análise dos dados e revisão da escrita final
http://orcid.org/0000-0003-0107-8726

1 Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória, Espírito Santo (ES), Brasil.


RESUMO:

O artigo argumenta sobre o modo como os currículos que utilizam a arte com seus signos sensíveis podem possibilitar um movimento do pensamento em torno de uma educação contracultural que afirma a vida em contraponto aos processos de sujeição capitalistas. Dialoga, com intercessores teóricos pós-fundamentalistas, acerca das conceituações de culturas, de currículos, de docências, das imagens de signos artísticos em sua relação com a formação de um povo por vir. Metodologicamente trata-se de uma pesquisa-formação realizada com professoras de uma rede municipal de ensino, de modo virtual via Google Meet, no ano de 2021. Objetiva, portanto, pensar a força dos signos artísticos nas invenções e composições culturais e curriculares. Exemplifica, nos resultados, alguns desestabilizadores que professoras, nos encontros com os signos das artes, escavam, que abrem fissuras no pensamento dogmático - pensamento como representação - abrindo frestas para a passagem de um pensamento nômade que escapa, que experimenta e cria aberturas para passagem dos fluxos de forças imagéticas e conversacionais de modo a expandir processos de diferenciação e assim inventar novas imagens para as escolas, para as culturas e para os currículos com a força da diferença.

Palavras-chave: contracultura; currículos; diferença; signos artísticos; docência

RESUMEN:

El artículo argumenta cómo los currículos que utilizan los signos sensibles del arte pueden permitir un movimiento de pensamiento en torno de una educación contracultural que afirma la vida como contrapunto de los procesos de sujeción capitalista. Dialoga, con intercesores teóricos postfundamentalistas, los conceptos de culturas, currículos, enseñanzas, imágenes de signos artísticos en su relación con la formación de un pueblo por venir. Metodológicamente se trata de una investigación formativa realizada con profesores de una red de escuelas municipales, de forma virtual a través de Google Meet, en el anõ 2021. Objetiva, por tanto, de pensar la fuerza de los signos artísticos en invenciones y composiciones culturales e curriculares. Ejemplifica algunos factores desestabilizadores que los profesores, en encuentros con los signos de las artes, excavan, abren fisuras en el pensamiento dogmático ¬el pensamiento como representación-, abriendo brechas para el paso de un pensamiento nómada, escapa, que experimenta y crea aberturas para pasar los flujo de imágenes y fuerzas conversacionales con el fin de expandir los procesos de diferenciación y así inventar nuevas imágenes para los currículos, las culturas y las escuelas con la fuerza de la diferencia.

Palabras clave: contracultura; currículos; diferencia; signos de las artes; maestros

ABSTRACT:

The article discuss how curricula that use art with its sensitive signs can enable a movement of thought around a countercultural education that affirms life in counterpoint to capitalist processes. It dialogues, with post-fundamentalist theoretical intercessors, the concepts of cultures, curricula, teachings, and images of artistic signs when forming people to come. Methodologically it is a training research carried out with teachers of a municipal school network, virtually via Google Meet, in the year 2021. Therefore, it aims to think about the strength of artistic signs in cultural and curricular inventions and compositions. In the results, the text points out some destabilizing points that teachers, during encounters with the signs of the arts, excavate, open fissures in dogmatic thinking —thought as representation —opening gaps for the passage of inventive nomadic thought, the one that escapes, which experiences and creates possibilities for power flows of forces. This process expands differentiation processes and thus invents new images for the curricula, cultures, and schools with the force of difference.

Keywords: counterculture; curricula; difference; art signs; teaching

CULTURA COMO FLECHAS LANÇADAS NO DESERTO: SIGNOS DAS ARTES MOVIMENTANDO A DOCÊNCIA

E tudo o que havia acontecido depois, ele não soubera, crescera em um deserto, é terrível, atravessar um deserto não é grande coisa, não é atravessar um período de deserto. O terrível é nascer nele, crescer em um deserto, é horrível, suponho, pois deve-se ter uma impressão de solidão. (DELEUZE, 1988, s/p).

A flecha do pensamento, transformada em pura força, aproxima-nos igualmente dos caminhos trilhados por Deleuze e Guattari (1997), para os quais “[...] os afetos atravessam o corpo como flechas, são armas de guerra”. Os autores pensam essa imagem como uma poética das forças, o que inclui, como alvo da flecha e tiro “espiritualizado” do pensamento, a cultura de um povo por vir.

Para Guattari e Rolnik (1986, p. 15), “[...] o conceito de cultura é profundamente reacionário”, pois separa atividades do mundo social em esferas isoladas, padronizadas, instituídas e capitalizadas para o modo de semiotização dominante, cortadas de suas realidades políticas. Deleuze (2008), por sua vez, pontua que, como flecha, os pressupostos de uma cultura funcionariam como uma espécie de campo de batalha ou teatro de operações em que o capital se ocuparia da sujeição econômica e a cultura, da sujeição subjetiva. Trata-se da junção entre dois regimes, duas dimensões do processo de assujeitamento capitalístico.

No entanto, para os autores, à dimensão da sujeição se entrelaçaria a da resistência. Assim, a cultura, como atividade genérica, pressupõe tanto uma ideia negativa da cultura quanto sua problematização positiva, isto é, a crítica é diretamente o correlato de uma criação, porque pensa-se sempre contra a cultura, mas sempre sobre a cultura, na espera, se é possível, de uma cultura por vir.

Assim, ao pensar nos possíveis de uma cultura por vir, os autores assumem e defendem uma perspectiva contracultural e/ou de resistência aos modelos capitalísticos. Concebem essa perspectiva contracultural no sentido de que é possível desenvolver modos singulares de subjetivação e/ou o que poderíamos chamar de “processos de singularização”, recusando e problematizando esses modos de encodificação estabelecidos, pois visam “[...] recusá-los para construir modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção criativos que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial [...]” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 17).

Num mundo em que o capital é o referente geral das relações humanas, independentes das chamadas ideologias políticas, que se tornaram indiscerníveis na atualidade, assiste-se à mercantilização e à massificação dos modos de vestir, de se alimentar, de sentir, de amar, de consumir:

A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro- em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo. (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 42).

Vemos, portanto, em Deleuze e em Guattari, que o tom contracultural passa sobretudo pela oposição a uma concepção de cultura como materialização de uma imagem do pensamento representacional que se assenta sobre o sentido comum e o bom senso. Para Guattari e Rolnik (1986), o conceito de cultura usualmente envolve: um sentido de “cultivar o espírito”, assumindo uma correspondência com cultura-valor, que determina quem tem cultura e quem não tem, e estabelecendo uma oposição entre cultura erudita e cultura popular e/ou nível de escolaridade; uma relação com o sentido de “cultura-alma coletiva”, em que a cada alma coletiva (os povos, as etnias, os grupos sociais) é atribuída uma cultura identitária; o sentido de “cultura-mercadoria”, em que a difusão e produção cultural são o foco. Assim, diríamos que tais concepções atravessam a formação e a prática dos professores, mas não somente elas, pois há sempre uma abertura para os possíveis de uma concepção de cultura para além do senso comum e da sujeição, uma cultura por vir de resistência e problematização, um conceito de cultura contracultural.

Deleuze, para quem a cultura pode e deve ser outra coisa, denomina imagens grotescas da cultura os conceitos recorrentes de cultura, que encontram, contudo, um espaço privilegiado no mundo contemporâneo, como pátina de erudição ou índice de profundidade, e que se espelha “[...] nos testes, nas palavras de ordem do governo, nos concursos dos jornais (onde se nos convida a escolher segundo o nosso gosto, a condição de que este coincida com o gosto de todos)” (DELEUZE, 1988, p. 171). Importa, assim, buscar modos pelos quais a cultura saia dessas esferas entrelaçadas e fechadas em si mesmas, contrapondo-se às concepções de cultura-valor, cultura-grupo social ou étnico, cultura-mercadoria, produzindo e criando projetos de singularização cultural que desmontem os particularismos e reprodutivismo no campo político-social, cultural-educativo e, neste último, na docência.

Estamos, sem dúvida, nesse sentido, numa crise e/ou num deserto cultural, definido em grande parte pelo fato de que a cultura se transformou em uma mercadoria a ser consumida e de que seus clientes mudaram, como na televisão, em que os verdadeiros clientes não são mais os ouvintes, são os anunciantes. Assim, os ouvintes recebem os produtos culturais que os anunciantes querem, desaparecendo qualquer crítica em nome da promoção comercial (PELLEJERO, 2008). No entanto, segundo Deleuze (1988 apud PELLEJERO 2008), é evidente que sempre haverá circuitos outros, de modo que um agenciamento paralelo vá reconquistar a riqueza cultural, acrescentando que é um pouco como o que disse Nietzsche: alguém lança uma flecha, uma flecha no espaço ou então um período, uma coletividade lança uma flecha e depois ela cai, depois alguém a pega e a reenvia para outro lugar. A criação funciona assim - a literatura, o cinema, os signos artísticos em geral, passam sobre desertos e os fazem florescer oásis.

Muitas flechas vêm sendo lançadas por artistas, pesquisadores e pesquisadoras, professores e professoras, crianças e jovens que procuram trazer vida ao deserto do mundo para (re)inventá-lo e (re)povoá-lo com mais alegria, com mais resistência e invenção, sobretudo com mais potência de ação coletiva, para vivermos uma vida bonita com a força da diferença. Afinal, “[...] só se pode desejar em conjunto”, como afirma Deleuze (2008, p. 14). Escapa-se assim da interioridade de uma cultura pela exterioridade dos encontros, examinando a conexão entre o movimento do pensamento com uma cultura dada.

Encontros, certamente, com a pintura, com a música, com o cinema, com a literatura, mas já não no que têm de culturais, mas justamente na medida em que escondem qualquer coisa que escapa ao domínio do cultural, porque é só a partir desses pontos de não cultura ou contracultura que é possível ir para além de uma cultura dada. (PELLEJERO, 2008, p. 3, grifo nosso).

Para agenciar desejos coletivos nas docências, a fim de movimentar imagens de escolas, de culturas e de currículos, realizamos encontros com os signos da arte (do cinema e da literatura) em redes de conversações com as professoras. Os signos são afectos que pedem passagem e liberam a variação da potência de vida nos espaços escolares. Os signos artísticos funcionam, portanto, como disparadores de pensamentos e possibilitam a problematização das políticas educacionais e curriculares que “tentam” apequenar a vida nas/das escolas. São encontros que expandem a potência da alegria, afirmando a vida no seu mais alto grau de potência.

Cotidianamente, no âmbito das políticas culturais e curriculares, em diferentes contextos educativos, processos de subjetivações são ativados por meio das múltiplas imagens que ali circulam. Assim, questionamos: como, em relações culturais padronizadas, verticais e hierárquicas, as vimos inibindo a atividade criadora e o campo dos possíveis nos currículos experimentados nos cotidianos escolares? Que imagens, sons, palavras, gestos, cheiros atravessam as culturas e os currículos que estão em movimentos incessantes nas escolas? Que sentidos e significados de currículos e de culturas são criados com as múltiplas imagens que habitam os espaços-tempos escolares? Pode a arte potencializar a problematização e a criação curricular?

Tomamos currículo no plural inspirados no movimento pós-fundamentalista (referido a todas as perspectivas teórico-práticas contrárias à defesa de princípios universais, ao essencialismo e a uma abordagem não contingente). No Brasil, destacam-se, nessa perspectiva dos estudos curriculares, teóricos como Marlucy Alves Paraíso, Elizabeth Macedo, Alice Alves Casimiro, Nilda Alves, Sandra Mara Corazza, entre outros. Currículos, pois a vida é tecida numa teia de múltiplas linhas que não pode ser reduzida às proposições das diretrizes curriculares nacionais e/ou das Secretarias de Educação e/ou das grades curriculares estabelecidas para/pelas escolas. Eles não podem ser assim limitados, pois vão além de um plano de organização. No plano de composição, os currículos são atravessados por forças em relação, tais como escola, família, comunidade escolar, órgãos gestores, sistema político-econômico-social, mídia etc. Ainda que a tensão das prescrições e das predeterminações fundamentalistas se faça presente, interessa destacar que currículos se constituem em redes de ações complexas estabelecidas em um plano de imanência não aprioristicamente determinado. Não o currículo, mas currículos! Nessa perspectiva, não há um sentido de currículo que lhe seja intrínseco (um sentido nele mesmo), pois seu sentido é sempre derivado das contingências de dizeres e fazeres que dão consistência ao vivido escolar por forças diferenciais em relação.

São currículos vivenciados e impulsionados por forças e desejos coletivos, currículos enredados pelos encontros, pelas experimentações coletivas, pelos acontecimentos. Afirmar a força dos encontros significa entender “[...] currículos para além dos processos de aprender-ensinar da condição de algo solitário, individual, pessoal e da ordem da interioridade de uma consciência” (CARVALHO; SILVA; DELBONI, 2018, p. 814), para apostar em aprendizagens e docências que se constituem nas redes de afectos e de conversações, por composição, singularização e processos de diferenciação. Nesse sentido, cabe questionar: como, em relações culturais padronizadas, verticais e hierárquicas, vimos inibindo a atividade criadora e o campo dos possíveis nos currículos experimentados nos cotidianos escolares? Pode a arte potencializar a problematização e a criação curricular?

Metodologicamente, tratou-se de uma pesquisa-formação1 realizada com professoras de uma rede municipal de ensino, de modo virtual via Google Meet, no período noturno de 2021, em pleno ano de pandemia de Covid-192. Inicialmente, a pesquisa foi pensada para 75 professoras, tendo passado por uma grande mudança, visto que, às vésperas do início da formação, o município de Serra (ES), assim como todos os outros municípios da região metropolitana, conhecida como Grande Vitória, foi fortemente pressionado pelo Ministério Público para adiantar o retorno das aulas presenciais no modelo híbrido. Com o retorno do trabalho presencial, as professoras viram-se em conflitos de horário para participar das formações, resultando, com isso, em uma diminuição brusca do número de inscritos. Por outro lado, ainda nesse contexto de retorno de trabalho presencial e necessidade de flexibilização de horário por parte das professoras e dos grupos formadores, a formação foi mantida com um total de 42 professoras inscritas e divididas em três grupos. Para o texto aqui apresentado, selecionamos apenas parte do material produzido com um dos grupos de formação, contendo um total de 14 professoras.

Também importa destacar nossa opção por apresentar alguns resultados da pesquisa ao final, como exemplos de possibilidade de alcance do objetivo formulado3. Para fazer jus ao nosso referencial teórico, cumpre também informar que, de modo algum, daremos quaisquer modos de identificação das falas, não apenas por uma questão ética de anonimato, mas principalmente por afirmarmos a potência dos agenciamentos coletivos de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 1995). Partimos da premissa de que nenhuma fala ocorre apenas no campo individual, isto é, não é um ser falante que exprime suas ideias isoladamente. “Um indivíduo tal ou qual, tomado numa massa, tem ele mesmo um inconsciente de matilha que não se assemelha necessariamente às matilhas da massa da qual ele faz parte”, dizem Deleuze e Guattari (1995, p. 49). E vão mais além: “Cada um de nós é envolvido num tal agenciamento, reproduz o enunciado quando acredita falar em seu nome ou antes fala em seu nome quando produz o enunciado” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 50). Por esse motivo, não apostamos em uma escrita de criação de nomes fictícios a professoras, e sim arriscamos aos próprios enunciados a aparecer com força e vivacidades puras. Aqui importam mais as forças que as acompanham em suas enunciações e os modos como elas se expandem em conversas com outras forças. Importa acompanhar a força do pensamento nômade, aquele que escapa das representações para pensar e experimentar o novo, o impensável, o diferente para os currículos. Argumentamos que essas forças inventivas expandem a potência de ação coletiva que desertifica e despovoa as escolas para repovoá-las de outra forma.

Portanto, este artigo busca argumentar sobre a utilização de signos artísticos em um processo de formação de professores como modo de potencializar a resistência e/ou um movimento do pensamento em torno de uma educação contracultural que afirma a vida em contraponto aos processos de sujeição capitalistas. Dialogando com intercessores teóricos pós-fundamentalistas sobre as conceituações de culturas, de currículos, de docências como encontros compartilhados, debate sua relação com a formação de um povo por vir (no caso, professoras do ensino fundamental). O nosso argumento é o de que professoras, nos encontros com os signos das artes, desestabilizam o pensamento dogmático, pensamento como representação, abrindo frestas para a passagem de um pensamento nômade, inventivo, aquele que escapa, experimenta e cria aberturas para passagem dos fluxos de forças de um pensamento puro, sem imagem, que possibilita a coletividade a expandir os processos de diferenciação e assim inventar novas imagens para os currículos, para uma cultura de resistência e para as escolas com a força da diferença.

CULTURAS E CURRÍCULOS E DESERTOS: ENCONTROS, DEVIRES, NOMADISMO...

Na trajetória da pesquisa, visualizamos currículos como experimentações nômades para além de contornos rígidos, predefinidos, sem a bússola indicativa da direção do objeto, que levam à percepção de que aquilo que Deleuze e Guattari (1995, p. 15) denominaram fazer rizoma traduz bem as múltiplas conexões que ocorrem nos caminhos da cultura e dos currículos. Como diziam os gregos, os idiotes eram os habitantes de si próprios (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Dentro de si mesmos, veem novas possibilidades de pensar e agir com muito mais resistência do que aqueles vulneráveis a esses devires variados que se apresentam e se oferecem na névoa.

Os personagens conceituais de Deleuze e Guattari (1992) - o idiota e o nômade - ilustram duas possibilidades: a primeira, concernente ao fechamento dogmático do pensar e agir; a segunda, relativa ao nômade, criatura que tem seu território produzido pelo trajeto que enceta de um ponto a outro, mas que não tem, nesses pontos, limites fixos, visto que são pontos a serem abandonados novamente pela própria necessidade do nomadismo (DELEUZE; GUATTARI, 1997). Importa, no entanto, considerar que todos somos, em certa medida, idiotas e nômades, portanto, devemos viver uma existência com uma certa percepção sobre quando estamos sendo mais um do que o outro e, se acharmos pertinente, mudar. Recriarmo-nos em nosso próprio trajeto, possibilitando aos nossos sentidos e às nossas percepções novas formas de dar conta do que somos, onde estamos e o que faremos.

Por isso, queremos tanto nos desagarrar de opiniões prontas. Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes. A associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma à outra segundo uma ordem do espaço e do tempo, impedindo nossa “fantasia” de percorrer o universo (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 259).

O nômade, vulnerável à neblina e ao caos, na relação que cria ao se permitir encontros e propiciar, dessa forma, acontecimentos, seria capaz de produzir pensamento, não apenas opiniões, pois estaria no vórtice das realidades produzidas em planos que cortam o caos - “[...] a arte, a ciência e a filosofia - como formas do pensamento ou da criação” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 267).

Esse fluxo caótico detém a velocidade infinita do nascimento e do esvanescimento [...] Aprisionado na sua opinião-corpo-verdade, o idiota pelo aço de seu próprio espelho se supõe livre, descuidado não nota que os pontos que delimitam o seu pensar, seu agir e o seu ver já não são móveis, estreitados ao pouco espaço do visor de seu capacete identitário. (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 153).

Enquanto o nômade enfrenta e se insinua nas ondas da névoa, o idiota protege-se na tradição, no já dito, no facilmente assimilável, no plausível e palpável, na representação do real. O nômade aprende através do movimento, do deslocamento, da necessidade de expandir e sair da casa-corpo, do corpo-território4. O nômade é aquele que não tem pontos, trajetos, nem terra, embora evidentemente ele os tenha5. Se o nômade pode ser chamado de o desterritorializado por excelência, é justamente porque a reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa, como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...). Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 1997). O nômade propicia o pensamento através do seu abandonar e criar territórios, visto que o “[...] ato do pensamento se faz na relação entre o território e a terra, ou seja, se faz como a desterritorialização do território à terra, e a reterritorialização da terra ao território” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 113).

O nômade, ao abandonar seu território, se permite o risco e novas criações para dar conta de si mesmo e dos encontros que, com certeza, terá em seu trajeto. Assim, busca criar sentidos, olhares, pensares. Procura não ceder à opacidade da névoa, mas dentro dela possibilitar novas formas de ver, pensar e sentir. Vai buscar formas de nos entendermos e ao mundo e vivermos da melhor forma possível para sair e chegar para aprender a sentir, pensar e ver. Talvez procure abandonar a insistente busca da grande verdade e se preocupar com as pequenas verdades titubeantes do próprio trajeto. É fazer desse meio e desse andar entre pontos indefinidos e moventes o próprio território também movente e nele e com ele produzir aproximações e relações com o outro, para proporcionar vida, intensa e criadora, que possibilite pensar além da plausibilidade e previsibilidade dos caminhos já percorridos e que só nos levam aos muros de nós mesmos.

O nomadismo traduz “[...] uma multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 13). O desafio não é pensar se um currículo e uma docência nômade tem seu território, se percorre pontos da paisagem. Mais que isso, é perceber que, no caso das intervenções curriculares de natureza nômade, o que foi feito, o que existe ali, está para ser abandonado, alternado. Existe nas escolas, nas camadas sobre camadas de intervenções visíveis uma existência esquiva, abandonada.

Em cada parede dos currículos, jazem camadas e camadas de efêmeros. Talvez seja essa a visão mais patente do processo contínuo de territorialização e desterritorialização das artes no urbano, de um tipo de nomadismo que, como afirmam Deleuze e Guattari (1997), não necessariamente precisa sair do lugar.

Seria ele, sim, o nômade, o que age desfazendo os estriamentos dos espaços criados para classificar, funcionar, padronizar condutas, que “[...] cria o deserto tanto quanto é criado por ele. Ele é o vetor de desterritorialização” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 53). Não necessariamente o deserto assume a forma do nada, ao contrário, ele compõe, nas camadas das paredes dos currículos escolares, “um montão de estórias”, galerias de camadas da memória.

As estórias que persistem nas imagens que resistem por debaixo dos brancos sobre brancos superpostos entre paredes prescindem de regimes próprios de resistência para ganharem força, para serem ativadas por afectos como intensidades. Para Deleuze e Guattari (1997, p. 78), “[...] os agenciamentos são passionais, são composição do desejo. O desejo nada tem a ver com uma determinação natural ou espontânea, só há desejo agenciando, agenciado, maquinado”.

Os afectos são intensidades. Atravessam e recriam velocidades e fluxos nos espaços estriados das barreiras, das fronteiras fixas e segregadoras dos processos culturais em currículos, entrepondo-se nos interstícios “dos filtros para a fluidez das massas” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 60). Como seguir os atos de intervenção não autêntica nos espaços escolares, as artes e inscrições que atuam sem ter lugar? Como definir essa matéria-movimento, relativa à arte fraudulenta, “[...] essa matéria-energia, essa matéria fluxo, essa matéria em variação, que entra nos agenciamentos e que dele sai? Uma matéria, por sua natureza desestratificada, desterritorializada” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 89)?

É nessa perspectiva que maquinamos esse diálogo com Deleuze e Guattari, sinalizando que, muito embora a arte se organize em matéria, ostente corporeidade, ela “nem se confunde com a essencialidade formal inteligível, nem com a coisidade sensível, formada, percebida” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 89). Principalmente quando essa arte adentra as dobras entre currículos e docências materiais e digitais é que mais ela se apresenta “[...] num espaço-tempo ele mesmo inexato”. Assim como o corpo não se reduz a um organismo (DELEUZE; GUATTARI, 1995), a arte é condensada de materialidades e afectos, de expressividades e intensidades.

O que funda o nomadismo da arte é o movimento e isso não significa dizer desfazer o organismo currículo-escolar, mas insistir em abri-la a “[...] conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, territórios e desterritorializações à maneira de um agrimensor” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p. 22). Há, no esforço vital de alguns professores, o desejo de ultrapassar “cidades sem janelas”, as paisagens que se erigem como extensivos muros. Esse é o desafio que também mobiliza a prática dos professores nas escolas públicas: como traçar itinerários entre muros e janelas, alcançando o entre-as-coisas e superando currículos que reduzem a vida das crianças das escolas públicas a “existências mínimas”? (LAPOUJADE, 2017).

A arte nômade pode insistir num tipo de suporte, numa topologia, em imagens que se repetem para fazer valer o clamor de máquinas de guerra. Essa também é a aventura da professora que se move sob o signo de uma “ciência ambulante”, uma viagem que só se inicia quando queimamos nossos navios, já que a aventura tem início com o naufrágio. Deleuze e Guattari (1992) afirmam que só a arte conserva. Mas o que a arte conserva? Exatamente as sensações, os afectos e os perceptos, pois a “[...] arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 253).

As imagens de desertos nos fazem pensar nos processos culturais e curriculares e todos os códigos, normatizações, regras, padronizações e universalismos produzidos pelas políticas educacionais vigentes e como nos relacionamos com as imagens criadas para as escolas. Deslocamentos, inquietações, problematizações: poderíamos atribuir novos significados a outros objetos comuns de uma escola? Poderíamos pensar em cultura e currículos em devir nas escolas? Que outras flechas e olhares inesperados podem ser lançados à escola e aos seus habitantes?

CULTURA E CONTRACULTURA E ARTE E EDUCAÇÃO E...

Deleuze afirmou, em uma entrevista, em 1980, que “[...] a cultura contemporânea é uma ofensa para qualquer pensamento” (DELEUZE, 2008, s/p). Essa provocação impulsionou uma geração de jovens a pensar os sentidos e os significados de uma cultura. Foi nessa ocasião que Deleuze assumiu-se contracultural, por recusar qualquer reserva cultural, porque entendia que a filosofia não podia se definir apenas formal ou metodologicamente, mas sobretudo precisava se posicionar no horizonte de uma cultura dada. Ao enfatizar que não se poderia pensar o cultural pelo viés da subordinação, do diálogo ou do consenso, porque o que tem por trás dessa ideia de consenso é sempre uma luta entre o pensamento e a estupidez, destaca: “Pensa-se sempre contra a cultura, mas sempre sobre a cultura, na espera, se é possível, de uma cultura por vir” (PELLEJERO, 2008, p. 2). Tecendo críticas aos intelectuais, Deleuze (2008, p. 8) dizia: “Eu odeio a cultura, não consigo suportá-la. [...] não acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. [...] Não se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras”.

Na esteira do pensamento de Spinoza (2007), para quem razão se define de duas maneiras: primeiro pelo esforço para selecionar e organizar os bons encontros, a saber, os encontros dos modos que se compõem conosco e inspiram-nos paixões alegres (sentimentos que convêm com a razão); segundo, pela percepção e compreensão das noções comuns, isto é, das relações que entram nessa composição, de onde se deduzem outras relações (raciocínios) e a partir das quais se experimentam novos sentimentos, dessa vez, ativos (sentimentos que nascem da razão), Deleuze (2002) defende que os bons encontros aumentam a nossa potência de agir e, desse ponto de vista, a posse formal dessa potência de agir e igualmente de conhecer emerge como finalidade principal. Dessa forma, a razão, em vez de flutuar ao acaso dos encontros, deve procurar unir as coisas e os seres cuja relação se compõe diretamente com a nossa: “A Razão busca, então, o soberano bem ou ‘o útil próprio’, proprium utile, comum a todos os homens (V, 24-28)” (SPINOZA apudDELEUZE, 2002, p. 61). Os bons encontros, para Deleuze (2002), podem ocorrer tanto com humanos quanto com não humanos que suscitem paixões alegres e/ou a passagem do regime afetivo passivo ao ativo.

Nesse sentido, os bons encontros aumentariam a nossa potência de agir e assim, ao avaliar a relação do pensamento com uma cultura dada, Deleuze (2002) pensava a partir dos encontros. Não queria pensar no que ali tinha de cultural, mas sim pensar no que escapava ao domínio do cultural, porque, desse modo, era possível ir além de uma cultura dada. Assim, ser contracultural se faz importante para desestabilizar as relações de poder, pois, ao transformar, alterar, desertificar as redes de poderes existentes, seria possível emergir os compossíveis e incompossíveis nas culturas e nos currículos.

Deleuze (2008), assim, afirma que os encontros são não somente com pessoas, mas com fluxos e forças tal como quando alguém vai ver uma exposição em busca de um quadro que o toque, de um quadro que o comova, enfim, uma exposição de pintura ou uma ida ao cinema, buscando, à espreita, o encontro com uma ideia. Problematizar e experimentar diferencialmente os produtos culturais implica ter um encontro, mas, para isso, necessitamos estar à espreita quando há matéria para encontro: uma conversa, um quadro, um filme, um desenho, um conto, em que pode acontecer uma dobra, desdobra, redobra produzindo uma reversão que quebra o habitual e possibilita romper o padrão, no caso, curricular e docente.

Nesse sentido, os currículos não podem ser entendidos de modo cartesiano, como um trajeto a ser seguido, com definições e determinações. Compreendemos o labirinto a partir das problematizações de Deleuze (1991), em seu livro A dobra: Leibniz e o Barroco. Leibniz utiliza o labirinto para explicar o conceito de espaço. O espaço é, assim, constituído como um labirinto em número infinito de dobras, algo parecido com uma cidade que se compõe de quadras, casas, edifícios, quartos, móveis. São, assim, sempre dobras dentro de dobras, dobras que conformam espaços como um origami, “[...] a arte da dobradura do papel” (DELEUZE, 1991, p. 18).

Currículos, arte e cultura são, portanto, um cruzamento de caminhos, percursos, derivações e bifurcações para os quais nunca é possível traçar um único plano ou um trajeto previamente definido, justamente porque, nessas tramas, ou dobras, algo sempre não se encaixará, vai compor outros planos ou mundos possíveis que se derivarão em outros trajetos e dobras. Por essa razão, Deleuze (1991, p. 17) afirma que “[...] o menor elemento do labirinto é a dobra [...]”, isso porque se compreende que o labirinto é múltiplo, uma vez que ele é dobrado de muitas maneiras, visto que as tramas que o compõem se modificam e se metamorfoseiam uma infinidade de vezes. “Eis por que a desdobra nunca é o contrário da dobra, mas é o movimento que vai de umas dobras às outras” (DELEUZE, 1991, p. 140).

Isso posto, podemos supor que existem multiplicidades de planos que se entrecruzam, de maneira que se dispõem, nesses mundos possíveis, criados e fabulados, de movimentos imanentes que se permitem dobrar e redobrar juntos. Na esteira deste percurso e agora no contexto do capitalismo mundial integrado, cabe indagar: em meio à produção massiva em nível mundial de certos modos de agir, vestir e amar, veiculados pelos mass media e consumidos por multidões, é possível pensar em produzir subjetividades singulares e singularizantes, que escapem às modelizações dominantes?

Acreditamos que sim e a este propósito afirmamos, com Guattari e Rolnik (1986), que se a subjetivação contemporânea se encontra inexoravelmente ancorada em dispositivos capitalistas, isso não significa o seu aprisionamento absoluto. É sempre possível resistir ao presente, escapar das modelizações dominantes, apropriar-se diferentemente do que nos é oferecido cotidianamente pela televisão, pelo cinema, pelo patrão, pelo cônjuge, pela escola ou pelo outdoor, pois esse desenvolvimento da subjetividade capitalística traz imensas possibilidades de desvio e singularização. Em suma, é sempre possível atrever-se a singularizar (GUATTARI; ROLNIK, 1986). Desse modo, como nos ensinou Guattari (1992), nada está dado, é preciso, a partir da compreensão de que a subjetividade é constantemente produzida, lutar por novos campos de possibilidades, inventando no cotidiano novos modos de existência, novas relações consigo mesmo e com o mundo.

SOBRE OUTROS TANTOS MUNDOS E AS FLECHAS-FORÇAS DOS SIGNOS ARTÍSTICOS MOVIMENTANDO AS PROBLEMATIZAÇÕES DAS PROFESSORAS SOBRE CURRÍCULOS E DOCÊNCIAS

Nas nossas pesquisas com as professoras, buscamos forçar o pensamento nos encontros com os signos da arte em redes de conversações, pois, como explica Deleuze (2010), em Proust e os Signos, “[...] só se pensa porque é forçado”! O nosso objetivo é que, no encontro com as imagens cinematográficas, artísticas e literárias, o pensamento seja violentado, provocando a quebra dos clichês e das “verdades” pensadas para as escolas. A ruptura do pensamento dogmático cria aberturas para passagem dos fluxos de forças de um pensamento puro, ou seja, um pensamento sem imagem que possibilita que a coletividade crie imagens para os currículos, para as docências, para as infâncias.

Assim, problematizamos: o que nos força a pensar? Que elementos fazem as culturas e os currículos se movimentarem? Que forças fixam as culturas e os currículos, impedindo-os de entrarem em movimento constante? Que forças conseguem escapar de uma cultura e/ou de um currículo dado? O que pode fazer balançar/desestabilizar as culturas e os currículos de modo a criar uma cultura por vir, uma cultura em devir? Problematizar não significa adaptação das representações, mas trabalho do pensamento, que questiona as políticas educacionais e curriculares, sempre lançando novas e inquietantes perguntas, que, ao apontarem as contradições, exercitam a argumentação e os confrontos de ideias.

Em um dos encontros, o elemento disparador da rede de conversações foi a literatura de Manoel de Barros expressa no livro Exercícios de ser criança (BARROS, 2013). As professoras, a partir da obra de Barros, foram convidadas a problematizar a legislação atual, analisando a (im)possibilidade de materialização de uma base nacional democrática e participativa, bem como a relação e o impacto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2018) para a formação e a atuação dos professores nos cotidianos escolares. As professoras apontaram a dificuldade de espaços e tempos para o diálogo, a fim de planejarem coletivamente as suas ações. Criticaram a falta de concursos públicos para professores, a política de contratação de professores temporários e de remoção, que dificulta a constituição de um coletivo organizado. Problematizaram as políticas de avaliação em larga escala e as cobranças relacionadas aos protocolos de segurança. No entanto, indicaram algumas linhas de escape e de vida para as escolas:

Então, estamos tentando buscar sempre o novo, novas formas de fazer diferente. Procuramos mudar quando vemos que não está funcionando. A gente tem que se adaptar à realidade da criança. Atingir cada uma, buscar o melhor para a vida delas. As crianças nos surpreendem muito. Estamos em escalonamento, saímos agora do ensino remoto e entramos no modelo híbrido, que veio cheio de restrições e com protocolos de segurança, regras e normatizações. Mas não podemos esquecer que as crianças ficaram um período em casa e voltam nos surpreendendo. (Fala de uma das professoras).

As professoras em redes de conversação e de solidariedade questionaram os protocolos e as normatizações pensadas sem a participação daqueles que fazem as escolas todos os dias. Criticaram os planejamentos propostos sem o envolvimento dos alunos e pontuaram que são os acontecimentos e as relações cotidianas que criam as fabulações e as invenções curriculares.

As imagens disponibilizadas nesses encontros nos fazem refletir para além de nossas possibilidades. Como professor podemos sempre ousar em nosso trabalho docente e isso me faz pensar também nos alunos: como deixar terem liberdade de se expressar? As crianças sempre nos convidam para ir além, nos chamam para observar as minúcias do cotidiano, mas nem sempre embarcamos nas ideias deles porque estamos agarradas nos planejamentos que nos foram propostos. (Fala de uma das professoras).

Como aponta Pellejero (2008, p. 4), a cultura existe não para ser compreendida, nem recuperada, nem habitada, “[...] mas para fugir, para provocar fugas, para fazer passar algo que escape a todos seus códigos: fluxos e elementos não codificáveis, linhas de fuga ativas e revolucionárias”. É um lançar de flechas, pois só assim é possível agenciar dispositivos de resistência e criação.

Nos encontros com as escolas, cartografamos uma pluralidade de pontos de vista em que as relações diferenciais não se reduzem a oposições, mas em possíveis soluções com posições diferentes, que se colocam em disputa, mas também em processos de negociações e de diferenciações. A cultura deixa, portanto, de representar

[...] a soma dos pressupostos objetivos de uma imagem de pensamento que nos impede de perguntar pelo que significa pensar, e aparece como uma aventura do involuntário, que encadeia uma sensibilidade, uma memória, e logo, um pensamento, com todas as violências e crueldades necessárias, para traçar um povo de pensadores e dar uma ascendência ao espírito (PELLEJERO, 2008, p. 6).

Rolnik (2015) nos apresenta duas das múltiplas experiências que fazemos do mundo e a que a subjetividade se dispõe para apreendê-lo. A primeira está baseada na percepção, pois vivenciamos as experiências fazendo associações com os códigos e as representações de que dispomos. Essa percepção nos possibilita atribuir sentidos e estabelecer uma comunicação e uma sociabilidade. No entanto, essa percepção não é a única a conduzir nossa existência. Vários outros modos de apreender o mundo operam simultaneamente, constituindo a nossa subjetividade. Um outro tipo de experiência que a subjetividade faz é a das forças que estão ao nosso entorno e que agitam o mundo como corpo vivo. Essas forças produzem efeitos em nosso corpo. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento.

Deleuze e Guattari chamaram esses efeitos de perceptos e afectos. Os perceptos e os afectos que atravessam os nossos corpos impulsionam o processo incessante de recriação de nós mesmos e de nosso entorno, porque são provocadores de inquietações e desestabilizações. No entanto, eles são irrepresentáveis e é por isso que não cabem na cartografia cultural vigente, colocando-a em risco. Os afectos “[...] transbordam a força daqueles que são atravessados por ele” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 194).

Os curtas-metragens com as suas artes, assim como Manoel de Barros com as suas poesias, criaram blocos de sensações que permitiram as professoras movimentarem o pensamento, fabular possíveis para as escolas. Que perceptos e afectos possibilitam deslocamentos nas culturas e nos currículos? Que efeitos os encontros com as imagens (literárias e cinematográficas) provocam nas redes de conversações com as professoras? Possibilitam novos movimentos culturais e curriculares e a invenção de mundos incompossíveis?6

Esse compartilhamento de experiências tem enriquecido nossa prática. É bom ouvir os relatos das professoras, da vivência cotidiana. Isso tem enriquecido o processo de formação. Como começamos a pensar com Manoel de Barros sobre a água que escorre fora da peneira, de deixar escorrer a água na peneira. Como professoras, começamos a dar mais importância a voz das crianças. A gente fica triste de ver o contexto da sociedade atual, então precisamos valorizar o nosso trabalho cotidiano e compartilhar mais o que fazemos. (Fala de uma das professoras).

Os efeitos dos signos das artes nas redes de conversações com as professoras fazem reverberar a força de ação coletiva, criam laços e povoamentos, movimentos que nos comovem e nos contagiam.

A literatura de Manoel de Barros nos convoca aos despropósitos. Eu fiquei pensando: ao invés de ficarmos nessa expectativa do aluno acertar, fazer aquilo que planejamos, dar voto de confiança ao aluno - porque voto de confiança é para eles fazerem o que queremos, o que pensamos - E se a gente pensar na possibilidade de criar despropósitos com as crianças? É muito importante possibilitar movimentos de despropósitos [...]. Deixar que as crianças nos surpreendam. (Fala de uma das professoras).

Entendemos com Rolnik (2015) que se faz necessário problematizar as forças macro e micropolíticas reativas e conservadoras e buscar produzir mudanças culturais e deslocamentos nas redes de poderes, de afectos e de subjetividades, pois só assim podemos pensar em novos modos e novas maneiras de povoar o mundo. Povoar o mundo com arte o tornará mais alegre, mais colorido, mais pulsante e desejante, pois a arte e a cultura potencializam novos currículos para constituição de um povo que falta.

Precisamos, portanto, ativar o deslocamento da micropolítica reativa do inconsciente colonial capitalístico, para inventarmos uma nova concepção de política, que seria uma ação micropolítica em seu sentido ativo, “[...] uma nova maneira de decifrar a realidade, de situar os problemas e de atuar criticamente a partir deles” (ROLNIK, 2015, p. 10).

Nos encontros formativos com as professoras, a partir da obra de Manoel de Barros, as professoras exemplificaram alguns movimentos que funcionaram como força ativa e de resistência contracultural como a campanha Aqui já tem Currículo, criada pela Associação Nacional de Pesquisas em Educação (Anped), na época da entrega da primeira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Professoras de todo o Brasil aderiram à campanha e enviaram as suas experiências e composições curriculares criadas coletivamente no âmbito de suas escolas e de suas comunidades locais.

Outro exemplo de ação micropolítica ativa debatido nas conversações, a partir da leitura de Manoel de Barros, foi o movimento dos jovens secundaristas, quando mais de 200 escolas públicas de São Paulo foram ocupadas em protesto contra um plano de reorganização da rede pública estadual (PELBART, 2016). Esse gesto foi transformado em força e inteligência coletiva, pois o “intolerável”, como a mercantilização da educação, as relações de poder vigentes, os modos desgastados de pensar o ensino, a aprendizagem, os processos de avaliação, foi problematizado e assim outros possíveis foram engendrados e desejados: o (im)pensável passou a ser imaginado e fabulado coletivamente.

Rolnik (2018) ressalta que estamos sempre oscilando entre a micropolítica ativa e reativa, por isso precisamos combater as tendências reativas em nós mesmos e em nossas ações e relações. Um trabalho de uma vida, uma ética da existência. Para isso, é preciso uma escuta atenta dos afectos e dos perceptos responsáveis pela desestabilização, pois é na ação do desejo que está a abertura para novos possíveis e para a criação. Nesse movimento, o mundo virtual que habita as subjetividades se atualiza.

Eu queria compartilhar o que aconteceu comigo essa semana que parece muito com o que estamos falando: eu fiz uma atividade de releitura com meus alunos da obra de Alfredo Volpi, Barco com Pássaros. Na hora de apresentar, a preocupação maior foi mostrar o trabalho dos alunos. Então, eu montei o painel, as letras não ficaram tão perfeitinhas. E quando coloquei o painel exposto na escola, o que as pessoas estavam preocupadas era com a perfeição do painel e não com o trabalho de pensamento dos alunos. Aquilo me machucou muito e fiquei muito chateada. Então, acho que temos que rever muito a nossa forma de trabalho. Uma sugestão para as meninas da formação: que seja colocado em prática o trabalho do aluno e não a perfeição. Fica aí um pouquinho de nossa prática, nossa luta, nossa sensibilidade. (Fala de uma das professoras).

Nas redes de conversações com as professoras, procuramos desestabilizar, por meio dos signos artísticos, o arco sensório-motor, fazendo com que professoras fabulassem novos possíveis para as escolas. A fabulação passa por devires que pedem passagem. Fabular nunca é falar em seu próprio nome, é falar através de um outro, em nome das minorias, das multiplicidades nômades que o povoam e com as quais ele repovoa o mundo. “Fabular é fazer passar as potências que os devires suscitam em nós e que são desprovidas de linguagem” (LAPOUJADE, 2017, p. 282). O efeito dessa política de ação de desejo é um devir de subjetividade e de seu campo relacional imediato.

Quando questionadas, as professoras disseram que o mais importante nesse momento pandêmico para o fortalecimento da coletividade foram os encontros e as redes de amizade, de solidariedade e de conversações. A nossa aposta tem sido na possibilidade de acompanhar os processos de invenção coletiva de novas imagens de escola criadas com a força do movimento intensivo das diferentes culturas e currículos praticados e vividos nos cotidianos das escolas. Tal força coletiva e inventiva afirma a diferença como multiplicidade e engendra singularidades, explorando a potência do pensamento nômade, que é um pensamento em constante devir. Trata-se de um pensar que busca fabricar novas possibilidades de vida, outros modos de existência, uma estética da vida, uma ética, pois o que os movimentos e as singularidades não desejam é a ideia de um só mundo (DELEUZE, 2008).

O devir revolucionário, impulsionado pelas irrupções de afectos e perceptos nos/dos encontros com as imagens e dos signos das artes, nos força a problematizar e a reinventar a realidade. São momentos em que a imaginação coletiva é acionada para criar resistências e novas maneiras de existir, para buscar novas alianças e novos sentidos para as culturas e os currículos e para as suas docências. Como acena Rolnik (2015), não basta tomar para si a responsabilidade como cidadão, é preciso tomar para si a responsabilidade como ser vivo, de modo a agir no sentido da micropolítica ativa. Essa é a condição para nos tornarmos agentes de criação de modos de existências coletivos.

O curta The Other me (ÉCOLE SUPÉRIEURE DES MÉTIERS ARTISTIQUES, 2020) também foi usado como elemento disparador de um dos encontros com as professoras. O curta possibilitou pensarmos a respeito das rotinas, o quanto elas podem nos robotizar e o modo como sutilmente vamos seguindo a lógica de uma cultura e ou de um currículo pensado pelos ditames de seus agentes financiadores, esquecendo de escutar os desejos coletivos e abdicando da potência de alegria, tão importante para as nossas vidas. Como afirmam Carvalho, Silva e Delboni (2020), as imagens promovem alterações nas formas subjetivas (de dentro), conferindo singularidades que, compartilhadas, colocam o pensamento para estremecer. “[...] Elas preveem e entreveem o que, com esforço, imaginamos ter alcançado ver” (SAMAIN, 2018, p. 35). Assim, professoras falam de suas afecções com as imagens do curta e mostram o quanto precisamos de pausas, respiros, fabulação, contemplação - no sentido guattariano -, que significa respirar junto, pensar junto, pulsar em conjunto, para seguir de mãos dadas em busca de reconhecermos o que fazemos coletivamente, valorizando as nossas invenções, as nossas escolhas e sobretudo compartilhando as nossas diferenças. Nesse movimento, fabulamos os possíveis, por meio da potência de ação complexa e coletiva, criando maneiras de viver com mais alegria e inventividade e renovando as imagens de culturas, docências e currículos. As professoras, nesse sentido, colocam:

Achei muito interessante esse curta. Me fez pensar o trabalho mecânico na/da docência. Aquele trabalho diário, constante, ensinar o mesmo conteúdo, no ritmo. E quando a gente depara com a outra oportunidade, outra possibilidade. A possibilidade de encontrar outro mundo. Achei interessante que o personagem teve oportunidade de voltar, mas não quis. E em todo momento da trajetória, a mala dele ficou com ele. E na docência, isso é muito forte: meu material, meu armário, aquele conteúdo, aquelas atividades que você trabalha todos os anos. E a gente sai carregando tudo aquilo com você e não quer jogar fora nada. Ele deixou a blusa, o paletó, foi deixando aos poucos, pequenas coisas. Esse processo de deixar aos poucos algumas coisas que a gente acha que precisa ou que vai precisar ao longo da trajetória é bem interessante. A decisão dele de sair do elevador e deixar a mala, como se agora estivesse livre para poder ousar e ver outras possibilidades. Essa cena mexeu muito comigo nesse sentido da docência, de que, às vezes, a gente vai deixando algumas manias e possibilitando às crianças essa docência inventiva, por meio da escuta, do ouvir as crianças. De vez em quando, eu mexo no meu armário e jogo fora algumas coisas. Mas é preciso mais. (Fala de uma das professoras).

O que é preciso? Como canta Caetano Veloso, inspirado em dito português, “navegar é preciso, viver não é preciso”. A vida e os currículos que se constituem no plano de imanência não cabe em planejamentos e regras imutáveis e inflexíveis. Os currículos e as culturas se movimentam nas dobras dos processos de diferenciação. Entre as redes de poderes e de saberes, existem linhas desejantes que escapam, abrindo fluxos para fazer passar os afectos e as intensidades.

Fiquei meio tomada com o barquinho. Naquele instante em que ele entra no barquinho e se deixa escorregar pelo rio afora. Mas antes ele fica naquele movimento de entrar ou não no barco igual ao movimento de entrar ou não no elevador. Esses entrelugares da vida. O isso ou aquilo, o ir e vir. (Fala de uma das professoras).

Uma professora nos provoca a pensar as dicotomias dos nossos cotidianos, bem como as amarras de algumas normatizações que acabam dificultando os processos de criação e de invenção:

Queria pensar também sobre a sombra que o acompanha. O que são as sombras que nos puxam nas nossas docências e nas nossas vidas? O que vocês acham que, às vezes, funcionam como sombras no nosso fazer docente? Fiquei pensando quando a sombra incomoda o outro. A sombra bate no compartimento e vai mexer no trabalho de outra pessoa. (Fala de uma das professoras).

A problematização da professora fez o grupo questionar sobre os dispositivos de poder que vão produzindo uma docência dogmática. Possibilitou pensarmos as resistências inventivas e criativas de alunos em professores nas invenções cotidianas. Essas enunciações afetivas funcionam como sombras que nos convidam a pensar e criar outros possíveis para a educação, para as culturas e para os currículos. A subjetivação contemporânea se encontra inexoravelmente ancorada em dispositivos capitalistas, o que não significa o seu aprisionamento absoluto. É sempre possível resistir ao presente, escapar das modelizações dominantes, apropriar-se diferentemente do que nos é oferecido cotidianamente pela televisão, pelo cinema, pelo patrão, pelo cônjuge, pela escola ou pelo outdoor, pois “[...] esse desenvolvimento da subjetividade capitalística traz imensas possibilidades de desvio e singularização” (GUATTARI; ROLNIK, 1986). Em suma, é sempre possível atrever-se a singularizar (DELEUZE; GUATTARI, 1997; GUATTARI; ROLNIK, 1986) e/ou resistir e experimentar outros modos de estar na vida e nos currículos.

Uma materialidade artística, na literatura, no cinema, na música ou na pintura, seria aquela que, em dois sentidos da estética, se encontram, “[...] se confundem a tal ponto que o ser do sensível se revela na obra de arte ao mesmo tempo que a obra de arte aparece como experimentação” (DELEUZE, 1988, p. 108). Com isso, a estética não busca pelo fundo do objeto artístico, pois não se deseja responder o que isso é, mas o que ela é capaz de mobilizar no corpo e na experiência, daí o caráter experimental imprescindível que Deleuze insiste em afirmar: “[...] é necessário que as condições da experiência, em geral, se tornem condições de experiência real; a obra de arte, por outro lado, aparece realmente como experimentação” (DELEUZE, 1974, p. 262).

Assim, a arte, em sua relação com a educação em novos modos de experimentação, pode tornar-se contracultural. A cultura deixa, portanto, de representar

[...] a soma dos pressupostos objetivos de uma imagem de pensamento que nos impede de perguntar pelo que significa pensar, e aparece como uma aventura do involuntário, que encadeia uma sensibilidade, uma estética, e logo, um pensamento, com todas as violências e crueldades necessárias, para traçar um povo de pensadores e dar uma ascendência ao espírito (PELLEJERO, 2008, p. 6).

A cultura existe não para ser compreendida, nem recuperada, nem habitada, como aponta Pellejero (2008, p. 4), “[...] mas para fugir-lhe, para provocar-lhes fugas, para fazer passar algo que escape a todos seus códigos: fluxos e elementos não codificáveis, linhas de fuga activas e revolucionárias, linhas de descodificações absoluta que se opõem à cultura”. Assim, nos encontros com as professoras, vimos a problematização das rotinas escolares, dos procedimentos docentes, da relação entre educação, cultura e arte, da necessidade de busca de outros possíveis para a criação de movimentos inventivos curriculares, enfim, de busca de outros modos de existir escola e docência que implicam movimentos de desterritorialização e de agenciamento de dispositivos de resistência, entendidos como criação, porque toda criação é um ato de resistência. Enfim, de cultura na escola entendida não como erudição, alma-coletiva ou mercadoria, mas como um ato de resistência que se faz contracultural ao questionar as bases do sistema social e político-econômico capitalístico vigente, que institui os processos de escolarização.

PARA NÃO CONCLUIR... POIS BUSCAMOS OÁSIS E FLORES DESTERRITORIALIZANDO DESERTOS

Na obra Sociedade da Transparência, Han (2017) apresenta com bastante clareza e pessimismo a relação da cultura contemporânea referente ao controle da vida e/ou de outros mundos possíveis. Argumenta que o atual sistema econômico necessita da existência de uma similitude entre as relações sociais construídas pelos indivíduos e grupos sociais, visto que o neoliberalismo não funcionaria se as pessoas agissem diferente, pois, a partir das redes sociais digitais, ocorre a produção de dados quantificáveis que possibilitam enxergar tendências e reações, resultado de operações algorítmicas que igualam e dominam os indivíduos e os grupos sociais.

Sendo assim, ainda segundo Han (2017), os indivíduos e os grupos sociais são transformados em “divíduos” (divisíveis), uma massa que é um conglomerado de dados, ou seja, a globalização exige a superação das diferenças entre as pessoas, pois, quanto mais elas forem idênticas, mais veloz será a circulação do capital, das mercadorias e da informação. A tendência é para que todos se tornem semelhantes como consumidores.

Desse modo, a cultura de massa se torna algo inevitável, pois a dessacralização do mundo faz com que nossas atividades sejam direcionadas ao valor de mercado, desconsiderando qualquer produção que não tem por fim virar uma mercadoria padronizada a ser consumida. A violência da transparência descrita por Han como panóptico digital reflete uma perspectiva política pessimista. Como devir oásis e flores desterritorializando desertos curriculares? Estariam a cultura, a arte e a educação encapsulados no sistema capitalístico do mundo globalizado? O próprio Han (2017, pp. 69-70) deixa uma abertura ao afirmar que “[...] o controle total aniquila a liberdade de ação e conduz, em última instância, à uniformidade e, por isso, atualmente são exigidas novas configurações, inclusive dos espaços públicos compartilhados nas cidades”.

Nesse sentido, concordamos e defendemos o entendimento otimista de que há agenciamentos que afirmam a vida, assim como há aqueles que nos põem em condições existenciais ainda mais limitadas. Se coexistem diferentes maneiras de produzir agenciamentos, é necessário percebermos aqueles que enclausuram nosso impulso vital, impulso criador que nos permite escapar aos automatismos que nos conformam a uma vida nua (AGAMBEN, 2015).

Tomada como potência, a vida e, nela, os processos culturais não podem ser concebidos a partir da constituição de uma vida ontologicamente essencializada em processos de identificação e homogeneização, pois ela, a vida, sempre transborda. Assim sendo, não se trata de perguntar “o que é?”, pois teríamos uma visão essencialista, pela via da identidade. Trata-se de romper as perguntas “o que é cultura?”, “o que é arte?”, “ o que é currículo?”, “o que é escola?”, “o que é a vida?” e perguntar pelas relações e possibilidades de vida em seus efeitos, pelos rastros por meio dos quais estamos demarcando processos de homogeneização e padronização ou pelos rastros que indicam processos de singularização e afirmação da pluralidade: vida nua ou uma vida?

E, para não concluir, pois não existe receita, somente os possíveis na relação educação, arte e cultura como contracultura, questionamos: que linhas de desterritorializações, linhas de fuga ativas e revolucionárias temos criado nos encontros com os signos artísticos que atravessam as culturas e os currículos nas escolas? Temos encontrado linhas de escape com tantas políticas de regulação da educação? Temos inventado, com as professoras, novas e possíveis imagens para as culturas e os currículos? Temos colocado culturas e currículos em movimento? Criamos forças de resistências às imagens de escolas e de currículos que asfixiam professores/as, com escalas de medidas, indicadoras de perfis de produtividade e de boas condutas? Transgredimos essas forças reguladoras, criamos resistências coletivas para construir uma cultura por vir?

Nos encontros com as professoras, tendo os signos da arte como disparadores de pensamentos, feito flechas lançadas no deserto a ser povoado, as professoras criaram conexões e agenciamentos que atuam no coletivo como força subversiva revolucionária, que faz transbordar desejos de novas experimentações e de criações coletivas. Mesmo com todos os momentos de tristeza com que o mundo depara, as professoras coletivamente problematizaram a precariedade do trabalho docente nesse cenário de pandemia, em que as desigualdades educacionais ficaram cada vez mais visíveis. No entanto, em movimentos de luta, perseveram, afirmando a vida sensível que pulsa com desejo de um mundo melhor para todos, negando a imposição de uma educação dogmática inspirada em uma cultura hegemônica arbitrária, asseverando assim uma educação contracultural.

REFERÊNCIAS

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1Este artigo é o recorte de uma pesquisa maior, denominada “Imagens, signos artísticos instigando aprendizagens nos currículos em cotidianos escolares: potencializando a constituição de corpos coletivos” (Ufes/CNPq), período 2021-2025.

2A produção dos dados deste artigo se insere em pesquisa com parecer consubstanciado do CEP (Comitê de Ética em Pesquisa), número 3.733.191, da Universidade Federal do Espírito Santo.

3Como dito, a pesquisa se propôs, em seu movimento mais amplo, a problematizar quais efeitos os signos artísticos, como imagens fílmicas, fotográficas, pictóricas, literárias etc. provocam no movimento de pensamento de professores das séries iniciais do ensino fundamental. No entanto, considerando o espaço de um artigo, como recorte de uma pesquisa maior, apresentamos somente dois momentos vividos com os signos artísticos utilizados no processo de formação de professores, assim como selecionamos apenas algumas das falas emitidas durante as conversações.

4Os conceitos de território, desterritorialização e reterritorialização de Deleuze são complexos: “A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo critérios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio do qual um sujeito se sente ‘em casa’” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323).

5“O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos” (GUATTARI; ROLNIK, 1986, p. 323).

6Os mundos serão chamados de incompossíveis quando as suas sequências e continuidades divergem, não podem coexistir e se reunir em uma série única. As versões completas diferentes serão ditas incompossíveis, ou seja, elas não podem coexistir, ser conjugadas, misturadas, interpenetradas e se relacionar em uma série única porque se autoexcluem (DELEUZE, 1991).

Recebido: 21 de Julho de 2022; Aceito: 16 de Dezembro de 2022

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As autoras declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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