SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.39GLOBAL VISIONS AND FUTURE PERSPECTIVES IN TEACHING SUSTAINABILITY IN ENGINEERINGAFFIRMATIVE ACTIONS AND HORIZONTAL STRATIFICATION: COMPARISON BETWEEN BONUS AND QUOTAS ACT AT THE UFMG author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub July 10, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469840763 

Artigos

ENGAJAMENTO, DELIBERAÇÃO E INFORMAÇÃO: COMO OS ESTUDANTES PENSAM A DEMOCRACIA1

PARTICIPACIÓN, DELIBERACIÓN E INFORMACIÓN: CÓMO PIENSAN LOS ESTUDIANTES SOBRE LA DEMOCRACIA

ISADORA GRAEFF BINS ELY1  , Participação ativa na escrita e na análise dos dados
http://orcid.org/0000-0001-7866-6679

ANGELO BRANDELLI COSTA1  , Coordenador do projeto, Elaboração e planejamento da coleta, escrita, participação ativa na análise de dados e escrita do texto
http://orcid.org/0000-0002-0742-8152

MARINA VALENTIM BRASIL1  , Elaboração, planejamento e execução da coleta, escrita, participação ativa na análise de dados, discussão e escrita do texto
http://orcid.org/0000-0002-7610-8152

1Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre (RS), Brasil.


RESUMO:

Este trabalho buscou compreender a forma que jovens do Ensino Médio de uma escola pública em Porto Alegre (RS) compreendem o conceito da democracia, partindo da premissa de que esta noção é necessária para o engajamento cívico efetivo e serve de indicativo dos efeitos da educação para a vida pública que tem ocorrido em nosso contexto. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e exploratória, fruto de uma pesquisa maior. Uma escola foi contatada em maio de 2018, e participaram da pesquisa 197 estudantes de Ensino Médio. Serão apresentados os resultados da análise das respostas dos estudantes para a pergunta: “O que é democracia?”. Como método de análise, foi utilizado o método de Análise Temática. A partir das respostas dos participantes, foram constituídos cinco eixos temáticos, que demonstram que as ideias sobre democracia parecem evidenciar um importante distanciamento do tema da democracia. Discute-se que, mesmo com diversos recursos de mobilização na atualidade e de posturas pró-democracia, a barreira maior para um exercício efetivo da vida pública possa ser a oferta da oportunidade de instrumentalizar-se politicamente, através de maiores informações e a defesa dos valores desta. Carecemos, portanto, de garantias institucionais no aspecto mais defendido como indispensável pela literatura acadêmica: a garantia de sermos educados politicamente. Defende-se que o aspecto mais deficitário para a cidadania jovem ativa seja a garantia de espaços formais para que esta possa ser construída, e que isso deve ocorrer dentro das escolas.

Palavras-chave: cidadania; engajamento cívico; juventude; escola; educação

RESUMEN:

Este trabajo buscó comprender la forma en que los estudiantes de secundaria de una escuela pública de Porto Alegre (RS) entienden el concepto de democracia, a partir de la premisa de que esta noción es necesaria para un compromiso cívico efectivo y sirve como indicador de los efectos de la educación. para la vida pública que ha tenido lugar en nuestro contexto. Se trata de un estudio cualitativo y exploratorio, resultado de una investigación más amplia. Se contactó con una escuela en mayo de 2018 y 197 estudiantes de secundaria participaron en la encuesta. Se presentarán los resultados del análisis de las respuestas de los estudiantes a la pregunta: “¿Qué es la democracia?”. Como método de análisis se utilizó el de Análisis Temático. Con base en las respuestas de los participantes, se construyeron cinco ejes temáticos, que demuestran que las ideas sobre la democracia parecen mostrar una distancia importante con el tema de la democracia. Se argumenta que incluso con varios recursos de movilización en la actualidad y posturas a favor de la democracia, la mayor barrera para un ejercicio efectivo de la vida pública puede ser el ofrecimiento de la oportunidad de instrumentalizarse políticamente, a través de más información y la defensa de los valores de la ciudadanía. Por lo tanto, carecemos de garantías institucionales en el aspecto más defendido como indispensable por la literatura académica: la garantía de ser educados políticamente. Se argumenta que el aspecto más deficiente para la ciudadanía juvenil activa es la garantía de espacios formales para que pueda construirse, y que esto debe ocurrir dentro de las escuelas.

Palabras clave: ciudadanía; compromiso civil; juventud; escuela; educación

ABSTRACT:

This work sought to understand the how high school students in a public school in Porto Alegre (RS) understand the concept of democracy. The premise of this objective is that understanding democracy is necessary to engage effectively in civic society and that this could also show how education can affect public life in this context. This is a qualitative and exploratory study and is part of a larger piece of research. A school was contacted in May 2018, and 197 high school students participated in the survey. The article will present the results of the analysis of the students' answers to the question “What is democracy?”. Thematic Analysis was used as the method. Five thematic axes were generated, based on the responses of the participants, in which their ideas about democracy seem to show a significant lack of interest in the subject of democracy. It is argued that, despite the many resources available to promote it nowadays and clear pro-democracy postures being taken, the biggest barrier to its effective exercise in public life may still be the lack of opportunities to be politically active, by providing more information and defending the values of democracy.We lack, therefore, support from institutions for an aspect that has been clearly evidenced to be indispensable, according to the academic literature: political education. It is argued that the most deficient aspect in achieving active youth citizenship is ensuring that they do have the opportunity to develop their understanding, and this must take place within schools..

Keywords: citizenship; civic engagement; youth; school; education

INTRODUÇÃO

A democracia brasileira, garantida após um período ditatorial civil-militar de duas décadas, ocorreu a partir da sintetização da Constituição Federal no ano de 1988. Esta prevê o direito ao acesso a políticas públicas de saúde, educação, e do posicionamento dos cidadãos através do voto e de manifestações políticas. Portanto, não apenas o acesso a direitos é previsto na Constituição, mas também a participação da sociedade brasileira através do voto obrigatório (BECKER e RAVELOSON, 2011; GALSTON, 2001). Entende-se por democracia uma organização sociopolítica em que estão garantidos direitos pessoais (condizentes ao direito à vida, por exemplo), direitos políticos e civis (participação do cidadão na vida política de sua comunidade), direitos sociais e econômicos (asseguramento de abastecimentos básicos para a sobrevivência e o próprio direito à educação). Além desses direitos, garante-se também o direito ao sufrágio com periodicidade (sendo as eleições sempre livres, iguais, com sigilo nas votações, e publicização do processo eleitoral) (BECKER e RAVELOSON, 2011).

Para Brown (2019), todo o resto é opcional, com exceção da igualdade política, sendo essa a verdadeira base para a democracia. Somente a igualdade política pode assegurar que a estruturação e o exercício de poder político sejam autorizados pelo todo e com a responsabilidade de todos. Na circunstância em que a igualdade política está ausente, tanto por exclusões, privilégios políticos, disparidades sociais e econômicas, ou desigualdade de informação, o poder está sendo exercido por uma parte da população e, consequentemente, a população deixa de governar. Portanto, a autora argumenta que, numa sociedade em que existem desigualdades sistemáticas, não é possível o exercício da democracia, e cabe ao Estado agir deliberadamente em prol da redução de desigualdades de poder para que a vida política possa efetivamente servir a todos.

O tema da participação popular na esfera da política no contexto da democracia encontra diferentes perspectivas na literatura acadêmica brasileira, havendo visões mais positivas, as quais apontam que o engajamento da população brasileira, com pautas políticas de diferentes esferas institucionais, segue ocorrendo de formas não tradicionais, como a internet (LUVIZOTTO, 2016). Em contrapartida, visões menos otimistas defendem um importante descrédito com relação à esfera política por parte da população, seja por desinteresse, descrença na mudança, ou até mesmo desconfiança com relação aos representantes políticos (MARCOVITCH, 2018; MESQUITA, BONFIM, PADILHA e SILVA, 2016). Essa posição descrente com relação à política torna o tópico da participação uma questão de difícil dissolução, resultando na falta de envolvimento da população cívica no âmbito político, de forma ativa e responsável frente às pautas políticas de seus próprios cotidianos. Ademais, a cultura de descrença também serve de justificativa para a falta de compreensão com relação à própria prática pública e às potencialidades do engajamento cívico para mudanças para sua própria comunidade (MARCOVITCH, 2018; BRASIL e COSTA, 2021).

A educação brasileira, no que tange à sua potencial função política, poderia ser a promotora de espaços comuns para debates e discussões acerca das demandas dos jovens e de preparo para a atuação cidadã destes na vida adulta. Entretanto, quase que de maneira reativa ao período ditatorial, disciplinas voltadas especificamente para a política nas escolas foram removidas dos currículos. Além disso, diversas pautas políticas sofrem tentativas de proibição nas discussões acadêmicas por parte de diversas instituições privadas e representantes políticos, sob o argumento de que algumas pautas não devem ser apresentadas aos jovens, por não corresponderem a supostas morais vigentes, como é o exemplo do Programa e projeto de lei, atualmente bloqueado pelo STF, conhecido como Escola sem Partido (BRASIL e COSTA, 2021).

O presente trabalho parte da posição de que o apoio do Estado na diminuição das desigualdades sociais também necessita ocorrer através da educação cívica. Apoia-se na premissa de que a existência da democracia exige esforços explícitos para permitir a formação de um povo capaz de engajar-se em formas de autogoverno (BROWN, 2019). Por isso, o tema da política deve ser apresentado de maneira formal e a instituição que deve responsabilizar-se por essa introdução é a escola. Compreende-se que, para a participação popular poder ser algo viável em termos sociais, ela precisa ser introduzida pedagogicamente à população. O próprio termo “cidadania” presume a participação ativa, crítica e o cidadão como detentor de um status formal que reconhece o seu pertencimento à comunidade política (MOISÉS, 2005).

Para exercer o papel cívico, os indivíduos necessitam ter à disposição o conhecimento sobre o funcionamento da esfera política (FINKEL, 2003; FINKEL e ERNST, 2005; MARTINS e BARROS, 2018). O papel político da educação é fundamental para uma sociedade democrática, visto que não existe democracia real sem povo instruído. Por este tópico não estar inserido no currículo escolar, ele acaba sendo negligenciado, uma vez que não faz parte de um conhecimento reconhecidamente essencial para o sistema educacional brasileiro. A falta de instrução para compreender e atuar no ambiente político democrático é acompanhada de um sentimento de desconfiança em relação às instituições que fundamentam o nosso sistema democrático, dificultando ainda mais o funcionamento efetivo do mesmo (BRASIL e COSTA, 2021; SAMPAIO e SIQUEIRA, 2013).

Como mencionado anteriormente, a desconfiança brasileira nas instituições encarregadas pela promoção do bem-estar da população é resultante de fatores do contexto histórico-cultural, os quais moldam a cultura política brasileira, que acaba sendo orientada por uma avaliação negativa da política. A maioria dos jovens brasileiros possui uma descrença e desvalorização da política e suas instituições, visto que os jovens associam a política à “corrupção”, à “ladroagem” e ao “oportunismo”. Ademais, observa-se que os jovens possuem uma posição de indignação e frustração em relação à política como um todo. Além de tal descrença relacionada à política e aos políticos, a complexidade do saber político e a falta de acesso à educação política também são catalisadores significativos para o desinteresse da juventude brasileira em relação à política (BAQUERO, BAQUERO e MORAIS, 2016; BRASIL e COSTA, 2021).

A educação política acaba por aumentar a confiança da população em relação à política e desenvolver capacidades de discernimento e senso crítico, favorecendo a legitimidade da democracia (SAMPAIO e SIQUEIRA, 2013). Além disso, tal conhecimento repercute em uma maior tolerância em relação a grupos sociais minoritários, visto que gera atitudes cívicas, as quais causam maior reciprocidade entre os cidadãos, facilitando ações coletivas (SAMPAIO e SIQUEIRA, 2013). A educação política resulta na intensificação da participação popular, além de proporcionar aos cidadãos habilidades cognitivas importantes para a comunicação de suas demandas aos seus representantes políticos (VERBA, SCHLOZMAN e BRADY, 1995). Desse modo, o conhecimento político dos cidadãos em relação ao funcionamento do sistema político é essencial para que estes possam influenciar e controlar as ações de seus representantes (STOLLE, 2007).

Dentro de um contexto de ausência de espaço formal institucional, a substituição acaba sendo, segundo a literatura, a referência familiar, pelo menos com relação aos valores políticos de jovens (BAQUERO, BAQUERO e MORAIS, 2016). Essa questão já foi largamente criticada desde autores clássicos da filosofia política, como Hannah Arendt (1954/2007) e Sérgio Buarque de Holanda (1936/2012). A mistura entre a esfera familiar e o mundo político e, consequentemente, a indiferenciação das esferas pública e privada ameaçam a democracia, segundo ambos os autores. Outro elemento que intimida as condições para a sobrevivência saudável da democracia é a defesa crescente do pensamento de ordem neoliberal no ocidente, que ataca a esfera do social e vê na igualdade política uma suposta ameaça à verdadeira liberdade do crescimento socioeconômico dos cidadãos. Assim como as normas morais tradicionais conservadoras, que andam na contramão do cultivo político de um bem comum, plural e igualitário (BROWN, 2019).

O potencial cívico dos jovens brasileiros ficou evidente nas ocupações escolares de 2016, a chamada Primavera Secundarista, que contou com o envolvimento de estudantes e ocupações universitárias, além de ter o apoio de professores por todo o país (JANUÁRIO et al., 2016). Após esse período, houve um crescimento da literatura acadêmica, que registrou uma perspectiva otimista a respeito da relação que os alunos pareciam estabelecer com a escola. Isso surge em contraposição a uma ideia de que a precariedade da estrutura das escolas públicas influenciava numa percepção dos alunos de não pertencimento em relação à escola e de não vinculação a seus professores (MORAES e XIMENES, 2016).

O que ocorreu foi justamente o contrário: apesar da estrutura insatisfatória das condições de ensino e de trabalho, os alunos mantiveram uma relação positiva com a escola pública, reconhecendo-a como um espaço fundamental para aprendizagem e sociabilidade, a ponto de se mobilizarem para preservá-la (MORAES e XIMENES, 2016). Ademais, demonstraram uma importante capacidade de organização política e de mobilização, o que fez com que despertassem também a admiração da população brasileira (JANUÁRIO et. al., 2016). Entretanto, estudos posteriores a este período seguem demonstrando indicativos de que o potencial engajamento cívico dos jovens brasileiros talvez não tenha surtido um efeito longitudinalmente relevante (BRASIL e COSTA, 2021). Ou, ainda, que as formas de engajamento juvenil estão muito mais frequentemente ligadas a manifestações menos institucionais, como o uso de plataformas on-line e redes sociais. De qualquer maneira, a importância de pensarmos na garantia de espaços de construção democrática parece nos dirigir à ideia de que a escola deve ocupar seu lugar social na vida da população jovem: a de primeira experiência de espaço comum.

A partir do que foi exposto, o presente artigo visou compreender de que forma os jovens do Ensino Médio de uma escola pública em Porto Alegre (RS) compreendem o conceito da democracia, partindo da premissa de que tal noção é necessária para um engajamento cívico efetivo e serve de indicativo dos efeitos da educação para a vida pública que tem ocorrido em nosso contexto. Para tal, apresentaremos os resultados do recorte de uma pesquisa maior, sobre noções de cidadania e outros elementos da esfera política.

Torna-se necessário mencionar um elemento específico do contexto educacional da cidade de Porto Alegre. A cidade possui uma marca histórica do que ficou conhecido como política educacional da Escola Cidadã, projeto que teve sua extensão por quase duas décadas, até 2004. A proposta era de enaltecer a relevância da participação da comunidade em processos decisórios educacionais, bem como a participação das escolas nos norteamentos dos investimentos da cidade. Entretanto, as políticas educacionais pós Administração Popular descontinuaram esta proposta, e o projeto Escola Cidadã foi descaracterizado enquanto instituição socialmente referenciada e popular (DE FREITAS, 2020). Por esta razão, pensou-se que a memória da gestão democrática da educação, da democracia participativa (também pela experiência do Orçamento Participativo), pudesse ser verificada de alguma maneira no presente estudo. Assim, o atravessamento dessa marca histórica pode servir como pano de fundo das respostas dos participantes, possivelmente evidenciando respostas que demonstrem a importância do engajamento e da participação popular, uma vez que a proposta da Escola Cidadã era de justamente a de ativa participação nos processos de democratização da cidade.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório, fruto de uma pesquisa maior de mestrado acadêmico. Uma escola pública de Porto Alegre foi contatada por critério de conveniência, em maio de 2018. Em função da coleta de dados ser realizada por meio da aplicação de um questionário em uma plataforma on-line, essa escola deveria possuir sala de informática com acesso à internet. A instituição solicitou que o convite fosse realizado para todos os alunos do ensino médio, para evitar a seleção de quais alunos poderiam participar. Todos os participantes foram informados sobre o caráter voluntário da participação na pesquisa, e todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O estudo seguiu as normativas das Resoluções n. 466/12 e n. 510/16 do Conselho Nacional de Saúde, garantindo os cuidados a serem tomados em pesquisas com seres humanos. O projeto do presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFRGS, sob o código 57635315.6.0000.5334. Tal aprovação concedeu à pesquisa a oferecer autonomia aos jovens participantes para a decisão de responder ao questionário dispensando que seus responsáveis legais assinaram o TCLE. Da mesma maneira, foi garantido o direito da/do participante de se recusar a participar do estudo, bem como sua desistência a qualquer momento da realização da coleta.

Serão apresentados os resultados da análise das respostas dos estudantes para a seguinte pergunta: “O que é democracia?”. O questionário aplicado ainda continha outras perguntas sobre cidadania e aspectos relacionados à esfera pública. Como método de análise, foi utilizado o método de Análise Temática proposto por Braun e Clarke (2006a; 2006b). Tal análise de material é de natureza qualitativa, feita com os temas que emergiram a posteriori. Os temas serão discutidos à luz de concepções políticas e da Psicologia Social Crítica. O método da Análise Temática procura identificar e interpretar padrões encontrados nos dados coletados, a partir de etapas. As etapas seguidas são: familiarização com os dados, codificação, busca pelos temas, revisão dos temas, definição e nomeação dos temas e relatório/análise final (BRAUN e CLARKE, 2006b).

Após o levantamento das perguntas dos 197 participantes na plataforma on-line, todas as respostas foram tabuladas em uma planilha. Três juízes leram o material coletado e realizaram um levantamento de temas mais relevantes nas respostas dos alunos. Depois de serem discutidos os temas inicialmente codificados, foi a partir da concordância dos três juízes que se chegou aos eixos temáticos apresentados para análise neste trabalho. As respostas não necessariamente se excluem de um eixo temático ou outro. Ocasionalmente, identificou-se que uma resposta tematizada em um eixo se confundia com a resposta tematizada em outro eixo. Sendo assim, a análise geral, em algumas oportunidades, ateve-se apenas a um eixo. Em outras, as respostas também corresponderam a mais de um. Os autores decidiram arbitrariamente categorizar respostas que pareciam ser mais fortemente ligadas a um ou a outro eixo, mesmo que correspondessem a dois eixos temáticos diferentes.

RESULTADOS

A partir das respostas dos participantes para a pergunta “O que é democracia?”, foram constituídos cinco eixos temáticos. O primeiro eixo, denominado Democracia e Igualdade, se refere às respostas que possuem a ideia de que a democracia está associada à temática da igualdade entre todos e à universalidade. Esse eixo corresponde a 27 respostas da amostra. Já o eixo Opinião e Liberdade é referente a uma compreensão de que democracia está associada à liberdade de expressão, majoritariamente. Correspondeu a frequência de 32 respostas da amostra. Por outro lado, o eixo Poder do Povo possui uma visão mais positiva, de que uma democracia é caracterizada pela centralização do poder no povo, em toda a população, com a frequência de 43 respostas da amostra. Este eixo contou com uma subcategoria, denominada Poder da Maioria, que é atravessado pela percepção de que a democracia é um sistema no qual a maioria vence, visto que ela tem a capacidade de escolha final. Foi evidenciado em 12 respostas. Por último, o eixo Poder do Voto refere-se à ideia de que a democracia é marcada pela importância das eleições e do direito do voto, correspondendo a 44 respostas.

Tabela 1: Resultados apresentados a partir dos eixos temáticos 

Nome Frequência (%)
Democracia e Igualdade 27 (13,70%)
Opinião e Liberdade 32 (16,24%)
Poder do Povo 43 (21,82%)
Poder da Maioria 12 (6,09%)
Poder do Voto 44 (22,33%)
Total 197

As respostas pertencentes ao eixo Democracia e Igualdade correspondem a 27 respostas, o que é equivalente a 13,7% dos respondentes. Pertencem a este eixo respostas que possuem a ideia central de igualdade entre todos, de que a democracia garante um equilíbrio de direitos e que todos sejam tratados de forma igualitária, independentemente de fatores como condições socioeconômicas, raça, religião, gênero, sexualidade etc. Alguns exemplos desse eixo são: “Democracia é um país igualitário para todos”; “Democracia é um formato de governo em que todos teriam o mesmo direito e seriam tratados iguais”; “Acontece quando várias pessoas têm o mesmo nível, deixando de lado raça ou o salário da pessoa”.

Ao conceitualizar “Democracia”, 32 respondentes se referiram à questão da liberdade de se expressar, correspondendo a 16,24% do número total de respostas. Denominamos este grupo temático como Opinião e Liberdade. Este eixo focalizou nas respostas que possuíam a ideia de liberdade de opinião, voz, expressão, de modo em que a democracia assegura esse direito sem que os indivíduos sofram qualquer forma de retaliação ou opressão. Por exemplo: “É poder ter a voz livre, dar sua opinião sem ser oprimido”; “O direito de cada um poder expressar sua vontade e opinião.”; “Seria acima de tudo a liberdade de expressão como um todo, nos assegurando a liberdade para expor nossas opiniões sobre pessoas e autoridades sem o medo da retaliação”.

Ao serem questionados acerca do que é uma democracia, 43 respondentes (21,82%) utilizaram o sentido literal da palavra, definindo-a como o poder/governo do povo. O eixo em questão foi nomeado Poder do Povo. Essa ideia envolve o conceito de soberania do povo, uma forma de governo cujo poder é centralizado na própria população. Exemplos desse eixo são: “É quando o poder de escolha está nas mãos, não de uma pessoa só ou de um grupo só, mas de toda a população”; “Democracia é uma forma de governo na qual o povo manda”; “Governo em que o povo exerce a soberania”; “Democracia é um tipo de regime em que o governo deve ouvir e seguir o que o povo quer”.

Ainda dentro deste agrupamento, pudemos evidenciar uma incidência frequente, mas de menor proporção, de respostas que englobaram uma noção de que a democracia é um sistema em que o poder está na decisão da maioria, de forma em que o interesse da maior parte da população será satisfeito. Este subeixo foi denominado Poder da Maioria e se refere a 12 dos respondentes (6,09%). Por exemplo: “Democracia é a escolha da maioria”; “Democracia é um tipo de estado em que a população vota e o interesse da maioria ganha”; “Democracia é saber que a maioria vence”.

O último agrupamento foi denominado Poder do Voto. Este eixo corresponde a 44 das respostas coletadas, sendo 22,33% do número total. Este eixo abrange a ideia do direito ao voto e o poder das eleições, de modo em que a democracia foi definida por esses respondentes como um sistema em que o poder é decidido pelo voto, o ato de eleger alguém. Exemplos desse eixo consistem em: “Um sistema de política que consiste na eleição de um candidato pelo povo”; “Sistema que os habitantes votam pelo seu representante de acordo com seus interesses”; “Democracia é eleger alguém através de votação”.

DISCUSSÃO

A análise das respostas dos jovens participantes, assim como evidenciado em trabalhos anteriores (BAPTISTA, et al., 2018; BRASIL e COSTA, 2021; MESQUITA, BONFIM, PADILHA, e SILVA, 2016), demonstra que as ideias sobre democracia estão apoiadas em narrativas de certa forma teóricas e de senso comum, não parecendo evidenciar um maior envolvimento com o assunto. Esta afirmação se dá pelo caráter sucinto - mesmo que correto - da forma como elaboram suas ideias sobre este tema. Isso não é suficiente para afirmarmos que os jovens desta pesquisa não estão aptos para a vida pública e para transitar em diferentes espaços que exigem ação cívica, mas parece lícito afirmar que as elaborações nestes moldes possam estar evidenciando um certo grau de distanciamento. Podemos teorizar um provável desinteresse ou, ainda, certa desinformação, mas os resultados não são suficientes para que essa afirmativa seja sustentada. Vale ressaltar que, como decorrente de uma pesquisa maior, estes participantes já apontaram certo rechaço para com o assunto da política, como fica sustentado em Brasil e Costa (2021), em que a visão negativa sobre a pauta da política também serviria para encobrir certo desconhecimento sobre assuntos relacionados.

Podemos pensar que o engajamento cívico na vida democrática apresenta duas formas de concepção interdependentes: a primeira corresponde à demanda de compreensão do funcionamento do espaço público e da esfera política de forma geral, sua estrutura. A segunda diz respeito ao comportamento deliberativo, que corresponde a uma postura capaz de suscitar ações deliberativas entre jovens e estudantes, garantindo o respeito, a inclusão e a eficiência de engajamento discursivo sobre os conflitos em geral. A capacidade deliberativa é compreendida como o instrumento cognitivo capaz de criar compreensões esclarecidas dos problemas, entendimento mútuo, tolerância e participação produtiva na resolução de conflitos em diferentes níveis sociais (BAPTISTA, et al., 2018). São ambas aquisições necessárias para podermos pensar na participação cívica em uma democracia.

Ainda assim, é mais comum na literatura sobre esta temática a defesa de que é o grau de conhecimento sobre democracia o fator mais determinante na formação cidadã. É a partir da quantidade de informação que o indivíduo dispõe sobre um tema específico da agenda política que determinaria sua capacidade de emitir opiniões e atitudes sobre política (ALMEIDA e KREJCI, 2020; FUKS e CASALECCHI, 2018). Pensando assim, Fuks e Casalecchi (2018) defendem que o argumento do grau de conhecimento é limitado e que deve ser expandido, acrescentando a noção de que há uma necessidade de adesão, também, aos valores da democracia. Defendemos neste trabalho que os três elementos mencionados são necessários: capacidade deliberativa, conhecimento sobre democracia e adesão aos seus valores. Ou seja, um cidadão competente seria aquele capaz de desenvolver atitudes democráticas nucleares, tais como tolerância política, apoio à democracia e às eleições, e participação cívica. Pensando assim, parece lícito afirmar que os participantes deste estudo talvez apresentem pelo menos dois dos três pilares para exercerem uma boa cidadania - os valores democráticos e a defesa de atitudes deliberativas. Embora tenham apresentado ideias de certa maneira pouco precisas com relação ao conceito de democracia, não podemos excluir a possibilidade de que os entrevistados estejam, em sua maioria, instrumentalizados para a vida democrática.

De qualquer maneira, o argumento de que uma certa quantidade de informação para o exercício de uma boa cidadania seja necessária deve ser mantido. Acreditamos que o fator da informação e a postura de valoração pró-democracia não são efetivos quando não existem em conjunto, justamente por serem complementares e interdependentes. Com relação às respostas dos participantes, é inegável o fato de que os valores da igualdade e da liberdade fazem parte dos princípios da democracia (como fica exposto no eixo Democracia e Igualdade e no eixo Opinião e Liberdade). O que parece não ser da mesma maneira sustentável seja verificar o grau de compreensão sobre o conceito teórico e fundamental da ideia da democracia e o uso destes termos. Com relação ao primeiro eixo temático, Democracia e Igualdade, o conceito de igualdade parece aproximar-se da noção de tolerância e respeito, quando a defesa versa sobre o trato social igualitário, que as pessoas tenham o “mesmo nível” (sic), independentemente de suas condições socioeconômicas. Estes são valores democráticos, mas parecem ser expostos de forma evasiva. Ainda pensando nos eixos mencionados, podemos questionar, por exemplo, através de quais meios o trato igualitário poderia ser defendido dentro de um sistema democrático, ou também, de que forma opiniões expressadas são defendidas. Novamente, isto não quer dizer que as afirmativas não são corretas, mas que talvez estejamos ainda distantes de afirmar a existência de uma cultura de ação social por parte dos jovens.

Sendo assim, a defesa da igualdade em uma sociedade democrática encontra respaldo no argumento de Brown (2019), que coloca a igualdade social, de informação e de acesso a direitos como base essencial para o funcionamento de uma democracia. Quando a situação de uma sociedade apresenta desigualdades sociais (sejam elas de informação, de condições de moradia, de acesso à saúde, à segurança e à educação), ela já pode ser tida como não democrática. A autora afirma que sem estas garantias de forma absoluta, a população não é mais quem governa, já que o poder passa a ser retido por grupos específicos; portanto, a defesa da existência de uma democracia pode ser problemática. Dessa forma, a ideia de igualdade proposta pela autora não apenas está presente nas respostas dos jovens no eixo Igualdade, mas também nas respostas agrupadas no eixo Poder do Povo. A relação entre esses dois eixos é evidente visto que a ideia de igualdade política entre os indivíduos de uma população é necessária para que todos os indivíduos possam exercer seu poder político de forma igualitária, dando voz à população por completo, sem discriminações e sem favorecer um recorte específico da população. Entretanto, igualdade também diz respeito, segundo a autora, ao acesso a informações politicamente relevantes para todos os grupos, à transparência da atividade da classe política de forma satisfatória, mas principalmente à oportunidade de instrumentalizar a população para poder também avaliar tais atividades - este aspecto não se torna evidente.

Sobre o segundo eixo, as ideias sobre democracia ser a liberdade de expressar-se podem ser reflexo da marca de um período em que a censura foi muito forte no país - a ditadura civil-militar brasileira. Mas, também, pensamos que a ideia do “expressar-se” como recurso de combate a situações antidemocráticas faz parte do cotidiano destes jovens, principalmente se reconhecermos os acontecimentos dos últimos anos no universo on-line, de mobilizações sociais que tiveram o seu início por meio das plataformas de internet (DE CARVALHO e SARGENTINI, 2020). Segundo de Carvalho (2020, p.175), “[a internet e as redes sociais] se apresentavam, naquele contexto, com um enorme potencial democrático, na medida em que permitiram empoderar cidadãos, sustentar vínculos de solidariedade e viabilizar a afirmação de um novo fórum de deliberação. Vale dizer, um espaço público autônomo, aberto à participação de todos e amplamente representativo dos interesses da maioria - “nós somos os 99%”, como alardeavam os manifestantes do Occupy [Wall Street]. De acordo com o autor, foi apenas por meio das plataformas on-line que movimentos como os Indignados na Espanha, a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street nos Estados Unidos, as manifestações de 2013 no Brasil puderam ser articulados. Podemos acrescentar ainda o movimento do Black Lives Matter, com a repercussão brasileira das Vidas Negras Importam. Uma associação à ideia de garantia da democracia através da expressão parece ter ganhado força, sintetizando assim uma cultura ligada a denúncia e mobilização ao combate do controle da mídia tradicional, reiterando uma ideia de que a mobilização à liberdade de exposição de qualquer ideia ou material é a ferramenta central do combate à opressão (DE CARVALHO, 2020).

A ação política por meio das redes sociais é relevante e produtiva, mas tal ação não pode ser reduzida a ela. A ação política para efetivar-se precisa estar presente nas diferentes formas da vida pública e institucional. A mobilização no universo on-line encontra algumas barreiras difíceis de serem transpostas, como as ferramentas de filtro utilizadas em todos os ambientes virtuais. Isso faz com que as próprias redes sociais não possam ser entendidas como ambientes dotados totalmente de liberdade e autenticidade: “são muitas ações programadas, muitas circunstâncias em que a delegação de voz e o apagamento de autoria reafirmam o apagamento do sujeito” (DE CARVALHO e SARGENTINI, 2020, p. 191).

As redes sociais não são uma reprodução genuína do espaço público (ZUBOFF, 2021). Isto pois envolvem o uso de ferramentas de controle e direcionamento de informação, também conhecidos como “filtros bolha”. Estes funcionam como motores de filtragem e de previsão, que influenciam e direcionam o acesso ao conteúdo por parte dos usuários, restringindo pesquisas e definições de informações nos espaços virtuais. Tal limitação favorece a disseminação de fenômenos como as Fake News: informações arbitrariamente fabricadas e publicadas com a intenção de disseminar afirmativas falsas ou fragilizar fatos verificáveis (SASTRE, CORREIO e CORREIO, 2018).

A socialização de informação por redes no intuito de mobilização política tem, portanto, um acesso provavelmente limitado a grupos por interesses similares, o que pode dificultar a percepção dos jovens (assim como de toda a população) a respeito da mediação dos filtros com relação às informações compartilhadas - e ainda provavelmente o padrão de disseminação de uma informação filtrará as informações que possam contradizer ou esclarecer um ou outro fato compartilhado. Isto demonstra como o universo on-line pode estar mais sujeito às normas de consumo em forma de “clicks” do que em um formato aberto como o que é esperado de um espaço público e de livre acesso.

Pensamos que mesmo na presença de elementos essenciais para a vida cívica, ainda o argumento da informação segue sem encontrar garantias. O cidadão não necessita fazer uso de meios formais para poder ser considerado um bom cidadão, mas merece ter o conhecimento de como fazê-los. Portanto, também podemos pensar que mesmo com diversos recursos de mobilização e de posturas pró-democracia, a barreira maior para um exercício efetivo da vida pública é justamente a oportunidade de instrumentalizar-se politicamente, através de maiores informações sobre o funcionamento da vida pública. Carecemos, portanto, de garantias institucionais na área que é tão mais defendida como indispensável pela literatura acadêmica: o de nos educarmos politicamente, e termos acesso a uma maior quantidade de informações e conhecimento sobre este assunto. Acreditamos ser este o aspecto mais deficitário dentro da pauta da cidadania ativa, que é a garantia de espaços formais e institucionais para que esta possa ser pensada e construída, e que a instituição escolar deveria ater-se a esta função. Este argumento encontra apoio no trabalho de Pereira (2011). O autor argumenta que jovens formados em um ambiente escolar favorável ao debate político podem contribuir para a “reinvenção da sociedade civil, alterando o ciclo vicioso de ineficácia política, que gera a falta de participação, que, por sua vez, gera a ineficácia política por meio de práticas assistencialistas, clientelistas em um cenário onde desponta a corrupção” (PEREIRA, 2011, p.160).

No eixo que denominamos Poder do Povo, as respostas nos fazem pensar que a compreensão sobre o que significa o poder do povo é presente, mas apenas na sua forma indireta, como intitulado por Almeida e Krejci (2020). O poder do povo é representado apenas por meio da atuação dos representantes que são eleitos, em vez, também, de outras formas como referendos, plebiscitos ou iniciativa popular - instrumentos para o exercício da democracia direta (ALMEIDA e KREJCI, 2020). Esse entendimento é verificado de mesma forma tanto no subeixo desta categoria, Poder da Maioria, como também no último eixo apresentado, Poder do Voto. Ao mesmo tempo em que pensamos que as mobilizações de denúncia mencionadas anteriormente compõem um elemento que exerce influência na cultura política dos dias atuais, não pudemos verificar se os jovens têm entendimento do caráter cívico de tais mobilizações com tamanha clareza, e de que forma estas mobilizações poderiam também dar continuidade a atitudes democráticas diretas.

Podemos observar no eixo Poder da Maioria uma visão de democracia como um conceito não exclusivamente político, mas também como um construto presente nas relações sociais, principalmente aquelas que envolvem tomadas de decisão e conflitos grupais. O mesmo pode ser dito para algumas respostas do eixo Poder do Voto, em que a estratégia de votação é vista como uma ferramenta social que pode ser utilizada em inúmeras situações, inclusive resoluções de conflitos resultantes de opiniões divergentes e decisões grupais. Araújo (2008) defende a proposta de democratização das relações por meio do direito ao diálogo, da livre expressão de sentimentos e ideias, do tratamento respeitoso e da dignidade. Essas competências, segundo o autor, são ferramentas para lidar com a diversidade e conflitos de ideias, os quais junto à igualdade de direitos, possibilitam o exercício da cidadania. Isto é percebido nas respostas dos eixos mencionados. O comportamento deliberativo é entendido como algo que ultrapassa os espaços politicamente formais, o que pode ser benéfico para a redução de conflitos intergrupais e o incitamento de comportamentos pró-sociais (ARAÚJO, 2008).

Ao pensarmos numa formação cidadã atuante, crítica e instrumentalizada, fazemos uso do argumento proposto por Fuks e Casalecchi (2018), em que tanto o entendimento quanto a conduta são elementos indispensáveis para a garantia de uma sociedade efetivamente democrática. Ao verificarmos que os respondentes compreendem a democracia como uma instituição “terceira”, indireta, em que após o ato do voto o poder da população teoricamente deveria ser mantido, o presente trabalho levanta o questionamento: podemos pensar numa democracia deliberativa quando o envolvimento da população jovem parece ser percebido como distante? O papel da democracia, por parte dos respondentes, parece ser algo instituído e posto, circunscrito na organização social, ao invés de um sistema que necessita reforço e cultivo por parte dos agentes sociais. Ficam como espectadores, com perspectivas de certa maneira externas, não implicadas. Talvez justamente por compreenderem o viver na democracia como algo indireto - aproveitando o conceito proposto por Almeida e Krejci (2020).

Outro aspecto também verificado é que, possivelmente, a memória da Escola Participativa ficou apenas como uma marca da história do contexto educacional porto-alegrense. Pode-se afirmar que os tempos da Escola Cidadã foram ocupados pelo novo pensamento aparentemente hegemônico que pairou durante os últimos anos no Brasil, até o ano de 2021 - o da Escola sem Partido. A perspectiva otimista sobre o engajamento da instituição escolar na formação cidadã parece ter sido substituída por uma narrativa de desconfiança sobre professores e instituições de ensino, sendo consideradas excessivamente doutrinadoras e que deveriam ser impedidas de exercer influência política sobre os jovens (BRASIL, CÚNICO e COSTA, 2022). A consequência disto é a evocação de percepções evasivas sobre um conceito que aparentemente tem um sentido de projeto, e não de realidade. Podemos, portanto, inferir que, embora evidenciem um potencial cívico, a garantia deste pelos jovens e por parte das escolas não ocorre. A problemática se dá pois o desinvestimento é um fator diretamente influente no grau de confiança que podem ter sobre as instituições públicas. Em pesquisa realizada com estudantes do México, República Dominicana, Colômbia, Peru e Chile em 2016, o Internacional Civics and Citizenship Education Study (ICCS) demonstrou que, em comparação com países europeus, estes países têm níveis particularmente baixos de confiança em serviços públicos. Além disto, a confiança política nos países latino-americanos é sensível às mudanças nos contextos políticos, mostrando variações consideráveis ​​dentro de cada país ao longo do tempo (BRASIL, 2022). As produções geradas pelo ICCS têm como objetivo analisar a compreensão de alunos sobre questões relacionadas a cidadania, democracia, bem como crenças e atitudes associadas a estes assuntos. Seus resultados servem para rever e fortalecer as políticas curriculares do ensino fundamental e médio (BRASIL, 2022). Embora o ICCS tenha algumas edições, o Brasil participou pela primeira vez no ano de 2022, e os resultados serão divulgados em 2024. Porém, parece lícito pensar que tal percepção de desvalia gerada pelo projeto também estará presente nestes resultados, assim como evidenciado em outros estudos já publicados (BRASIL e COSTA, 2022; BRASIL, CÚNICO, GUILHERME e COSTA, 2023).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Perante o exposto, fica evidente que os jovens que participaram do presente estudo tendem a definir o conceito de democracia relacionando-a aos valores que são certamente democráticos, como o de igualdade e liberdade, mesmo que ainda por meio de afirmativas e falas mais resumidas. Este é um elemento que merece destaque: o caráter simplório das respostas parece já definir, de certa maneira, a forma como esse assunto é elaborado no âmbito da vida desses jovens. Não podemos afirmar, entretanto, que não há nenhum conhecimento com relação ao assunto da democracia, apenas que talvez os respondentes tenham mais inclinação à adesão aos valores democráticos e ao comportamento deliberativo. Percebemos condições potenciais para os jovens se tornarem atores sociais dentro das suas próprias vidas. Talvez o que falte seja justamente que as instituições educacionais possam exercer o seu papel social de forma mais explícita, oferecendo espaços disciplinares para as informações de como o mundo comum e a esfera política se organizam, para que a democracia deixe de ser uma percepção romantizada ou idealizada e possa ser aplicada nas diferentes esferas sociais.

Enquanto sociedade, perdemos muitas oportunidades de ação quando a população jovem (ou toda a população?) parece envolver-se mais com formas indiretas de exercer a democracia, ou como inferimos, usando mais os espaços informais para as mobilizações ocorrerem. Essa posição ativa de engajamento e participação produtiva não se mostrou presente nas respostas dos jovens, já que inúmeros participantes demonstraram uma compreensão da democracia como tendo um funcionamento indireto, marcado apenas pelo ato de votar. Mais do que isso, os dados apresentados podem servir de respaldo para justamente reconhecermos a população jovem como agentes potenciais de mudanças sociais, mas que não estão, talvez, sendo formalmente instigados à participação.

A consequência disso é que acabamos tendo que contar com motivações individuais para o conhecimento sobre uma temática que nos diz respeito e influencia todos os aspectos da vida social. Isto faz com que, da mesma maneira, a potência no exercício cívico também seja fragilizada. O conhecimento sobre a esfera democrática fica restrito aos agentes formais, os especialistas no assunto, os políticos. Personagens que também enquanto sociedade dirigimos sentimentos de descrença e de desconfiança (BRASIL e COSTA, 2021). Acreditamos que o conhecimento sobre política é um direito fundamental e que deve ser garantido pelo Estado, assim como outros direitos básicos. Os jovens possuem recurso e potencial para tornarem-se cidadãos competentes e organizarem-se enquanto grupo social: com demandas específicas, necessidades específicas. O que lhes falta é o investimento, que não é sinônimo de uma ideologia doutrinadora, como algumas classes conservadoras no Brasil insistem em defender.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, I. M., & KREJCI, R. Analfabetismo político brasileiro. Episteme Transversalis, 11(2), 2020. [ Links ]

ARAUJO, U. F. A construção da cidadania e de relações democráticas no cotidiano escolar. In: ZENAIDE, M.N.T.; SILVEIRA, R. M. G.;DIAS, A. A.. (Org.). Direitos Humanos: capacitação de educadores. 1ed.João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, v. 2, p. 161-168, 2008. [ Links ]

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. Perspectiva, 2018. [ Links ]

BAPTISTA, É. A., SANGLARD, F. N., CAL, D. G., VIMIEIRO, A. C., MAIA, R. C. M., & VEIGA, V. O. Comunicação Política e educação: desenvolvimento de capacidades deliberativas entre jovens da rede pública de ensino no Brasil. Comunicação & Inovação, 19(41), 2018. [ Links ]

BAQUERO, R., BAQUERO, M. & MORAIS, J. A. Os jovens estão mais assertivos politicamente no Brasil? Uma análise da cultura política. Revista Debates, 10(2), 71-94, 2016. [ Links ]

BRADY, H., VERBA, S., & SCHLOZMAN, K. Beyond SES: A Resource Model of Political Participation. American Political Science Review, 89(2), 271-294, 1995. doi:10.2307/2082425 [ Links ]

BRAUN, V., CLARKE, V. About thematic analysis, 2006a. Recuperado em 9 de abril de 2018, de Recuperado em 9 de abril de 2018, de https://www.psych.auckland.ac.nz/en/about/our-research/research-groups/thematic-analysis.htmlLinks ]

BRAUN, V. & CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative research in psychology, 3(2), 77-101, 2006b. [ Links ]

BECKER, P., & RAVELOSON, J. A. A. O que é democracia?. Friedrich-Ebert-Stiftung, 2011. [ Links ]

BRASIL, M.V., & BRANDELLI COSTA, A. Letters to the Next President: What do Brazilian Youth Say?. Youth & Society, 0044118X21996380, 2021. [ Links ]

BRASIL, Marina Valentim; CÚNICO, Sabrina Daiana; COSTA, Angelo Brandelli. Gênero sob ataque: atravessamentos da suposta neutralidade política na pauta educacional brasileira. Revista Polis e Psique, v. 12, n. 1, p. 119-146, 2022. [ Links ]

BRASIL, Marina Valentim et al. What Is Citizenship and How Is It Practiced: The Views from Students in Porto Alegre. Human Arenas, p. 1-14, 2023. [ Links ]

BRASIL, Inep. Estudo Internacional de Educação Cívica e Cidadania (ICCS). [Brasília] Ministério da Educação, 11 de outubro de 2022. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/acesso-a-informacao/perguntas-frequentes/estudo-internacional-de-educacao-civica-e-cidadania-iccsLinks ]

BROWN, W. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politeia, 28, 2019. [ Links ]

DA SILVA GUIDOLINI, P. O., & NIPPES, G. O dilema do capitalismo de vigilância. Revista Pet Economia UFES, 1(2), 27-32, 2020. [ Links ]

DE CARVALHO, I. C., & SARGENTINI, V. Vidas importam e a falsa simetria: o discurso em movimentos sociais. Humanidades & Inovação, 7(24), 187-197, 2020. [ Links ]

DE CARVALHO, L. B. A democracia frustrada: fake news, política e liberdade de expressão nas redes sociais, 2020. [ Links ]

DE FREITAS, Ana Lúcia Souza. PROJETO CONSTITUINTE ESCOLAR: UM LEGADO DA EXPERIÊNCIA DA ESCOLA CIDADÃ EM PORTO ALEGRE/RS. Crítica Educativa, v. 6, n. 1, p. 1-20, 2020. [ Links ]

DE HOLANDA, S. B., CÂNDIDO, A., & DE MELLO, E. C. Raízes do brasil(No. 1). J. Olympio, 1936. [ Links ]

FINKEL, S. E., & ERNST, H. R. Civic education in post‐apartheid South Africa: Alternative paths to the development of political knowledge and democratic values. Political Psychology, 26(3), 333-364, 2005. [ Links ]

FINKEL, S. E. Can democracy be taught?. Journal of Democracy, 14(4), 137-151, 2003. [ Links ]

FUKS, M., & CASALECCHI, G. A. Expandindo o conceito de competência política: conhecimento político e atitudes democráticas na América Latina. Revista de Sociologia e Política, 26, 61-74, 2018. [ Links ]

GALSTON, W. A. Political knowledge, political engagement, and civic education. Annual review of political science, 4(1), 217-234, 2001. [ Links ]

JANUÁRIO, A., CAMPOS, A. M., MEDEIROS, J., & RIBEIRO, M. M. As ocupações de escolas em São Paulo (2015): autoritarismo burocrático, participação democrática e novas formas de luta social. Revista Fevereiro, 9, 1-26, 2016. [ Links ]

LUVIZOTTO, C. K. Cidadania, ativismo e participação na internet: experiências brasileiras. Comunicação e Sociedade, 30, 296-312, 2016. [ Links ]

MARCOVITCH, J. Como salvar a política?. Estudos avançados, 32, 7-15, 2018. [ Links ]

MARTINS, L. M., & Barros, A. T. D. Juventude e educação para a democracia: relatos de egressos do Parlamento Jovem Brasileiro. Revista de Sociologia e Política, 26, 49-78, 2018. [ Links ]

MESQUITA, M. R., BONFIM, J., PADILHA, E., & SILVA, A. C. Juventudes e Participação: compreensão de política, valores e práticas sociais. Psicologia & Sociedade, 28, 288-297, 2016. [ Links ]

MOISÉS, J. Á. Cidadania, confiança e instituições democráticas. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, (65), 71-94, 2005. [ Links ]

MORAES, C. S. V., & XIMENES, S. B. Políticas educacionais e a resistência estudantil, 2016. [ Links ]

PEREIRA, T. I. Os jovens e a política: contribuições do ensino de ciências sociais para a socialização política. Pensamento Plural (8), 143- 163, 2011. [ Links ]

SAMPAIO, T., & SIQUEIRA, M. Impacto da educação cívica sobre o conhecimento político: a experiência do programa Parlamento Jovem de Minas Gerais. Opinião Pública, 19, 380-402, 2013. [ Links ]

SASTRE, A; CORREIO, C. S. P. de O.; CORREIO, F. R. B. A influência do “filtro bolha” na difusão de Fake News nas mídias sociais: reflexões sobre as mudanças nos algoritmos do Facebook. GEMInIS, 9 (1),.4-17, 2018. [ Links ]

ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Editora Intrínseca, 2021. [ Links ]

DECLARAÇÃO DE APROVAÇÃO COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

2DADOS DA EMENDA

3Título da Pesquisa: Construção de Escala de Posicionamento Político

4Pesquisador: Silvia Helena Koller. Área Temática: 7

5CAAE: 57635315.6.0000.5334

6Instituição Proponente: Instituto de Psicologia - UFRGS

7Patrocinador Principal: Financiamento Próprio

8DADOS DO PARECER

9Número do Parecer: 2.531.799

Recebido: 11 de Agosto de 2022; Aceito: 27 de Abril de 2023

<isadorabinsely@gmail.com>

<angelobrandellicosta@gmail.com>

<marinavbr@hotmail.com>

Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

1

Editoras participantes do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes e Maria Rosimary Santos.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons