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Educação em Revista

Print version ISSN 0102-4698On-line version ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.39  Belo Horizonte  2023  Epub Nov 15, 2023

https://doi.org/10.1590/0102-469848186 

Resenha Avaliativa

ASPIRAÇÕES JUVENIS PARA O ENSINO SUPERIOR 1

YOUTH ASPIRATIONS FOR HIGHER EDUCATION

ASPIRACIONES DE LOS JÓVENES A LA EDUCACIÓN SUPERIOR

JULIANA BATISTA DOS REIS1 
http://orcid.org/0000-0002-6477-5388

1 Universidade Federal de Minas Gerais(UFMG). Belo Horizonte, MG, Brasil.


“Correr atrás!” é expressão comum no repertório vocabular brasileiro para relatar um tipo de empreendimento para o alcance de algum objetivo. Em busca de compreensões sobre as aspirações e os desafios de jovens das camadas populares para o acesso ao ensino superior, Adriano Senkevics e Marília de Carvalho (2023) apresentam, no artigo “Juventude e acesso ao ensino superior: sobre o não lugar de vestibulando”, resultados de pesquisa com jovens que relatam seus modos de ação para o projeto de escolarização no nível superior. As narrativas de alguns/mas jovens também expressam a importância de “correr atrás”, mas, os/as próprios/as jovens também analisam, com reflexividade, as múltiplas desigualdades enfrentadas na mira pela universidade. A produção expõe análises sobre desigualdades educacionais, socialização escolar e familiar, desejos, pretensões e estratégias juvenis.

O texto é construído a partir de dados de pesquisa empírica desenvolvida no Distrito Federal, com a aplicação de 208 questionários e a realização de 20 entrevistas com jovens estudantes de cursos pré-vestibulares comunitários. Também são apresentadas informações sobre as características sociodemográficas e educacionais do Distrito Federal. Destaco, nesse cenário regional, a informação que

89% dos jovens brasilienses egressos do ensino médio em 2012 obtiveram uma vaga no ensino superior até cinco anos pós-conclusão da educação básica, percentual que faz com que Brasília esteja entre os cinco municípios de grande porte com as maiores taxas de transição médio superior e na liderança entre as metrópoles (SENKEVICS, 2021, p. 230).

Nesse sentido, as/os leitoras/es poderão se aproximar de narrativas e experiências de jovens que têm maior possibilidade de acesso ao ensino superior, no contexto brasileiro. O artigo estabelece interlocução com variada produção bibliográfica atual, especialmente pesquisas dos campos da Sociologia da Educação, Sociologia da Juventude e Sociologia do Trabalho que tematizam o acesso ao ensino superior, as relações juventude e escola, juventude e trabalho e os cursinhos populares.

Como em um jogo de escalas, a primeira parte do manuscrito “Contexto educacional e laboral da juventude” apresenta e analisa, de forma panorâmica, o cenário brasileiro de expansão do ensino superior nas últimas três décadas e as configurações do mercado de trabalho na contemporaneidade. Parte-se da ideia de que a juventude é grupo que espelha com intensidade as mutações nas formas pelas quais a sociedade produz indivíduos (DAYRELL, 2007). Assim, avistamos jovens das camadas populares que são a primeira geração em busca e acesso aos bancos universitários, embora também vivenciem a instabilidade e a fragilidade de relações de trabalho desprotegidas.

Na conjuntura de recessão econômica e desemprego, fenômenos como a uberização e o empreendedorismo são experiências que estipulam a urgência da juventude de “se virar para conseguir ganhar a vida” (CORROCHANO, 2014, p. 211). Vera Telles (2006), no texto “Mutações do trabalho e experiência urbana”, apresenta resultados de uma pesquisa sobre trajetórias urbanas na cidade de São Paulo, a partir dos percursos particulares de jovens inseridos/as em variadas formas de trabalho precário e subcontratação. A autora problematiza os novos sentidos da autonomia e do empreendedorismo e mostra como as experiências do trabalho e da cidade se entrelaçam, “em um tempo que celebra o desempenho, a performance e o sucesso como medidas (aliás inefáveis) de autonomia individual” (TELLES, 2006, p. 177). Estabelecendo conexões com a produção de Danilo Martuccelli (2007, p. 78), constatamos que os/as jovens das camadas populares estão “entregues a si mesmos/as” diante um quadro de provisoriedade, inseguranças e incertezas da vida estudantil e laboral. Avistando esse plano geral das estruturas coletivas, Adriano Senkevics e Marília de Carvalho (2023) citam Vera Telles (2006) para ratificar que “viração” é, portanto, um traço constitutivo da sociedade brasileira, vivido notadamente pela juventude.

O artigo alcança então as experiências juvenis expressas em falas de vestibulandos/as. Do panorama macrossocial, chegamos às singularidades biográficas pelas narrativas de 20 jovens egressos/as do Ensino Médio e estudantes de cursinhos populares. Uma síntese dos/as interlocutores/as nas entrevistas:

Quase todos nascidos de pais migrantes com baixa escolaridade, grande parte dos sujeitos encontram-se às voltas com as angústias, medos e expectativas do que fazer após a conclusão da educação básica. Quando trabalham, encontram-se em ocupações informais e reconhecidamente provisórias; quando não trabalham, ora negociam com a família uma moratória da entrada no mercado, ora buscam emprego em um cenário de precariedade agravado pela crise. Em que pesem tais dificuldades, os jovens que entrevistamos compõem uma coletividade que passa a encontrar, em seus círculos de relações imediatas na família, na vizinhança, no trabalho e na escola, exemplos concretos de quem conseguiu superar as barreiras do ensino médio e do vestibular (SENKEVICS; CARVALHO, 2023, p. 9).

As entrevistas são analisadas a partir de duas lógicas de ação/reflexão dos/as vestibulandos/as: “mérito” e “viração”. Citando o argumento dos autores: “ora percebe-se o ensino superior como uma vocação a ser reivindicada pelo esforço, ora como uma entre outras oportunidades a se ‘correr atrás’” (SENKEVICS; CARVALHO, 2023, p. 1). Apesar da distinção, compreendo que tais modos de ação e planejamento para acesso ao ensino superior também são, em alguma medida, similares. “Correr atrás”, “se esforçar”, mesmo com a capacidade reflexiva dos/as jovens de compreensão de um campo de possibilidades limitado, opera também na lógica do mérito, da competência, do esforço.

Eventualmente, a categoria “sonho”, identificada, por exemplo, na fala do jovem Tales, de 20 anos, que disse: “se eu tenho esse sonho, é para lutar por ele”, pode matizar outro tipo de percepção juvenil sobre os desejos de formação universitária, em contraposição às reais possibilidades de acesso a cursos menos privilegiados. As falas juvenis mostram as tensões e a “fricção entre princípios orientadores da ação ora sustentados nos valores meritocráticos que o vestibular atiça nas escolas e na sociedade como um todo, ora remetidos ao pragmatismo da ‘viração’ que historicamente marca as experiências escolares e profissionais das camadas populares” (SENKEVICS; CARVALHO, 2023, p. 11). A análise reforça o argumento que as condições objetivas são transformadas em esperanças subjetivas e, assim, o alcance do sonho é que perde força, e não necessariamente a perspectiva meritocrática.

A seção “Responsabilização, culpa e fracasso” desvela como os/as jovens entrevistados/as percebem, experienciam e eventualmente se responsabilizam pelo “próprio fracasso”, afinal são sujeitos que enfrentam “tardiamente” o projeto de acesso à universidade. Por um lado, eles/as concebem suas autorias nas trajetórias, expressa significativamente nas palavras de Catarina: “eu não vi um culpado, senão eu. Eu não podia culpar os meus pais, os meus professores; a única pessoa que eu tinha para eu culpar era eu mesma”. A fala da jovem dá pistas de como a ideologia meritocrática orienta as compreensões e os discursos das/os vestibulandos/as, afinal os testes para entrada na universidade são, incontestavelmente, seletivos. Por outro lado, a escola é lembrada como responsável por formações frágeis e sem sentido que impossibilitam o acesso ao ensino superior. É a própria Catarina quem conclui: “com todo o sistema educacional péssimo que a gente tem, a gente ainda tem que fazer as provas”.

Desse modo, o argumento da existência de um não lugar de vestibulando/a caracterizado pela ausência de vínculos entre os indivíduos e as instituições de ensino ou de trabalho, em minha análise, se estende ao não lugar do Ensino Médio. Tais reflexões podem aguçar o debate sobre a contemporânea e deficiente contrarreforma do Ensino Médio, regulamentada pela Lei n.o 13.415/2017, que fragiliza ainda mais o direito à educação. Desconsiderando que parte significativa da juventude brasileira não pode ser compreendida pela moratória em relação ao trabalho, o “Novo Ensino Médio” compele jovens de escolas públicas a cursarem empobrecidos itinerários de qualificação profissional que poderão ser ofertados de modo precário em escolas sem infraestrutura. Nessa configuração, a juventude precisa acomodar-se à vida escolar com um currículo pouco acolhedor das experiências diversas e desiguais, e ao mesmo tempo responsabilizar-se individualmente pela sua preparação para o futuro.

Ao final, os autores expõem que o não lugar que acomete os/as jovens de origem popular “não é o da transição, do limbo, do tempo de espera; é mais amplo, é um não lugar da vida, de uma esfera de direitos reiteradamente negada, da impossibilidade de construir uma perspectiva de futuro em longo prazo” (SENKEVICS; CARVALHO, 2023, p. 17). Essa profunda conclusão nos ajuda a problematizar a noção “nem nem” (nem estuda, nem trabalha) comumente veiculada para descrever grande contingente de jovens das classes populares. Em outras palavras, a construção da categoria “nem nem” é um arremedo, um simulacro que nomeia a juventude que tem seus direitos cotidianamente negados e, mesmo assim, precisa “se virar”, “ser protagonista” ou “nadar contra a corrente”, como bem sintetizou a jovem Luana.

O texto de Adriano Senkevics e Marília de Carvalho (2023) é um convite para que nós, especialmente professoras/es da educação básica e do ensino superior, estejamos atentas/os aos sujeitos reais que frequentam as instituições escolares, às variadas dimensões de suas experiências sociais, suas demandas e expectativas. O desconhecimento e a incompreensão das múltiplas condições juvenis nas práticas curriculares inviabilizam relações educativas significativas e reforçam a crise de legitimidade das instituições escolares.

REFERÊNCIAS

CORROCHANO, Maria Carla. Jovens no ensino médio: qual o lugar do trabalho? In: DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo; MAIA, Carla (Orgs.). Juventude e ensino médio: sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014, p. 205-228. [ Links ]

DAYRELL, Juarez. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, v. 28/100, p. 1.105-1.128, 2007. [ Links ]

MARTUCCELLI, Danilo. Gramáticas del individuo. Buenos Aires: Losada, 2007. [ Links ]

SENKEVICS, Adriano. O acesso, ao inverso: desigualdades à sombra da expansão do ensino superior brasileiro, 1991-2020. 2021. 439f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2021. [ Links ]

TELLES, Vera. Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo Social, v. 18, n. 1, p. 173-195, 2006. [ Links ]

Recebido: 25 de Setembro de 2023; Aceito: 03 de Outubro de 2023

<jubtr@ufmg.br>

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Editoras participantes do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes e Juliana Batista dos Reis

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