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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.40  Belo Horizonte  2024  Epub 20-Jan-2024

https://doi.org/10.1590/0102-469841048 

Artigos

RAZÃO INSTRUMENTAL E EDUCAÇÃO: REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA E AS NOVAS TECNOLOGIAS 1

RAZÓN INSTRUMENTAL Y EDUCACIÓN: REFLEXIONES SOBRE LA ESCUELA Y LAS NUEVAS TECNOLOGÍAS

ALINE FROLLINI LUNARDELLI1  , Responsável pelas análises e pela escrita do artigo na íntegra
http://orcid.org/0000-0002-6234-674X

ARI FERNANDO MAIA2  , Responsável pelas análises e pela escrita do artigo na íntegra
http://orcid.org/0000-0003-0539-649X

1 Universidade Estadual de Maringá - UEM. Maringá, Paraná (PR), Brasil.

2 Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista Filho - UNESP. Bauru e Araraquara, São Paulo (SP), Brasil.


RESUMO:

As reflexões da Teoria Crítica da Sociedade sobre a razão instrumental estão no cerne das análises críticas às catástrofes do século XX, representadas por Auschwitz. O imperativo ético expresso por Adorno para a educação, de que Auschwiz não se repita, segue sendo importante na medida em que as mudanças históricas ocorridas no século XXI não alteraram as características fundamentais da razão instrumental. A atual tendência de propor o ajustamento da escola às demandas criadas pelas tecnologias digitais é apontada neste artigo como um sintoma da persistência do predomínio da razão instrumental na educação. O objetivo deste artigo é criticar a forma como vem sendo proposta a inserção de novas tecnologias na escola por deixar de considerar tanto a dimensão ética da educação como as relações entre forma e conteúdo nos novos aparatos. Conclui-se que a crítica realizada ao conceito de razão instrumental continua sendo fundamental para a recuperação da discussão ética na educação.

Palavras-chave: educação escolar; teoria crítica da sociedade; tecnologias digitais

RESUMEN:

Las reflexiones de la Teoría Crítica de la Sociedad sobre la razón instrumental están en el centro de los análisis críticos de las catástrofes del siglo XX, representadas por Auschwitz. El imperativo ético expresado por Adorno para la educación, que no se repita Auschwitz, sigue siendo importante en la medida en que los cambios históricos que se produjeron en el siglo XXI no alteraron las características fundamentales de la razón instrumental. La tendencia actual a proponer la adecuación de la escuela a las exigencias creadas por las tecnologías digitales se señala en este artículo como síntoma de la persistencia del predominio de la razón instrumental en la educación. El objetivo de este artículo es criticar la forma como ha sido propuesta la inserción de las nuevas tecnologías en la escuela por no considerar tanto la dimensión ética de la educación como la relación entre forma y contenido en los nuevos aparatos. Se concluye que la crítica realizada al concepto de razón instrumental sigue siendo fundamental para la recuperación de la discusión ética en la educación.

Palabras clave: educación escolar; teoría crítica de la sociedade; tecnologías digitales

ABSTRACT:

The reflections of Critical Social Theory on instrumental reason are the heart of critical analyses of the 20th-century catastrophes represented by Auschwitz. The ethical imperative expressed by Adorno for education, that Auschwitz not happen again, remains vital as the historical changes that took place in the 21st century did not alter the fundamental characteristics of instrumental reason. In this article, we point out the current tendency to propose school adjustment to the demands created by digital technologies as a symptom of the persistence of the predominance of instrumental reason in education. This article aims to criticize how the insertion of new technologies in the school has been proposed, failing to consider both the ethical dimension of education and the relationship between form and content in the new apparatus. The criticism of the concept of instrumental reason remains fundamental for recovering the ethical discussion in education.

Keywords: school education; critical theory of society; digital technologies

INTRODUÇÃO

A análise sobre qualquer problemática educacional não poderia prescindir da premissa anunciada por Adorno (2003, p. 119) de que a mais fundamental exigência para a educação é que Auschwitz não se repita: “Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão”. Em outras palavras, a premissa continua válida porque as condições sociais, culturais e psicológicas que permitiram que Auschwitz existisse ainda se encontram presentes. A palavra Auschwitz, no texto citado, não se refere apenas a um lugar de nome alemão na Polônia, mas a um dos maiores campos de extermínio concebidos pelo Nazismo para o que chamavam de solução final: aniquilar os judeus da Europa. Auschwitz representa o uso da ciência em seus mais avançados meios para produzir a morte; metonimicamente, se refere também à disseminação de uma lógica - ao predomínio do que Horkheimer e Adorno (1985) denominaram razão instrumental. A convergência fatal de racionalidade e destruição, que persistiu operando após a Segunda Grande Guerra sob a bandeira da democracia e do Estado de Bem-Estar Social, torna-se um problema que nos desafia, algo que precisa ser compreendido em suas múltiplas manifestações, e que precisa encontrar expressão apesar do caráter inefável da catástrofe ocorrida na Polônia sob domínio Alemão.

Ademais, outro elemento que denuncia a persistência de Auschwitz é a chamada indústria cultural, em suas novas e antigas facetas (Antunes; Maia, 2018). As facetas atuais se relacionam com as novas tecnologias digitais, algoritmos que produzem tanto propaganda dirigida, mobilizando constantemente os sujeitos a uma ação que lhes parece livre, como exploram ubiquamente as capacidades dos usuários, tomando-os como matéria-prima para geração de valor. Mesmo em sua configuração tradicional, a indústria cultural recobre Auschwitz com uma camada de sentimentalismo e desloca o problema para algum lugar no passado. Como argumenta Claussen (2012), é por meio de sua visibilidade vinculada a produtos de massas que a realidade inefável do horror é encoberta e simultaneamente exposta, enquanto a racionalidade da aniquilação persiste. O elemento terrível, que desafia a possibilidade de narração, que está além da compreensão, na medida em que se trata de uma ordem racionalizada cuja finalidade é produzir sistematicamente a morte, é negado e substituído por sentimentalismo e pela ilusão de que o acontecido está superado. Agamben (2008) indica que Auschwitz desafia toda a ética que se baseia na ideia da dignidade humana e na adequação a normas. O significado ético do ocorrido segue sem ser suficientemente analisado, pois há uma distância difícil de percorrer entre constatação e compreensão.

Ainda segundo Claussen (2012, p. 47), “A cultura de massas assimilou Auschwitz. Conceituar aquilo que não é conceituável foi transformado numa banalidade trivial, da qual a humanidade deve extrair lições, cuja desimportância dificilmente se deixa esconder”. A necessidade de lidar com a culpa e com o sem-sentido do ocorrido é substituída por sentimentalidade banal, a incomensurabilidade da destruição é tornada comensurável pela contabilidade da violência, e a concórdia sobre os culpados, que já não se encontram entre nós, nos dispensa de pensar aquilo que segue se reproduzindo nas sociedades ditas democráticas: as condições que legitimam a destrutividade cega. Se Auschwitz não é meramente um lugar, mas também um logos, uma razão instrumentalizada para produzir destruição, sua proximidade deveria ser levada a sério, porque não se trata somente de algo que teria tido um fim, mas de algo que se perpetuou apesar das mudanças históricas.

Para lidar com a necessidade de refletir sobre Auschwitz seria preciso levar a sério a dialética entre cultura e barbárie, ou seja, a dialética do esclarecimento (Adorno; Horkheimer, 1985) como ponto de partida de todo ato educativo para fazer justiça ao imperativo adorniano. Ou talvez, seria preciso considerar que entre os pressupostos de Auschwitz encontram-se: um certo processo de racionalização, ou melhor, o desenvolvimento de uma razão instrumental cuja crítica está no cerne das reflexões dos frankfurtianos e que separou do saber seu elemento ético; a frieza burguesa (Gruschka, 2014) sem a qual algo como a aniquilação em bases industriais não seria legitimada; o preconceito antissemita e seus congêneres, que justificam ideologicamente o extermínio; a aniquilação do indivíduo e de sua capacidade de reflexão crítica sobre a sociedade e sobre si mesmo.

Todos esses elementos se encontram vigentes e, em muitos sentidos, foram aprofundados ou reconfigurados desde o tempo em que Horkheimer e Adorno criticaram a razão instrumental. A pandemia de covid-19 nos ofereceu exemplos explícitos da mentalidade que justifica Auschwitz: se desprezou o risco de morte, os meios para evitar o contágio foram ridicularizados e novas tecnologias digitais foram mobilizadas para divulgar notícias falsas que levaram incontáveis pessoas à morte. Muitas pessoas morreram por causa da razão instrumental operando pela morte, não por um elemento da natureza, um vírus, o que significa que uma das tarefas urgentes para qualquer educador é identificar as novas formas pelas quais se manifesta esse tipo de racionalidade. Razão instrumental identifica a matematização do conhecimento; o predomínio do elemento quantitativo sobre as qualidades; a supressão da dimensão ética do saber; a burocratização da sociedade que torna os escritos de Kafka retratos fiéis das tendências à destruição da subjetividade e da liberdade do indivíduo; a generalização da lógica da troca mercantil para todas as relações humanas, entre outras características.

Se Auschwitz é tanto constelação de sentidos difíceis de abarcar, constantemente banalizados e recalcados pela exposição na indústria cultural, como metonímia de formas de racionalidade cuja expressão mais acabada é um conjunto de campos de extermínio, refletir sobre as finalidades da educação a partir desse imperativo tem algo desesperador, não somente pelo conteúdo do que se deve ter em vista, mas porque se torna explícito que temos de considerar o problema algo muito próximo e que contém elementos que costumamos identificar à própria civilização. Outrossim, não menos importante é a pergunta: que formas locais representam Auschwitz? Ou seja, ocorrências cotidianas, assim como nossos preconceitos, práticas sociais de discriminação e perpetuação da dominação, precisam também ser postos em pauta.

Assim, se tomamos a premissa ética para a educação proposta por Adorno (2003) como ponto de partida e de chegada, como fundamento necessário da ação educativa crítica, analisando as contradições que estruturam nossos processos formativos, seguiremos no movimento de estudo sobre a educação não apenas observando as práticas que criam e sustentam a escola no seu cotidiano, mas principalmente a lógica, a racionalidade que a edifica, assim como as formas sociais de discriminação, preconceito e instrumentalização da razão se apresentam na escola. Analisar criticamente a racionalidade instrumental na educação é uma das dimensões relevantes, não a única necessária à crítica, mas em um momento em que se pensa a formação escolar voltada para o mercado de trabalho, sem nenhuma preocupação com os dilemas radicais impostos pelo imperativo adorniano, torna-se crucial.

Nesse sentido, este texto se propõe a trazer elementos para uma análise sobre a razão instrumental, tal como concebida pela Teoria Crítica da Sociedade, especialmente a partir de Horkheimer (2015), na obra Eclipse da Razão, como base para a discussão sobre as conformações entre racionalidade instrumental e educação, de tal forma que a premissa sobre Auschwitz não se perca em nossas ações formativas. Nossa discussão se ampara também nas obras de Adorno (2003), Horkheimer (2015) e Adorno e Horkheimer (1985), nas quais buscamos as bases filosóficas e teóricas para compreender os processos de regressão da razão, de (de)formação cultural engendrados pela racionalidade instrumental, pelo eclipse da racionalidade objetiva e, portanto, pelo obscurecimento das possibilidades de se pensar uma formação para a crítica e a autocrítica.

As reflexões aqui desenvolvidas são parte da pesquisa de pós-doutorado, Formação e razão instrumental em tempos pandêmicos: a educação básica em Maringá - PR, realizada no período de agosto de 2021 a agosto de 2022, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Universidade Estadual Paulista - UNESP, Campus de Araraquara. A principal finalidade desse estudo foi investigar como se consubstanciou a razão instrumental na execução do Plano Emergencial para Aprendizagem Não-Presencial desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Maringá - Paraná, para a manutenção das atividades escolares durante a pandemia de covid-19.

A naturalização da frieza, expressa no descaso com a vida durante a pandemia no Brasil, nos mostrou que a aniquilação e o extermínio não estão tão distantes. Nesse sentido, torna-se necessário entender como a adoção inadvertida da tecnologia em substituição ao contato humano, impossibilitado pelas medidas de contenção do vírus, nos desumaniza ou, ainda, nos revela o aprofundamento das formas de operacionalização da razão nos espaços educativos. Assim, neste ensaio vamos nos deter aos pressupostos teórico-conceituais sobre a racionalidade instrumentalizada para analisar relações entre tecnologia e educação.

RAZÃO INSTRUMENTAL E TEORIA CRÍTICA

Considerando o conceito de Razão Instrumental como basilar neste ensaio, buscamos inicialmente em Horkheimer (2015) compreender a racionalidade subjacente à cultura industrial contemporânea. Já no prefácio de Eclipse da Razão, o autor analisa:

Parece que, enquanto o conhecimento técnico expande o horizonte do pensamento e da atividade do homem, sua autonomia como indivíduo, sua capacidade de resistir ao crescente aparato de manipulação de massa, seu poder de imaginação, seu juízo independente, são aparentemente reduzidos. O avanço nos meios técnicos de esclarecimento é acompanhado por um processo crescente de desumanização. Assim, o progresso ameaça anular o próprio objetivo que ele supostamente deveria realizar - a ideia de homem (Horkheimer, 2015, p. 8).

Discutindo as relações entre meios e fins, Horkheimer (1969) faz notar que para o homem comum, racional equivale a útil, e que o poder é identificado a uma capacidade de classificar, deduzir e concluir independentemente do conteúdo específico de que se trata em cada caso. A essa modalidade de razão ele denominou razão subjetiva. Ela se aplica a adequar determinados modos de proceder a fins mais ou menos consensuais, importando pouco se tais fins são em si mesmos razoáveis. Em suma, à razão subjetiva e instrumental importa pouco refletir sobre a objetividade dos fins, sobre seus reais ganhos para a sobrevivência da humanidade ou do indivíduo; sobrepõem-se a tais reflexões a percepção imediata de um ganho subjetivo, de um aperfeiçoamento do ajustamento do sujeito ao meio imediato, de uma ampliação da dominação. A razão nesse sentido é uma propriedade subjetiva do intelecto, que se aplica a calcular probabilidades e adequar os meios a um fim específico.

Ainda segundo Horkheimer (1969), na história da razão ocidental predominou por muito tempo uma concepção oposta, que afirmava a razão como algo inerente ao mundo objetivo tal como à consciência individual. Os grandes sistemas filosóficos, de Platão ao idealismo alemão, compartilhariam essa estrutura, dentro da qual o grau de racionalidade se media pela harmonia entre as ações individuais e a totalidade. Essa concepção incorporava aquela da razão subjetiva, considerada uma expressão parcial da razão. A ênfase da razão objetiva recaía sobre os fins, considerados mais importantes que os meios. Na razão subjetiva a ênfase recai sobre a relação imediata entre meios e fins, sendo estes ponderáveis em relação a cada objeto em tela; os fins resultam relativos.

Os dois modos de razão descritos, segundo Horkheimer (1969), existem desde o início da humanidade, e o predomínio da razão objetiva só se estabeleceu na medida em que se construiu uma crítica do pensar como faculdade de expressão subjetiva para abarcar uma objetividade absoluta, identificada mais além da capacidade de pensar dos sujeitos individuais. Embora evidentemente criticável por sua pretensão de identificar a razão a uma universalidade não histórica, a razão objetiva faz um contraponto à tendência atual de colocar sobre os sujeitos a fonte de toda forma de razão e de todos os fins instrumentalmente estabelecidos.

Formalizada, a razão subjetiva perde a capacidade de estabelecer se determinado fim é por si mesmo desejável, e as decisões éticas e políticas se fazem circunstancialmente, com referência ao gosto e à escolha subjetiva. Simultaneamente, o que resta aos sujeitos, em vista da totalidade da sociedade organizada segundo o princípio da produção e troca de mercadorias visando uma reprodução ampliada do valor, é ajustar-se ao mundo sem negociações. O princípio universal que determina os fins existe e determina a vida e a morte para além da possibilidade de ação dos sujeitos, considerados individualmente somente para que possam ser melhor manipulados. Razão subjetiva equivale a adaptação sem discussão.

A possibilidade de identificar Auschwitz como o terrível a ser evitado se perde na medida em que a formalização da razão esvazia de sentido a busca por um critério objetivo. Note-se, e isso não é o menos importante, que tampouco Horkheimer ou Adorno afirmam inconsequentemente uma adesão a princípios universais racionais de modalidade idealista. A crítica ao imperativo categórico kantiano no segundo discurso da Dialética do Esclarecimento (Adorno; Horkheimer, 1985), para ficarmos em um único exemplo, é radical: a formalização do bem sob a forma da razão burguesa justifica a barbárie ao invés de evitá-la. Enquanto isso, o Marquês de Sade, antípoda de Kant, coloca a nu, literalmente, o homem burguês e suas ambições e razões, sendo mais útil confrontar suas descrições terríveis que abraçar ingenuamente o imperativo categórico.

No entanto, dizer que Auschwitz não deve ser repetido não tem a natureza abstrata do imperativo categórico exatamente porque, de um lado, se trata de uma ocorrência histórica produzida pela ação desmedida da razão, uma que desafia nossa capacidade de conceituar, narrar e experienciar; de outro, para além da formalização da razão é possível pensar um imperativo categórico cuja universalidade não é abstrata, mas determinada pela constatação de que se persistirmos na reprodução das condições que levaram a Auschwitz, a vida se coloca em risco constante. Em outras palavras, o imperativo de que Auschwitz não se repita tem como fundamento a memória da barbárie, o confronto possível com o inominável e a compreensão de que a continuidade das condições que permitiram que isso ocorresse nos ameaça hoje.

A categoria “progresso”, portanto, deixa de ser identificável ao desenvolvimento histórico da técnica e à ampliação do domínio sobre a natureza. Essas contradições subjacentes ao progresso também são analisadas por Silva (2001, p. 28), quando considera que “[...] o processo de desenvolvimento da razão emancipada [...] provocou efeitos civilizatórios contrários aos seus pressupostos”. Não resta dúvida de que a humanidade já atingiu todos os conhecimentos técnicos para superar a fome, para minimizar a dor, para curar doenças, para garantir dignidade a todas as pessoas durante a sua existência, mas, contraditoriamente, a vida se faz indigna para a maioria dos que neste planeta habitam. Então,

Como explicar que o progresso da tecnologia e as revoluções industriais, o acervo impressionante de descobertas que a ciência acumulou no espaço de quatro séculos tenham contribuído para fazer desmoronar as promessas de felicidade e para tornar opaco o futuro no que se refere à realização das finalidades humanas? Sem a consideração dessas contradições tão incrustradas na vida histórica, não há como compreender a experiência humana nos termos da sua realidade e das suas possibilidades (Silva, 2001, p. 33, grifo dos autores).

Compreendemos que a análise sobre a opacidade das finalidades humanas não se limita a um ou outro aspecto da vida social, assim como não é circunscrita aos nossos restritos estudos e investigações acadêmicas, ainda que apresentemos uma abordagem para investigar como tem se dado a formação humana a partir das promessas de liberdade e felicidade advindas com o esclarecimento. Nessa abordagem, consideramos que o exame sobre a lógica/racionalidade que organiza a vida social seja peça relevante para montar e desmontar quebra-cabeças relativos aos processos de formação humana. A dominação, que não se apresenta somente nas relações econômicas de classe, mas também nas formas de pensamento, se faz como dominação sobre o sujeito e sobre os outros.

Com base nos fundamentos delineados por Horkheimer (2015), podemos dizer que ambos os aspectos da razão, o subjetivo e o objetivo, constituem a lógica de organização da vida, de tal forma que a razão subjetiva seria aquela responsável pelo pragmatismo cotidiano, como a faculdade subjetiva do pensar, que se ocupa da adequação dos meios para atingir os fins. Como faculdade do sujeito, ela define o que é bom, razoável e útil atendendo aos esforços particulares e aos motivos individuais, como aqueles dados na “consciência de cada um”. Não pode, por isso, se ocupar de valores éticos universais, pois, individualmente avaliado o fim da ação, não haveria bem comum. Nesse sentido, a razão subjetiva seria contraditória, uma vez que garante a manutenção do sujeito e de suas demandas, ainda que isso signifique a destruição da humanidade que ele carrega.

A razão objetiva, conforme Horkheimer (2015), possibilitou a dominação da natureza, destinada a um bem supremo, ao modo de realização dos fins últimos da humanidade; não é apenas mais uma atividade psicológica, mas, como substância espiritual do homem, trata-se da base objetiva do nosso conhecimento capaz de designar uma estrutura fundamental e abrangente do ser. Importante destacar que ambas as formas de razão estão vinculadas ao processo histórico de ampliação da dominação e, nesse sentido, têm participação na dialética entre civilização e barbárie. Mas esta dialética tem uma configuração que, na história, abarca continuidades e rupturas, sendo fundamental identificar em cada momento o que predomina e os tipos de racionalidade que ameaçam a vida.

Para além da tendência à formalização, atualmente os usos de novas tecnologias pela indústria cultural (Antunes; Maia, 2018) mobilizam constantemente os usuários explorando simultaneamente seus perfis, extraídos da análise dos dados que a “navegação” gera. Valorizadas na medida em que circulam (Dean, 2005), as mensagens trocadas se esvaziam de sentido político pela perda de valor semântico, pois passam a valer pela capacidade de gerar mobilização e circulação. A chamada razão subjetiva ganha, em sua versão digital, contornos delirantes, pois a confluência das mensagens em “bolhas” gera facções que arrasam qualquer sentido comum para a coexistência social (Lago, 2022). Nesse sentido, seria hoje ainda mais crucial a defesa da razão objetiva como fonte de tradição e, por meio de seus sistemas filosóficos, manutenção de uma pretensão de unidade fundamental entre sabedoria, ética, religião e política, rompida na ideologia burguesa. Evidentemente, não se trata de simplesmente adotar algum sistema racional idealista contra a nova indústria cultural, mas de constatar que o problema apontado por Horkheimer ainda existe:

A presente crise da razão consiste fundamentalmente no fato de que, a certa altura, o pensamento tornou-se simplesmente incapaz de conceber tal objetividade ou começou a negá-lo como ilusão. Esse processo avançou gradualmente até incluir o conteúdo objetivo de todo conceito racional. Ao final, nenhuma realidade particular pode parecer razoável per se; todos os conceitos básicos, esvaziados de seu conteúdo, tornaram-se apenas carapaças formais. Na medida em que a razão é subjetivizada, ela também se torna formalizada (Horkheimer, 2015, p. 15).

No conceito original de razão objetiva, conforme o autor, estava contido o de razão subjetiva, como aspecto da racionalidade parcial e limitado, de tal forma que a razão subjetiva, circunscrita, não podia dirigir a realidade social por não analisar as ações dos homens na coletividade. A razão objetiva seria, então, “[...] como uma entidade, um poder espiritual vivendo em cada homem. Esse poder era considerado o árbitro supremo - quando não a força criativa por trás das ideias e das coisas às quais devíamos devotar nossas vidas” (Horkheimer, 2015, p. 18).

A razão objetiva, portanto, se apresentaria como um esforço do pensamento dialético; exigência de pensar o pensamento; visão universal para determinar o bem comum e regular as ações entre os homens. Uma vez que a razão humana é finita e não pode conhecer o absoluto, o reconhecimento de sua finitude e, portanto, do sofrimento humano, seria a condição para fazer a crítica da própria razão a fim de manter a finalidade de buscar os universais necessários à preservação da humanidade. Trata-se, portanto, de buscar uma modalidade de razão objetiva vinculada ao corpo, ao sofrimento humano, à compreensão de que “Todo espiritual é impulso corporal modificado” (Adorno, 2009, p. 172), visando justamente elaborar o sofrimento de forma que ele cesse de se repetir cega e inutilmente.

Dessa forma, o trabalho da razão, do pensamento e da filosofia seria refletir radicalmente sobre as contradições da razão instrumental, de modo a recuperar propósitos coletivos, éticos e, por isso, humanos. A razão subjetiva, como funcionamento abstrato do mecanismo de pensar, como atividade psicológica individual, dá pouca atenção à questão sobre serem os propósitos em si razoáveis, materializando-se no sintoma característico de nosso tempo: traduzir toda ideia em ação, e desconsiderar cada vez mais as relações entre as ideias circulantes e a realidade social mais ampla. A ação pela ação suplanta, então, o pensamento pelo pensamento e se veem ambos anulados; a ideia não tem valor se não gera uma ação imediata: “[...] a diferença entre pensar e agir é considerada nula. Assim, cada pensamento é considerado um ato; cada reflexão é uma tese, e cada tese é uma palavra de ordem” (Horkheimer, 2015, p. 31).

A ciência, na subjetivação da razão, se reduz a certa organização e classificação de dados, àquilo que é útil, que pode ser transformado em ação. Os sistemas filosóficos da razão objetiva, como base objetiva do conhecimento, que implicavam uma estrutura abrangente ou fundamental do ser, que apresentam a visão dos estadistas, humanistas e eruditos, que reivindicam o poder de revelar a origem, a natureza das coisas e o conhecimento sobre os modos corretos de ação, é liquidada como instância de conhecimento ético, moral e religioso (Horkheimer, 2015).

Conforme o autor, ao cortar os laços de toda ideia filosófica, ética e política com suas origens históricas, abre-se o caminho para a instrumentalização e a automatização dos pensamentos, e o avanço que poderia ser gerado pelo esclarecimento, converte-se em dominação. Contraditoriamente, a tendência do esclarecimento, então, pode ser a promoção da superstição. Ao abrir mão de sua autonomia, o pensamento, a razão objetiva, transforma-se em instrumento. Quanto mais instrumentalizadas e automáticas forem as ideias, menos sentido direcionado à humanidade se verá nelas; o autointeresse substitui os motivos considerados essenciais para o funcionamento da sociedade e para a garantia do humano em cada indivíduo, governando as decisões aparentemente coletivas.

A formalização da razão tem profundas implicações práticas e teóricas. Se a visão subjetivista é verdadeira, o pensamento nada pode ajudar na determinação da desejabilidade de qualquer objetivo em si. A aceitabilidade de ideias, os critérios para as nossas ações e crenças, os princípios orientadores da ética e da política, todas nossas decisões últimas dependerão de fatores outros que não a razão. Supõe-se que elas sejam matéria de escolha e predileção, e torna-se sem sentido falar de verdade quando se toma uma decisão prática, moral ou estética (Horkheimer, 2015, p. 16).

A crítica à subjetivação e à formalização da razão, conforme Maia, Silva e Bueno (2017), envolve referenciais racionais e conceituais para se buscar uma concepção de universalidade, de ética, contra a desumanização. Caso não se faça a crítica, corremos o risco de anular a própria ideia de homem, de humanidade, restando apenas o indivíduo. A crítica incide sobre os dois polos, universal e particular, já que em ambos a lógica da identidade pode estabelecer uma tendência totalitária, seja absolutizando os universais, seja o indivíduo. Nas condições históricas particulares da sociedade administrada, a tendência à primazia dos interesses individuais, o imperativo da autoconservação, já denuncia sua vacuidade pela necessidade de, como Ulisses diante do canto das sereias (Adorno; Horkheimer, 1985), entregar-se de bom grado aos mecanismos da dominação social, enquanto a crítica ao caráter cada vez mais pervasivo da razão instrumental demonstra as tendências totalitárias da sociedade.

Na Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985) anunciavam os processos de formalização da razão dados, inclusive, pelo culto à ciência, pela identidade entre saber e poder, cuja essência seria a técnica. Para os autores, os homens renunciaram ao conceito substituindo-o pela fórmula; a aplicação do método substituiu a própria ciência, o que importa não é mais a verdade, mas o procedimento eficaz. A razão instrumental, assim, define-se também pelos seus efeitos, pelas práticas que determina, por sua eficiência.

O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode fazê-las. É assim que seu em-si torna-se para-ele. Nessa metamorfose, a essência das coisas revela-se como sempre a mesma, como substrato da dominação (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 24, grifo dos autores).

Como não há investigação científica desinteressada, nesta análise entendemos a técnica como dependente da realidade histórica e vinculada aos processos sociais, por isso seu caráter paradoxal: pode libertar os homens, assim como pode ser forma eficiente de dominação. Partindo da premissa de que a razão instrumental ainda seja a forma dominante de racionalidade, mesmo que tenha sofrido atualizações, supomos também a perda dos universais, o esvaziamento de conteúdo dos conceitos básicos de educação e de formação em nosso tempo, ou seja, o predomínio da subjetivação da racionalidade orientando as ações pedagógicas cotidianas “[...] estamos diante de uma experiência arruinada”, conforme Silva (2001, p. 33, grifo dos autores).

A formação para a experiência, segundo Silva (2001), só pode se dar como educação crítica e isso implica, necessariamente, compreender a desagregação histórica da experiência, em outras palavras, requer a análise dos processos de subjetivação e formalização da razão, determinados por movimentos históricos e sociais. Então, a educação crítica subverteria padrões adaptativos, retomaria possibilidades de uma formação do espírito, do intelecto, para a busca de finalidades universalizáveis e abrangentes.

A formalização da razão, conforme Horkheimer (2015), transfere para a vida do espírito o modelo de divisão social e mecanizada do trabalho, e essa divisão também se faz no reino da cultura. Nela, a verdade universal e abrangente se torna inerentemente relativista.

[...] tal mecanização é, de fato, essencial para a expansão da indústria: mas se ela se torna o traço característico das mentes, se a própria razão é instrumentalizada, ela assume certa materialidade e cegueira, torna-se um fetiche, uma entidade mágica que é aceita em vez de ser experienciada intelectualmente (Horkheimer, 2015, p. 31).

A crítica à formação tecnicista, que cinde a experiência intelectual e a educação do espírito, só se dá com a recusa à história e como exaltação do presente, compreendido como linearidade e progresso. No movimento dialético da história, de acordo com Silva (2001), as possibilidades são realizadas em sua própria negação, e assim, tudo o que existe poderia não existir e outra coisa poderia haver em seu lugar, de tal forma que sempre será possível outra educação, outra formação. Reconhecemos, no entanto, os limites históricos e sociais para romper com processos adaptativos, decorrentes da formalização da razão, que impedem experiências intelectuais como autorreflexão crítica, como possibilidade de emancipação. Somente na contradição encontraremos brechas para algum grau de liberdade, lembrando que o desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo, liberta e aprisiona.

RAZÃO INSTRUMENTAL E EDUCAÇÃO

Adorno (2003, p. 141) definiu a finalidade da educação como a “[...] produção de uma consciência verdadeira” que se configura como uma exigência política, “[...] uma democracia com o dever de não apenas funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas emancipadas. Uma democracia efetiva só pode ser imaginada enquanto uma sociedade de quem é emancipado” (Adorno, 2003, p. 141-142). Se educação, conforme definido pelo autor, é condição para a emancipação, e se o progresso gerado pelo avanço da racionalidade tecnológica é também condição de desumanização, torna-se imperativo analisar essa contradição, se almejamos produzir alguma resistência contra as formas de instrumentalização da educação.

Em outras palavras, a contradição em pauta deve ser considerada radicalmente porque a crítica à razão instrumental não é meramente aos usos dos objetos técnicos, à ciência aplicada e aos dispositivos sociais produzidos pela tecnociência. A crítica de Horkheimer à razão instrumental, segundo Benhabib (1986), é internalista, ou seja, o que está em foco são as formas como os conceitos e procedimentos mobilizados pela ciência produzem uma imagem distorcida da sociedade e das relações entre os homens e a natureza, calcada na dominação. Razão instrumental, portanto, é uma forma de dominação fundamentada em uma lógica da identidade que tende a ser totalitária na medida em que suprime tudo o que não se encaixa em suas premissas. As manifestações na educação são amplas: da supressão da dimensão ética à decisão de formar para o mercado de trabalho, passando pela lógica de conteúdos estanques, o desprezo por saberes não instrumentalizáveis como a arte.

Lima (2016), ao analisar a temática sobre a formação cultural e ético-política de professores, aponta as cisões decorrentes da lógica da razão instrumental, quando se separam as matérias dos processos de ensino-aprendizagem, os conteúdos dos fins e objetivos educacionais, quando se isola o científico do pedagógico, o administrativo do didático, o político do educativo, os contextos sociais dos métodos de ensino praticados. O autor enfatiza também a cisão entre formação acadêmica e formação pedagógica, ambas estabelecidas em nossa configuração social como neutras ou apolíticas. Todavia, a educação para a transformação, para a emancipação é um ato político, a emancipação como utopia apresenta a condição política da educação.

Apoiando-se em Paulo Freire, Lima (2016) fala sobre o ato de ensinar e de aprender como resistência contra o ato estritamente escolar, didático, ou como um instrumento de preparação para testes, exames e avaliações de desempenho, para medir a eficiência de métodos e instrumental didático.

Tal como a educação não pode ser neutra, também a educação dos educadores profissionais se afirma, inevitavelmente, como um projeto político-educativo em cujo seio a neutralidade axiológica não é possível, a não ser quando pretensamente apresentada como tal, caso em que se transforma em projeto puramente ideológico ao pretender esconder as suas opções e ao naturalizá-las, como se a formação de professores pudesse ser um projeto estritamente técnico-racional e, mesmo assim, sem opções e alternativas nesse plano, totalmente dominado pela racionalidade instrumental e por uma competência técnica unívoca (Lima, 2016, p. 150).

Ao considerar que a educação só se constitui como processo de transformação individual e coletiva garantindo a liberdade e a emancipação das sociedades, o autor dá ênfase ao caráter ético-político da educação, mas não como mais um conteúdo ou saber a ser ministrado em mais disciplinas, não por métodos didáticos ou novas tecnologias, mas pela transmissão testemunhal. A ética seria incorporada aos princípios gerais, às finalidades educacionais, à tentativa de resistir à racionalização da formação intelectual. Quando analisa o contraste entre o que se propõe como uma formação emancipadora e o que se apresenta como projeto social, Lima (2016) afirma que temos assistido ao programa de formação docente tecnicista e didatista, destacando complexos motivos:

[...] políticas orientadas para a produção de resultados escolares em ambiente performativo e competitivo entre escolas, sistemas de ensino, países, etc.; as avaliações em larga escala, nacionais e internacionais com recurso intensificado a exames e outras formas de avaliação estandardizada; o estreitamento do currículo, seja concedendo centralidade aos chamados “saberes essenciais” ou “disciplinas estruturantes”, seja expurgando do currículo prescrito outras áreas e saberes agora considerados supérfluos e, por essa via, hierarquizando e “racionalizando” o currículo, diminuindo cargas horárias letivas, despedindo professores que passaram a ser considerados excedentários; a maior abertura aos quesitos apresentados pelas empresas em termos de formação profissional, de acordo com as exigências “vocacionais”, de empregabilidade e de qualificação da força de trabalho, tendo em vista a modernização e a competitividade econômicas; as pressões gerencialistas sobre os professores, exercidas por novos estilos de liderança escolares, pelo escrutínio realizado através de plataformas eletrônicas, pela introdução de modos de gestão privada na escola pública; as tendências para a intensificação e a individualização do trabalho docente, especialmente dos professores mais jovens e dos precários, acompanhadas de uma perda de capacidade de ação coletiva, designadamente através da crise e da desvalorização política e social dos sindicatos e do associativismo docente; a crítica ideológica ao pensamento educacional e a tentativa de descredibilização das teorias pedagógicas e da pesquisa em educação, especialmente daquelas que são consideradas particularmente nefastas (como a sociologia da educação e a política educacional), ou dispensáveis (como, por exemplo, a história e a filosofia da educação), todas ocupando menos tempo e espaço na formação inicial (ou tendo simplesmente desaparecido), no entanto sempre invocadas por prejudicarem a formação científica na disciplina que o futuro professor virá a lecionar [...] (Lima, 2016, p. 151-152).

A essa grande lista dos complexos motivos que promovem uma educação tecnicista, apresentada pelo autor, podemos acrescentar a prática de homeschooling, tão incentivada no Brasil, especialmente durante a pandemia de covid-19. A pretensão de individualização da formação contribui ainda mais para o apagamento das finalidades abrangentes e universais que uma formação livre e consciente poderia proporcionar. Trata-se de uma falsa individualização, na medida em que o ideal de produzir uma integração ajustada às demandas de mercado suprime, no processo educativo, as formas de expressão que justamente poderiam manifestar elementos da individualidade. Ademais, em vista da totalidade social estar abarcada pela razão instrumental, as esferas da cultura e da subjetividade são cada vez mais mobilizadas pelas crises constantes da sociabilidade capitalista na expectativa de ampliar oportunidades de obter mais valor e, nesse processo, esferas da vida antes alheias ao imperativo econômico se tornam integradas.

Podemos fornecer um exemplo desse processo de falsa individualização. No momento da escrita deste artigo, nos deparamos com a divulgação do evento Festival LED - Luz na Educação, que ocorreu entre os dias 08 e 09 de julho de 2022 na cidade do Rio de Janeiro. O evento realizado pela Rede Globo e pela Fundação Roberto Marinho, em parceria com a plataforma “Educação-360 - Conferência Internacional de Educação”, teve por finalidade iluminar e disseminar práticas inovadoras em educação. Participaram do evento como convidados e debatedores, artistas, músicos, padres, médicos, educadores, jornalistas, apresentadores de programas de TV, jogadores de futebol, atores, atrizes, cantores, cantoras, poetas, consultores em educação, nutricionistas, empreendedores sociais, youtubers e tiktokers, dentre outros. A ampla diversidade de profissionais disfarça a harmonia preestabelecida de princípios e finalidades compartilhadas pelos participantes. Da programação, destacamos três atividades para ilustrar a instrumentalização da formação intelectual:

Conversa: O professor tá on!

A revolução tecnológica mudou a forma como os estudantes são atraídos pelo conteúdo didático. Com isso, professores ao redor do mundo têm precisado rever seus métodos de ensino e elaboração de material, analisando suas perspectivas para o futuro. O assunto vai ser abordado nesse encontro entre um professor de Youtube e um professor de TikTok, que vão trocar ideias e metodologias na busca por uma forma de ensino mais leve e atrativa. Com Professor Noslen (youtuber), Professora Simone Porfíria (tiktoker) e mediação de Laura Vicente (apresentadora do Multishow).

Mesa: Tecnologias digitais e analógicas: aprendendo com o melhor dos dois mundos

Para além das tecnologias digitais, são muitas as técnicas e ferramentas utilizadas nos processos de aprendizado na atualidade. De metodologias analógicas à aplicação de complexos aparatos tecnológicos, do virtual ao presencial, como tirar o melhor dos dois mundos? Essa mesa se propõe a ressignificar o que é tecnologia e como podemos utilizá-la para potencializar o aprendizado dentro e fora das salas de aula.

Com Greiton Toledo (matemático e professor), Helena Singer (líder da Estratégia de Juventude América Latina na Ashoka), Kelly Baptista (diretora da Fundação 1Bi) e mediação de Cauê Fabiano (jornalista e repórter da TV Globo).

Oficina: Narrativa Transmídia

A oficina de Narrativa Transmídia propõe um exercício teórico-prático acerca da produção de conteúdos audiovisuais em multiplataformas. Para isso, são apresentados conceitos básicos sobre a comunicação contemporânea, aplicados à criação simulada de projetos para TV e/ou internet. Além da exposição das possibilidades criativas, discutem-se também modos de dialogar melhor com os anseios do público contemporâneo, para o qual as ideias de participação e engajamento são cruciais. Assim, por meio da reflexão sobre as múltiplas telas e as diversas linguagens que permitem a circulação dos produtos, o workshop viabiliza a vivência de aspectos importantes que funcionam não só para quem faz audiovisual, mas também para quem aplica esses conhecimentos em outras áreas, como na educação. Com Tcharly Magalhães Briglia (educador e produtor audiovisual).

(Rede Globo, 2022).

Durante o evento foram distribuídos trezentos mil reais aos vencedores do Desafio LED - me dá uma luz aí, “[...] A iniciativa abriu espaço para que estudantes universitários apresentassem soluções criativas para problemas educacionais reais, vividos dentro de escolas ou universidades, e aprendessem a transformá-las em algo concreto” (Rede Globo, 2022). Os problemas educacionais, aparentemente, se restringem a resolver a questão instrumental: como ajustar a escola a uma geração “nativa digital”, ou seja, crianças imersas em dispositivos digitais desde a mais tenra idade. O pressuposto de que a escola precisa se ajustar - não que os seres humanos precisariam também conhecer e saber lidar com tecnologias analógicas, fazendo evidentemente, a crítica desses saberes - não é problematizado. A ideia de uma dimensão política na educação também não comparece, tal como a questão ética de para que se forma.

A proposta parece ser um grande espetáculo midiático em que os mais avançados recursos tecnológicos serão utilizados para conectar pessoas de vários lugares do país, do mundo, e produzir ações, “algo concreto”. O evento dá a ideia de amplitude, agregando várias áreas do conhecimento e da sociedade civil interessadas nas questões educativas. Mas é ao mesmo tempo reducionista porque volta sua programação à busca de soluções, ações, práticas “inovadoras”, desconsiderando o processo histórico e social que nos fez chegarmos ao estado atual de coisas. Parece não haver recurso tecnológico tão desenvolvido capaz de nos emancipar, de resgatar a humanidade do humano que destruiu sua própria autonomia e a mantém distante como possibilidade formativa, principalmente quando sustenta que para transformar a educação nos falta “luz led”.

A racionalidade técnico-instrumental adquiriu renovado protagonismo na formação de professores. Nada, de resto, que não tivesse já ocorrido, e por múltiplas vezes, no passado. [...] Mas restringir a educação e a prática pedagógica a questões de metódica e à construção e adoção de novas tecnologias educativas e técnicas de ensino-aprendizagem, em busca de uma eficiência e de uma eficácia que se autolegitimam em termos formais, acarreta profundas consequências na formação docente [...] A didatização da formação de professores, portanto, é tão criticável como qualquer outro protagonismo insular, e exagerado, como seria a sua sociologização, ou psicologização, de pronto transformadas em pedagogismos e didatismos de signos variados, tanto mais quanto baseados em argumentos cientificistas ou em critérios apresentados como exclusivamente técnicos (Lima, 2016, p. 153).

Ainda assim, é no encontro entre pessoas, nas contradições do que se propõe como temática para debates sobre educação, que ao mesmo tempo se constroem rachaduras na formação humana e brechas para construir o que ainda não é. Silva (2001, p. 36) mostra perspectivas de análise para se buscar processos formativos autônomos e transformadores, apontando para dois elementos interdependentes: “[...] o desprezo pela responsabilidade histórica e a desagregação moderna da integridade da experiência humana”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não se atinge a formação cultural, científica, política, ética e humana simplesmente porque utilizamos os mais modernos recursos técnicos que, via de regra, estão disponíveis para uma ínfima parcela de escolas, estudantes e educadores. Tampouco se trata de deixá-los de lado, mas de pensar criticamente o lugar que todas as técnicas ocupam na educação, seja como meios para apreender conteúdos, seja visando tornar os estudantes capazes de as utilizar sem fetichizá-las. Ademais, é fundamental uma análise crítica tanto das finalidades inscritas nos aparatos digitais aos quais se propõe que a escola se ajuste, principalmente no período pós-pandemia, como do tipo de ordem social que se prepara com sua universalização. Zuboff (2020) nos alerta para o desenvolvimento de um “Capitalismo de Vigilância”, que explora mercados futuros de controle comportamental. Seres humanos não são ratos, cujo comportamento dentro de uma caixa experimental pode ser controlado com grande eficiência, mas tampouco são imunes às técnicas comportamentais mais recentes. Ao contrário de simplesmente incluir tecnologias digitais ou ajustar-se a elas, a escola deveria preparar seus estudantes para uma cidadania ampla, também na esfera pública digital.

A desigualdade, como condição histórica constitutiva da escolarização no Brasil, deveria ser objeto de toda e qualquer proposta formativa que integrasse a experiência humana. Vídeos de youtubers e tiktokers, por exemplo, não são um problema em si, mas o que eles agregam? Com qual modelo (de)formativo eles rompem? Quais histórias eles contam? Quais críticas eles apresentam? O recurso pode variar, conforme as possibilidades científicas e tecnológicas criadas e construídas em cada período histórico, mas o que o recurso comunica? Pensando sobre uma tecnologia hoje já superada pelos aparatos digitais, Adorno (2003, p. 77) distingue questões de forma e de conteúdo que demandam reflexão contínua: “[...] para começar, o que é moderno na televisão certamente é a técnica de transmissão, mas se o conteúdo da transmissão é ou não é moderno, se corresponde ou não a uma consciência evoluída, esta é justamente a questão que demanda uma elaboração crítica”.

O que vale para a televisão deveria valer também para smartphones ou tablets, para computadores e outras tecnologias que virão. Que tipo de conteúdo queremos divulgar por meio delas? E, não menos importante: como a forma específica do aparato interfere no conteúdo? A atual tendência ao esvaziamento da dimensão semântica dos conteúdos que circulam pelos aparatos digitais, denunciada por Dean (2005), somada à tendência de circularem as mensagens mais impactantes formando “bolhas” (Lago, 2022), levam a uma crise da palavra como meio de comunicação. A escola, como lugar em que se aprende a ler e a escrever, não somente depende da palavra para se legitimar, mas deveria ser sua defensora maior, pois sem alguma instituição que proteja minimamente o ideal de sentidos universalizáveis, a perda sensível de conteúdo da comunicação faz predominar somente as reações emocionais e a manipulação política.

As variadas formas de tecnologia presentes nos espaços educativos, como se viu durante e após o período pandêmico, também precisam ser objeto de análise quando se pensa criticamente sobre a intensificação do trabalho docente, produzida a professores já sobrecarregados. Ao retirar a autonomia de docentes e de estudantes, a técnica pode ser mais um fator de promoção de violência contra, na e da escola. Essa reflexão não quer excluir as novas tecnologias do contexto escolar, o que seria absurdo porque a escola precisa lidar com o que é relevante na sociedade, mas compreender de que forma seus códigos técnicos direcionam a atividade dos usuários contra eles mesmos, contra a possibilidade de uma comunicação não dirigida, contra o desenvolvimento de uma atenção concentrada, de uma memória histórica, de um pensamento criativo.

Não se trata, portanto, de simplesmente condenar os novos aparatos. Eles têm potencialidades imensas. Sendo ainda sistemas “abertos” (Feenberg, 2017) estruturados em múltiplas camadas e abrigando múltiplas intencionalidades, eles podem inclusive ter um papel importante na formação das novas gerações. Mas para que isso seja viável em um sentido que respeite o imperativo de que Auschwitz não se repita, é fundamental considerar as relações entre forma e conteúdo nas mensagens e usos que a eles se quer dar. Sem essa reflexão básica a adoção de qualquer nova técnica no campo educativo é usada às cegas, sem crítica e sem considerar as contradições implicadas. A mera inserção de novas tecnologias na escola não resolve nenhum dos problemas relacionados à necessidade de que Auschwitz não se repita.

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Recebido: 03 de Setembro de 2022; : 06 de Setembro de 2022; Aceito: 13 de Agosto de 2023

<aflunardelli@uem.br>

<ari.maia@unesp.br>

Os autores declaram que não há conflito de interesse com o presente artigo.

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Editora-Chefe participante do processo de avaliação por pares aberta: Suzana dos Santos Gomes.

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