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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 20-Jun-2023

https://doi.org/10.1590/0102-469840604 

Artigos

ATIVIDADE CRIADORA COLETIVA: UNIDADE DE RESISTÊNCIA DO TRABALHO DOCENTE

ACTIVIDAD CREADORA COLECTIVA: UNIDAD DE RESISTENCIA DEL TRABAJO DOCENTE

MARIA NIZETE DE AZEVEDO1 
http://orcid.org/0000-0002-6827-9963

ANA LUIZA BUSTAMANTE SMOLKA2 
http://orcid.org/0000-0002-2064-3391

1 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Diadema, SP, Brasil.

2 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Campinas, SP, Brasil.


RESUMO

Os processos imaginativos e criadores de professoras dos anos iniciais de escolarização são aqui analisados à luz da Teoria Histórico-Cultural, ancorados, sobretudo, nos conceitos de trabalho social, de Marx, e de atividades reprodutiva e criadora, de Vigotski e interlocutores. Intentou-se responder à pergunta: na atividade docente, o que evidencia os processos imaginativos e criadores? O contexto desta pesquisa abrangeu o trabalho docente de professoras de uma escola envolvida em um projeto de parceria colaborativa entre universidade e escola. A análise das atividades de ensino, mediada pela unidade de análise “atividade criadora coletiva”, mostrou a coexistência das atividades reprodutiva e criadora no trabalho docente, indicando que os processos de criação emanam das e entre as atividades reprodutivas prescritas, constituindo-se e sendo constituidores de práticas coletivas de resistência; apontou também que um ato criativo, essencialmente coletivo, entretecido por elementos oriundos da relação entre imaginação e realidade, emerge da inter-relação das experiências pessoais, profissionais, alheias e históricas, com fortes enlaces emocionais. Evidenciou-se ainda o coletivo como unidade de resistência, no qual a imaginação de cada sujeito é, ao mesmo tempo, por ele sustentada e fonte de criação coletiva. Esses resultados levam-nos à defesa de que as ações colaborativas entre as docentes convidam estas para a atividade de imaginação e criação, pois a riqueza do vivenciado não seria promovida por trabalhos docentes isolados. Afinal, o trabalho coletivo e a autoria docente sobre tal trabalho, mediados pela imaginação, são pilares para a construção da docência como atividade humana e práxis.

Palavras-chave: Imaginação e Criação; Trabalho Docente; Anos Iniciais da Escolarização; Atividade Criadora Coletiva; Relações de Ensino

RESUMEN

En este trabajo se analizan los procesos imaginativos y creadores de los docentes de los años iniciales de educación, basada en la Teoría Histórico-Cultural, anclados, sobretodo, en los conceptos de trabajo social (Marx) y de actividades reproductivas y creativas en Vygotsky e interlocutores. Se intentó responder: en la actividad docente, ¿qué evidencia los procesos imaginativos y creadores? El contexto de la investigación abarca el trabajo de docente de una escuela que participan en un proyecto de colaboración con la universidad. La observación de la unidad de análisis “actividad creadora colectiva”, mostró, por un lado, la coexistencia de actividades reproductivas y creadoras en el trabajo docente: procesos creativos que emanan de y entre actividades reproductivas prescritas, constituyéndose y siendo constituidores de prácticas colectivas de resistencia; por otro lado, un acto creativo esencialmente colectivo, entrelazado por elementos provenientes de la relación entre imaginación y realidad, emerge de la interrelación entre experiencias personales, profesionales, ajenas e históricas, con fuertes lazos afectivos. El colectivo se evidenció como una unidad de resistencia, en la que el imaginario de cada sujeto es, al mismo tiempo, sostenido por él y fuente de creación colectiva. Estos resultados llevan a defender que las acciones colaborativas entre docentes invitan a la actividad de imaginación y creación, ya que la riqueza de la experiencia no sería promovida por trabajos docentes aislados. Después de todo, el trabajo colectivo y la autoría docente sobre esta obra, mediada por la imaginación, son pilares para la construcción de la docencia como actividad humana y como práxis.

Palabras clave: Imaginación y Creación; Trabajo Docente; Años Iniciales de Escolarización; Actividad Creadora Colectiva; Relaciones de Enseñanza

ABSTRACT

In this work, we analyze teachers' imaginative and creative processes in the initial years of schooling based on the Historical-Cultural Theory, mainly grounded in the social work concepts of Marx and the reproductive and creative activities of Vygotsky and his interlocutors. We attempted to answer the question: what evidences the imaginative and creative processes in the teaching activity? The research context encompassed the teachers' work from a school involved in a collaborative university/school project. The analysis of the teaching activities, mediated by the analytical unit "collective creative activity", showed the coexistence of reproductive and creative activities in teaching work. The creative processes emanate from and between prescribed reproductive activities, constituting and constituted by collective resistance practices. We also point out that an essentially collective creative act, interwoven by elements from the relationship between imagination and reality, emerges from the interrelationship between personal, professional, foreign, and historical experiences, with strong emotional bonds. The collective dimension stands out as a unit of resistance, in which the imagination of each subject is simultaneously sustained by him/her and a source of collective creation. These results advocate for collaborative actions between teachers, inviting them to imagine and create, as the richness of the experience would not be reached through solo teaching work. After all, collective work and teaching authorship, mediated by imagination, are pillars to construct teaching as a human activity, as praxis.

Keywords: Imagination and Creation; Teaching Work; Early School Years; Collective Creative Activity; Teaching Relationships

INTRODUÇÃO

“Já descobriram quem sou? [...]

No fundo sou todo mundo e todo mundo sou eu.

No mundo das Ciências nós vamos nos encontrar!”

(Trecho da “Carta do Amigo Secreto”, banco de dados do Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola)

As professoras1 dos anos iniciais de escolarização são impelidas a planejar um evento para recepcionar um amigo secreto, um personagem misterioso. Para tanto, imaginaram e criaram ações didáticas com enigmas a serem desvendados pelas crianças, como aqueles descritos na epígrafe. À luz de Vigotski e de seus interlocutores, analisamos essas ações didáticas para desnudar os elementos que falam dos processos imaginativos e criadores dessas docentes.

Dois pilares deste estudo mostram a sua relevância: a âncora teórica, a destacar o conceito de trabalho social, de Marx, e os conceitos das atividades reprodutiva e criadora, de Vigotski; e o vínculo da pesquisa com um amplo projeto de parceria colaborativa entre universidade e escola, com ações que envolveram a gestão e o trabalho pedagógico na busca por melhorias do ensino. As relações construídas com as professoras da escola parceira, interlocutoras desta pesquisa, datam de três anos (2019-2022), as quais, regidas por laços de confiança e colaboração, abriram as portas da sala de aula, lugar por excelência de suas vivências, por conseguinte, de seus afetos e das (im)possibilidades de ensinar e de aprender.

Pautar a imaginação e a criação no contexto do trabalho docente, na atual conjuntura, soa de modo paradoxal, a nosso ver, com potencial emancipatório e libertador, dado o quão agudo está o projeto de desmonte da educação pública, cada vez mais explícito em suas faces, referente a várias questões, tais como: salarial, condições de trabalho, alinhamento e padronização curricular. Conceber que a imaginação está na base do ato educativo é pretender mostrar a essência de humanização guardada no ser social que é o professor, tendo em vista a dinâmica de controle sobre o seu trabalho. Educar e criar perfazem um caminho de resistência às condições de um trabalho alienante. Essas condições concretas de vivência do trabalho docente abrigam as discussões aqui propostas, entretecidas no âmago das relações interpessoais, a nos dizer o coletivo como unidade de resistência nas tensões da atividade criadora.

A ATIVIDADE IMAGINATIVA CRIADORA: PILAR DA CRIAÇÃO DO MUNDO HUMANO

O trabalho compreendido como atividade produtiva humana guarda em sua essência a função imaginativa criadora, a qual responde pelo processo de humanização. De acordo com Pino (2006, p. 49-50), a atividade criadora, no movimento histórico da humanidade, deu o rumo da evolução da espécie humana, permitindo “aos seres humanos agir sobre a natureza e transformá-la em função de objetivos próprios e, pelo mesmo ato, transformarem-se a si mesmos”.

Tais premissas incitam a lembrança de uma afirmação de Karl Marx (1985, p. 149):

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, é um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula, e controla seu metabolismo com a Natureza. [...] Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento sobre a natureza externa a ela e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza.

Marx refere-se ao caráter teleológico, produtivo e transformador do trabalho como atividade mediada, realizada pelo homem em sua relação de intercâmbio com a natureza. Nas relações intrínsecas ao trabalho, signos e instrumentos são interpostos entre o homem e o objeto em transformação, cujo produto tem em si materializada a essência humana. Essa materialização é o processo pelo qual a totalidade dos instrumentos produzidos guarda em si a marca humana; contém em si, a um só tempo, a objetivação imediata do trabalho de quem o produziu e a objetivação cumulativa das tantas gerações precedentes.

Qualquer objeto produzido em qualquer período da história humana carrega marcas humanas, como fruto da imaginação de quem o planejou, a qual é transferida para as futuras gerações. Essa produção justifica a compreensão da criação como “um processo de herança histórica em que cada forma que se sucede é determinada pelas anteriores” (VIGOTSKI, 2009, p. 42). Imaginar, produzir e objetivar-se perfazem o processo de criação do mundo humano.

Até então, referimo-nos ao trabalho como atividade humana, intencional, coletiva, a qual sustenta o desenvolvimento histórico e cultural da humanidade. Entretanto, situa-se também nessa história o lado negativo do trabalho - a alienação. Angel Pino (2006, p. 51) lembra-nos que Marx (1985) se referiu ao trabalho alienado como “obra e criação dos próprios homens, ou melhor, daqueles que detêm historicamente o poder de decidir as estruturas de relação das sociedades”. Essa negatividade não é inerente ao trabalho, mas a uma condição histórica. Isso significa dizer que, nas próprias condições históricas e materiais, são gestadas tanto a alienação como as condições para sua superação. Pino (2006, p. 51) diz que é a visão dialética, legada por Marx, que nos possibilita enxergar essa reversibilidade, a de que há “por trás do lado negativo dos acontecimentos históricos o lado positivo que nele se oculta [...] como um acontecer dinâmico, e não como um acontecimento estático previamente determinado”. Enxergamos, na face oculta do trabalho alienante, o trabalho como atividade humana - o trabalho criador.

O trabalho docente está inserido nessa dimensão dialética, sem eximi-lo nem da condição de atividade humana criadora e nem da condição de trabalho histórica e culturalmente alienado. Por um lado, admitimos o seu potencial como “trabalho de ensinar”, como é denominado por Smolka (2021, p. 7), movimentado por um campo de relações mediadas, estabelecidas com e para pessoas, portanto de caráter interpessoal e, como tal, realizado numa relação de aproximação à qualidade da atividade humana, ou práxis.

Por outro lado, reconhecemos, na dinâmica social e econômica da atual sociedade, a ausência de políticas públicas favoráveis à viabilização de uma educação sistêmica e respeitada à altura de sua importância social. Consideramos a constante iminência da dicotomia concepção e execução, tão premente nas tensões “entre as intenções e as possibilidades de atuação dos sujeitos/professores e aquilo que, sendo resultante das relações sociais historicamente estabelecidas, se (inter)põe - se impõe e ao mesmo tempo se oculta” (SMOLKA, 2021, p. 12). A essência dessa discussão não é senão a dissociação entre teoria e prática, traduzida na “vivência desse trabalho pelas professoras”, evidenciando, conforme Smolka (2021, p. 10), “as dificuldades, as desigualdades, as contradições, apontando para a realização do trabalho pelo avesso”.

A possibilidade de se realizar esse “trabalho pelo avesso” anima-nos a persistir na defesa da docência como um campo de potencialidades que ora esconde as condições históricas de criação/alienação, ora escancara uma e/ou outra, compondo, assim, a sua tessitura diária, em seu afã de ocupar os espaços escolares, particularmente a sala de aula, como lugares de práticas sociais, por conseguinte, como lugares de produção de significações.

A IMAGINAÇÃO COMO UMA ATIVIDADE COMPLEXA - PILAR DA ATIVIDADE CRIADORA

Com base em Vigotski (1998; 2009), assumimos a imaginação não apenas como uma função psíquica, dentre outras, mas também como uma atividade complexa, a considerar o seu caráter interfuncional. Vigotski (1998, p. 127) fala da possibilidade de elevar a imaginação à condição de “sistema psicológico”, por considerá-la como a “união real de várias funções em suas peculiares relações”. Nessa mesma obra, o autor ressalta a interfuncionalidade entre imaginação e linguagem, ao dizer que

A linguagem libera a criança das impressões imediatas sobre o objeto, oferece-lhe a possibilidade de representar para si mesma algum objeto que não tenha visto e pensar nele. Com a ajuda da linguagem, a criança obtém a possibilidade de se libertar do poder das impressões imediatas, extrapolando seus limites. A criança pode expressar com palavras também aquilo que não coincide com a combinação exata de objetos reais ou das correspondentes ideias. Isso lhe dá a possibilidade de se desenvolver com extraordinária liberdade na esfera das impressões designadas mediante palavras. (VIGOTSKI, 1998, p. 122).

Liberar-se da realidade para nela penetrar com mais profundidade: eis um movimento dialético imprescindível para os processos imaginativos, a considerar que uma “penetração mais profunda na realidade exige uma atitude mais livre da consciência para com os elementos dessa realidade” (VIGOTSKI, 1998, p. 129). A criação do novo, a partir do já existente, requer a liberação do imediatamente percebido e apreendido, requer que o pensamento extrapole os limites da realidade circundante, mobilizando novas imagens, novas palavras, criadas por meio de novas conexões.

Vigotski (1998, p. 122-123) refere-se também aos enlaces entre imaginação e formação de conceitos no início da idade de transição (adolescência), cuja importância é extraordinária no desenvolvimento “das mais diversas, das mais complexas combinações, conexões e relações”, ou seja, “não só o aparecimento em si da linguagem, mas os momentos cruciais mais importantes do desenvolvimento são ao mesmo tempo momentos cruciais no desenvolvimento da imaginação infantil”.

Com base nesses pressupostos, Cruz (2011, p. 103) estabelece relações entre imaginação, linguagem e cognição e conclui que conceber a imaginação em tal grau de complexidade potencializa estudos sobre processos de significação e, desse modo, converge para a possibilidade de situá-la em um especial lugar nas “práticas sociais e educativas”. Essas relações são estabelecidas por Barbosa e Batista (2018, p. 49), ao discutirem sobre criatividade no ensino de conhecimentos físicos, no Ensino Médio. Análises de respostas de estudantes levaram os autores a concluir que “a expressão criativa dos estudantes resulta da combinação de ao menos duas funções mentais, a imaginação e o pensamento em conceitos”. Vigotski (2009, p. 14) enfatiza que a imaginação

[...] manifesta-se, sem dúvida, em todos os campos da vida cultural, tornando também possível a criação artística, científica e a técnica. Nesse sentido, necessariamente, tudo o que nos cerca foi feito pelas mãos do homem, todo o mundo da cultura, diferentemente do mundo da natureza, tudo isso é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia.

Segundo esse autor, na esfera do comportamento humano, há duas formas de atividade: a reconstituidora, ou reprodutiva, e a criadora, ou combinatória. A primeira estabelece estreita ligação com a memória, pois consiste essencialmente em repetir condutas anteriormente criadas e reviver situações antes já vividas, em suas palavras: “[...] quando elaboro desenhos de observação, quando escrevo ou faço algo seguindo determinado modelo, reproduzo somente o que existe diante de mim ou o que assimilei e elaborei antes” (VIGOTSKI, 2009, p. 12). A plasticidade do cérebro humano constitui a base orgânica dessa atividade, a explicar por que certas experiências ficam marcadas ou conservadas em nossa memória, das quais lançamos mão para nos adaptarmos a novas situações e resolvermos problemas, cujas soluções requerem a reprodução de experiências antes vividas e de procedimentos adotados anteriormente. Embora importante, a atividade reprodutiva não responde por todas as necessidades humanas, pois, se os seres humanos se limitassem apenas a reproduzir experiências passadas e conservadas na memória, viveriam voltados para o passado, apenas repetindo o já feito, sem nada criar.

Felizmente, as marcas dessa experiência no cérebro não ficam estagnadas, mas são ressignificadas e ampliadas, tornando-se fonte para a realização de outra atividade, a criadora ou combinatória, “aquela que combina e reelabora, de forma criadora, elementos da experiência anterior, erigindo novas situações e novos comportamentos” (VIGOTSKI, 2009, p. 14). É exatamente a atividade criadora que nos liberta do passado e nos possibilita deslocar no tempo e no espaço, seja para um passado desconhecido, seja para uma projeção do futuro.

Vigotski (2009, p. 15-16) critica a ideia de que a criação está na vida de apenas algumas pessoas geniais e não de todas:

Reconhecemos de bom grado e prontamente a criação na atividade de Tolstoi, Edison e Darwin, porém é corriqueiro pensarmos que na vida de uma pessoa comum não haja criação. [...] a criação, na verdade, não existe apenas quando se criam grandes obras históricas, mas por toda parte em que o homem imagina, combina, modifica e cria algo novo, mesmo que esse novo se pareça a um grãozinho, se comparado às criações dos gênios.

Então, somos todos capazes de criar!? Ainda que levemos em consideração condições materiais e subjetivas favoráveis e desfavoráveis, bem como a maior ou menor amplitude e riqueza da atividade imaginativa ao longo do desenvolvimento, a “criação é o destino de todos” (VIGOTSKI, 2009, p. 16). Essa compreensão guarda em si a essência da igualdade social - demarca a perspectiva humanista sobre a construção de uma nova sociedade e sobre os rumos da psicologia e de suas investigações sobre o desenvolvimento humano -, a de que todos, sem exceção, devem ser vistos a partir de suas potencialidades. Como disse Gonçalves (2019, p. 79), essa perspectiva anunciada por Vigotski “acaba por contrapor e invalidar cientificamente qualquer teoria que tenha a pretensão de defender a existência dualizada e idealizada dos que são e dos que não são capazes de criar”.

Pequeno, Barros e Pederiva (2019, p. 210) afirmam que compreender a criação como um privilégio invalida “o caráter relacional da existência, em que a criação é um atributo do ser humano”, com consequências radicais para o âmbito educacional, pois, se “uma pessoa acredita que não cria, não pode acreditar que possui papel ativo e responsabilidade sobre algo que caracterize o surgimento do novo, que pode manifestar-se tanto externamente para o mundo, quanto internamente para si”.

O caráter de complexidade da imaginação e da atividade criadora a ela ligada é destacado por Vigotski (2009) ao enfatizar o seu processo psicológico, o modo como acontece e o seu caráter lento e gradativo. Como toda função mental superior, a imaginação desenvolve-se a partir “de formas mais elementares e simples para outras mais complexas” (VIGOTSKI, 2009, p. 19). A compreensão desse processo psicológico perpassa pelo esclarecimento sobre as quatro formas principais de relação entre imaginação e realidade.

A primeira forma demonstra a inexorável relação que há entre imaginação e realidade, uma vez que a realidade e a experiência anterior são fontes inesgotáveis de elementos alçados, combinados, modificados e reelaborados pelo mecanismo psicológico da imaginação, resultando na composição da obra imaginada. Isso implica considerar que há uma relação de dependência entre a atividade imaginativa/criadora e a quantidade e qualidade da experiência anterior, pois é essa experiência que se constitui fonte de materiais para construções da fantasia.

A segunda forma de relação da imaginação com a realidade, embora reafirme a existência da relação de dependência entre a imaginação e a experiência, configura-se como mais complexa, ao tratar de outras experiências qualitativamente diferentes - a experiência alheia ou de outrem e a experiência histórica. Vigotski (2004, p. 65) distingue ambas as experiências:

Toda nossa vida, o trabalho, o comportamento baseiam-se na utilização muito ampla da experiência das gerações anteriores, ou seja, de uma experiência que não se transmite de pais para filhos através do nascimento. Convencionamos chamá-la de experiência histórica.

Junto disso deve se situar a experiência social, a de outras pessoas [...]. Disponho não apenas das conexões que se fecharam em minha experiência particular [...], mas também das numerosas conexões que foram estabelecidas na experiência de outras pessoas.

A terceira forma de relação entre imaginação e realidade abrange a mútua relação entre imaginação e emoção, manifestada de duas maneiras: na influência dos sentimentos e do estado de ânimo da pessoa na seleção de imagens a serem combinadas em seu processo de imaginação; e na influência destas imagens na expressão daqueles sentimentos. Segundo Vigotski (2004a), a emoção compõe o sistema psicológico como uma função psíquica superior e, como tal, exerce o seu papel nas relações interfuncionais imanentes à atividade imaginativa, em suas dinâmicas formas de relações com a realidade.

A última forma de relação entre imaginação e realidade amplia a complexidade desse sistema por articular as três formas anteriores em um movimento que expressa o “círculo completo da criação”, traduzido este pelo conjunto de ações que compõem, por assim dizer, a “experiência duplicada” humana, como é explicitado por Vigotski (2004, p. 66):

No movimento das mãos e nas modificações do material, o trabalho repete o que já havia sido feito na mente do trabalhador, como modelos semelhantes aos mesmos movimentos ao mesmo material. [...] Conhecemos convencionalmente este novo comportamento como experiência duplicada.

Nesse círculo completo, a imaginação, inicialmente no plano mental, “precisa ser completada, realizada num artefato, numa obra; precisa tomar uma forma, tornar-se um produto que possa integrar, de maneira objetiva, a produção humana” (SMOLKA, 2009, p. 30). Esse novo artefato, material ou simbólico, logo começa a fazer parte da realidade, passa a exercer influência sobre todas as coisas desse mundo real, por ser dotado de “uma nova força ativa” (VIGOTSKI, 2009, p. 30) a modificar essa realidade.

No “círculo completo da atividade criativa da imaginação”, evidenciam-se as diversas funções que se inter-relacionam, seja o pensamento realizado nas palavras, seja a emoção emanada nos afetos e efeitos emocionais despertados pela estética da criação, seja na atenção mediada e nos implícitos fatores intelectuais e emocionais que perfizeram a produção imaginária de seu(s) autor(es), desde sua(s) percepções e combinações de imagens até retornar à realidade, ao tomar forma em um artefato real.

Vigotski (2009, p. 35) complexifica a atividade imaginativa ao se referir à sua “história intensa” e ao dizer que o ato criativo “costuma ser apenas o ato catastrófico que ocorre como resultado de um longo período de gestação e desenvolvimento do feto”.

A atividade imaginativa está condicionada à realidade, a determinadas condições concretas, nas quais gestam necessidades, desafios, anseios e desejos que impelem o processo imaginativo e criador. Em sua base, há uma força motriz que, por alguma razão, nos inquieta e nos mobiliza; por trás de todo ato criador há intenções implícitas e explícitas que criam essa força motriz, que promove a busca das condições imprescindíveis, capazes de transformar as necessidades e anseios no próprio movimento psicológico da imaginação.

Como em um círculo completo, o processo circunscrito pela imaginação e criação tem seu início nas condições materiais e concretas da realidade e ganha corpo no processo de produção humana, realizando-se em algum produto físico ou conceitual, tal como Vigotski (2009, p. 58) enfatiza: “Qualquer construção que parta da realidade tende a fechar o círculo e encarnar-se na realidade”.

Com essa ressalva, pretende-se reafirmar o postulado de Vigotski (2009; 2018; 2021) em sua coerência com o materialismo histórico e dialético - a natureza social da formação das funções psíquicas superiores, resultantes da conversão das práticas sociais em culturais. Em suma, não há imaginação e criação que não sejam frutos de processos sociais, culturais e históricos.

PRINCÍPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS: APROXIMAÇÕES COM O MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO

Para o estudo dos processos imaginativos e criadores na atividade docente, aproximamo-nos dos três princípios metodológicos propostos por Vigotski (2021, p. 129): (1) substituição da “análise dos fatos pela análise de processos”, cujo “problema básico a ser considerado torna-se naturalmente a restauração genética de todas as ocorrências no desenvolvimento de determinado processo”; (2) oposição entre “os problemas descritivos e explicativos da análise”, para que se cumpra o desafio de “revelar especificamente as verdadeiras relações e conexões dinâmico-causais que são a base de qualquer fenômeno”; (3) necessidade de estudar historicamente um fenômeno desde sua gênese, apreendendo-o em movimento, em pleno processo de mudanças.

Em coerência com esses princípios, enfrentamos o desafio de conceber os processos imaginativos e criadores não como fatos isolados, mas como processos inseridos na dinâmica das relações constituintes da docência e nesta constituídas. Ainda que nos refiramos ao ato criador como um fato, tornou-se necessário tomá-lo em seu movimento de produção e de imaginação criadora. Para tanto, algumas questões inspiraram-nos: qual a gênese de determinados processos imaginativos e criadores?; quais seus elementos históricos e processuais?; desses processos, o que de fato é perceptível e apreensível para ser tomado como ponto de partida?; e como superar o imediatamente aparente para que possamos nos aproximar da essência do fenômeno, de modo a “capturar sua lógica interna de funcionamento que corresponde à estrutura e à dinâmica essencial”? (MARTINS; LAVOURA, 2018, p. 226). Eis a complexidade desta atividade científica.

Outro desafio metodológico encontra-se na análise por unidades, defendida por Vigotski (2009a), em contraposição ao método de decomposição da totalidade em elementos isolados, proposto pela psicologia tradicional. Mas, o que Vigotski (2009a, p. 8) e seus interlocutores definem por unidade?

Subentendemos por unidade um produto da análise que, diferente dos elementos, possui todas as propriedades que são inerentes ao todo e, concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa unidade. [...] a célula viva, que conserva todas as propriedades fundamentais da vida, próprias do organismo vivo, é a verdadeira unidade da análise biológica.

No esforço metodológico e analítico empreendido no presente processo investigativo, propomos a atividade criadora coletiva como unidade de análise - a menor parte que possui as características da totalidade das relações estabelecidas entre as professoras em análise, em seus processos imaginativos e criadores. Como unidade, a atividade criadora coletiva contempla, de modo irredutível e indecomponível, as relações entre a atividade de cada professora e as suas experiências pessoais e profissionais, alheias (dos outros) e históricas, além dos enlaces emocionais. Atentamo-nos não para processos imaginativos e criadores de uma ou de outra professora, mas para a dinâmica imanente às inúmeras relações semióticas das quais resultam a produção coletiva.

Definir a atividade criadora coletiva como unidade de análise não foi uma tarefa trivial. Inicialmente, problematizamos a possibilidade de se tomar como unidades a imaginação mediada e, depois, a atividade imaginativa. Todavia, apesar de não desconsiderarmos a natureza e o caráter social da atividade individual, chegamos à conclusão de que a atividade criadora coletiva encarna em si a tessitura e a reelaboração dos inúmeros fios/signos compartilhados por cada pessoa envolvida no processo. O movimento criado entre as professoras, além de sustentar a tessitura individual, possibilitou o entrelaçamento desses fios, isto é, das peculiares relações próprias da atividade criadora coletiva, numa dinâmica indecomponível.

Enfim, a essência da atividade criadora coletiva está condensada no núcleo da pergunta que orientou esta pesquisa: na abrangência da atividade docente de professoras dos anos iniciais, o que evidencia seus processos imaginativos e criadores?

AS CONDIÇÕES CONCRETAS DE REALIZAÇÃO DA ATIVIDADE DOCENTE E DAS AÇÕES COLABORATIVAS DO PROJETO DE PARCERIA UNIVERSIDADE E ESCOLA

A investigação, base deste trabalho, foi vinculada a um projeto de parceria colaborativa entre uma escola pública, que atende os anos iniciais de escolarização, e duas universidades públicas (Universidade de São Paulo e Universidade Federal de São Paulo), cuja intenção foi buscar melhorias para o ensino nessas três instituições, a partir da atuação nas formações inicial e continuada de professores, das relações de ensino em ciências e matemática e da gestão democrática.

Ao longo dos três anos de vigência do projeto (2019-2022), as ações foram centradas na e com a escola, mediadas por vivências colaborativas e pelo acompanhamento contínuo das práticas pedagógicas, tanto no período presencial como no remoto (pandemia Covid-19). As ações dos pesquisadores foram voltadas, prioritariamente, para os ensinos de ciências e matemática, áreas de formação dos cursos de licenciatura de ambas as universidades.

Os ensinos de ciências e de matemática, em um contexto geral, mais especificamente na rede de ensino na qual se insere a escola parceira, acontecem em condições distintas. Constata-se a quase ausência de orientações e de incentivo para a realização do ensino de ciências, diferentemente do ensino nas áreas de português e matemática, marcado pelo controle e pela intensa cobrança para que estas disciplinas sejam desenvolvidas de acordo com o que está prescrito no material didático fornecido pela Secretaria de Educação.

Com o estreitamento dos laços de colaboração, fomos tomando consciência do lugar que o ensino de ciências ocupava nas práticas pedagógicas daquela escola, não apenas em relação aos processos de alfabetização na língua materna mas também sobre o seu desprestígio em relação aos ensinos de matemática e de português. Havia sempre uma indagação que mobilizava o coletivo: como articular a alfabetização na língua materna com as demais áreas?; como tornar o ensino, nas variadas áreas, um instrumento com potencial para mobilizar e subsidiar os processos de alfabetização e de produção de significados?. Essas questões levaram à constituição de processos colaborativos que privilegiavam o planejamento e a realização de atividades de ensino integradoras - as áreas do conhecimento eram articuladas a partir de um determinado eixo temático ou de uma situação desencadeadora, com conteúdo de uma determinada área.

Os fóruns de estudos e reflexões, realizados periodicamente na escola e em uma das universidades, constituíram-se lugares de encontro e de partilha de conhecimentos e de experiências. Destaca-se o detido estudo do conteúdo dos materiais didáticos, coordenado pelas professoras da escola, o qual nos possibilitou compreender a contradição que imperava na atuação docente: seguir cegamente esses materiais, ou tomá-los como apoio didático e criar a partir de seus conteúdos. Em todo o percurso dos fóruns, a queixa mais ouvida foi a da dificuldade em romper com o limite que esses materiais impunham e impõem ao planejamento das ações didáticas. Nessas condições concretas, a impressão de marcas de autoria/criação configurou-se uma arena incessante de lutas.

A despeito dessas condições impostas ao trabalho docente, muitas atividades de ensino integradoras foram planejadas e desenvolvidas em colaboração com parceiros das universidades. Para análise, neste trabalho, selecionamos a atividade intitulada “A chegada do esqueleto na escola”, criada para recepcionar um modelo anatômico de um esqueleto humano, adquirido com a verba da agência de fomento, à qual o projeto de parceria estava vinculado.

Essa escolha justifica-se por mostrar um evento que envolveu todos os sujeitos da escola e por concentrar inúmeras ações concebidas pelo coletivo docente, o que significa dizer que todas as professoras da escola são interlocutoras desta pesquisa. Esse evento, registrado em conversas, vídeos e imagens enviados pelas professoras, por meio da plataforma WhatsApp, ocorreu durante uma semana, no período de 21 a 25 de outubro de 2019, com ações no pátio da escola, que ocorreram concomitantemente às ações realizadas nas salas de aula, estendendo-se até o final do mês de novembro.

ORGANIZAÇÃO DA ANÁLISE: A EXPERIÊNCIA DUPLICADA DAS PROFESSORAS NA ATIVIDADE DE ENSINO “A CHEGADA DO ESQUELETO”

A análise, pretensamente interpretativa, processual e histórica, foi organizada a partir da articulação dos dois planos da “experiência duplicada” das professoras, em sua atividade criadora coletiva: o “Roteiro para a chegada do esqueleto” e sua realização junto às crianças. Eis sua estrutura: (1) Preâmbulo para a análise: o planejamento do evento - a chegada do esqueleto na escola; (2) A atividade criadora coletiva - o ato criativo ganha vida na alegria das crianças; (3) Sobre a atividade criadora coletiva. Para a análise do desenvolvimento da atividade criadora coletiva, organizamos esta em cenas, por representar recortes representativos do ato criativo em realização: Cena 1: um envelope gigante com uma carta do amigo secreto para as crianças; Cena 2: o amigo secreto despachou sua mala... “E cadê o nosso amigo? Ih, ele perdeu o trem!”; Cena 3: o amigo secreto envia uma mensagem via e-mail; Cena 4: “Chegou apenas um bilhetinho do nosso amigo secreto!”; Cena 5: “Cheguei!!!!! Leia a poesia que fiz para vocês e adivinhem quem sou eu!”. Neste artigo, analisamos apenas as cenas 1 e 5, escolhidas por conterem, com riqueza de informações, elementos representativos dos processos imaginários das professoras.

Essa análise foi cotejada com depoimentos contidos em reuniões gravadas em vídeo: Encontro_ATPC (Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo) (19/11/2019), e com uma conversa com duas das professoras (01/11/2021). Para preservar suas identidades, as professoras citadas no corpo da análise receberam nomes fictícios.

PREÂMBULO PARA A ANÁLISE: O PLANEJAMENTO DA ATIVIDADE DE ENSINO “A CHEGADA DO ESQUELETO NA ESCOLA”

Com a aquisição do modelo anatômico do esqueleto, as professoras decidiram promover um evento para recebê-lo. A professora Ane fez o seguinte relato, em uma das reuniões do projeto na escola (ATPC - 19/11/2019):

Eu [profa. Ane] e Iraí ficamos de planejar as ações de recepção junto com os professores dos dois períodos; Iraí rascunhou os tópicos junto com a profa. Mira [...]; Mira, a partir da ideia inicial, elaborou o roteiro, explorando elementos do personagem misterioso que chegaria na escola, com o desejo de conhecer os alunos; criou-se um clima de suspense por meio de pistas e tarefas a serem cumpridas pelas turmas ao longo da semana, a fim de despertar desejos, mexer com emoções dos alunos; a coordenadora Tetê, prontamente, se envolveu no preparo dos recursos e ficou com a função de, todos os dias, trazer as pistas e tarefas para os alunos; as professoras dos dois períodos ficaram de registrar, por meio de fotografias, vídeos, e complementar as ações em salas de aula, leitura, exibição de vídeo e discussões.

O movimento descrito pela professora Ane já nos dá pistas para a análise da atividade criadora - a natureza coletiva da criação e suas variadas intenções. A professora fala em nome do coletivo. As professoras estavam mobilizadas pela vontade de construir um evento, não apenas grande mas também imbuído de surpresa, mistério, desejo e fortes emoções. Isso já nos fala da capacidade imaginativa das professoras, dos inúmeros signos mobilizados para cada ato de linguagem interior e de pensamento, materializados, a princípio, na linguagem escrita, no “Roteiro para a chegada do esqueleto”. Nesse roteiro, consta o plano de ação e de divisão de trabalho em detalhes - uma ação didática para cada dia da semana, cuja base de comunicação e de mediatização era um determinado gênero de escrita (carta, bilhete, e-mail e poema). A coordenadora incorporou o papel de porta-voz do “amigo secreto”, ao apresentar e animar, ao atribuir vida e movimento às atividades imaginativa e de criação do coletivo, do qual ela fazia parte. Essas ações didáticas ganham mais vida ao serem ressignificadas pelas crianças. Vamos acompanhar as cenas e conversar sobre seus conteúdos.

A ANÁLISE DA ATIVIDADE CRIADORA COLETIVA: O ATO CRIATIVO GANHA VIDA NA ALEGRIA DAS CRIANÇAS

Cena 1: Um envelope gigante com uma carta do amigo secreto escrita em um pergaminho

No primeiro dia, as crianças, ao chegarem no pátio, onde acontecia o recreio e as refeições, foram surpreendidas com um envelope gigante afixado no alto de uma das colunas do recinto (Figura 1). As crianças, antes de se sentarem no chão do pátio, ficaram em torno do envelope, tentando ler o que nele estava escrito. Algumas crianças leram em voz alta e informaram às demais que a carta estava endereçada “Aos alunos da escola...”, tal como estava escrito na frente do envelope, no campo destinatário; e, no verso, havia o nome do remetente: “Amigo secreto”. Além disso, notaram que, no alto do envelope, no canto direito, havia uma grande interrogação.

Fonte: Banco de dados do Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola.

Figura 1 Envelope gigante 

O envelope simboliza a experiência humana cultivada pela necessidade de se comunicar por meio de cartas nele guardadas e veiculadas. Essa cultura nos diz que há um padrão de escrita a ser seguido para o preenchimento do envelope - na frente, o destinatário e, no verso, o remetente. Ainda mais, não se trata de um envelope qualquer, tendo em vista os padrões de formato e de cores: verde e amarelo, tal qual aquele da empresa dos Correios no Brasil. As professoras pensaram em outro detalhe: o referido envelope está com selo, o que não pode faltar no endereçamento de uma carta. O que as professoras queriam nos dizer com mais este elemento de sua criação? Primeiro, que, na experiência humana, o selo representa não apenas o valor a ser pago pelo envio da correspondência mas também a impressão de uma marca no canto direito do envelope. Segundo e mais importante, a marca impressa pelas professoras - o selo criado por elas - é o símbolo da interrogação (?), o que nos leva a imaginar e a interrogar; mas esse símbolo tem em si encarnada qual imaginação? Supomos que seja representativo de elementos alçados de suas experiências pessoais e da experiência social inscrita no sistema de signos da língua culta.

A interrogação é o símbolo da curiosidade, seja ela espontânea ou epistêmica (FREIRE, 2001); é o símbolo do questionamento e da busca por respostas - caminho por excelência que conduz, a um só tempo, à produção científica no âmbito da história humana e à produção de significações na esfera das práticas didáticas. Esse símbolo pode conter suas intenções de incentivar a imaginação, de constituir um lugar para essa função psíquica na escola, pois, como diz Cruz (2011, p. 103), em nossas escolas, não há lugar para a imaginação, e, sem lugar, esta “acaba contida, disciplinada, o que talvez produza, entre outras coisas, saberes (saberes?) que passam ao largo das motivações, desejos e necessidades das crianças”.

E o tamanho do envelope? Será a “paixão” pelo exagero, da qual nos fala Vigotski? Esse autor nos diz que a paixão pelo exagero, característico da imaginação da criança, mas também do adulto, guarda “fundamentos internos muito profundos, que, em parte, consistem na influência que o nosso sentimento interno tem sobre expressões externas” (VIGOTSKI, 2009, p. 37). As professoras, em seus processos combinatórios, alçaram a imagem real do envelope, nas suas dimensões naturais, e, sob a influência de fatores internos, distorceram essas dimensões e as reelaboraram em novas dimensões, devolvendo o envelope para a realidade, em um tamanho gigante. Confeccionaram o novo envelope com suas próprias mãos, tal qual o imaginaram mentalmente. Algum sentimento interno levou as docentes ao exagero, pois “exageramos porque queremos ver as coisas de forma exacerbada porque isso corresponde à nossa necessidade, ao nosso estado interno” (VIGOTSKI, 2009, p. 37).

Nesta cena, temos também a carta. A carta, além de ser um gênero de escrita, um conteúdo curricular, é também um modo de se comunicar com alguém, de dizer algo a alguém, de transmitir notícias, experiência que perfaz a história humana e a história de vida dessas professoras. A imagem da carta pode ter sido haurida pelo impulso de algum sentimento, o qual pode ter suscitado da memória alguma experiência marcante, alguma emoção advinda de uma boa ou de uma má notícia comunicada por meio de uma carta. Não podemos esquecer da mútua influência que há entre imaginação e emoção.

Bem, vamos, então, abrir o envelope e retirar a carta! Qual a nossa surpresa? Em vez de encontrarmos uma carta escrita em um papel branco, lá estava um enorme rolo de papel pardo, melhor dizendo, um “pergaminho”, denominação dada pelas professoras ao objeto, um suporte de materialização da linguagem escrita, por meio da qual o amigo secreto se comunicou com as crianças. Ao confeccionar esse suporte de escrita, as professoras procuraram produzi-lo a partir de um modelo imaginado, retirado da experiência histórica da humanidade, mais precisamente da história do papel, e de suas experiências pessoais, por sua vez resultante de suas incorporações culturais, advindas da experiência social ou alheia.

Como as professoras souberam da existência do pergaminho, se nunca o manipularam? Como sua imagem saltou às suas memórias a ponto de ser escolhida para compor o movimento coletivo de imaginação criadora? Não há outro lócus de respostas senão o da experiência anterior de cada uma delas, por sua vez advinda das experiências alheia e histórica. A experiência anterior e a experiência alheia possibilitaram-nas acessar a experiência histórica, registrada e conservada nos livros ou em outro suporte. Mais que isso, foram suas capacidades imaginativas, mediadas por suas próprias experiências e pelas de outrem e pela experiência histórica que transcenderam um passado muito distante e não vivido por elas, para daí não apenas imaginar um objeto novo a partir de um existente mas também para torná-lo real, atribuindo-lhe um papel a cumprir no corpo de uma ação didática. O pergaminho, produzido pelas professoras, agora faz parte da cultura daquela escola, agora é um objeto de sua história.

O novo pergaminho, portanto, tem em si cristalizado não apenas os processos imaginativos das professoras, suas combinações e recombinações dos materiais apreendidos da realidade, mas também processos imaginativos e conhecimentos cumulativos de todos aqueles que, mobilizados pela necessidade de criar um suporte para registrar e conservar seus pensamentos e memórias, perceberam no couro de jovens animais a matéria prima e o seu processo de transformação em um suporte de escrita; tem em si generalizadas tanto a imagem histórica desse novo objeto quanto a força cumulativa de homens e mulheres que labutaram e sofreram na produção dos antigos pergaminhos, sem esquecer do sacrifício dos animais e do ato de sacrificá-los. Afinal, o pergaminho faz parte do nosso imaginário, o qual deve ser lembrado como um objeto que compõe a memória da história humana e, sobretudo, como um produto oriundo do trabalho humano, o qual tem em si engendrada a força corpórea daqueles e daquelas que o produziram e o produzem (MARX, 1985).

à Continuação da Cena 1 - A leitura da carta do “amigo secreto”

Finalmente, vamos acompanhar a cena desenvolvida no pátio, entre a coordenadora pedagógica (CP) Tetê e as crianças. Como vemos na imagem (Figura 2), a coordenadora está sobre um palco improvisado, com o “pergaminho” em uma das mãos. As crianças, acomodadas no chão, estão prontas para ouvir o que a CP tem a lhes dizer.

Fonte: Banco de dados do Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola.

Figura 2 A leitura da carta 

Eis o diálogo entre a CP e as crianças:

CP: “Bom dia, crianças! Nós receberemos a visita de um amigo aqui na escola … vocês viram um envelope pendurado? Pois é, o nosso amigo entrou na onda da correspondência e mandou uma cartinha para a gente! Só que ele escreveu a carta em um pergaminho [mostra o rolo em uma de suas mãos].”

Criança: “O que é pergaminho?”

CP: “Pergaminho era uma carta escrita num rolo. Olha como ele é grande! Vamos lá [ela abre o pergaminho, desenrolando-o sobre as crianças. Ouve-se muitas risadas].”

CP: “Nossa, enorme. Estava inspirado, hein!”

CP: “Vamos lá: ‘Queridos alunos, estou ansioso para conhecer vocês. Estou cheio de novidades, maluquinho para dividir tudinho com vocês. Meus ossos chegam a tremer de tanta emoção só de pensar que logo nos encontraremos. Mas, preciso da ajuda de vocês. Em toda escola que eu visito, ganho um nome carinhoso, bem bonito e bem legal. Preciso que vocês escolham um nome para mim. Converse com seu professor, coordenador, diretor e comece a pensar. Pensem em um nome bem divertido’.”

A CP interrompe a leitura do pergaminho e pergunta:

CP: “Será que ele é engraçado? Será que é um palhaço? Ele quer um nome divertido. Será que é um palhaço? Aiaiai... [as crianças gritam eufóricas]. Ih, olha o que aconteceu? [pausa]: ‘Mas perdi o trem’ [aumenta o tom da voz e fala com pesar].”

Crianças: “Ahhhhhh... [elas falam em coro]”

CP: “Coitado, perdeu o trem [ouve-se muitos risos e gritos das crianças]. [Continua lendo:] ‘eu vou me atrasar um pouquinho e não vou conseguir me apresentar como queria, mas, para facilitar o trabalho de vocês com a escolha do meu nome, vou propor enigmas sobre mim’.”

CP: “O que é enigma, gente?”

Crianças: “Charadinhas.”

CP: “Charadinhas, né? - ‘Durante toda a semana, irei deixar pistas de como eu sou. Quero ver quem é bom de adivinhar. Fiquem bem, divirtam-se, e até mais. Assinado: Amigo secreto’.”

CP: “Quem será que é esse amigo secreto, hein? Olha, então a gente vai esperar as pistas que ele vai mandar pra gente, durante toda a semana, escolher um nome pra ele e tentar descobrir quem é esse amigo secreto. Combinado?”

Crianças: “Siiimmmm...”

O conteúdo da carta, outro ato imaginativo e criador das professoras, ganha vida ao ser interpretado pela coordenadora, em sua comunicação com as crianças. Em paráfrase a Vigotski (2009), pensamento e imaginação marcharam juntos na atividade imaginativa e criadora de cada professora e, juntos, foram realizados na linguagem escrita que nos transmitiu o enredo, criado coletivamente. Como dito por Vigotski (2009a, p. 409), o “pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza”. Os elementos alçados nos processos imaginativos dessas docentes foram combinados e recombinados por seus atos de pensamento, o que significa dizer que pensamento é ação, é movimento e, como tal, é um ato de produção:

Todo pensamento procura unificar alguma coisa, estabelecer uma relação entre coisas. Todo pensamento tem um movimento, um fluxo, um desdobramento, em suma, o pensamento cumpre alguma função, executa algum trabalho, resolve alguma tarefa. Esse fluxo de pensamento se realiza como movimento interno, através de uma série de planos, como uma transição do pensamento para a palavra e da palavra para o pensamento. (VIGOTSKI, 2009a, p. 409-410).

Nesta cena, a linguagem escrita e falada cumpre a sua função mediatizadora, ao nos dizer sobre o enredo da história criada para anunciar às crianças a chegada de um visitante: o amigo secreto comunica, por escrito, às crianças que está a caminho da escola, mas que perdeu o trem e, por isso, vai se atrasar, e que, durante o tempo de sua viagem, ele vai enviar enigmas para que elas, ao decifrá-los, vão reunindo pistas e, com estas, vão compondo, em seu imaginário, a personagem que chegará.

Outro aspecto em destaque é o do papel de porta-voz atribuído pelas professoras ao amigo secreto, como aquele que fala em nome de alguém. E realmente fala em nome do coletivo, traduzido na inter-relação entre o pensamento e a imaginação das professoras, cristalizada nos signos escritos na carta e naqueles signos que medeiam a conversa entre a coordenadora e as crianças.

Nem é preciso dizer que não há um elemento dessa história/enredo, dessa construção imaginativa, que não tenha sido haurido da experiência anterior das professoras, mobilizadas por elementos subjetivos oriundos de seus (bons) estados emocionais, os quais, além de se combinarem entre si, se combinaram com o estado emocional da coordenadora, aparente em seus gracejos, durante a leitura dramatizada da carta. Aliás, a emoção enlaça as palavras escritas das professoras, que é refletida na entonação de voz da coordenadora. Podemos dizer que a linguagem não realiza o pensamento por si só, mas traz à tona a emoção contida nele, pois “a atividade de pensar é precisamente colorida pela emoção e mesmo profundamente afetada” (CLOT, 2006, p. 26). Nessa perspectiva, identificamos traços da inter-relação entre imaginação, emoção e pensamento em várias passagens da cena, tais como: na ansiedade do visitante pelo encontro com as crianças; no tremor de emoção dos seus ossos; em sua tristeza pela perda do trem; em seu desejo de ter um nome “carinhoso, bem bonito e bem legal”, escolhido pelas crianças; em estar “maluquinho” para contar suas novidades para a crianças; no clima de suspense e de mistério criado pelos enigmas, dentre outras.

Essa emoção colore intensamente o pensamento realizado na voz da coordenadora, em sua leitura dramatizada, ao incorporar elementos da atividade criadora das professoras e deles se apropriar para compor a sua atividade imaginativa, realizada, sobretudo, ao imprimir alegria não apenas na interpretação das palavras das professoras mas principalmente na daquelas criadas por si própria. Além disso, durante a leitura, de modo humorístico, a CP convida as crianças para a euforia e para o riso fácil: “Ele quer um nome divertido. Será que é um palhaço? Aiaiai...”. O convite ao riso sobressaiu principalmente quando ela deu ênfase nas expressões “Aiaiai” e “coitado, perdeu o trem”. Na primeira vez que ela diz: “Mas perdi o trem”, a sua entonação gerou sentimento de pesar, transmitido pelas crianças, ao expressarem, em coro, um “Ahhhhhhh...”. O riso coletivo foi despertado com mais força quando a coordenadora, em tom zombeteiro, tingiu com emoção a expressão “coitado, perdeu o trem”. Naquele momento, não houve quem não caísse na gargalhada, estimulada tanto pela entonação da expressão quanto pela resposta das crianças. O riso estava fácil para todos os presentes. Mas a coordenadora não perdeu a sua concentração e retomou imediatamente a leitura da carta, para falar dos enigmas que seriam enviados diariamente pelo amigo secreto.

Outro momento hilário foi quando a coordenadora desenrolou o pergaminho gigante sobre as crianças: após o susto, o riso. Será que esse desenrolar do pergaminho quis ressaltar o tamanho exacerbado típico de processos imaginativos, tal qual foi comentado acima? Será que foi tudo combinado entre professoras e coordenadora? Será que, em seus processos imaginativos e criadores, elas pensaram da seguinte maneira: “vamos fazer um pergaminho gigante se desenrolar sobre as cabeças das crianças, não apenas porque na imaginação infantil há ‘paixão pelo exagero’ mas também porque queremos chamar a atenção delas, mexer com as emoções, fazê-las sorrir...?” É bem possível! Parece que o trabalho colaborativo entre as professoras incita estas a ponto de levá-las a pensar e imaginar os mínimos detalhes e seus efeitos nas crianças. A colaboração entre elas, além de possibilitar a heterogeneidade nas relações interpessoais, possibilita a combinação das singularidades inerentes à experiência anterior de cada uma, mobilizando-as a combinar os elementos vividos com os novos, atribuindo vida ao novo, ainda que este novo seja uma imagem transposta do passado, como é o caso do objeto histórico “pergaminho”.

E as “charadinhas”, como dizem as crianças, qual a essência desse elemento na atividade criadora das professoras? O que ele simboliza? Será que expressa o mesmo que a representação simbólica da pergunta impressa no envelope? Para esta última questão, podemos dizer que sim, por suposto. Os enigmas são os responsáveis pela realização do objetivo docente relativo à construção de um “clima de suspense, de mistério”. Contudo, é consenso entre muitos estudos sobre a imaginação, apoiados em Vigotski, que a fundamental importância dessa função psíquica no desenvolvimento infantil tem sido relegada no processo de escolarização (CRUZ, 2011; MENDONÇA, 2018; dentre outros). Desse modo, é bastante animador interpretar que uma das intenções das professoras, com a atividade criadora coletiva, é a de promover situações que ativem a imaginação das crianças. Os enigmas estão na sutileza das palavras, como o que está na carta: “Meus ossos chegam a tremer de tanta emoção só de pensar que logo nos encontraremos”. Esse enigma informa às crianças que o amigo secreto, além de ter ossos, é capaz de se emocionar, de pensar e de ter ansiedade, ainda que a principal dica seja “Meus ossos”.

Prosseguiu-se por mais quatro dias de atividades no pátio da escola, todas orientadas por um determinado enredo, transmitido por um gênero de escrita (carta, bilhete, mensagem via e-mail, e um poema). No segundo dia, as crianças encontraram uma mala com um bilhete, informando que o amigo secreto, embora tivesse perdido o trem, havia conseguido despachar a sua mala. O bilhete transmitia também o enigma do dia, implícito na música Vem dançar com a gente, do grupo Palavra Cantada. As crianças cantaram e dançaram ao som da música projetada em um telão. No terceiro dia, a mensagem chegou via e-mail, com mais dicas, e, junto, um conto de Ricardo Azevedo, intitulado Se eu fosse esqueleto. No quarto dia, chegou um bilhete com “beijos gelados”, com a indicação do filme Viva - a vida é uma festa e com a tarefa de escrever um bilhete para um colega, dizendo o que esperava do amigo secreto. No quinto dia, foi a chegada do esqueleto.

à Cena 5: Cheguei!!! Leia o poema que eu fiz para vocês e adivinhem quem sou eu!

O pátio da escola estava em festa! Em clima de euforia, as crianças gritavam agitadas. A coordenadora pediu silêncio, leu um verso do poema e prosseguiu:

CP: “Já descobriram quem sou?”

Crianças: “Nãooo...”

A Coordenadora continua a leitura:

CP: “Não precisa ter medo!

No fundo sou todo mundo e todo mundo sou eu.

Tenho muito que ensinar e muitas viagens para preparar.

No mundo das Ciências nós vamos nos encontrar!

Quem vem comigo?

Pode até parecer estranho, um esqueleto para guiar,

mas para quem não tem medo de perguntar já pode começar!”

Fonte: Banco de dados do Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola.

Figura 3 A chegada do esqueleto 

Quando a coordenadora aparece com o esqueleto enrolado num tipo de tecido azul marinho de nome TNT (Tecido Não Tecido), as crianças ficam muito eufóricas. Elas gritam ainda mais, enquanto o tecido vai sendo retirado e desvelado o esqueleto. Quando as crianças se acalmam, a coordenadora diz: “Agora que vocês já conhecem o nosso amigo secreto, não se esqueçam de escolher um nome para ele, hein! Lá na sala de aula, vocês vão pensar em um nome pra ele. A gente não sabe se é menina ou menino”, nesse momento, uma criança grita: “menino”.

Nesta cena, estamos diante de mais elementos constituintes da criação coletiva, dessa vez realizada na linguagem em versos de um poema. Como se vê, há um misto de poesia com ação pedagógica, um misto de intenção de afetar a sensibilidade das crianças, de modo a transcender “a pura materialidade das coisas” (PINO, 2006, p. 68). Os elementos sensíveis são aqueles enlaçados pelos aspectos emocionais que foram transpostos do imaginário das professoras para o imaginário das crianças, talvez despertados pela possibilidade do medo: “não precisa ter medo”. Assim, ficam os seguintes questionamentos: na imaginação das professoras, qual elemento deu origem à produção do sentimento do medo?; do que as crianças teriam medo: da caveira, do fantasma?. Talvez, pois se costuma atribuir à caveira e ao fantasma, associados ao esqueleto, a simbologia desse sentimento, que é produzido culturalmente e incorporado pelas crianças (e adultos também) a partir de suas vivências culturais, ao assistirem filmes e/ou ouvirem histórias “mal-assombradas”. A capacidade inerente à constituição cultural humana “de simbolizar, ou seja, de criar símbolos e significar as coisas” (PINO, 2006, p. 67) e de apoiar-se em significações pré-existentes e delas produzir novas perfaz a atividade imaginativa e criadora dessas professoras e das crianças também.

Para a criação do citado poema e de todas as demais ações da atividade criadora coletiva, ao que tudo indica, as professoras levaram em consideração as características peculiares da imaginação da criança em fase escolar, como, por exemplo, o seu “gosto por contos e histórias fantásticas”, além do “exagero e imprecisões e as alterações das experiências reais” (VIGOTSKI, 2009, p. 44), todas elas hauridas de seus conhecimentos e experiências profissionais. Tal como explicita Vigotski (2009, p. 44), a “infância é considerada a época em que a fantasia é mais desenvolvida”, o que não significa dizer que a criança seja capaz de imaginar mais do que um adulto e nem que sua imaginação seja mais rica, embora confie “mais nos produtos de sua imaginação” e o faça com mais liberdade. A capacidade imaginativa da criança desenvolve-se ao longo do processo de seu desenvolvimento geral, atingindo a sua maturidade na fase adulta. Esse amadurecimento está atrelado ao avanço da formação de suas funções psíquicas, igualmente fundamentais, como a percepção, a memória e, sobretudo, a linguagem.

Mas, os adultos têm fantasia? Sim!!! Tomamos a imaginação criadora das professoras como exemplo, cujos produtos advieram de suas fantasias amadurecidas. Essa fantasia, materializada nos versos do referido poema, diz-nos da natureza social e pessoal das combinações imaginativas das professoras, impregnadas, por exemplo, nos seguintes versos: “No fundo sou todo mundo e todo mundo sou eu”; “Tenho muito que ensinar e muitas viagens para preparar”; “No mundo das Ciências nós vamos nos encontrar!”. Reúne-se, nesses versos, a racionalidade de conhecimentos sobre o esqueleto, como sendo um conjunto de ossos que habita o corpo de todos os seres humanos, aprendidos ou ensinados por meio desse modelo anatômico em aulas de ciências. O primeiro verso, em particular, apresenta uma dimensão dialética entre a totalidade e a parte, entre o universal e o particular, ao inserir o esqueleto nessa relação entre a constituição vertebral de todos os seres humanos e a de um indivíduo. Esse caráter filosófico advém de seus aportes culturais e científicos, o que nos diz da complexidade de seus pensamentos e do quanto esses conhecimentos são uma rica fonte para seus processos imaginativos e criadores. Imaginação, percepção, pensamento e formação conceitual marcham juntos e realizam-se com e pela linguagem dos versos, seja escrita, falada ou gesticulada.

Embora pequeno e simples, o poema declamado guarda as especificidades da linguagem literária, diferentemente da linguagem em prosa que compôs o discurso da carta. Segundo Vigotski (2016, p. 336), o discurso comum da prosa não chama a atenção para o aspecto fonético como o faz o discurso do poema, seja pela disposição das palavras no poema, seja pela sua decomposição em versos, com ritmo e som próprios, além de despertar nossa atenção “uma tensão permanente diante dos elementos que aqui se manifestam pela primeira vez e estão inteiramente fora do discurso comum”. As professoras, ao optarem pelo discurso em versos, mostraram o grau de complexidade de suas percepções, tornando ainda mais complexa a atividade criadora coletiva - produto de suas imaginações.

Por fim, o amigo secreto convida as crianças à pergunta, à conversa, e relembra a sua vontade de ter um nome, uma identidade. Por meio de um pleito eleitoral, organizado pelas professoras, o amigo secreto ganha um nome: “Fox”. Apenas uma das salas escolheu um nome feminino, fato provavelmente explicado pelo uso do gênero masculino em todos os artigos e pronomes que se referiam ao modelo anatômico: o amigo secreto/dele/ele etc. É sabido da predominância do uso do “masculino genérico” na língua portuguesa, definido por Mader e Moura (2015, p. 33) como “o uso do gênero gramatical masculino para denotar ambos os gêneros (homens e mulheres)”.

Paralelamente às ações didáticas desenvolvidas no pátio da escola, outras ocorreram nas salas de aula. Cada ação criada por uma professora era compartilhada com outra, cumulando uma infinidade de atos criadores com conteúdo das diferentes áreas, com destaque para ciências e artes. Ao final, o modelo anatômico do esqueleto passou a ser um amigo das crianças, e elas passaram a cumprimentá-lo com abraços e tchauzinhos; ele passou a habitar as salas de aulas como um visitante querido e como conteúdo de jogos, pesquisas, escritas, dentre outras ações de estudo.

SOBRE A ATIVIDADE CRIADORA COLETIVA

Dada a dimensão alcançada pela atividade criadora coletiva explicitada, a considerar as condições concretas de realização da atividade docente apresentadas, cabe indagar: o que mobilizou as professoras para a criação desta atividade? Vigotski (2009) assevera que a criação surge quando estamos diante de uma situação nova, diante de desafios que nos impelem a criar algo novo para superá-los:

Se a vida ao seu redor não o coloca diante de desafios, se as suas reações comuns e hereditárias estão em equilíbrio com o mundo circundante, então não haverá base alguma para a emergência da criação. [...] Na base da criação há sempre uma inadaptação da qual surgem necessidades, anseios e desejos. (VIGOTSKI, 2009, p. 40).

A situação criada pelo Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola, com a aquisição do modelo anatômico do esqueleto e com a sugestão de realização de um grande evento para recepcioná-lo, pode ser um dos elementos provocadores da imaginação coletiva. Entretanto, ainda que essa situação tenha gestado necessidades e anseios, assumidos pelas professoras como desafios a serem superados, esses desafios, por si só, não respondem por todas as provocações. A imaginação das professoras foi posta em movimento, o que nos leva a supor a existência de outros elementos, além dessas necessidades e anseios, que favoreceram o processo coletivo da criação. Dessa forma, fomos instigadas a indagar: quais significações e sentidos se condensam no esqueleto, de maneira a colocá-lo em destaque dentre tantos outros materiais e recursos disponibilizados para a realização do trabalho pedagógico na escola?; se o esqueleto tivesse sido tomado como um “mero” material didático, por exemplo, para ensinar a nomear e localizar os ossos, qual teria sido a reação das crianças: medo, curiosidade, os dois juntos ou uma mistura de sentimentos? Aqui cabe um parêntese para uma lembrança recorrente nas memórias de nossa escolaridade: a do esqueleto que ficava pendurado no armário da escola, que não saía de lá, estático, sem sentido, sem função...; ou da comum inexistência do esqueleto dentre os materiais pedagógicos.

O modelo anatômico do esqueleto, tal como se apresenta na atividade criadora coletiva analisada, é um artefato construído para ser didático, mas transcende a instrumentalidade pedagógica à medida que “vira personagem”, adquire vida, torna-se o “amigo secreto”, ganha uma identidade, um nome próprio - “Fox”. Outros sentidos vão permeando e dinamizando a atividade criadora coletiva: a ficção torna-se real, lócus de compartilhamento do imaginário, da imaginação coletivamente vivenciada; os signos e sentidos vão se produzindo e entretecendo artefatos e recursos técnico-semióticos - o esqueleto, o envelope, a carta, o pergaminho, o poema, os enigmas, as múltiplas formas de linguagem -, que vão (re)dimensionando o próprio trabalho docente, o qual ganha novos sentidos nos gestos e na arte de ensinar.

Esse (re)dimensionamento dos gestos de ensinar, que acontece no enfrentamento das muitas adversidades face às formas de controle institucional do trabalho docente, ancora-se na atividade partilhada, nos objetivos compartilhados, os quais envolvem e orientam as ações individuais no coletivo de trabalho. A potência de agir de cada pessoa, de cada professora, (se) nutre (n)esse coletivo.

A força do coletivo, na atividade analisada, criou condições para provocar os processos imaginativos de cada professora e viabilizou a “experiência duplicada” nas condições concretas dadas - o plano e a sua realização. Os processos imaginativos e criadores individuais não estão na aparência da totalidade do processo de criação, embora saibamos que essa dimensão do todo está na singularidade, assim como a singularidade está no todo. A gênese dos processos imaginários da criação, por conseguinte, originou-se nos processos imaginários de cada professora, ancorados nos processos imaginários de outra professora, constituindo, assim, uma rede social de atividades imaginativas.

A atividade imaginativa, mesmo situada no plano psíquico de um indivíduo, é social, lembrando o que é dito por Clot (2006, p, 23), a partir de suas interpretações sobre o que é social para Vigotski: “Para ele, o social não era uma coleção de indivíduos. O social está lá, presente, mesmo quando estamos sozinhos; ele não está fora de nós mesmos, nem somente entre nós, ele está em nós, no espírito e no corpo de cada um de nós”. A imaginação é social porque é multivocal, por reunir as tantas vozes sociais e alheias que viajam pelas experiências das professoras, pairando em suas memórias e pensamentos, a se encontrarem na atividade imaginativa e a se planarem no produto da criação.

Eis, portanto, que a gênese provocativa da atividade criadora coletiva se situa, a um só tempo, nas relações interpessoais e na singularidade social da atividade imaginativa de cada professora, sendo essa atividade impulsionada por fatores externos e internos. A atividade criadora coletiva responde pela combinação da heterogeneidade das múltiplas formas de incorporação da cultura e das múltiplas experiências, o que respalda o processo coletivo de produção de significações, inerente ao surgimento do novo. Ao se materializarem na realidade, a produção e o produto trazem “uma nova força, que se distingue por seu poder transformador frente à realidade da qual partiu” (ZANELLA; ROS; REIS; FRANÇA, 2003, p. 144).

O caráter impulsionador e transformador da atividade criadora coletiva em análise mostra-se na conversa realizada com as professoras Ane e Irai. Irai disse: “Ane trabalhou mais coisas, além daquele roteiro. Outras professoras trabalharam mais coisas, além daquilo que a Tetê [coordenadora pedagógica] estava encabeçando, outras ações estavam acontecendo nas salas. A gente perdeu a dimensão”.

Na continuidade dessa conversa, discutimos sobre o lugar que esse movimento ocupou em relação às tensões entre o mecanismo de controle sobre o trabalho docente e o libertar-se pela e para a imaginação. Para quem assistiu o desenrolar das várias ações didáticas e presenciou a dinamização de suas realizações, ficou a aparente impressão de que, naquela semana, o material didático de uso obrigatório havia sido deixado de lado. Contudo, não foi isso que as professoras disseram ter acontecido:

Pesquisadora: “Diante das tantas pressões externas e internas, como vocês conseguiram espaço para realizar esse movimento? [...] como ficou o uso do material didático?”

Ane: “Foi trabalhado junto. [...] Se a gente tinha programado matemática para antes do recreio, acontecia aula normal. As ações que a gente fazia, ligadas ao esqueleto, aconteciam depois do recreio.”

Irai: “Então dava pra fazer o que tinha que se fazer. A parte dos materiais didáticos era feito antes do recreio.”

Ane: “Deu tudo certo, porque todas as professoras se engajaram.”

Mais uma vez, percebe-se a força do trabalho colaborativo como um convite à superação das restrições impostas pelas e nas condições concretas. Como disse Clot (2006, p. 25), o

[...] mundo social, para Vigotski, não é um mundo de restrições. É primeiramente um mundo possível de subversão de significações e de artefatos e, em segundo lugar, um mundo de conflitos inacabados, no qual podemos tomar nosso lugar. E, precisamente, porque é inacabado, podemos colocar nele algo nosso.

Interpretamos que foi isso que aconteceu. As professoras, quando se juntaram, mobilizadas por uma clara intencionalidade, tomaram o seu lugar e foram capazes de criar novos sentidos para o trabalho docente, realizando novas formas de ação conjuntas. Abandonaram reclamações que soavam como “lugar comum” (SMOLKA, 2006, p. 101) em suas práticas pedagógicas diárias: “não dá tempo fazer qualquer coisa diferente”; “até tal dia temos que ter feito até a página tal”. Pelo menos naquela semana, tornaram possível, se não a superação das contradições entre reproduzir/seguir o material didático ou abraçar a criação, a coexistência entre as atividades de reprodução e as de criação. Por suposto, as atividades reprodutiva e criadora coexistem nas práticas educativas dessas professoras, ora como complementares, ora como contrárias, quando as tensões entre a autoria sobre o seu próprio trabalho e a obrigatoriedade em seguir as prescrições ocultam e até obstaculizam a atividade criadora, a qual, muitas vezes, emerge nas brechas que se abrem na atividade reprodutiva.

Não é demais reiterar que a dimensão coletiva possibilita o deslocamento de anseios, necessidades e realizações do campo da alienação para o da resistência à alienação, porque ousar a dar asas à imaginação e à criação não é outra coisa senão um fio de esperança a entretecer as linhas do futuro - as linhas da emancipação. Afinal, o trabalho coletivo e a autoria docente sobre tal trabalho, sobretudo quando carregado de imaginação, são pilares para a construção da docência como atividade humana, como práxis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base na análise das cenas 1 e 5 da atividade de ensino aqui analisada - “A chegada do esqueleto na escola” -, mediada pela unidade de análise “atividade criadora coletiva”, concluímos que os processos imaginativos e criadores das professoras são evidenciados na linguagem que compôs o roteiro planificado para a recepção do modelo anatômico do esqueleto humano, na escola, e nos diversos diálogos construídos entre os pares e com as crianças, na realização do evento, principalmente na comunicação estabelecida entre o amigo secreto e as crianças; esses diálogos são evidenciados também na intencionalidade docente, nos objetos escolhidos para compor cada ação didática, bem como nas novas formas e papéis atribuídos a esses objetos, ao se materializarem na realidade criada pela atividade criadora coletiva.

Em outras palavras, falar dos elementos que evidenciaram os processos imaginários e criadores das professoras passa pelo reconhecimento das imbricadas formas de relação que a imaginação estabelece, inexoravelmente, com a realidade, visualizadas na abrangência da “experiência duplicada” das professoras - a planificação e a realização da atividade criadora coletiva. Nestas duas ações, está visível a materialização da imaginação coletiva no produto da criação na e pela linguagem, pois, em ambas, a linguagem não apenas informa e comunica mas também “nomeia, identifica, designa; recorta, configura, estabelece relações” (SMOLKA, 1995, p. 19-20).

Por meio dessas diversas formas e funções da linguagem, dos artefatos historicamente produzidos, as professoras levam-nos a imaginar a amplitude dos tantos signos que mediaram os seus processos imaginativos e criadores, a autoria coletiva, e o quanto as professoras ousaram em buscar superar as contradições a elas impostas. Vigotski (2009, p. 117) esclarece que a liberdade é a “condição imprescindível de qualquer criação”. Ele reitera esse argumento ao afirmar que “a lei básica da arte exige essa livre combinação dos elementos da realidade” (VIGOTSKI, 2016, p. 358). Isso posto, reforçamos o que já foi dito sobre os voos livres dos pensamentos das professoras nos processos de imaginação criadora, planados em sua criação coletiva.

A criação docente foi marcada por uma forte intencionalidade pedagógica, composta por elementos alçados de suas experiências profissionais, que, por sua vez, foram tingidas pelas experiências alheias, enlaçadas pelas emoções. As intenções pedagógicas são mobilizadoras da criação docente, ainda que circunscritas aos objetivos de ensinar conteúdos de determinadas áreas. É digno de nota o implícito desejo de incitar a imaginação das crianças, o que nos dá ânimo para supor que, na escola em análise, foi forjado um lugar de destaque para a imaginação, em meio às tensões características das relações sociais e escolares.

Possivelmente, essa experiência conserva-se na memória de cada professora e no coletivo de trabalho como uma importante fonte para projetar o futuro, o que implica supor que o produto coletivo cumpriu a sua função de humanização e, como tal, ele pode ter proporcionado a cada sujeito “um ultrapassamento de sua situação, um movimento de superação da sua história, uma transformação em seus sentimentos e emoções, em direção a uma postura mais emancipatória” (MAHEIRIE et al., 2015, p. 60).

Assumir esse pressuposto implica dizer que as relações interpessoais, inerentes às vivências constituídas no movimento criado para receber o esqueleto, levaram à produção de significações constituidoras das funções psíquicas nos planos pessoal e social. Considerar a atividade criadora coletiva como um processo de significações remete ao que foi dito por Vigotski (2021) sobre a propriedade de reversibilidade do signo. Isso nos leva a sugerir que as professoras, ao criarem um movimento de criação para potencializar a imaginação das crianças, potencializaram seus próprios processos imaginativos e criadores. É essa propriedade de reversibilidade do signo que explica por que “a palavra dirigida ao outro produz efeito também naquele que a utiliza” (PINO, 2000, p. 59). Eis o caráter transformador e autotransformador do trabalho humano, veementemente reiterado por Marx (1985).

Por fim, estabelecemos relações entre a imaginação das professoras, como expressão do domínio sobre seu próprio trabalho, e a arena de tensões e contradições inerentes às condições concretas de realização de suas práticas pedagógicas. O produto de criação obtido pelas docentes diz-nos que há um caminho de resistência à alienação sendo trilhado, o qual emerge da própria condição de alienação que lhes é imposta, pois, como disse Pino (2006), a condição de alienação não é inata, e sim criada historicamente, e, como tal, tem em si engendrados os caminhos de sua superação. Esse caminho de superação torna-se o caminho da emancipação, sem o qual não será possível quebrar as amarras que obstaculizam o curso de seus próprios desenvolvimentos.

Contudo, sabemos que esse não é um problema apenas das professoras de uma determinada escola, ou seja, ele tem o seu lugar na amplitude política dos problemas da educação no Brasil e no mundo, cuja solução não está nas mãos de um grupo isolado de docentes e pesquisadores. Como afirma Vigotski (2016, p. 462):

Os problemas da educação serão resolvidos quando forem resolvidas as questões da vida. Dessa forma, a vida do homem se tornará uma criação constante, em um ritual estético quando surgir não da tendência para a satisfação de algumas necessidades pequenas, mas de um arroubo criador, luminoso e consciente. O ato de alimentar-se e o sono, o amor e a brincadeira, o trabalho e a política, cada sentimento e cada pensamento se tornarão objeto de criação. O que agora se realiza nos campos estreitos da arte, mais tarde penetrará toda a vida e esta [a vida] se tornará um trabalho criador.

Vigotski falava de um lugar, de um processo revolucionário que impunha a bandeira da esperança de construção de um mundo igual, com possibilidades iguais de vida e de criação para todos. Ainda que estejamos em um lugar, em um tempo de agruras e de incitação a desesperanças, suas palavras inspiram-nos a enxergar nos movimentos coletivos e colaborativos instaurados pelas professoras, interlocutoras desta pesquisa, e por tantas outras professoras e outros professores, em outras escolas, a força da esperança e da resistência. Criar é resistir!!!

REFERÊNCIAS

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PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP:

1 Referimo-nos às professoras no gênero feminino, pois não há professores (gênero masculino) no coletivo docente da escola onde a pesquisa aconteceu. [/fngrp]

DECLARAÇÃO DE APROVAÇÃO DO COMITÊ DE ÉTICA (CEP):

4A pesquisa base deste artigo está vinculada ao Projeto de Parceria Colaborativa Universidade e Escola intitulado Formação Profissional de Professores e Gestão Democrática: uma parceria universidade-escola para a melhoria do ensino público, inscrito no Programa de Melhoria do Ensino Pública da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).

PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP:

5Título da pesquisa: FORMAÇÃO PROFISSIONAL DE PROFESSORES E GESTÃO DEMOCRÁTICA: uma parceria universidade-escola para a melhoria do ensino público.

6CAAE: 27414619.7.0000.5505

7DADOS DO PARECER: Projeto CEP/UNIFESP: Número do Parecer: 3.977.680 - 17/04/2020 - PROJETO APROVADO

8Maiores informações: E-mail: cep@unifesp.br

Recebido: 09 de Agosto de 2022; Aceito: 27 de Fevereiro de 2023

<maria.nizete@unfiesp.br>

<asmolka@unicamp.br>

Ambas as autoras contribuíram, equitativamente, para a concepção, a escrita e a revisão do manuscrito.

As autoras declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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