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Educação em Revista

versión impresa ISSN 0102-4698versión On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub 08-Jul-2023

https://doi.org/10.1590/0102-4698368535763p 

Artigos

CICLOPEDALEIROS: PROCESSOS EDUCATIVOS DECORRENTES DA ESTRUTURAÇÃO DE UM EMPREENDIMENTO DE ECONOMIA SOLIDÁRIA 1

CICLOPEDALEIROS: PROCESOS EDUCATIVOS DERIVADOS DE LA ESTRUCTURACIÓN DEL EMPRENDIMIENTO DE ECONOMÍA SOLIDARIA

ANDRÉIA CORDEIRO MECCA2  , conceituação, metodologia, investigação, análise formal, curadoria de dados, escrita - rascunho original
http://orcid.org/0000-0001-5703-4656

LUIZ GONÇALVES JUNIOR2  , conceituação, curadoria de dados, escrita - revisão e edição, supervisão
http://orcid.org/0000-0003-1585-0596

2 Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP, Brasil.


RESUMO

A implantação e a consolidação do modelo econômico neoliberal tiveram como consequências a precarização acentuada do trabalho no Brasil e o aumento das desigualdades. O grande número de pessoas vivendo em situação de vulnerabilidade socioeconômica e a busca pela superação desse quadro faz emergir alternativas à geração de renda. Essas alternativas promoveram práticas exploratórias como a uberização do trabalho, mas também contribuíram para impulsionar outras economias. O Empreendimento de Economia Solidária CicloPedaleiros busca, através da realização de cicloentregas, viabilizar geração de renda para adultos que estão à margem do mercado de trabalho, sujeitos ao desemprego e à informalidade. O presente artigo teve como objetivo identificar e compreender os processos educativos decorrentes da prática social da cicloentrega a partir das ações do citado empreendimento. Como metodologia utilizamos pesquisa participante, sistematização das observações por meio de diários de campo e análise pautada na fenomenologia. Da análise emergiram três categorias temáticas: A) “Eu fui lá na frente falar, falei, sou dos CicloPedaleiros, empreendimento de economia solidária”; B) “É bão usar o capacete, viu, numa hora dessa salva”; e C) “Precarização é a palavra do ano”.

Palavras-chave: processos educativos; cicloentrega; economia solidária

RESUMEN

La implantación y consolidación del modelo económico neoliberal resultó en la marcada precarización del trabajo en Brasil y en el aumento de las desigualdades. La gran cantidad de personas que viven en situación de vulnerabilidad socioeconómica y su búsqueda por superar esta situación ocasionó el surgimiento de alternativas para la generación de ingresos. Estas alternativas promovieron prácticas de explotación como lauberizacióndel trabajo, pero también contribuyeron a impulsar otras economías. El emprendimiento de Economía Solidaria CicloPedaleiros busca, a través del servicio de entregas en bicicleta, viabilizar la generación de ingresos de los adultos que se encuentran al margen del mercado laboral, sujetos al desempleo y a la informalidad. El presente artículo tuvo como objetivo identificar y comprender los procesos educativos derivados de la práctica social del servicio de entregas en bicicleta a partir de las acciones del mencionado emprendimiento. Como metodología se utilizó la investigación participativa, la sistematización de observaciones a través de diarios de campo y el análisis desde el enfoque de la fenomenología. El análisis llevó al surgimiento de tres categorías temáticas: A) “Fui al frente a hablar, dije, soy de CicloPedaleiros, un emprendimiento de economía solidaria”; B) "Es bueno llevar casco, oye, en cualquier momento te salva"; y C) “La precarización es la palabra del año”.

Palabras clave: educativos; servicio de entregas en bicicleta; economía solidaria

ABSTRACT

Implementing and consolidating the neoliberal economic model had as consequences the accentuated precariousness of work in Brazil and the increase in inequalities. The large number of people living in socioeconomic vulnerability and the search to overcome this situation has led to the emergence of alternatives to income generation. These alternatives have promoted exploitative practices such as the uberization of labor, although they have also contributed to driving other economies. The CicloPedaleiros Solidarity Economy Enterprise seeks, by making bicycle deliveries, to enable income generation for adults on the margins of the labor market and subject to unemployment and informality. This article aimed to identify and understand the educational processes that arise from the social practice of bicycle delivery based on the actions of this enterprise. We used participant research, systematization of observations through field diaries, and analysis based on phenomenology for the methodology. Three thematic categories emerged from the analysis: A) “I gone there to speak and said, I am from CicloPedaleiros solidarity economy enterprise”; B) "It is good to wear a helmet just to be sure, at right time you’ll be saved"; and C) “Precariousness is the word of the year.”

Keywords: educational processes; bicycle delivery; solidarity economy

INTRODUÇÃO

Compreendemos que “as pessoas se formam em todas as experiências de que participam em diferentes contextos ao longo da vida” (OLIVEIRA et al., 2014, p. 36). Adotamos, portanto, a perspectiva de que a educação não se restringe à escola ou à casa e que nos educamos o tempo todo ao mundo, em reciprocidade, ensinando e aprendendo em qualquer espaço-tempo de que participamos, conforme Oliveira et al. (2014) e Freire (2018; 2016).

Das relações entre as pessoas na e para a sociedade surgem práticas sociais. Essas práticas produzem e reproduzem estruturas materiais e simbólicas cujas consequências engendram permanências ou transformações históricas e culturais. Em consonância com Oliveira et al. (2014) explicitamos que práticas sociais “se constroem em relações que se estabelecem entre pessoas, pessoas e comunidades nas quais se inserem, pessoas e grupos, grupos entre si, grupos e sociedade mais ampla, num contexto histórico de nação e, notadamente em nossos dias, de relações entre nações” (p. 33) e têm como objetivo:

[...] repassar conhecimentos, valores, tradições, posições e posturas diante da vida; suprir necessidades de sobrevivência, de manutenção material e simbólica de pessoas, grupo ou comunidade; buscar o reconhecimento dessas necessidades pela sociedade; controlar, expandir a participação política de pessoas, de grupos, de comunidades em decisões da sociedade mais ampla; propor e/ou executar transformações na estrutura social, nas formas de racionalidade, de pensar e de agir ou articular-se para mantê-las; garantir direitos sociais, culturais, econômicos, políticos, civis; corrigir distorções e injustiças sociais; buscar reconhecimento, respeito, valorização das culturas e da participação cidadã de grupos sociais, étnico-raciais marginalizados pela sociedade; pensar, refletir, discutir e executar ações (OLIVEIRA et al., 2014, p. 33-34).

Podem, portanto, enraizar, desenraizar ou levar a criar novas raízes, contribuindo para ações transformadoras ou para reprodução da opressão e da segregação humana (OLIVEIRA et al., 2014). Das práticas sociais decorrem processos educativos passíveis de serem estudados, contudo nos colocamos em sintonia com Fiori (1991) quando diz: “A educação, pois, é libertadora, ou não é educação” (p. 83). Dessa forma, nos posicionamos para inexistência de processo educativo quando essas práticas reproduzem opressões e desumanizam. Todavia, afirmamos ser possível, mesmo em contextos contraditórios, emergir processos educativos que promovam libertação.

Também compreendemos que somos seres inconclusos, construídos cotidianamente por meio de múltiplas e complexas experiências. Sendo assim, preferimos utilizar a expressão processos educativos, uma vez que remete a estar-sendo educado continuamente, pois não é possível marcar o momento exato que alguém se educou sobre algo. Acerca do significado de processos educativos, concordamos com Gonçalves Junior, Carmo e Corrêa (2015), ao proporem que:

[...] ocorrem em uma relação mútua de aprendizagem e não só em uma situação em que um ensina ao outro, tendo como pressuposto fundamental para seu desenvolvimento o diálogo equitativo e a intencionalidade dirigida para a cooperação, superação, o ser mais, demandando autonomia, possibilidade de decisão e de transformação. Tais condições permitem aos envolvidos compreender em contexto, valores e códigos do grupo, da comunidade e da sociedade em que vivem, tendo a possibilidade de refletir criticamente sobre sua própria condição de pertencimento ao mundo com os outros, educando e educando-se (p. 176-177).

Com atenção ao contexto latino-americano, onde vivemos a perspectiva de ciência suleada2, compreendemos que investigar processos educativos decorrentes de práticas sociais deve buscar respaldo na realidade, partindo de vidas, experiências e compreensões de mundo que, por meio da ação reflexiva, dialógica e crítica, busquem a práxis coletiva, produtora de novos saberes e transformadora desta realidade opressora. Sendo assim, nossa pesquisa se insere na prática social da cicloentrega dentro do contexto do Empreendimento de Economia Solidária (EES) CicloPedaleiros. Acompanhando o grupo, buscamos desvelar os processos educativos decorrentes.

O EES CicloPedaleiros (marca criada pelos/as empreendedores/as) está alocado no setor de serviços e realiza entregas (alimentos, vestuário, documentos, entre outros objetivos menores) utilizando a bicicleta como meio de transporte. O grupo pretende ampliar o negócio para manutenção de bicicletas e ecoturismo, contudo até o momento esta expansão ainda não ocorreu. O EES está sediado no Centro Público de Economia Solidária da cidade de São Carlos, onde dispõe de sala para guardar equipamentos e realizar reuniões.

Fazem parte quatro sócios/as: Fernanda, Benedito, Adriano e Odair3, com idades entre 25 e 64 anos. O principal meio de comunicação entre eles/as é um aplicativo de conversas disponível em smartphones, pelos quais passam todas as solicitações de entregas. Quando alguém recebe um pedido (que geralmente chega pelo celular particular de cada um/a), o envia no aplicativo e coletivamente decidem quem o realizará (depende da disponibilidade, mas há preferência pelo rodízio entre os/as sócios/as).

O EES segue os princípios da Economia Solidária, ou seja, possui gestão coletiva; há divisão igualitária entre os/as sócios/as, os/as quais se pautam pela valorização humana, cooperação e solidariedade. O preço é calculado de maneira a ser justo, evitando assim a autoexploração do trabalho. Cabe ressaltar que esse grupo não trabalha para nenhuma empresa privada relacionada a aplicativos de entrega.

Os CicloPedaleiros iniciaram suas atividades em 2017. A partir de meados de 2018, o grupo passou a se dedicar à expansão da marca no município onde está sediado, vislumbrando consolidar alternativa ao sistema de trabalho vigente. De maneira geral, estruturam sua clientela por meio de parcerias com outros empreendimentos, lojistas e pela divulgação dos serviços na cidade, aliando a marca à sustentabilidade, ao comércio justo e à valorização de empresas locais.

Atualmente, o empreendimento encontra-se ativo, reunindo-se conforme necessidade para dialogar sobre pautas e encaminhamentos, bem como para desenvolver atividades de coesão, aprovação da entrada de novos membros, formações, entre outros. O EES ainda não possui plena estruturação física e financeira, mas conta com parcerias na cidade que proporcionam o mínimo de estabilidade.

NEOLIBERALISMO, UBERIZAÇÃO E ECONOMIA SOLIDÁRIA

O modelo neoliberal, adotado por diversos países nas últimas décadas, vem promovendo ampla desestruturação do emprego, o que cedeu espaço à informalidade, à flexibilização e à insegurança do trabalho na base da cadeia produtiva. Segundo Hespanha (2002), “o sistema de emprego que se está a instituir através do novo modelo global de produção representa um agravamento do risco social e da exclusão para um crescente número de trabalhadores espalhados por todo o espaço mundial” (p. 24). De acordo com o citado autor:

A diferenciação social é um dos processos associados à globalização que permite explicar fenómenos bastante visíveis nas sociedades contemporâneas, como a acentuação das desigualdades, a crescente marginalização de certas camadas e a gradual destruição das solidariedades sociais. Ela opera através de um duplo efeito. Por um lado, um efeito de segmentação social, consistindo na descolagem dos segmentos mais débeis dos grupos sociais situados na base da sociedade e na promoção dos mais fortes situados no topo. Por outro, um efeito de individualização da vida social, ou seja, uma maior autonomia dos indivíduos relativamente às estruturas coletivas de autoridade baseadas na tradição ou no poder do Estado (HESPANHA, 2002, p. 22).

O duplo efeito citado por Hespanha (2002) incrementa o processo de enfraquecimento do poder de luta da classe trabalhadora. Analisando o conjunto da classe trabalhadora e as perdas dos últimos anos, é possível identificar que não existe no Brasil uma classe robusta, com um projeto político bem definido e direcionado. Pelo contrário, o que se tem são grupos segmentados e individualizados, politicamente desestruturados e impossibilitados de superar as relações capital-trabalho estabelecidas pelo neoliberalismo vigente.

A deficiência política da classe corroborou para maior flexibilização das leis trabalhistas e retirada de direitos historicamente conquistados. Nesse contexto, empresas transnacionais, apoiadas no avanço das tecnologias, implementaram uma nova forma de terceirização no setor de serviços, por meio de um processo que vem sendo discutido sob o conceito de uberização (ANTUNES, 2018). A uberização tem feito referência à Uber4, primeira empresa que praticou este modelo. Por meio de aplicativo de celular, possibilita que motoristas não profissionais atuem no transporte de pessoas utilizando-se de automóveis de passeio próprios ou alugados. Depois dela, outras empresas lançaram aplicativos que operam sob a mesma lógica nesse e em outros serviços, como o transporte de alimentos e mercadorias em geral.

A uberização vincula-se à flexibilização de leis trabalhistas e ao aprofundamento da exploração da força de trabalho em benefício do lucro obtido pelas empresas transnacionais. Nesse modelo, a relação entre patrão e empregado é suspensa, pois quem decide trabalhar para os aplicativos cadastra-se como autônomo. Como não há registro em carteira de trabalho, fica sem efeito toda a regulamentação trabalhista nesse âmbito, inclusive em caso de acidentes durante o serviço prestado. Segundo Pochmann (2018):

Em relação a isso, identifica-se a experimentação de formas de maior exploração capitalista do trabalho humano por meio do avanço da terceirização e “Uberismo” do trabalho. Simultaneamente, percebe-se o avanço da degradação das conquistas dos trabalhadores no ambiente de flexibilização e desregulação do sistema de proteção social e trabalhista que desafiam o formato tradicional de organização e representação dos interesses dos ocupados ante a explosão sucessiva de manifestações sociais de natureza espontânea, desconectadas e desarticuladas de um projeto maior de transformação do capitalismo (p. 70).

A uberização do trabalho intenta difundir a ideologia de que todos/as os/as envolvidos/as são empreendedores/as e podem decidir quando e como ganhar seu próprio dinheiro5. Todavia, as empresas por trás dos aplicativos estipulam o preço do serviço e fazem rigoroso controle por meio das avaliações dos/as clientes. A rotina de trabalho é avaliada pela empresa por meio de um sistema de pontos: quem trabalha muitas horas por semana e nos horários de maior movimento ganha pontos e aqueles/as que não têm pontos suficientes podem ser bloqueados ou excluídos do aplicativo. Para cada serviço oferecido, as empresas cobram entre 15% e 30% do valor total. Em muitos casos, quem contrata o serviço não sabe quanto o prestador irá receber e quem presta não sabe quanto foi pago.

Segundo Presta (2019), o advento dessas tecnologias somado às alterações nas relações de trabalho (mais flexibilidade e autonomia de contratos, menos encargos) corrobora para a valorização do empreendedorismo. Nesses contextos, pessoas trabalham de maneira individualizada e competitiva, vinculando geração de renda à quantidade de trabalho realizado. Essas novas tecnologias trazem a ilusão da liberdade e insubordinação, mas o que ocorre é que milhões de indivíduos trabalham de forma terceirizada para grandes grupos, sem nenhuma garantia, proteção, direitos ou regulamentação. Para Linhart (2017, s/p):

[...] À sua maneira, essas companhias procuram reduzir o “jugo” que representam para elas os direitos e garantias que constituem o outro lado da relação assalariada. Assim, esforçam-se para desenvolver competências dos indivíduos “que lhes permitam assumir a si próprios”, a enfrentar por conta própria os riscos, sem deixar de prendê-los com imposições suficientemente fortes para garantir o lucro. Isso ocorre sob a forma do autoempreendedorismo e, particularmente, da economia de plataforma digital (como o Uber). Esses trabalhadores, apresentados como amantes da liberdade e da aventura, da ousadia e da flexibilidade, veem-se diante de imposições bastante específicas em termos de equipamentos (carro, bicicleta), vestuário e até roteiros de interação verbal, que são obrigados a respeitar sob pena de multa. As plataformas também estabelecem os preços a serem cobrados e recebem avaliações dos clientes, não hesitando em punir os trabalhadores, recorrendo, portanto, a um poder disciplinar. Por mais independentes que pareçam ser, os “parceiros” da plataforma Deliveroo, por exemplo, são multados caso recusem mais de três chamadas de serviço durante seu horário de trabalho. Regra semelhante existe para os motoristas do Uber, embora sejam eles mesmos que devam pagar os impostos referentes à atividade, as contribuições sociais, a gasolina e o carro.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que 23,8 milhões de pessoas trabalhavam por conta própria no primeiro trimestre de 2019. O rendimento médio real dos/as trabalhadores/as dessa categoria permaneceu em R$1.600,00 (IBGE, 2019). Em 2020, de janeiro a março, trimestre anterior à pandemia, o número de pessoas que trabalhavam por conta própria já havia crescido para 24,1 milhões, mantendo o rendimento médio no mesmo valor (IBGE, 2020).

O Instituto Locomotiva publicou uma pesquisa no jornal O Estado de S. Paulo sobre o número de trabalhadores/as envolvidos com as plataformas digitais no Brasil. Segundo a pesquisa, em abril de 2019, 17 milhões de pessoas utilizam aplicativos regularmente como complemento da renda e cerca de 4 milhões como a principal fonte. A matéria também afirma que, juntas, IFood e Uber são as maiores empregadoras do país (GRAVAS, 2019).

O desemprego crescente e a exclusão de jovens e idosos do mercado formal de trabalho fazem com que parcela da população seja obrigada a buscar alternativas para geração de renda e sustento próprio e familiar. O avanço das plataformas digitais possibilitou que pessoas pudessem encontrar formas de subsistência para além do trabalho formal escasso. É essa, portanto, a nova configuração multifacetada do trabalho no neoliberalismo, intensificado nas últimas décadas, e que transformou completamente as relações sociais.

Na contramão desse processo, surgem outras opções à grande massa de trabalhadores/as desempregados/as ou marginalizados/as do mercado de trabalho. Uma delas é a Economia Solidária (ES), que se desenvolve “em muitos países, sobretudo na América Latina, como um campo operativo de transformação social e de ação política” (HESPANHA et al., 2015, p. 466). As bases associativas, cooperativas, de trocas, que existiram ao longo de mais de dois séculos, hoje estão presentes no movimento conhecido como ES. Sendo assim, a ES não se configura como criação intelectual de um único sujeito, e sim como síntese da ação de vários movimentos sociais ao longo do século XIX e XX, tendo suas raízes históricas na luta de trabalhadores/as contra a produção de desigualdades capitalista, a favor de uma sociedade justa.

Ainda que tenha expressões diversas ao redor do mundo, a ES tem alguns princípios fundamentais que a diferem daqueles observados no modelo predominantemente capitalista. De acordo com Singer (2000), a ES se baseia na propriedade coletiva dos meios de produção, na divisão dos excedentes entre os/as sócios/as e na gestão coletiva. Os empreendimentos que atuam sob o prisma da ES compreendem um conjunto de experiências coletivas de trabalho, produção, comercialização e crédito, organizadas por princípios solidários. Para citar algumas: cooperativas, associação de produtores/as, empresas autogestionárias, bancos comunitários de desenvolvimento, clubes de troca e diversas organizações populares urbanas e rurais (SINGER, 2000). Essas características são a confluência de regras aplicadas por diversas cooperativas anteriores, mas que agora aparecem em conjunto. Além disso, a ES representa desafios modernos das chamadas minorias do sistema capitalista:

Somando-se às suas raízes históricas, a atual onda de EESs [...] conta com a influência dos movimentos contraculturais surgidos no final da década de 1960. O questionamento do capitalismo e o desencanto com o socialismo existente provocaram o surgimento dos movimentos ecológicos, feministas e de minorias, assim como a busca por alternativas aos modelos existentes. Assim, as formas clássicas de EcoSol [...] são as cooperativas de produção e de consumo surgidas em meados do século XIX, ressurgem, no novo contexto da sociedade capitalista, carregadas com valores ambientalistas (de desenvolvimento sustentável), comunitários, feministas, de solidariedade, entre outros, que se encontram em consonância com as críticas referentes ao neoliberalismo, além de atender às mudanças tecnológicas e organizacionais das últimas décadas (OLIVEIRA FILHO, 2016, p. 50).

Por essas características, segundo Singer (2000), a ES cria uma alternativa ao sistema capitalista de produção. Nessa concepção, os chamados Empreendimentos de Economia Solidária (EES) estão engajados na materialização de práticas que se configuram como formas de politização e como estratégias de geração de emprego e renda, manifestando-se por meio de frentes de luta que buscam superar a exclusão social. De acordo com Hespanha et al. (2015) “no caso da América Latina, confrontada com uma realidade socioeconômica de acentuada exclusão, a Economia Solidária ganhou forte expressão enquanto prática pela inclusão econômica” (p. 468).

No Brasil, as primeiras expressões de cooperativismo também estão no século XIX, contudo, a ES enquanto movimento social começa a ter alguma visibilidade na década de 1980 e só ganha impulso a partir de 1990, concomitante à implementação do neoliberalismo. De acordo com Singer (2002), a ES reviveu no país “quando milhões de postos de trabalho foram perdidos, acarretando desemprego em massa e acentuada exclusão social” (p. 122). Foi também na década de 1990 que as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), importantes no apoio à ES, começaram a ser fundadas nas universidades. De acordo com Oliveira Filho (2016):

[...] voltadas à produção de conhecimento simultaneamente à intervenção na realidade, o trabalho desenvolvido nas ITCPs visa o acompanhamento e a formação de empreendimentos econômicos autogestionários como oportunidade de geração de trabalho e renda para populações excluídas, bem como a consolidação de princípios solidários e cooperativistas na sociedade (p. 53).

Além das ITCPs e das pessoas vinculadas aos empreendimentos econômicos solidários, constituem o amplo movimento brasileiro de ES a Fundação Unitrabalho, que desenvolve pesquisas na área e presta assessoria aos empreendimentos; o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); a Cáritas, entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Organizações Não Governamentais (ONGs), entre outros. O movimento se organiza por meio de fóruns (brasileiro, estaduais e municipais) de ES e tem sua representatividade em instâncias governamentais, tais como a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), criada em 2003 dentro do Ministério do Trabalho, tendo o próprio Paul Singer como secretário (2003-2016). Em 2011, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária lançou o site Cirandas.net, com o objetivo de promover a articulação econômica, social e política da ES.

Sobre o número de empreendimentos em 2007:

Um levantamento amplo sobre a economia solidária acaba de realizar-se no Brasil. Conhecido como primeiro Mapeamento Nacional, foi idealizado pelo Fórum Brasileiro de Economia Solidária e pelo Governo Federal, com o apoio de universidades, instituições de pesquisa e ONGs. Em 2006, o término da etapa principal de coleta de informações resultou em uma base de dados sobre 15 mil Empreendimentos de Economia Solidária (EES), envolvendo uma população estimada de 1,2 milhão de participantes, em todos os Estados do país e em 41% dos municípios. Em fins de 2007, uma pesquisa de campo complementar propiciou a inserção de mais sete mil empreendimentos na base de dados (GAIGER, 2007, p. 58).

Entre 2009 e 2013, novo levantamento foi feito pela SENAES, por meio de uma Comissão Gestora Nacional (CGN), com representantes da secretaria e também de outros órgãos envolvidos com a ES, entre eles o Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES). O objetivo era montar uma base de dados nacional, denominada Sistema Nacional de Informações em Economia Solidária (SIES)6, de caracterização dos EES e da ES no país (IPEA, 2016).

De acordo com o II Mapeamento de Economia Solidária no Brasil, foram identificados 19.708 empreendimentos, em todos os estados e em 2.713 municípios do país. “Desse total, 11.869 (60,2%) são novos EES, ou seja, não haviam sido registrados no mapeamento anterior, e 7.839 (39,8%) são de EES revisitados” (IPEA, 2016, p. 10). O Mapeamento também registrou cerca de 1,4 milhão de pessoas envolvidas (trabalhadores/as e consumidores/as) com a Economia Solidária no país.

A Economia Solidária vem, portanto, crescendo no Brasil nas últimas décadas, engajada enquanto movimento social. Ainda que tenha se estabilizado em termos numéricos nos últimos anos, o número de novos EES é expressivo, de acordo com os dados apresentados no primeiro e segundo levantamento. Também ao longo dos anos tem-se configurado como importante ferramenta de superação da miséria e marginalização social causada pela nova reestruturação econômica a partir da adoção do modelo neoliberal.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Para o desenvolvimento desta pesquisa7 adotamos método ancorado em abordagem qualitativa de pesquisa. Nesta perspectiva, o ato de pesquisar é o de dar voltas em torno do fenômeno investigado, cuja intencionalidade é buscar uma compreensão possível, dado que todo fenômeno possui variadas perspectivas. Nas palavras de Garnica (1997):

Já aí, nas abordagens qualitativas, o termo pesquisa ganha novo significado, passando a ser concebido como uma trajetória circular em torno do que se deseja compreender, não se preocupando única e/ou aprioristicamente com princípios, leis e generalizações, mas voltando o olhar à qualidade, aos elementos que sejam significativos para o observador-investigador (p. 2).

Optando por compreender o contexto estudado em suas minúcias, evitando assim generalizações, foi realizada inserção cuidadosa e atenta junto ao EES CicloPedaleiros ancorada na pesquisa participante (STRECK; ADAMS, 2012). Desde essa perspectiva emerge a apreensão de que o ato de fazer pesquisa deve voltar-se para o ‘fazer com’ a população e não ‘fazer para’ ou ‘fazer sobre’ as pessoas que contribuem com a investigação (OLIVEIRA et al., 2014). Significa também que não adotamos postura neutra, mas sim ativa, convivendo, dividindo tarefas, participando dos diálogos. O/a pesquisador/a deixa de ser mero/a observador/a e torna-se parte tanto quanto a comunidade, colocando seus próprios conhecimentos em diálogo.

A inserção junto aos/às participantes do empreendimento foi registrada em diários de campo, de acordo com Bogdan e Biklen (1994), o que possibilitou o registro dos aspectos descritivos da experiência, bem como a explicitação da dimensão reflexiva acerca do fenômeno observado. O objetivo da parte reflexiva é melhorar a descrição das notas e explicitar que existe um sujeito pesquisador que interpreta o fenômeno, avalia as situações e reflete acerca dos acontecimentos observados e vividos em campo (BOGDAN; BIKLEN, 1994).

No contexto deste artigo trazemos a análise de dezessete diários de campo, confeccionados a partir de nossa participação nas reuniões de avaliação e planejamento do grupo. Acompanhamos os CicloPedaleiros de março de 2018 a março de 2019, auxiliando nas tarefas diárias, como verificação de rotas, busca por parcerias, ajuste das bicicletas, entre outras, e participando também do serviço de entregas. Optamos por fazer a coleta de dados apenas nas reuniões, pois nesses momentos o grupo refletia acerca dos acontecimentos e planejava atividades; portanto, todas as ações do EES passavam pelas reuniões em algum momento.

Os encontros, em princípio, deveriam ocorrer semanalmente, porém, em alguns momentos o grupo se reuniu semanalmente, em outros mensalmente, e tiveram, também, períodos de pausa. Tal contexto decorreu da própria demanda de serviços e interpretação da necessidade de reuniões definida pelos/as CicloPedaleiros e em nada afetou a coleta de dados desta investigação, já que a pesquisa foi realizada de modo participativo e ao longo de um ano.

Após a coleta de dados, foi iniciada a análise, marcada pela realização da redução fenomenológica, exercício que compreende a análise ideográfica e nomotética. A primeira implicou diversas (re)leituras de nossas fontes de dados (diários de campo) realizadas à luz do objetivo elencado pela pesquisa. As releituras possibilitaram destacar textualmente as chamadas unidades de significado. Conforme Martins e Bicudo (1989):

[...] como é impossível analisar um texto inteiro simultaneamente, torna-se necessário dividi-lo em unidades. [...] as unidades de significado são discriminações [...] percebidas nas descrições dos sujeitos [...]. As unidades de significado [...] não estão prontas no texto. Existem somente em relação à atitude, disposição e perspectiva do pesquisador (p. 99).

Os diários foram organizados em ordem cronológica e identificados com algarismos romanos, sendo mais antigo o primeiro (I) e o mais recente o décimo sétimo (XVII), enquanto as unidades de significado foram anotadas com números arábicos (1, 2, 3 etc.), sempre reiniciando a contagem do número um em cada distinto diário de campo. No decorrer da análise citaremos algumas unidades de significado, e ao final, entre parênteses, indicaremos primeiro o diário em que ela foi registrada e depois o número correspondente à US. Por exemplo, “IX-19” significa o trecho corresponde à décima nona unidade de significado do nono diário de campo.

De maneira interdependente à análise ideográfica, ocorreu a análise nomotética, que consiste no movimento de identificação de convergências (as quais expressam alinhamentos e aproximações acerca das compreensões que os/as colaboradores/as da pesquisa comunicam) e/ou divergências (indicam pontos de vista contrários entre uma ou mais unidades de significado) entre as diferentes unidades de significado que foram destacadas (GARNICA, 1997; MARTINS; BICUDO, 1989; GONÇALVES JUNIOR et al., 2021).

Diante de convergências e/ou divergências entre as unidades de significado, ou ainda idiossincrasias (posições individualizadas), foram criadas categorias temáticas que indicaram os processos educativos decorrentes da prática social da cicloentrega. As categorias analíticas expressam o núcleo de significações que captamos dos discursos e registros constantes nos diários de campo. Esse momento, na perspectiva fenomenológica, configura-se como análise nomotética (GARNICA, 1997). No percurso traçado pelo método de inspiração fenomenológica, as categorias emergem autenticamente no momento das análises (ideográfica e nomotética), não havendo pré-indicações temáticas.

As seguintes categorias emergiram da nossa análise: A) Eu fui lá na frente falar, falei, sou dos CicloPedaleiros, empreendimento de economia solidária; B) É bão usar o capacete, viu, numa hora dessa salva; e C) Precarização é a palavra do ano. Os títulos dados às categorias foram extraídos das falas dos/as participantes.

CONSTRUÇÃO DOS RESULTADOS

A) Eu fui lá na frente falar, falei, sou dos CicloPedaleiros, empreendimento de Economia Solidária

A presente categoria emergiu dos diários quando identificamos processos educativos de engajamento na constituição do EES. De maneira geral, esse engajamento pôde ser notado quando algo foi feito de maneira autônoma, por exemplo, quando os/as participantes trouxeram ideias, firmaram parcerias com lojistas e outros/as empreendedores/as da cidade, criaram acordos, fizeram divulgação. Também se relaciona à atitude implicada dos/as participantes, como quando compareceram às reuniões, cumpriram combinados, vestiram equipamentos de segurança, demonstraram conhecer o histórico das ações e dos aspectos relacionados ao empreendimento. Engajamento pressupõe disposição, envolvimento, aprofundamento. É estar encharcado da realidade circundante, refletindo e ao mesmo tempo construindo ações transformadoras.

De acordo com a necessidade do grupo, nos reuníamos para relatar os ocorridos, pensar possibilidades, dividir tarefas, entre outros aspectos. O envolvimento dos/as participantes transparecia quando traziam novas ideias para o empreendimento, ou quando refletiam sobre as vivências trazidas pela rotina das entregas. No que diz respeito às dificuldades encontradas em relação à comunicação, Benedito e Adriano fizeram uma sugestão:

Adriano disse: ‘outra ideia, uma coisa que eu acho que a gente precisa melhorar muito no nosso empreendimento é a questão da comunicação, de todo mundo saber de tudo que tá acontecendo’. Benedito comentou: ‘Será que a gente não poderia pensar em desenvolver um aplicativo?’. Adriano disse: ‘eu imagino um aplicativo, não sei como seria para construir ele, né? Que que seria possível, né? Mas eu imagino que um aplicativo daria para fazer muito, chamar muito cliente assim. Ele chega, tem tudo lá, cê coloca já de onde cê é pra onde cê quer e ele já calcula o preço, calcula a rota, já aparece tudo pra gente, não precisa ficar procurando mapa. Eu pensei até em fazer um legal, eu pensei em fazer um jogo de entrega de bike, tá ligado? Um bagulho que você entra lá, tal fulano pediu tal entrega, aí você tem que ir lá com a bicicletinha, pá e fazer a entrega. Um que tivesse vinculado ao nosso aplicativo, entendeu? Porque a pessoa baixa pra jogar e já aparece nosso empreendimento. Aí a gente coloca dificuldades, os desafios do dia a dia dos CicloPedaleiros, oh você saiu e está chovendo pra caramba, seria um jogo educativo’. Benedito comentou: ‘no final aparecia a mensagem: você perdeu, você entendeu por que a entrega custa esse preço? Muito educativo’. Todos/as riram da possibilidade. Adriano continuou: ‘Daí você passa maior perrengue e recebe cinco reais pela entrega, depois aparece a mensagem, você precisa trocar de peças, duzentos e trinta reais, você conseguiu só, fez 10 entregas e conseguiu cinquenta’. Dessa vez ninguém riu (XI-11).

Embora a realização do aplicativo não tenha sido possível, a ampliação do empreendimento necessitava de novas parcerias para as entregas, da procura de empreendedores/as que usassem o serviço, bem como da busca por mais clientes. Por conta desse diálogo sobre expansão, Odair, de maneira autônoma, buscou fazer parceria com um mercado do seu próprio bairro, na periferia da cidade. Ainda que essa atitude não tenha sido aprovada previamente, a participação ativa de Odair trouxe abertura para que pudéssemos pensar novas formas de divulgação das cicloentregas.

A novidade trazida por Odair fez com que avaliássemos a possibilidade de divulgar melhor o empreendimento na região sul da cidade, onde poderíamos encontrar interessados/as em contratar os nossos serviços. Com o desenvolvimento dessa ação, poderíamos ter dois pontos de distribuição na cidade: um no bairro Cidade Aracy e outro no centro. Encaminhamos que essa será uma das nossas ações nas próximas semanas (I-2).

O comparecimento às reuniões do Fórum Municipal de Economia Solidária também emergiu como engajamento, uma vez que era fundamental estar em contato com outros EES e integrar o movimento de Economia Solidária. A reunião era mensal e o aviso chegava sempre por correio eletrônico. Contudo, o e-mail cadastrado era o da Fernanda, que não estava participando tanto do grupo naquele momento, devido a um outro trabalho em que estava envolvida. Conversando sobre o repasse dos e-mails, “Leandro sugeriu inserirmos os dados dele para interlocução com o Fórum” (IX-5). Depois disso passamos a nos revezar para ir às reuniões e aos poucos fomos construindo nossa identidade naquele espaço.

Benedito lembrou Adriano de dar os repasses da última reunião do Fórum Municipal de Economia Solidária. Ele disse: ‘Ah foi massa ontem a reunião aí da economia solidária, eles falaram várias coisas, que não dá pra falar tudo agora, né? Porque foi uma reunião de algumas horas, mas aí, foi só na real assim, na parte que no, nos informes, aí quando perguntou mais algum informe, eu fui lá na frente falar, falei, sou dos CicloPedaleiros, empreendimento de economia solidária, aí o pessoal falou que já conhecia, aí eu vim avisar que a gente tá de volta aí, daí a galera bateu palma, foi muito da hora, aí fizeram umas perguntas ‘aí quanto que é?’ Eu ‘ah, a gente tem uma tabela que a gente tá vendo ainda, R$3,00 o mínimo, R$1,50 o km’, aí outro já perguntou ‘e carregam qualquer coisa?’, aí eu respondi ‘qualquer coisa que dá pra levar na bike’, porque se fala qualquer coisa já vai pedir pra levar uma geladeira, um botijão, aí fizeram umas piadas e eu falei ‘então é isso aí, tamo de boa’ e sentei de novo (IX-26).

A superação de dificuldades na criação de estratégias e melhorias para nossa organização também está nessa categoria. Em certa entrega feita por Leandro, a consumidora não o pagou, alegando que já havia pago a outro ciclista do mesmo grupo, seu Odair. Contudo, seu Odair não lembrava de ter recebido nenhum valor a mais na semana anterior, quando ele foi à casa da cliente. Refletimos sobre o assunto, mas não foi possível saber o que havia acontecido (se Odair não atentou ao pagamento de duas entregas; ou se a pessoa confundiu sobre os valores). Naquele momento, fizemos um rateio para que Leandro não ficasse sem receber e depois encaminhamos soluções:

Conversamos sobre o problema e com o intuito de evitarmos que se repetisse, pensamos em confeccionar vales. Os vales funcionariam da seguinte forma: a pessoa que contrata regularmente o serviço pode comprar os vales. No momento da entrega do produto, ela dá um vale ao/à cicloentregador/a como pagamento pelo serviço. Fizemos os vales em uma gráfica e mandamos plastificar. Fernanda foi buscá-los e os trouxe na reunião. Dividimos por cor, cada participante recebeu cinco vales da mesma cor, tinha verde, amarelo e vermelho. As diferentes cores servirão para sabermos com quem está o dinheiro, ou seja, para quem foi pago. Fernanda ficou com os vermelhos, Leandro com os amarelos e Odair com os verdes. A ideia dos vales foi da Fernanda e ela mesma fez a arte em um programa de computador (VI-6).

Outra dificuldade superada pelo grupo foi a falta de recursos para a confecção de um uniforme para identificação visual. Discutimos sobre a necessidade de vestir blusa de ciclismo para realizar as entregas, pois além de própria para o trabalho, é mais fresca que as camisetas comuns. No entanto, o grupo não dispunha de dinheiro para tal, já que cada blusa, confeccionada com tecido tipo dry fit e com bolsos atrás, custava em torno de R$70,00. Sobre este problema conversamos e encontramos uma solução:

Adriano comentou que tem um quintal grande em casa e que poderíamos utilizá-lo para fazer uma festa em prol dos CicloPedaleiros. Leandro deu outra ideia: fazer uma pizzada ou hamburgada, pois comida dá muito dinheiro. Dialogamos sobre todas essas possibilidades e decidimos começar rifando uma revisão completa de bicicleta e depois, com o dinheiro da rifa, fazer uma festa com pizza e hambúrgueres. O custo do uniforme é de R$70,00 por pessoa (precisaremos de 5 uniformes em um total de R$350,00), então, em princípio, cada um/a deveria vender 20 rifas. Com a venda de 120 rifas arrecadaríamos R$240,00. Com esse valor poderíamos comprar os ingredientes das pizzas e dos hambúrgueres, ver se alguém poderia cantar e tocar músicas de forma voluntária e fazer a festa para arrecadar o restante. Todos/as concordaram e ficamos de encaminhar dessa maneira (VIII-10).

Os/as participantes, de maneira implicada, demonstraram pertencimento, criatividade e proatividade na condução das atividades e dificuldades, bem como nas decisões que envolviam o EES. Registramos o quão importante para a constituição desse empreendimento solidário foi a construção de processos educativos de engajamento e autonomia, os quais entendemos, assim como Freire (2016) e Oliveira et al. (2014), fundamentais para uma educação cheia de sentido, quer seja em ambiente não escolar, como no caso deste EES, quer seja no ambiente escolar.

B) É bão usar o capacete, viu, numa hora dessa salva

As notas registradas explicitaram relações cotidianas dialógicas entre os/as participantes do EES CicloPedaleiros, cujas atitudes e falas foram, em grande medida, pautadas em processos educativos de solidariedade, cooperação e cuidado com outrem, conforme previstos na ES (SINGER, 2002). Relações dialógicas pressupõem horizontalidade entre todos/as, cujo envolvimento promove espaços acolhedores de fala e escuta. É estar atento a outrem e ao conjunto, compartilhando responsabilidades, processos e visões de mundo.

Durante o tempo de convivência tivemos como acordo coletivo o uso dos equipamentos de segurança, que a princípio eram calçados fechados e capacete. Existem outros que são convenientes no uso da bicicleta, tais como óculos de proteção e luvas, porém, devido aos custos, não entraram nos nossos acordos. Discutimos que o uso dos equipamentos de segurança fazia diferença na preservação da vida em meio ao trânsito e também porque nos dava maior credibilidade perante os/as consumidores/as.

Odair, por exemplo, expressou cuidado com outrem quando relatou seu envolvimento em um acidente, que ocorreu no retorno para casa, após concluir afazeres pessoais no centro da cidade. Segundo o relato, ele estava à direita da via pedalando a bicicleta e a motorista do carro o atropelou ao fazer uma conversão não sinalizada. Odair caiu, bateu com a cabeça na calçada, e como estava sem capacete (item de segurança que, pelos acordos do grupo, deveria estar usando) teve escoriações leves no couro cabeludo. Ao término do relato, Odair lembrou que Leandro também não gostava de usar o capacete e decidiu aconselhá-lo: “ô Leandro, mai é bão usar o capacete, viu, numa hora dessa salva” (V-6). A fala de Odair demonstrou cuidado e carinho com Leandro, pois sua experiência poderia auxiliar o companheiro a ter outra visão sobre o uso do equipamento de segurança.

O cuidado com outrem ocorria entre os/as participantes, mas também podia ser notado na relação entre participantes e consumidores/as. Certa vez fomos realizar entregas juntos/as, com o intuito de padronizar os processos envolvidos no trabalho. Quando chegamos à casa da cliente apertamos a campainha e ela, “ao abrir a porta, sorriu em ver todos/as juntos/as. Perguntou como estávamos e se queríamos água. Odair respondeu que queria e ela foi pegar” (I-11). Sempre carregamos garrafas de água, mas naquele dia quente, já estávamos sem; portanto, compreendemos que foi um sinal de cuidado e atenção da cliente para conosco.

Todavia, tivemos alguns impasses nas parcerias que foram se construindo ao longo da trajetória. Havia uma produtora artesanal que queria realizar entrega de seus produtos por meio do nosso EES, considerando que tinha relação com o negócio dela, pois ambas as marcas estavam ligadas à sustentabilidade. O problema é que essa pessoa morava distante de nossa base e definia para os/as seus/as clientes um valor para a cicloentrega menor do que cobrávamos. O incômodo causado por essa situação rendeu reflexões e unidade de significado divergente na construção desta categoria, conforme segue:

Benedito perguntou quem era a moça e Leandro disse que era a pessoa que morava em um condomínio distante e queria que cobrasse só R$5,00 ou R$6,00 por entrega. Andréia disse que poderíamos propor alternativas para esse caso, como buscar os produtos uma vez por semana, ou pedir para que ela trouxesse até o centro. Leandro comentou que ninguém mais quer fazer as entregas dela, porque são longe e ela quer estipular o nosso preço, ou seja, ela cobra o preço que quer pelos produtos dela e depois diminui o preço do nosso serviço para que o conjunto não fique caro para o/a consumidor/a dela. Entendemos que isso (pedir para reduzirmos o valor da cicloentrega) teria nos desestimulado a atendê-la (IX-16d).

Nesse caso não houve cuidado com outrem. Nos EES, a decisão sobre o preço de produtos e serviços é feita por meio do plano de negócios e do estudo de viabilidade econômica, que considera todos os aspectos do trabalho e seu contexto, e define-se um cálculo justo sobre o valor a ser cobrado. No caso das cicloentregas, chegamos a um valor por quilômetro, que estava descrito na nossa tabela de preços (sempre repassada aos/às clientes e parceiros/as). Estipular o preço do nosso serviço ou baixá-lo para além do que foi calculado como justo precariza não só o trabalho, mas também as relações entre EES e parceiros/as. Após diversas conversas com a produtora, sem sucesso na resolução do problema, optamos por encerrar a parceria.

Compreendemos que o diálogo é elemento imprescindível, pois transforma relações comuns em solidárias. Durante as reuniões dialogávamos sobre tudo o que ocorria ou iria ocorrer nos próximos dias. Às vezes nos detínhamos em pontos específicos, até que todos/as estivessem de acordo com os encaminhamentos; em outros momentos, o grupo já estava coeso e as decisões eram mais rápidas. Em dada ocasião, Odair demonstrou seu incômodo com os escritos enviados no aplicativo de conversas:

Odair disse ‘escrever é ruim, né? Eu acho que fica escrevendo um monte de coisa, cê vê, eu pegava tudo escrito, mas não tava entendendo quem que era, eu vejo que num falavam assim escrito vai rolar, é mais melhor em áudio, eu acho bonito quando fala em áudio: Odair dá pra fazer essa entrega? É quatro entrega. Eu acho melhor, dá pra entender e você entender, eu também, né? Eu não sei bem escrever, não’. Leandro disse: ‘Nos assuntos mais específicos a gente manda um áudio, seu Odair’. Benedito completou: ‘Eu acho mais fácil também, então a gente manda só áudio’. Combinamos de só mandar áudio (IX-25).

Porém, houve momentos em que o diálogo foi mais tenso. Precisávamos conversar sobre a reclamação de um cliente, que ficou incomodado por Odair querer conversar longamente no portão, o que o atrasou nos afazeres diários. O cliente solicitou, por meio de outra pessoa, que o/a entregador/a fosse mais breve nas palavras. Durante a reunião, Leandro se exaltou, chateando Odair, gerando outra unidade de significado divergente nesta categoria:

Antes do final da reunião, Leandro retomou com o Odair a reclamação feita pelo moço que recebe as marmitas. Ele iniciou a conversa em um tom de voz alto e forte, dizendo que algumas pessoas gostam de conversar no portão, mas que outras não. Ele entende que Odair adora contar histórias, mas que seria oportuno, durante o serviço, limitar-se apenas à entrega e caso as pessoas puxassem assunto, conversar. Se não, ‘é só entregar e ir embora, fazer outras coisas, dormir’, disse Leandro. Odair reagiu, disse em voz alta ‘eu não fiz nada não Leandro, num falo com ninguém’. Leandro alterou novamente a voz, falou que para o/a cliente ‘não importa se sua bike foi roubada ou se você se perdeu no caminho, ele só quer receber o produto’ (VII-30d).

Durante um dos nossos encontros, Odair ampliou sua visão de mundo ao experimentar o estranhamento em beijar outro homem no rosto. Estávamos todos/as sentados em roda e Leandro chegou por último, cumprimentado cada um/a com beijo no rosto. Quando foi beijar Odair, o mesmo se afastou, advertindo Leandro que homens se cumprimentam com aperto de mão e não com beijo. Incomodado com o comentário, Leandro indagou Odair sobre os porquês da diferença entre os cumprimentos de homens e mulheres.

Leandro pediu que ele experimentasse o novo cumprimento e aproximou-se dele abrindo os braços para receber um abraço; Odair aguardou alguns minutos, sorriu, olhou para baixo e por fim abraçou e deu um beijo no rosto de Leandro. Todos/as riram. Odair disse que não ‘tinha nada de mais mesmo’ e desculpou-se com o grupo. Fernanda comentou que gostou de ver Odair experimentando algo novo, pois era assim que o mundo ia mudando. Disse ainda que caso Odair não se sentisse confortável em abraçar e beijar Leandro, que não precisava, mas que era importante ele saber que isso é apenas uma demonstração de carinho e respeito (V-4).

Os processos educativos de cuidados com outrem também nos proporcionaram superação de barreiras. O carinho e o afeto ajudaram a aprofundar os laços entre os/as participantes, gerando empatia sobre a realidade de cada um/a. A partir disso foi possível compreender outrem por inteiro, em sua profundidade e complexidade, valorizando cada experiência ao mundo. Foi assim quando aprendemos um jeito diferente de nomear as ruas da cidade:

Conversamos um pouco mais sobre Odair, Andréia comentou que ele deve ficar aflito em relação aos endereços, pois ela acredita que ele tem dificuldades para ler. Leandro contou que acha curiosa a forma como ele salva as rotas na memória e fez o relato de um dia em que precisava passar um endereço de entrega para Odair, e conforme ia falando as ruas, ele as reconhecia do seu próprio modo, como a ‘essa é rua que a minha mulher comprava presunto’, ‘lá onde o ciclista passou por mim na contramão’, ‘onde congelava os mortos’, ‘na rua que tem a loja que lava cachorro’. Fernanda comentou que acha ‘essa forma fantástica’. Começamos a explicar os endereços para seu Odair também por meio das histórias sobre as ruas. Nunca conversamos ou combinamos nada disso, aconteceu. Acho que Odair nos ensinou a ler o mundo de outras formas (DC-IV, 10).

As relações, quando dialógicas, são respeitosas, acolhedoras, cuidadosas e abrem espaço para a construção de um mundo compartilhado, onde ampliamos nossas concepções de existência. Também é um espaço de luta, de transformação de relações opressoras e de superação de dificuldades. Possibilitam o reconhecimento do outro, consolidando ações mais justas e solidárias. O diálogo enseja a denúncia e o anúncio, provoca reflexões e humaniza relações. Faz do cotidiano a busca pela diferença, pela alternativa viável que se materializa na realidade humanizadora.

C) Precarização é a palavra do ano

Das relações de trabalho presentes no EES, emergiram processos educativos consubstanciados na terceira categoria. A precarização circundante engendrada pelo neoliberalismo foi percebida pelos/as participantes, principalmente quando comparada com a forma de trabalho proposta pela ES. A apreensão do contexto político e econômico demanda estar ao mundo, refletindo sobre as nossas ações naquilo que nos rodeia. Embora a reflexão não opere qualquer ação de transformação, é a partir dela e do reconhecimento de situações opressoras que os processos de mutação se iniciam. Foram os diálogos que nos fizeram perceber a uberização permeando nosso cotidiano em São Carlos, nos mais diversos ramos.

Recebemos uma proposta de parceria para atuar na entrega de produtos de um mercado que funcionaria de portas fechadas e venderia por meio de site e de aplicativos para celular. Curiosos/as sobre a proposta, Adriano se prontificou a representar o grupo em reunião marcada com o dono do estabelecimento. Depois, Adriano fez o relato e comentou que era uma proposta por demanda e, portanto, seria necessário ficarmos disponíveis durante todo o período de atendimento para realizar qualquer entrega que fosse solicitada. Segundo Adriano, o dono esperava ocupar todos/as os/as demais envolvidos da mesma forma:

A ideia dele é que as pessoas ganhem pelo que elas produzem, então ele quer pagar um preço justo assim, pro cara que corta a carne, um preço justo pra pessoa que faz a coleta e que recebe o pedido, um preço justo pra pessoa que coloca as coisas no carrinho, que separa, né? E o preço justo pra ele é tipo conforme a demanda, assim, então vai lá, o cara recebe o pedido daí ele vai ser pago mediante aquele pedido, né? Só que é assim, eu acho que a gente trabalha, agora nesse momento, a gente trabalha por tempo pago, né? Com a CLT8 atual, tipo, a gente trabalho oito horas por dia e é pago por essas oito horas por dia, não importa o que a gente esteja fazendo essas oito horas por dia. [...] Então, o que acontece, pra mim, eu acho que, provavelmente não vai compensar, ele vai pagar por essa mão de obra produzida, assim, mas o tempo que você tá parado, você vai tá lá aposto, né mano? E você não vai ser pago por isso, saca? Eu acho que é mais um projeto de precarização do trabalho assim, mesmo, né? [...] que nem, ele começou a me explicar com um exemplo que o dono de outro mercado chegou e perguntou pra ele ‘eu tô com dez pessoas aqui no caixa e boa parte do tempo elas estão paradas, né?’ Ele falou no final ‘então quer dizer que no final eu consigo fazer tudo o que essas dez pessoas fazem, só com duas’ e aí eu perguntei pra ele ‘o que essas outras oito pessoas vão fazer’, né? Dai ele tipo, falou pra mim ‘olha Leandro, eu sinceramente não sei dizer o que essas outras oito pessoas vão fazer. Eu queria que, tipo, ele me falasse, sei lá, que ‘ah não, essas pessoas vão ser remanejadas para outras funções, assim’, mas nem isso ele pensou’ (XV-11).

Após o relato de Adriano, iniciamos uma discussão sobre essas novas formas de trabalho e como elas são prejudiciais para os/as trabalhadores/as. Lembramos outras propostas que já havíamos recebido e que tivemos autonomia para negar, mas compreendemos que a escolha não está disponível para a maioria das pessoas. No relato de Adriano apareceu o termo precarização, novidade que gerou curiosidade em outra integrante do grupo:

‘Onde você ouviu falar precarização?’ e Leandro respondeu ‘onde eu escutei falar? Nossa, mano, em todo lugar. Velho, eu acho que precarização é a palavra do ano. Eu acho que a partir do momento que a gente viu que o Congresso estava se ajustando pra fazer uma nova CLT, pra arrumar tudo isso, a gente começou a escutar falar da precarização do trabalho, ela se tornou uma palavra mais recorrente. Tipo, acho que antes disso a gente não escutava tanto, porque, mano, sei lá, o neoliberalismo, ele estava ali sempre, né? Tipo, como algo que as pessoas, que os políticos propunham, mas ele nunca se tornou tão presente quanto agora parece, né? Agora, tipo, a ideia mudou, você tem que trabalhar, mas você tem que produzir e você só vai ser pago pela sua produção, você não vai ser pago pelo seu tempo de trabalho, então eu acho que, tipo, a partir desse momento que os políticos começaram, aqui no Brasil, começaram a se remanejar, a gente acabou escutando mais isso’ (XV-12).

Por fim, conversamos sobre as visões que tínhamos sobre as diversas situações do cotidiano e como vinham sendo ampliadas por meio da participação no EES. Essa proposta de parceria despertou em Adriano a noção de que a novidade retiraria o emprego de oito pessoas e colocaria as demais em situação de precarização. Ao trazer o assunto para a reunião, possibilitou que os/as demais também refletissem sobre isso, o que gerou uma construção compartilhada do que são formas humanizantes e desumanizantes de trabalho. Benedito relatou:

Muitas vezes é isso, né? A gente tem uma concepção de trabalho e aí algo acontece e a nossa concepção expande. Daí é muito isso, como às vezes a gente vai, num diálogo, em algum lugar, algo que acontece longe da gente, mas ouvimos falar, vai ampliando o nosso mundo, né?. Eu acho muito engraçado como a gente, às vezes, passa por momentos. Eu por muitos anos, eu me julguei muito apolítico mesmo, mano, não tava nem aí pra nada, aí eu não sei em que momento, foi um momento de virada, que tipo, eu achei que tomei conhecimento do mundo suficiente para não se manter neutro (XV-13).

Dentro dos princípios da ES, a valorização humana deve estar acima do lucro (destacado nos negócios capitalistas). A possibilidade de tomar decisões que consideram o bem-estar daqueles/as que irão realizar o trabalho é a principal diferença entre trabalhadores/as de EES e envolvidos/as com os aplicativos de empresas privadas. Houve um momento em que fomos convidados/as a entregar pizzas, e enquanto refletíamos sobre o assunto, Leandro ponderou:

‘Eu não tenho muita vontade não, de pedalar à noite’. Adriano respondeu ‘então, esquema nosso das entregas de bike, tem a questão da distância, não sei o que, pizzarias entregam para regiões bem abrangentes, assim, não sei se tem umas mais locais, porque a pizzaria, é um, é um, é então, e pizzaria é um ritmo meio frenético, assim, é mais acelerado, assim, cê vê os motoboy, maaaanooo, não sei se a gente consegue, não é que não é vontade, não sei se cabe nesse acelero, porque a pizza sai direto, e muitas vezes é abrangente, não sei’. Leandro disse que poderia funcionar se fosse uma pizzaria menor ou algo ligado à Economia Solidária e que ‘as pizzarias que funcionam, sei lá, com esse intuito mais de arrecadar grana o máximo possível não rolaria pra gente não’ (XIV-8).

Integrar um empreendimento que segue princípios solidários faz com que tenhamos repertório para refletir sobre as outras formas de trabalho e também para criticá-las desde um ponto de vista mais humano. Os processos educativos emergentes mostram a sensibilidades dos/as participantes para o contexto da uberização, da mesma forma que permite tomadas de decisões mais lúcidas, construindo alternativas ao modelo que está dado. Poder fazer diferente não exclui preocupar-se com outrem, pelo contrário, pode criar olhares mais sensíveis e implicados para a opressão.

CONSIDERAÇÕES

Esse artigo buscou discutir os processos educativos decorrentes da prática social da cicloentrega. Para tanto, compreendemos necessário contextualizar as várias faces do trabalho no Brasil, desenvolvidas dentro de um modelo econômico excludente e impulsionado nesse país a partir da década de 1990. Recentemente, a precarização do trabalho vem sendo aprofundada por meio da uberização, que retira direitos historicamente conquistados pelos/as trabalhadores/as, ao mesmo tempo que possibilita lucros grandiosos para empresas. Somado a isso, a falta de trabalho corrobora com o aprofundamento da exploração, na medida em que enfraquece a luta política e individualiza a busca por alternativas.

De outra maneira, a Economia Solidária, compreendida aqui por meio das ações dos CicloPedaleiros, tenta propor alternativas mais equilibradas, justas e solidárias. Dentro dos princípios da ES, o empreendedorismo pode ser desenvolvido por aqueles/as que estão trabalhando e criando o seu próprio negócio, de maneira insubordinada e livre. As decisões, tomadas de forma consciente, promovem a valorização humana e exploram novos horizontes.

A metodologia qualitativa nos ajudou a situar experiências em um tempo e espaço, em sujeitos e suas práxis. Por meio do cotidiano compartilhado pudemos refletir conjuntamente sobre o que foi vivenciado, trazendo um nós que ficou presente em cada participante e que, encharcados dessa realidade, tentou transformá-la. Tal atividade não se encontrou alheia ao contexto opressor, mas resistindo e mostrando que é possível construir novas perspectivas.

Enquanto prática social que engendra processos educativos, a cicloentrega possibilitou que mundos fossem ampliados por meio de novas práticas advindas do convívio. Também que os/as participantes se engajassem politicamente, percebendo a precarização circundante e valorizando quem eram e o que estavam construindo. Fez com que tivessem autonomia para estruturar e expandir o EES. E embora permeada por conflitos, transformou relações comuns em relações dialógicas. Apenas assim foi possível superar as distintas dificuldades.

Tendo em vista os aspectos observados, consideramos que em meio ao aprofundamento da precarização do trabalho, há a construção de novos repertórios, mais equilibrados, sustentáveis, justos e solidários. Desvela, assim, que o trabalho humano, embora necessário para a produção da vida, não pode ser opressor, desumanizante e promotor da segregação humana. Sendo assim, os processos educativos apresentados demonstram que é possível transformar a experiência humana historicamente constituída como vida para o trabalho em trabalho para a vida e para a libertação.

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1O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2Trata-se de um neologismo e faz contraposição a “norteado”, que subliminarmente alude ao hemisfério norte, ideologicamente apresentado como superior ao hemisfério sul. “Suleado/a” propõe que tenhamos como referência o hemisfério sul, epistemologias do sul e diálogos sul-sul. Aprofundamentos podem ser feitos nas leituras de: Santos; Meneses (2009); Freire (2018); Campos (s/d).

3Nomes fictícios escolhidos pelos/as próprios/as participantes.

4Palavra originária da língua alemã (no original escrita com trema: Über) que significa "sobre", "por cima de", "além" e na linguagem de rua (gíria) “super”, “mega”, como a expressão “top” do idioma inglês. Sendo assim, visa aludir a uma forma de transporte compartilhado, “legal”, “descolado”, “jovem” e “econômico” e que se dá via aplicativo (App).

5Campanha publicitária da empresa Uber: “Dirija apenas quando for conveniente para você. Sem escritório ou chefe. Isso significa que você pode começar e parar quando quiser. Com o app da Uber, é você quem manda.” (retirado do site da Uber: https://www.uber.com/a/join-new. Acesso em: 13 ago. 2020).

6Atualmente estão disponíveis dados até 2013 que podem ser utilizados por todos/as os/as envolvidos/as com a ES, pesquisadores/as, instituições de fomento e, inclusive, pelo governo federal, na constituição de programas e políticas públicas de apoio e fomento. Disponível em: http://sies.ecosol.org.br/. Acesso em: 13 ago. 2020.

7Aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos sob o número CAAE 02939518.9.0000.5504.

8CLT significa Consolidação das Leis do Trabalho e trata dos direitos de trabalhadores/as. Foi estabelecida pelo Decreto-Lei n. 5.452, de 1o de maio de 1943, durante a presidência de Getúlio Vargas.

Recebido: 23 de Agosto de 2021; Aceito: 28 de Março de 2022

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