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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub Feb 03, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469841804 

Resenha Avaliativa

LITERATURA PRODUZIDA POR POVOS INDÍGENAS

LITERATURE MADE BY INDIGENOUS PEOPLE

LITERATURA DE PUEBLOS INDIGENAS

1 Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais (MG), Brasil.

Carvalho, Eliana Márcia dos Santos; Santos, Renata Lourenço dos. Literatura Indígena: entre memórias, Educação em Revista. Belo Horizonte: 2022.


O artigo de Carvalho e Santos (2022) faz uma reflexão sobre a literatura produzida por povos indígenas e discute como indígenas estão se tornando produtores de conteúdo. A pesquisa foi feita através de revisão bibliográfica, com ênfase nos teóricos indígenas, e faz uma análise de excertos de obras de autores indígenas, além de trechos de lives com intelectuais indígenas. O texto divide-se em duas partes, cada uma delas com subseções: 1. Do social à literatura, 2. Indígenas e a literatura, seguidas das considerações finais - Concluindo, mas sem acabar, e das referências utilizadas para o embasamento do texto.

A primeira parte do trabalho enfoca o fortalecimento dos movimentos indígenas a partir da década de setenta. Esses movimentos, com apoio de aliados indigenistas, conquistaram na Constituição Federal de 1988 o reconhecimento do direito às terras tradicionais, ao uso de suas línguas originárias, dentre outros. Segundo as autoras, é também neste período que povos indígenas começam a utilizar mais intensamente a escrita, os textos imagéticos e os recursos audiovisuais com o intuito de não só lutar pelos seus direitos, mas também de dar a conhecer o mundo indígena, através do ponto de vista das comunidades indígenas. Na subseção - Movimentos Indígenas - a partir dos autores indígenas Ailton Krenak e Gersem Baniwa, é feito um histórico e uma problematização da legislação que trata de assuntos inerentes aos povos indígenas, priorizando a reflexão sobre o Estatuto do Índio e a referida Constituição Federal de 1988. É argumentado que a efervescência desse período contribuiu para consolidar a representatividade e a autonomia indígenas na condução dos assuntos de seu interesse.

Por sua vez, a segunda parte do texto, Indígenas e a literatura, concentra o debate sobre a produção literária indígena. Esta seção subdivide-se em quatro subseções, descritas a seguir. A subseção Antes, literatura indianista discute a literatura produzida por não indígenas sobre a temática indígena - a literatura indianista - situada no período anterior ao fortalecimento do movimento indígena. São apresentados escritores indianistas como José de Alencar e Gonçalves Dias, representantes de uma literatura que caricaturizava os povos indígenas e que contribuiu para o reforço de estereótipos e preconceitos que ainda perduram no imaginário brasileiro. As autoras apontam que esta produção literária, ao passo que enfatizava a figura do bom selvagem, ignorava as lutas dos povos indígenas por suas terras, línguas e culturas.

Na subseção dois, Literatura indígena, o conceito literatura indígena é debatido, tendo como ponto de partida as reflexões dos intelectuais indígenas Olívio Jekupé, Graça Graúna e Daniel Munduruku. A literatura indígena é definida como

aqueles textos escritos, ilustrados e idealizados pelos próprios indígenas, de dentro de suas vivências, sejam elas nos espaços rurais ou urbanos, e sejam individualmente ou de autoria coletiva, em sua maioria estimulados e iniciados como forma de registro das histórias orais dos avós, avôs, anciões e conhecedores da história local onde vivem os autores dessa literatura. (Carvalho e Santos, 2022, p. 6).

Para ilustrar do que se trata ‘literatura indígena’, dois escritores indígenas são apresentados. Um deles é Eliane Potiguara, mulher indígena pioneira na área da literatura indígena, que produziu o poema “Identidade indígena” como uma maneira de conferir sua trajetória e de sua família, em 1975” (Carvalho e Santos, 2022, p. 6). O outro autor mencionado é Kaká Werá com sua obra “Todas as vezes que dissemos adeus”, que versa sobre as vivências entre o mundo da aldeia e o mundo dos não indígenas. Esses dois autores são representativos de uma literatura indígena, ou seja, aquela que retrata as experiências indígenas a partir do próprio ponto de vista indígena.

O artigo indica, em seguida, que não só a produção de autoria individual se avolumava, mas também a produção escrita coletiva. Ressalta que a formação de professores indígenas impulsiona a pesquisa com os anciãos, fator que resulta em publicações com as histórias, memórias e saberes tradicionais, com vistas principalmente a serem utilizadas nas escolas indígenas. A pujança da produção literária indígena é evidenciada pela criação, em 2004, do Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas (NEARIN), associado ao Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (INBRAPI), do qual participam reconhecidos e proeminentes autores indígenas como: Eliane Potiguara, Daniel Munduruku, Graça Graúna, Edson Kayapó, Cristino Wapichana e Olívio Jekupé. Do NEARIN também fazem parte Kaká Werá, Lia Minapoty, Márcia Wayna Kambeba, Cacique Juvenal Payayá, Ailton Krenak, Glicélia Tupinambá.

Outro fator, consoante as autoras, que contribuiu para promover a literatura indígena é a promulgação da Lei 11.645, que rege o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena. As pesquisadoras informam haver mais de quinhentos e cinquenta títulos nessa linha editorial na atualidade. Citam obras de grande repercussão tais como “Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak (2019) que entrou para a lista Nielsen Publish News ocupando o 15º lugar da categoria Não Ficção Mundial. Esta obra foi a terceira mais vendida na Feira Literária de Paraty - FLIP, em 2019. Outra obra muito celebrada é o livro A Queda do Céu, de Bruce Albert e Davi Kopenawa Yanomami (2010). Por sua contribuição na luta pela defesa da floresta e da biodiversidade, esta obra foi contemplada em 2019, com o Prêmio Right Livelihood, considerado um Nobel alternativo.

O reconhecimento da literatura indígena também é observado pelo aumento do interesse das editoras em publicar essas obras. Como exemplos de iniciativas editoriais que promovem a publicação e divulgação das obras de autores indígenas são citados o projeto “Palavra de Índio”, um selo editorial lançado por Daniel Munduruku; a Nova Tribo, de Kaka Werá; a Coleção Vozes Ancestrais, organizada por Daniel Munduruku, e o Instituto Uka, coordenado por Cristino Wapichana e Daniel Munduruku. As autoras reforçam a importância dessas iniciativas, haja vista que durante muito tempo os povos indígenas foram apresentados a partir do olhar estrangeiro. Com base na reflexão teórica de Graça Graúna, Olívio Jekupé e Juvenal Payayá, reitera-se que a literatura indígena constitui-se em ferramenta de luta, memória, resistência e de construção de identidades indígenas. Citando o professor e pesquisador Edson Kayapó, o artigo assinala e demarca o papel da escolarização indígena na promoção da literatura indígena. A produção de literatura indígena fortalece não só as escolas indígenas mas, sobretudo, as identidades indígenas, como referido. Ao final desta subseção, a questão da autoria indígena individual é problematizada. Afirma-se que se trata de questão complexa, uma vez que mesmo obras de autoria individual apresentam conhecimentos e histórias de um povo, construídos coletivamente.

Na sequência, na terceira subseção intitulada O texto nativo, introduz-se a noção de literatura nativa cunhada por Olívio Jekupe. É analisado um trecho de uma live deste escritor em que ele aborda o referido conceito e em que reconhece ser alvo de críticas em virtude de uma alegada inconsistência da ideia de nativo. A literatura nativa é aquela que vai defender a “causa comunitária e afirmar as identidades e pensamentos de um povo, de uma aldeia, estimulando que os próprios grupos de identidade tomem para si a autoria de suas memórias, a autoria de suas histórias, sem mediadores.” (Carvalho e Santos, 2022, p. 9). As autoras indicam ser importante que a literatura nativa seja valorizada com o intuito de que as vozes indígenas sejam também valorizadas.

A quarta subseção, E então, literatura indígena ou nativa?, os conceitos literatura nativa e literatura indígena são problematizados. Argumenta-se não haver uma diferença expressiva entre os dois conceitos, uma vez que ambos tratam da escrita realizada por indígenas a partir de suas realidades. No entanto, é afirmado que nem toda literatura nativa pode ser considerada literatura indígena. Para desenvolver esse argumento, as autoras baseiam-se em Daniel Munduruku para quem a literatura brasileira é nativa, mas nem toda a literatura nativa é indígena. Ser nativo não significa apenas ser indígena. É possível ser nativo e ser quilombola, sertanejo, dentre outros. Desta forma, para demarcar o território da literatura, a noção de literatura indígena seria mais adequada.

Nas considerações finais, Concluindo, mas sem acabar, as autoras juntam os dois conceitos abordados, criando o termo “literatura nativa indígena” (Carvalho e Santos, 2022, p. 11). Reiteram que a literatura nativa ou literatura indígena, ou ainda literatura nativa indígena, tem o papel de visibilizar a história, a cultura e a língua indígenas. As pesquisadoras finalizam o artigo indicando que, na contemporaneidade, os povos indígenas são produtores de conteúdo pois, além de livros, produzem filmes, séries, documentários, cds, podcasts, rádios online, sites e blogs na internet, obras de arte, ampliando as ferramentas de registro, divulgação e alcance de sua história, memórias e lutas.

A leitura do artigo de Carvalho e Santos (2022) é recomendada, em primeiro lugar, pois a investigação tem o mérito de discutir sobre a produção literária realizada por povos indígenas, mobilizando reflexões teóricas empreendidas por intelectuais indígenas (GRAÚNA, 2013; JEKUPÉ, 2009, dentre outros). O diálogo com teóricos indígenas está em conformidade com o exercício de práticas decoloniais(SMITH, 2018; QUIJANO, 2005), cada vez mais incentivadas na academia. Em segundo lugar, o texto apresenta dados importantes sobre o fortalecimento do movimento indígena e demonstra como isso potencializou a produção de literatura por indígenas. Faz-se uma crítica necessária à literatura indianista que moldou o imaginário brasileiro acerca dos povos indígenas. As obras indianistas causam muitos prejuízos aos povos indígenas, por desumanizar o indígena ao apresentá-lo apenas como “bom selvagem” e por contribuir para invisibilizar suas lutas por direitos. A reflexão realizada contribui, em terceiro lugar, para o entendimento dos conceitos literatura indígena e literatura nativa, cunhados por pesquisadores indígenas. Mostra que intelectuais indígenas debatem e constroem noções apropriadas aos seus contextos de uso, que devem ser consideradas, valorizadas e utilizadas pela universidade. Ao nomear os intelectuais e escritores indígenas assim como algumas de suas obras, o artigo instiga a leitura desses autores e obras. Além disso, favorece uma maior compreensão sobre os povos indígenas, ainda pouco conhecidos por boa parte dos brasileiros. Por fim, a reflexão proposta tem o potencial de contribuir no debate mais amplo da formação leitores críticos (COSSON, 2016) e atentos à diversidade.

REFERÊNCIAS

Carvalho, Eliana Márcia dos Santos ; SANTOS, Renata Lourenço dos Literatura Indígena: entre memórias, Educação em Revista, Belo Horizonte, 2022. [ Links ]

COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2. ed., 6ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2016. [ Links ]

GRAÚNA, Graça. Contrapontos da Literatura Indígena contemporânea no Brasil. Belo Horizonte:Mazza Edições, 2013. [ Links ]

JEKUPÉ, Olívio. Literatura escrita pelos povos indígenas. São Paulo, SP: Scortecci, 2009 [ Links ]

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 107-130. (Coleccion Sur Sur). Disponível em: Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf . Acesso em: 03 mar. 2022. [ Links ]

SMITH, Linda Tuhiwai. Descolonizando metodologias: pesquisa e povos indígenas. Tradução Roberto G. Barbosa. Curitiba: Ed. UFPR, 2018. [ Links ]

Recebido: 15 de Novembro de 2022; Aceito: 05 de Dezembro de 2022

<mariagorete_neto@yahoo.com.br>

Editora-Chefe: Suzana dos Santos Gomes; Editora Adjunta: Maria Gorete Neto

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