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Educação em Revista

versão impressa ISSN 0102-4698versão On-line ISSN 1982-6621

Educ. rev. vol.40  Belo Horizonte  2024  Epub 20-Jan-2024

https://doi.org/10.1590/0102-469840933 

Resenhas

EM FAVOR DA EDUCAÇÃO DA INFÂNCIA: MARIA LACERDA DE MOURA, O RETRATO DO SEU TEMPO

IN FAVOR OF EARLY CHILDHOOD EDUCATION: MARIA LACERDA DE MOURA, THE PORTRAIT OF HER TIME

A FOVOR DE LA EDUCACIÓN INFANTIL: MARIA LACERDA DE MOURA, EL RETRATO DE SU TIEMPO

FABIANA INÁCIA DA SILVA ASSUNÇÃO1  , Foi responsável pela escrita do manuscrito original, revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1913-7106

CHRISTIANNI CARDOSO MORAIS1  , Foi responsável pela revisão e edição da escrita e pela supervisão
http://orcid.org/0000-0001-6083-0864

1Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). São João del Rei, MG, Brasil.

GUIMARÃES, Paula Cristina David. Uma educadora republicana, : a face desconhecida de Maria Lacerda de Moura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021. 278 p.p.


Desde as últimas décadas do século XX, os estudos sobre as mulheres na perspectiva histórica vêm ganhando cada vez mais o interesse dos pesquisadores e pesquisadoras. Aprendemos que as mulheres sempre foram agentes da história e da civilização, ocupando espaços sociais diversos (LERNER, 2019). As pesquisas evidenciam que, mesmo sendo impedidas de conhecer e de interpretar a sua própria história, ou dos homens, as mulheres fizeram história. Isso nos remonta à célebre frase de Simone de Beauvoir, entoada desde meados do século XX: “as mulheres não têm passado, mas têm história” (2019, p. 35). A história das mulheres tem como componentes a exclusão, apagamentos, sabotagens, desvalorizações, mas nada disso foi suficiente para suprimir a presença feminina nos diferentes cenários que compõem o mundo (PRIORE, 2020). Algumas fontes históricas, sobreviventes desse passado de invisibilidade, nos dão provas da atuação feminina, incluindo o mundo profissional e intelectual (RAGO, 2014).

As mulheres tiveram significativa presença no contexto educacional, sobretudo com o crescente processo de feminização do magistério (CHAMON, 2005; LOURO, 2018). Contudo, os registros historiográficos que temos hoje não nos permitem dimensionar, em grande parte, o que as mulheres representaram na educação brasileira. Revistas, manifestos, jornais, entre outros documentos históricos, apresentam os homens como personagens principais das ações sociais, incluindo as de cunho educacional. As fontes disponíveis apresentam discursos que foram chancelados pelas teorias de inferioridade feminina, fortemente presentes em períodos históricos marcados pelo patriarcado e que colocavam as mulheres em lugares de menor destaque ou de invisibilidade.

Contribuindo para o preenchimento de parte dessa lacuna sobre a História das Mulheres educadoras no Brasil, Paula Cristina David Guimarães publicou o livro Uma educadora republicana: a face desconhecida de Maria Lacerda de Moura (2021). A obra é um desdobramento de sua tese de doutorado, defendida em 2016 no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. A autora é pedagoga, mestre e doutora em Educação, atua como professora no Departamento de Ciências da Educação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Suas pesquisas versam sobre a educação da infância e das mulheres em diferentes contextos e momentos históricos e têm se traduzido em diversos artigos e capítulos de livros, assim como na escrita da obra aqui resenhada.

Paula Guimarães afirma que, apesar de Maria Lacerda de Moura (1887-1945) ser uma personalidade já destacada no campo dos estudos feministas e anarquistas, tendo sido liderança desses movimentos em São Paulo na década de 1920, pouco se sabia sobre sua trajetória como educadora, que se deu na cidade mineira de Barbacena. Dessa maneira, o livro nos permite conhecer aspectos da atuação educacional dessa professora/intelectual sob um viés inovador: o de educadora republicana, por meio de seu projeto de estudo científico de educação da infância.

Fundamentado em fontes primárias inéditas, sobretudo aquelas ligadas à trajetória docente de Maria Lacerda, o livro lança luzes sobre sua atuação educacional e social, bem como de sua formação familiar e institucional, apresentando análises baseadas em conceitos que ajudam na compreensão do lugar de mulher e de intelectual que ocupou. São mobilizados autores como Jean-François Sirinelli, que trata a ideia de intelectual de forma mais ampla, entendida como aquele que media e facilita o acesso à produção do conhecimento, sendo constituído pelas relações de sociabilidade e de solidariedade que estabelecem ao longo da vida. Michel Foucault também é acionado pela autora, na compreensão das relações de poder, saber e verdade nas quais as mulheres estão inseridas, relações estas que ditam sobre sua conduta, seu corpo, discursos e atuação profissional.

O livro está dividido em seis capítulos. No primeiro, a autora apresenta a trajetória de Maria Lacerda em Barbacena, trazendo sua formação e vivência na infância, que envolveu a educação advinda da família espírita e também de uma instituição católica. Assim, revela como essa formação multifacetada foi importante para constituir a futura atuação social da então professora de Escola Normal, reverberando na sua produção escrita e em seu comprometimento com as questões educacionais de seu tempo. Utilizando fontes iconográficas, a imprensa do período e também a produção escrita de Maria Lacerda, Paula Guimarães mostra o percurso de vida de uma mulher que se voltou cedo para a educação. Segundo a autora, o início da atuação no magistério, aos 20 anos de idade, na Escola Normal de Barbacena, impactou Maria Lacerda em relação às amarras que lhes foram impostas no seu papel de mulher e professora. Essa fase reverberou na produção de crônicas para jornais, nas quais ela alertava sobre a importância da mulher no cenário educacional.

No capítulo dois, é discutido um requerimento escrito por Maria Lacerda e enviado à Secretaria do Interior de Minas Gerais, em 1919. Paula Guimarães problematiza o processo de aplicação da psicologia experimental nas escolas de Minas ao colocar o projeto de Maria Lacerda como a primeira tentativa de testagem de alunos do estado, mesmo antes de Helena Antipoff, considerada até então a precursora desse trabalho, em 1929. Para a autora, a crença de Maria Lacerda na ciência como condição de transformação e melhoria da educação se efetivou quando ela solicitou ao governo estatual autorização para aplicar testes experimentais nas escolas de Barbacena. Todas as ações desenvolvidas pela educadora em uma cidade tradicional católica do interior de Minas Gerais tinham como centro de interesse crianças e mulheres. Para ela, o corpo da criança e sua origem social deveriam ser observados e estudados com o objetivo de obter melhor desempenho escolar, principalmente os dos menos favorecidos. Ao analisar o requerimento, a autora revela que Maria Lacerda via nos testes um instrumento capaz de diagnosticar e ajudar os alunos no seu processo de aprendizagem.

Sem perder de vista o andamento do projeto da educadora, no terceiro capítulo, o destaque é dado aos caminhos percorridos pelo requerimento de Maria Lacerda dentro da Secretaria do Interior de Minas Gerais, onde o pedido foi examinado durante quase dois anos. A autora analisa os seis pareceres emitidos, sendo grande parte deles favoráveis à autorização do projeto. Contudo, o único parecer contrário foi o que determinou o desfecho da análise, autorizando parcialmente o pedido de Maria Lacerda, em que ela poderia aplicar os testes somente nas escolas isoladas. Ressalta-se que a decisão final é marcada pela desconfiança no trabalho que seria realizado pela professora, sendo permitido desenvolver seu projeto somente naquelas escolas distantes dos centros urbanos, consideradas na época como precárias, desorganizadas e ineficientes.

Diante da negativa de execução de seu projeto tal como formulado, Maria Lacerda abandonou a carreira docente e se lançou à produção escrita. Passou a registrar suas ideias sobre educação científica em alguns livros que publicou ao longo de sua vida. Acompanhando esse percurso, Paula Guimarães, no capítulo quatro, adentra na análise da primeira obra publicada, Em torno da educação (1918), em que encontra a presença da influência da trajetória inicial de Maria Lacerda em Barbacena, bem como sua atuação na Escola Normal da mesma cidade. Assim, fortemente amparada nos ideais republicanos, entendia a educação como ferramenta de transformação social. Destaca-se o projeto científico que Maria Lacerda pretendia desenvolver com as crianças mineiras por meio das diversas ciências do período, como a medicina, a psicologia e a fisiologia. Dentro das propostas elencadas em seu livro, as experiências fisiológicas, sobretudo as que trabalhavam os sentidos, foram as que mais tiveram destaque, entendidas à época como o meio mais seguro de compreender as reações do corpo infantil.

No capítulo cinco, é analisada a segunda obra publicada por Maria Lacerda, intitulada Renovação (1919), na qual se identifica o rompimento da professora com alguns ideais defendidos em seu primeiro livro, sobretudo ao apresentar um novo olhar sobre o papel das mulheres diante da formação da infância. É nesse momento que Maria Lacerda passou a ver as mulheres como agentes que necessitavam de uma educação voltada para seu desenvolvimento pessoal, e não só para o progresso da família e do país. No que se refere à formação da infância, a professora criticava o modelo tradicional e burguês que orientavam a escolarização e propunha novos projetos, referenciados fortemente em pesquisadores franceses e americanos. É também nessa obra que se iniciam suas reflexões sobre o feminismo e o sufrágio feminino, considerando a religião como a principal amarra à qual as mulheres estavam submetidas.

Paula Guimarães salienta que Maria Lacerda mobilizava diferentes sujeitos, sobretudo mulheres e crianças, com o objetivo de entender seus papéis dentro de uma sociedade excludente, preconceituosa e injusta. No que se refere à educação da infância, Maria Lacerda se pautava na importância da medicina, juntamente com ações pedagógicas para as crianças. Baseava-se nos estudos montessorianos, em que as necessidades e os interesses infantis eram guiados de acordo com a faixa etária e o estado de desenvolvimento delas. Por meio de autores como Ferrer e Guardia, a educadora apresentou um modelo de escola ideal a partir dos princípios da liberdade e da ciência na formação integral.

Merecem destaque as análises realizadas no capítulo seis, em que a autora toma como fonte a última publicação de Maria Lacerda voltada para a educação da infância: Lições de Pedagogia (1925). Trata-se de um verdadeiro manual do projeto científico que a educadora pretendeu realizar nas escolas de Barbacena, em 1919. Nele, é possível identificar as experiências idealizadas, sendo grande parte delas voltadas para a observação, a medição dos sentidos e do crescimento físico dos alunos. Outras, em menor proporção, se voltavam para a medição da inteligência ou a identificação de anomalia nas crianças. Com o intuito de explicar e demonstrar os objetivos da pedagogia e da educação, Maria Lacerda apontou condições para as professoras oferecerem a formação plena aos sujeitos. A obra apresenta possibilidades de experimentos e estudos que os professores poderiam aplicar em seus alunos, bem como informações diversas que possuíam como objetivo a formação do educador para um conhecimento amplo e diverso, na busca por uma sociedade mais justa e igualitária.

O grande investimento em pesquisa documental e o cuidado de Paula Guimarães com as análises e discussões conceituais se fez ver durante todo o livro que aqui se resenha. Ao estudar a produção bibliográfica e o projeto científico sobre as crianças e mulheres construído por Maria Lacerda, Guimarães analisou a educadora mineira como intelectual que criava uma teia de relações com outros intelectuais de seu contexto e, ao mesmo tempo, se engajava com a escolarização através do que chamava de “pedagogia científica”. Diante do exposto, o livro Uma educadora republicana: a face desconhecida de Maria Lacerda de Moura apresenta o esforço de pensar a atuação de uma mulher no campo da educação, deslocando o olhar dos leitores para o reconhecimento de uma intelectual que lutou pela formação das mulheres diante de um universo preponderantemente masculino.

O livro traz importante contributo ao campo da História e da História da Educação, ao investigar a produção bibliográfica da intelectual e do seu projeto de estudo científico da criança, a partir de análises sobre a circulação e a apropriação de saberes como ferramentas de democratização do ensino. A obra resenhada lança luzes sobre os desafios enfrentados pelas professoras, mulheres, crianças e os menos favorecidos. Ao apresentar aos leitores detalhes da vida e do pensamento de uma educadora/intelectual mineira no início do século XX, Paula Guimarães nos instiga a buscar outras trajetórias de mulheres intelectuais que estiveram engajadas com as questões de seu tempo. Revela que a atuação feminina foi expressiva no campo da educação e, mesmo assim, relegada em favor da atuação masculina.

REFERÊNCIAS

BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 5. ed.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. [ Links ]

CHAMON, Magda. Trajetória de feminização do magistério: ambiguidades e conflitos. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. [ Links ]

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019. [ Links ]

LOURO, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary(org.). História das mulheres no Brasil. 10. ed. São Paulo: Contexto, 2018. p. 443-481. [ Links ]

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2019. [ Links ]

PRIORE, Mary del. Sobreviventes e Guerreiras: uma breve história da mulher no Brasil de 1500 a 2000. São Paulo: Planeta, 2020. [ Links ]

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar e a resistência anarquista: Brasil 1890-1930. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014 [ Links ]

Recebido: 26 de Agosto de 2022; Aceito: 19 de Dezembro de 2022

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