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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.2 Florianopolis abr./jun 2018  Epub 24-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n2p447 

Artigos

La Salle e a formação de mestres-professores: as orientações contidas no guia das escolas cristãs para o ensino da aritmética

La Salle and master-teacher training: the guidelines contained in the guide of the christian schools for the arithmetics education

La Salle y la formación de maestros-profesores: las orientaciones presentes en la guía de escuelas cristianas para la enseñanza de la aritmética

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS


Resumo

Os Irmãos das Escolas Cristãs, mais conhecidos como lassalistas, têm sua trajetória institucional atrelada à história da formação de professores. Atribui-se a La Salle a criação da primeira Escola Normal no modelo como a temos hoje. Neste artigo, propõe-se apresentar e discutir alguns elementos sobre a formação dos primeiros mestres-professores, que ensinavam a ler, escrever e contar. Este estudo situa-se no campo da História da Educação Matemática, tomando como fonte histórica a obra de La Salle, o Guia das Escolas Cristãs, de 1706, traduzido para o português, em 2012, pelo Ir. Edgard Hengemüle. Constatou-se, entre outras coisas, que é com La Salle que o ensino da aritmética se eleva ao mesmo patamar da leitura e da escrita nas escolas para pobres na França do século XVII. O ensino da aritmética tem como intuito a preparação para o trabalho e para a vida. Dá-se essencialmente por meio da leitura, repetição e memorização dos números com o auxílio de cartazes, bem como com a cópia e o exercício das quatro operações, com ênfase para o uso do dinheiro. O ensino de aritmética integra uma formação mais ampla, de caráter humanista, voltada à salvação da alma e à glorificação de Deus.

Palavras-chave:  História da Educação Matemática; Aritmética; La Salle; Formação dos profissionais da Educação

Abstract

The Christian Schools’ Brothers, better known as Lasallians, have their institutional trajectory tied to the teacher training’s history. La Salle is credited with creating the first normal school in the model as we have today. In this article we propose to present and analyze elements about the formation of the first masters-teachers who taught to read, write and count. This study is in the field of History of Mathematics Education and takes as its historical source, the work of La Salle, the Christian Schools’ Guide of 1706, translated into Portuguese in 2012 by Brother Edgard Hengemüle. It was noticed, among other things, that through La Salle the arithmetic teaching starts to have the same level of reading and writing in schools for the poor in seventeenth-century France. The arithmetic teaching aims at preparing for work and life. It is essentially through the repetition and reading, the numerals memorization with the aid of posters, as well as the copying and the exercise of the four operations with emphasis on the use of money. The arithmetic teachingintegrates a broader formation of humanistic character, focused on the soul salvation and God’s glorification.

Keywords:  Mathematics Education History; Arithmetic; La Salle; Training of education professionals

Resumen

Los Hermanos de las Escuelas Cristianas, más conocidos como lasallianos, tienen su trayectoria institucional vinculada a la historia de formación de profesores. Se le atribuye a La Salle la fundación de la primera escuela normal en el modelo como la conocemos hoy. En este artículo nos proponemos a presentar y analizar elementos sobre la formación de los primeros maestros – profesores que enseñaban a leer, escribir y contar. Este estudio se sitúa en el campo de la Historia de la Educación Matemática y toma como fuente histórica, la obra de La Salle, el Guía de las Escuelas Cristianas de 1706, traducida para el portugués en 2012 por el Hno. Edgard Hengemüle. Constatamos, entre otras cosas, que es con La Salle que la enseñanza de la aritmética pasa a tener el mismo nivel de lectura y de escrita en las escuelas para pobres en la Francia del siglo XVII. La enseñanza de aritmética tiene como objetivo la preparación para el trabajo y la vida. Acontece principalmente a través de la lectura, la repetición y la memorización de los números con la ayuda de carteles, así como la copia y el ejercicio de las cuatro operaciones dando énfasis para el uso del dinero. La enseñanza de aritmética integra una formación más amplia, de carácter humanista, orientada hacia la salvación del alma y la glorificación de Dios.

Palabras clave:  Historia de la Educación Matemática; Aritmética; La Salle; Formación de los profesionales de la educación

Introdução

Os Irmãos das Escolas Cristãs, conhecidos também como irmãos lassalistas, têm sua trajetória institucional atrelada à história da formação de professores. João Batista de La Salle, o fundador da ordem religiosa, é considerado, entre outras honrarias, “Padroeiro Universal dos Professores”i, “Padroeiro dos Educadores Católicos”ii e “Patrono do Magistério gaúcho”iii.

Fonte: Extraído de Corsatto (2007, p. 28). Pintura de Joseph-Aurélien Cornet. Iconographie de Saint Jean-Baptiste de La Salle. Cahiers Lasalliens 49. Belgique: Edition Cahiers Lasalliens, 1989. p. 123.

Figura 1 – La Salle 

Sua relevância para a História da Educação é inquestionável; atribuem-se a ele e a seus mestres-professores práticas escolares que permaneceram ao longo do tempo, a exemplo do ensino simultâneo, o uso do quadro negro, das sinetas como um exemplo de materialidade do controle do tempo escolar e, principalmente, a preocupação com o ensino das quatro operações, colocando o ensino da aritmética no mesmo patamar da leitura e da escrita, como veremos ao longo deste texto.

Segundo os estudos de Riboulet (1951), Nunes (1981), Manacorda (2002), Justo (2003) e Hengemüle (2007), atribui-se a João Batista de La Salle a criação da primeira Escola Normal, o Seminário de Mestres na cidade de Reims, “cronologicamente a primeira escola deste tipo formalmente organizada na Europa em 1684iv” (NUNES, 1981, p. 144).

É bom lembrar que, já na época de João Batista de La Salle, a função do mestre não era muito prestigiada socialmente. Segundo Hengemüle (2000, p. 50),

[...] em 1698, por exemplo, uma ordem real autorizava as comunidades a impor a seus habitantes um imposto para assegurar uma renda de 150 libras aos mestres e 100 libras às mestras das pequenas escolas, quando um trabalhador qualificado – um pedreiro, marceneiro – ganhava umas 200 libras anuais. Essa baixa remuneração, aliada aos meses (não pagos) sem aula, fazia com que numerosos mestres buscassem empregos paralelos, para poderem sobreviver dignamente.

É bem provável que tenham se originado no Seminário de Mestres as primeiras orientações pedagógicas relativas ao ensino da aritmética para um coletivo de mestres-professores, que atuariam, juntamente com um grupo de alunos, seguindo o método simultâneo, no qual todos os alunos realizavam as mesmas atividades, ao mesmo tempo. Lembrando que a origem do ensino simultâneo não é atribuída a João Batista de La Salle, sendo tal método mencionado até mesmo por Comênios na obra Didática Magna – “todos ao mesmo tempo e de uma só vez” –, porém é com La Salle e os Irmãos das Escolas Cristãs que esse método passa a ser amplamente aplicado e divulgado na Europa (JUSTO, 2003).

Olhar para o passado com o intuito de conhecer as orientações pedagógicas que fizeram parte da formação dos mestres-professores no século XVII pode nos auxiliar a melhor compreender e analisar algumas das práticas presentes no cotidiano das escolas e na formação de professores no tempo presente. Não que o presente seja justificado pelo passado, mas, ao olhar para o passado, buscamos por fatos históricos, que são constituídos a partir de traços e rastros deixados no presente pelo passado, e neste diálogo entre o presente e o passado, um novo olhar para a cultura e as práticas escolares, assim como para a formação de professores que ensinam matemática, vai sendo construído. Nesse sentido, a proposta deste artigo é identificar e discutir algumas das orientações, com ênfase para o ensino da Aritmética, contidas na obra de La Salle o Guia das Escolas Cristãs, sob a perspectiva do campo de investigação da História da Educação Matemática.

Entendemos que as pesquisas no campo de investigação da História da Educação Matemática têm muito a contribuir para os processos de formação de professores que ensinam matemática no tempo presente, trazendo elementos que problematizem práticas existentes na escola e nos processos de formação de professores, que, muitas vezes, são tidas como ‘naturais’ ou transmitidas por ‘tradição’, sem que de fato se identifique, problematize e analise tais práticas na relação com outras práticas e contextos internos e externos à cultura escolar.

Autores como Michel de Certeau, Jaques Le Goff, Roger Chartier e Dominique Juliá, orientam metodologicamente o exercício de construção histórica aqui apresentado, que integra uma série de estudos aos quais a autora tem se dedicado, na esteira de suas pesquisas, desde o doutorado.

Ao trazer o conceito de práticas, entendemo-lo como modos de fazer, na perspectiva de Michel de Certeau (1994); já o de cultura escolar, como “um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e incorporação desses comportamentos” (JULIÁ, 2001, p. 10). Le Goff (1996) e Chartier (1988) nos auxiliam no modo como dialogamos com as fontes históricas.

As orientações contidas no Guia das Escolas não revelam por si só as práticas existentes no cotidiano das escolas, mas nos dão indícios de tais práticas, revelam-nos, por intermédio das normas e regras, as percepções, intencionalidades e preocupações presentes naquele contexto, e expressam, entre outas coisas, as concepções pedagógicas e educacionais que norteavam os modos de fazer dos mestres-professores. Nesse sentido, as orientações nos auxiliam a compreender a cultura escolar existente naquele contexto e nos provocam a pensar, agora com mais elementos, sobre suas ressonâncias no tempo presente.

La Salle e os Irmão das Escolas Cristã: “juntos e por associação”

La Salle nasceu em Reims, capital da Champanha, na França, em 30 de abril de 1651, em uma família burguesa de magistrados e faleceu no dia 7 de abril de 1719. Frequentou o seminário de São Sulpício de 1670 a 1672. Por volta dos 16 anos, tornou-se o cônego da catedral de Reims. Ordenou-se sacerdote aos 27 anos, nunca foi pároco, desde cedo envolveu-se com a educação. Segundo Hengemüle (2007), o cônego Roland solicitou o auxílio de João Batista de La Salle, em 1678, para que consolidasse a criação da Congregação das Irmãs do Menino Jesus de Reims, que se dedicavam à educação das meninas pobres da cidade. “Este o fez, conseguindo das autoridades locais e do rei o reconhecimento legal das Irmãs. Foi o seu primeiro envolvimento significativo com o mundo da educação.”(HENGEMÜLE, 2007, p. 9).

Meninas e meninos recebiam formações distintas, condizentes com as funções que lhes eram atribuídas socialmente e sua origem familiar. Segundo Poutet e Pungier (2001, p. 40):

Para os meninos do povo, o papel social fundamental é ajudar na subsistência da vida da família através de atividade manual, requerendo força. Desde cedo, as meninas ajudarão a mãe, com várias crianças pequenas. A opinião pública, mesmo das camadas da nobreza e burguesia, censura as mulheres com pretensões de estudos.

Na época de La Salle, a França era um país essencialmente agrícola, “mais de dois terços dos 20 milhões de franceses viviam longe das cidades” (POUTET; PUNGIER, 2001, p. 13). Desde muito cedo, as crianças precisavam trabalhar, e as escolas eram poucas ou inexistentes. Algumas, conhecidas como ‘escolas de caridade’, funcionavam ligadas às paróquias ou vinculadas às ordens religiosas, que estavam essencialmente preocupadas com a salvação da alma e a catequização, em um processo contínuo de fortalecimento da fé, “para que os cristãos pudessem escapar ao influxo das novas religiões de Lutero, Calvino Zuínglio e Henrique VIII” (NUNES, 1981, p. 141).

A pobreza tinha várias facetas, sendo associada à insegurança com relação ao amanhã, devido à falta de trabalho. Existiam pobres e miseráveis. A mendicância assolava o campo e as cidades, em um panorama em que “a menor doença implica a perda do emprego... a miséria. Estes são os verdadeiros pobres, que nem sempre conseguem matar a fome, não têm como se aquecer no inverno” (POUTET; PUNGIER, 2001, p. 30).

Contraditoriamente, embora a escolaridade fosse obrigatória pela declaração de 13 de dezembro de 1698 (HENGEMÜLE, 2001, p. 18), a frequência era inviabilizada pela necessidade do trabalho para a sobrevivência, além disso, o fato de os pobres estarem malvestidos, muitas vezes doentes, gerava uma exclusão, de certo modo naturalizada, que era evidente não somente nas escolas mas também nas ruas, nos estabelecimentos, na organização da sociedade francesa como um todo.

Nesse cenário de exclusão e insegurança, João Batista de La Salle abriu um novo caminho e fundou uma comunidade cujos membros trabalhavam ‘juntos e por associação’ nas escolas gratuitas. A partir de 1682, João Batista de La Salle e os primeiros mestres-professores passaram a morar juntos, iniciando um processo de vida em comum, formalizando o ato de associação em 1694. Segundo Corbelini (2000, p. 8),

[...] em 6 de junho de 1694, o principal objetivo está alcançado. Doze Irmãos e Jean-Baptiste de La Salle criaram a Sociedade das Escolas Cristãs, através de um contrato firmado por cada um, pelo qual se associaram com os outros do grupo, cujos nomes são citados integramente. Esse contrato implica a união e a permanência na Sociedade para ‘manter juntos e por associação’ as escolas gratuitas. Para que essa finalidade seja buscada com constância, fazem votos de estabilidade e obediência, juntamente com o voto de associação. Esse compromisso é assumido para toda a vida.

A novidade institucional trazida à Igreja e à sociedade constituiu-se na criação de uma ordem religiosa não de padres, e sim de religiosos-leigos-professores.

Os primeiros mestres-professores eram do povo, sabiam apenas ensinar a ler e a escrever, não possuíam “com efeito cultura nenhuma, nenhuma civilidade” (POUTET; PUNGIER, 2001, p. 78). Os jovens mestres-professores não recebiam salário, compartilhavam entre si um ritmo de vida particular, austero, rigoroso e construíram um regulamento diário. João Batista de La Salle morava com os professores-mestres e acompanhava-os na rotina diária, organizava ritmos de oração e aconselhava leituras espirituais. Passaram a ser conhecidos como os ‘Irmãos das Escolas Cristãs’.

João Batista de La Salle gradativamente trabalhava a formação intelectual, religiosa e humana destes jovens mestres-professores, que começavam a crescer em número, nem sempre o suficiente para atender às solicitações de novas demandas por escolas, que foram se espalhando também para o interior da França, o que requereu uma maior sistematização do processo formativo e uma entrega total ao magistério.

A formação dos mestres-professores: “o homem todo inteiro”

Uma estratégia que auxiliou na construção de uma identidade para os Irmãos das Escolas Cristãs foi o uso de um hábito diferenciado. A Figura 2 é um desenho que registra o hábito primitivo dos Irmãos das Escolas Cristãs, inspirado nas roupas dos camponeses de Champanha.

Fonte: Poutet e Pungier (2001, p. 83).

Figura 2 – Hábito primitivo dos Irmãos das Escolas Cristãs 

O uso de tal hábito tinha uma função interna e externa à ordem religiosa. As pessoas externas ao grupo logo os identificavam e associavam-nos às escolas e ao seu estilo de vida. Por outro lado, para os jovens mestres-professores, o uso do hábito implicava uma opção e compromisso com a comunidade e com os votos de pobreza, obediência e celibato, mantendo-se assim o vínculo com a Igreja, porém sem o exercício das funções eclesiásticas.

João Batista de La Salle defendia o princípio de que a educação cristã escolar das crianças requer “o homem todo inteiro”, ou seja, um homem que não divide as energias em várias tarefas alheias ao magistério. Além disso, defendia que os mestres-professores precisavam de uma formação intelectual, religiosa, moral e ao mesmo tempo prática. Nesse espírito, foi criado o Seminário de Mestres de Reims em 1686, que, segundo os estudos de Justo (2001), diferenciava-se dos seminários existentes pela sua intencionalidade, pois, enquanto os demais visavam a uma formação de natureza clerical, sendo o magistério uma consequência do sacerdócio, o Seminário de João Batista de La Salle, trazia uma nova proposta, a formação de leigos para o magistério. Nesse sentido, La Salle “adiantava-se um século e meio à nossa organização, e assim a preparava” (RIBOULET, 1951, p. 357), ou seja, atribui-se a ele a criação de uma Escola Normal nos moldes com que a concebemos hoje, acrescendo um status diferenciado à profissão professor, embora fortalecesse a vinculação entre magistério e vocação.

No Seminário de Mestres, ensinavam-se as seguintes disciplinas, segundo informações fragmentárias localizadas nos textos de Justo (2001), Poutet e Pungier (1981) e Riboulet (1951): Catecismo, Leitura, Escrita, Ortografia, Gramática, Aritmética, sistema de pesos e medidas, Cantochãov e Civilidade. Não encontramos referência ao ensino de Geometria. Todavia, ao verificar o programa do Internato de Saint-Youn, criado pelos Irmãos das Escolas Cristãs em 1705, constatamos que a Geometria se fez presente. Saint-Youn era uma escola que acolhia meninos pobres em regime de internato, direcionada a uma formação para o trabalho, mas sem uma habilitação profissional específica. Identificamos, segundo Riboulet (1951, p. 358), a presença de Geometria, Arquitetura, Ciências Naturais, Línguas Vivas, Hidrografia e Música. O que nos leva a crer que, inicialmente, os programas direcionados à formação dos mestres-professores não eram tão abrangentes e, provavelmente, foram sofrendo alterações com a expansão das escolas, que passaram a atender não somente ao ensino primário mas também ao secundário de caráter mais inclinado à preparação para o trabalho. As escolas do campo e da cidade tinham programas próprios e diversos, pois são “brotados do interior do meio escolar e não impostos por autoridades, são, antes de tudo, adequados às necessidades do povo” (POUTET; PUNGIER, 2001, p. 119).

Nos chama atenção o ensino do Latim; para as crianças, deveria ocorrer somente após o aprendizado da leitura em francês, o que é reforçado no Guia das Escolas (artigo 8º do capitulo 3): “O livro em que se aprenderá a ler em latim é o saltériovi. Nesta lição, serão colocados somente os que souberem ler perfeitamente em francês.” (LA SALLE, 2012, p. 58).

Além da formação intelectual, os professores-mestres necessitavam estudar e vivenciar a doutrina cristã católica, participar da missa, receber os sacramentos. O fim último de qualquer ação dos mestres-professores deveria ser a glória de Deus e a salvação da alma, tendo como finalidade específica “dar educação cristã às crianças” (HENGEMÜLE, 2007, p.119). Desdobramentos desta dimensão formativa religiosa, mas também moral, podem ser identificados quando João Batista de La Salle define as doze virtudes que deve ter um bom mestre, a saber: 1) gravidade, 2) o silêncio, 3) a discrição, 4) a prudência, 5) a sabedoria, 6) a paciência, 7) a reserva, 8) a bondade, 9) o zelo, 10) a vigilância, 11) a piedade e 12) a generosidade.

Paralelamente a uma formação intelectual, religiosa e moral, os mestres-professores vivenciavam uma formação profissional prática atuando em escolas de aplicação. As práticas de ensino realizavam-se na presença e sob orientação de um Irmão mais experiente, denominado de “formador de novos mestres”. Segundo La Salle (2012, p. 302), “é necessário exercitá-los frequentemente, no decorrer do noviciando, a darem aula; ensinar-lhes o modo de nela haver-se em tudo, depois que já tenham uma boa noção de como se leciona e antes de fazê-los entrar na aula para dá-la”.

Segundo as orientações do Guia das Escolas Cristãs, a formação dos novos mestres consiste em duas coisas: eliminar nos mestres o que eles têm, mas não deveriam; fazê-los adquirir o que lhes falta e que lhes é muito necessário ter. Nesse sentido, o que se deve eliminar nos novos mestres é: 1) o falar, 2) a agitação, 3) a leviandade, 4) a precipitação, 5) o rigor e a severidade, 6) a impaciência, 7) a aversão a alguns, 8) a lentidão, 9) a negligência, 10) a frouxidão, 11) o desânimo fácil, 12) a familiaridade, 13) as preferências e amizades particulares, 14) o espírito de inconstância e improvisação e, por fim, 15) o exterior desconcentrado, avoado ou pregado, fixo nalgum ponto. Para cada um desses itens são explicitados modos de agir que valorizam o controle, a disciplina do corpo e da mente, o rigor e o autocontrole. Por sua vez, as coisas que se devem fazer adquirir aos novos mestres seriam: 1) coragem, 2) autoridade, 3) circunspecção: exterior grave, digno e modesto, 4) vigilância, 5) atenção sobre si mesmo, 6) compostura, 7) prudência, 8) aspecto animador e atraente, 9) zelo e 10) facilidade para falar, para expressar-se com clareza e ordem, ao nível dos meninos aos quais ensinam (LA SALLE, 2012).

O Guia das Escolas Cristãs e as práticas dos mestres-professores para o ensino de Aritmética

O Guia das Escolas Cristãs, redigido como um regulamento, é resultado de manuscritos de João Batista de La Salle, originalmente produzidos entre 1704 e 1706. A primeira edição impressa é de 1720, um ano após o falecimento de seu autor. Neste estudo, utilizamos a tradução para o português dos manuscritos de 1706, realizada pelo Ir. Edgard Hengemüle, publicada em 2012 pela Editora Unilasale.

Fonte: Guia das Escolas Cristãs (LA SALLE, 2012, p. 4).

Figura 3 – Página de rosto da edição do Guia das Escolas Cristãs publicada em Avinhão, em 1720 

O Guia das Escolas Cristãs é fruto das experiências acumuladas e discutidas entre os Irmãos das Escolas Cristãs nos primeiros 25 anos após a criação da primeira escola lassalista na França. Segundo o prefácio da edição de 2012, o Guia divide-se em três partes, embora na edição de 1720 se faça menção somente às duas primeiras. Isso porque a terceira foi localizada em 1953 pelo Irmão Joseph D’Haese, em manuscrito, e inserida a sua versão impressa, sendo também anexada à versão de 2012. Na primeira parte, são tratadas as atividades da escola e o que se faz nela, desde a entrada até a saída. A segunda parte expõe os meios necessários e úteis, dos quais os mestres devem servir-se para estabelecer e manter a ordem nela. A terceira parte trata, primeiro, dos deveres do Inspetor das Escolas; segundo, do cuidado e empenho que deve ter o formador dos novos mestres; terceiro, das qualidades que os mestres deverão possuir ou adquirir, da conduta que devem ter para desempenharem bem as obrigações escolares; quarto, dos deveres dos alunos (LA SALLE, 2012, p. 20).

Nos detivemos às orientações relativas aos modos de fazer dos mestres-professores no que se refere ao ensino da Aritmética, na relação com outras práticas, principalmente de disciplinamento. O Guia das Escolas Cristãs associa ao conhecimento aritmético a leitura e escrita dos numerais indo-arábicos e romanos, as operações de adição, subtração, multiplicação e divisão segundo o sistema de numeração decimal, que, segundo Riboulet (1951), foram ensinadas de modo mais concreto, e acrescentou-se a este estudo “o conhecimento de pesos e medidas” (RIBOULET, 1951, p. 352).

A preocupação de La Salle com o ensino da Aritmética está diretamente associada a sua praticidade, ao fato de ser útil para a vida dos alunos e de figurar como conhecimento necessário à preparação para o trabalho. É bom lembrar que

A “escola cristã” em si, o curso elementar lassaliano para os filhos dos artesãos e dos pobres, tecnicamente falando, não ofereciam habilitação para um emprego determinado; não tornavam o aluno aprendiz profissional, “companheiro”, como faziam as corporações de ofício. Mas contribuía para preparar ao trabalho em sentido lato. (HENGEMULE, 2007, p.199).

Nesse sentido, “também na aritmética se trabalha com elementos que, depois, vão ser usados na vida: a redação de faturas, conforme o nível, noções de agrimensura, práticas de medições...” (HENGEMÜLE, 2007, p.193). Sendo assim, “com seu currículo profano adequado – com leitura, escrita e cálculo – as escolas lassalianas não preparavam nem à clericatura, nem aos estudos clássicos” (HENGEMÜLE, 2007, p.198). Por outro lado, ao dominarem os cálculos, os alunos destacavam-se, pois aprender a escrita, os números e as operações é um diferencial em qualquer universo onde a maioria da população é analfabeta.

Todavia, ainda é menor a carga horária de Aritmética se comparada à de leitura e escrita, como podemos observar pela tabela da Figura 4, que nos mostra a organização do tempo escolar pautada pelo Guia das Escolas Cristãs.

Fonte: Corsatto (2007, p. 47). Tabela adaptada de Rodolfo Meoli. Para una lectura de la Guía de las Escuelas Cristianas. Lasalliana 49. Roma: Hermanos de las Escuelas Cristianas, p. 6. Não datado.

Figura 4 – O tempo escolar, segundo o Guia das Escolas Cristãs 

Nestes dois momentos de aula de Aritmética, os alunos aprendiam inicialmente a ler os números, depois a escrever, na sequência a realizar os cálculos de adição, subtração, multiplicação e divisão, regra de três simples, divisores de um número e frações. Porém, no Guia, embora citadas, não existem orientações específicas para o ensino de regra de três, divisores de um número e frações.

O intervalo entre uma aula e outra era anunciado por um instrumento chamado de ‘sinal’, como o da Figura 5. Este instrumento é composto por duas hastes de madeira: uma grossa, avolumada perto da extremidade, e uma fina, presa sobre a parte avolumada por uma cordinha enrolada ao redor desta. Abaixando e depois saltando a haste fina, ela golpeia a extremidade da grossa e emite um rápido estalido (LA SALLE, 2012, p.134).

Fonte: La Salle (2012, p. 134).

Figura 5 – Sinal 

O sinal, ao emitir um estalo, avisava aos mestres-professores que o tempo destinado à determinada lição havia acabado. Além deste instrumento também outros ‘sinais’ estavam presentes no cotidiano das escolas. Segundo Manacorda (2002, p. 233),

Os “sinais” feitos com as mãos, com os olhos, com a cabeça e com a vara do mestre, são uma linguagem muda de grande eficácia didática, que permite poupar a palavra e preservar o silêncio, indicando ao aluno cada ação: ler, parar, repetir, recomeçar, etc., como também as punições corporais.

No Guia das Escolas Cristãs consta o seguinte: “para dar a entender que um leitor pare, dará um clique com o sinal, e todos os alunos olharão para ele; em seguida, com a ponta do sinal, indicará um deles, para dar-lhe a entender que comece a leitura” (LA SALLE, 2012, p. 135).

O ensino da leitura, segundo o Guia das Escolas Cristãs, deveria se dar a partir de nove lições de leitura, o que equivaleria a nove etapas de aprendizagem, cada qual com um programa de estudo específico: 1) O cartaz do alfabeto; 2) O cartaz das sílabas; 3) O silabário; 4) O primeiro livro; 5) O segundo livro; 6) O terceiro livro, que serve para aprender a ler por pausas; 7) O saltério; 8) A Urbanidade; 9) Os manuscritos. Os alunos, exceto os que liam os cartazes, eram distribuídos em três ordens: a primeira, dos principiantes; a segunda, dos médios; e a terceira, dos avançados. As progressões de uma para outra lição eram definidas ao final de cada mês pelo Irmão Diretor ou pelo Irmão Inspetor da escola, após exames de leitura.

A leitura dos números indo-arábicos e romanos medievais se dava somente quando os alunos estivessem no sexto nível de leitura, no livro três, na mesma época em que aprendiam a ler pausadamente, respeitando a pontuação, bem como a identificar as vogais e consoantes. O ensino se dava por meio de dois cartazes (Figuras 6 e 7), que eram fixados nas paredes da sala de aula.

Fonte: La Salle (2012, p. 56).

Figura 6 – Primeiro Cartaz 

Fonte: La Salle (2012, p. 56).

Figura 7 – Segundo Cartaz 

Segundo o Guia das Escolas Cristãs,

O mestre fará com que diversos alunos, um depois do outro, digam, apontando no cartaz, as dificuldades e as razões expostas do que ali está exposto.

Enquanto explica, os demais olharão atentamente no cartaz, para poderem compreender e memorizar o que ele expõe.

O mestre terá o cuidado de perguntar, algumas vezes, a outros alunos a respeito do mesmo assunto, para assegurar-se da atenção prestada às explicações do colega e se as compreenderam.

Quanto aos números, serão ensinados da mesma forma, no dia seguinte ao da folga, ou no terceiro dia de aula, se não houver festa na semana. (LA SALLE, 2012, p. 55).

O cartaz dos algarismos indo-arábicos, identificados no Guia das Escolas Cristãs como números franceses, e dos números romanos, deveria ter três pés e oito polegadas de altura (aproximadamente 1,12 metros) e sete pés (aproximadamente 2,13 metros) de largura. Ler, repetir e memorizar, nisto consistia o aprendizado dos números.

A escrita é um processo complexo e se dava por meio de oito lições. Requeria uma série de procedimentos, que incluíam desde a preparação das folhas ao manuseio das penas de ganso e canivete, até a escrita propriamente dita, em letras redonda ou cursiva. Como nos coloca Hébrard (2001, p. 116), “em um mundo onde o papel é caro, onde pluma de ganso, difícil de ser cortada pelos dedos pouco hábeis das crianças, é o instrumento obrigatório da escrita, a aprendizagem desta exige tempo, portanto, dinheiro”, o que nos leva a crer que poucos alunos chegavam a esse nível de escolaridade.

O uso do caderno escolar, no formato de pilhas de papéis em branco, já se fazia presente nas escolas da época. João Batista de La Salle instruía os professores com orientações sobre seu uso, enfatizando que “o mestre cuidará para que os alunos tenham sempre papel branco na escola. Por isso, recomendará que o peçam aos pais, o mais tardar quando lhe restarem apenas seis folhas de papel em branco” (LA SALLE, 2012, p. 62) e ainda que “todos que escreverão trarão à escola, pelo menos meia mão de bom papel” (LA SALLE, 2012, p. 62). Lembrando que uma mão equivale a 25 folhas e que as folhas deveriam ser costuradas, advertindo-se que “não se deve tolerar que algum aluno traga o papel sem costura, ou dobrado em quatro” (LA SALLE, 2012, p. 62). As folhas deveriam ser costuradas de alto a baixo e cobertas por uma folha de cartão, uma prática que nos remete a um tipo de caderno artesanal, que teria originado o modelo do caderno escolar de hoje.

As linhas do caderno eram traçadas pelos próprios alunos, mas, caso não conseguissem fazê-lo, o professor lhes entregava transparências, que eram folhas de papel pautado de comprimento igual aos das folhas dos cadernos dos alunos, com linhas horizontais, de modo que, ao serem colocadas sob a folha de papel, fossem vistas pelos alunos, que as usariam como orientação no processo da escrita. Esta prática também se dava no caso da escrita dos números, que era introduzida quando os alunos estivessem iniciando a quarta ordem da escrita.

No entanto, para a aprendizagem dos cálculos, um novo recurso entrava em cena, que hoje identificamos como o conhecido ‘quadro negro’.

Em cada classe em que se escreve em linhas, haverá um grande quadro, com largura de ... pés, e a altura de ..., contendo dois painéis, sobre cada um dos quais se possam escrever operações da aritmética, excetuada a divisão e as operações que dela dependam, para as quais é necessário um painel inteiro.

Esse quadro deve estar preso à parede, no local mais adequado, a parte inferior à altura de cinco pés do chão e a parte inclinada meio pé para frente.

Também será preciso que os dois painéis desse quadro estejam pintados com óleo de cor preta, para que se possa, com giz, fazer sobre ele as operações. (LA SALLE, 2012, p. 85).

Na tradução considerada, não estão especificadas as dimensões do quadro negro, provavelmente devido à dificuldade de leitura e identificação dos dados no manuscrito original. De qualquer modo, fica evidente o protagonismo de La Salle no uso deste recurso, que vem acompanhando o ensino de matemática até os dias de hoje. Segundo Barra (2013, p. 129):

A dissociação entre o quadro-negro e a instituição do método de ensino simultâneo corresponde ao reconhecimento do uso deste material tanto numa modalidade de ensino quanto em outra, mas, em ambas, constata-se que o quadro-negro se associará ao ensino de aritmética, ao passo que o ensino de ler e escrever teria como suportes privilegiados os impressos: cartas, cartazes e traslados.

Nos chama atenção o fato de, em um mesmo espaço, alunos de diferentes níveis conviverem e desenvolverem atividades distintas. La Salle (2012, p.85) enfatizava que “haverá alunos de diferentes lições: alguns aprenderão a soma; outros, a subtração, ou a multiplicação ou a divisão, segundo seu respectivo adiantamento”, cabendo ao mestre-professor escrever no quadro uma operação de cada tipo.

João Batista de La Salle coloca o mestre-professor em uma posição de assistente e interrogador, pois, ao mesmo tempo em que, deveria permanecer sentado em seu lugar (uma cadeira especialvii para o professor) ou em pé diante de uma cadeira, ouvindo e vendo os procedimentos do aluno, ele o questionaria. Cabendo ao menino, com o uso de uma varinha, indicar os procedimentos ao operar com os números, um após o outro, e, em voz alta, dizer “por exemplo: 6 e 9 são 15” (LA SALLE, 2012, p.87). Enquanto o aluno resolvia a questão, o mestre-professor o interpelava, fazia-lhe perguntas sobre o procedimento e, igualmente, interrogava os outros alunos sobre a lição, para verificar se estavam atentos e compreendendo-a.

Se aquele que faz a operação errar em alguma coisa, o mestre apontará para outro aluno da mesma lição ou de lição superior para corrigi-lo, dizendo aquilo que o outro tiver errado. Se não houve lição superior à que é dada, e nenhum aluno tiver condições de corrigir o erro, o próprio mestre o fará. (LA SALLE, 2012, p. 88).

Era condição, que todos os alunos de um mesmo nível, um após o outro, sem exceção, fizessem uma operação de sua lição no quadro negro, lembrando que as operações seriam apresentadas das mais simples as mais difíceis. E “caso o mestre utilize termos que o aluno não entenda, isto é, termos próprios da aritmética, ele lhos explicará todos e fará com que os repita antes de passar adiante” (LA SALLE, 2012, p. 87). A repetição e a memorização eram os alicerces do aprendizado das operações aritméticas. No entanto, era também esperado dos alunos algum protagonismo, a exemplo das sextas-feiras, quando lhes era solicitado que trouxessem certo número de operações, tanto de sua lição como das inferiores, “que eles mesmos tivessem criado, conforme indicação do mestre e segundo a capacidade deles” (LA SALLE, 2012, p. 89).

As quatro operações e suas respetivas provas ordinárias eram trabalhadas separadamente, de modo que o Inspetor da escola organizava os alunos que aprendiam aritmética em cinco ordens: na primeira, somente os que eram capazes de aprender a adição; na segunda, os que sabiam bem a soma e aprenderiam a subtração; na terceira, os que dominavam a adição e subtração e tivessem as condições para aprender a multiplicação; na quarta, os que soubessem a multiplicação, para aprender a divisão; e na quinta ordem, os que soubessem fazer todo o tipo de divisão e estivessem em condições de aprender “as regras de três, as partes alíquotas e as frações” (LA SALLE, 2012, p. 266). Por regras de três entende-se a direta e a inversa; e por partes alíquotas, os divisores de um número. As progressões de uma lição para a subsequente só eram possíveis após o aluno mostrar que dominava os procedimentos da respectiva ordem, durante o exame realizado pelo Inspetor da escola. No caso da aritmética, o Inspetor:

1.Examinará, no caderno desse aluno, as operações que tiver feito por si mesmo nessa ordem, e o mandará explicar o porquê de alguma das mais difíceis; 2. Escreverá, no cartaz da aritmética, uma operação das mais difíceis dessa ordem, mandará que a resolva publicamente e, depois, lhe ordenará fazer a prova da mesma. (LA SALLE, 2012, p. 291).

Caso tivesse sido submetido três vezes ao exame de promoção sem obter sucesso, o aluno seria colocado num banco especial, situado em local visível da classe, chamado o “banco dos ignorantes”, atrás do qual, na parede, lia-se: banco dos ignorantes, e lá permaneceria até estar em condições de avançar na lição ou na ordem de lição (LA SALLE, 2001, p. 290).

Um aspecto final importante a ser enfatizado quanto ao ensino das quatro operações é sua vinculação ao sistema monetário da época. Os cálculos eram associados à prática da contagem do dinheiro, o que podemos verificar por meio do uso das letras minúsculas l, s e d ao lado de alguns exemplos de somas existentes no Guia das Escolas Cristãs, em que l diz respeito a libra, s a soles e d a denário. Exemplo disso encontramos no trecho a seguir:

O mestre corrigirá, na terça e na sexta-feira de tarde, durante o tempo da escrita, as operações que os alunos que aprenderam aritmética tiveram inventado por si mesmos, sobre seu papel, em vez de corrigir-lhes a escrita. Dar-lhes-á a conhecer todas as dificuldades, perguntando-lhes, por exemplo, no caso da adição, porque se inicia com os denários, porque se reduzem a soles, e os soles a libras, e fazendo-lhes outras perguntas semelhantes, segundo a necessidade neles percebida, dando-lhes de tudo perfeita compreensão. (LA SALLE, 2012, p. 89).

Há que se realizar um estudo mais preciso, no sentido de investigar o algoritmo utilizado pelos Irmãos das Escolas Cristãs, objeto de estudo ao qual a autora pretende dedicar-se após a localização de outras fontes documentais que possam vir a elucidar esta questão. No entanto, o que podemos inferir até o momento é que a vinculação da aritmética com a vida dos alunos e a preocupação com uma aproximação entre a escola e o mundo do trabalho é um fato. Outro exemplo disso é a preocupação que o Guia das Escolas Cristãs traz com o aprendizado da cópia e escrita de textos variados, a exemplo de contratos, recibos, procurações, contratos de aluguel e venda, notificações, atas, etc., existentes nas práticas contábeis e comerciais da época, que poderiam ser úteis no futuro dos alunos. Além disso, como aponta Corsatto (2007, p. 71-72),

Isto deveria ser feito para que possam gravar estas coisas na imaginação e aprendam a fazer outras parecidas, ou seja, a partir dos exemplos dados e trabalhados, possam extrapolar e ampliar o conhecimento, adaptando o que sabem a novas situações. E mais: depois de estarem familiarizados com estes documentos, o professor deveria solicitar que redigissem, por conta, novos contratos, recibos, memórias de obras realizadas em diversas profissões, recibos de entrega de mercadorias, orçamentos de mão-de-obra etc. Novamente, coisas úteis, que fazem sentido, que são práticas e significativas para a sua realidade.

Em síntese, dentre os apontamentos que podemos inferir por meio do estudo realizado, destacamos a relevância que João Batista de La Salle e os Irmão das Escolas Cristãs atribuíram ao ensino da Aritmética, provavelmente devido a sua aplicabilidade em situações da vida e do trabalho. Nesses sentido e contexto, a Aritmética é tida como uma ferramenta tão útil e necessária quanto a leitura e a escrita. Assim, os mestres-professores tinham a incumbência não somente de ensinar a ler e a escrever mas também a contar.

Algumas considerações finais

Uma crítica apontada a João Batista de La Salle é “de ter separado muito a leitura, a escrita e o cálculo, cujo estudo deve ser feito mais ou menos ao mesmo tempo. A prática moderna retificou este erro de método (RIBOULET, 1951, p. 353). No entanto, o que de fato se sabe sobre os modos de ensinar a contar desenvolvidos pelas ordens religiosas mais antigas, suas práticas e implicações para a contemporaneidade? Há todo um percurso de pesquisas no campo da leitura e da escrita, mas e no campo da matemática? Nos últimos anos, as pesquisas em História da Educação Matemática têm avançado nesse sentido, mas ainda há muito a ser investigado.

Ao buscar conhecer e compreender as orientações presentes na obra o Guia das Escolas Cristãs, deparamo-nos com várias questões, entre as quais algumas foram aqui abordadas e outras ainda precisam ser trabalhadas e carecem do diálogo com outras fontes documentais, a exemplo da compreensão dos algoritmos utilizados pelos Irmãos das Escolas Cristãs. Outra questão diz respeito ao ensino dos sistemas de peso e medidas, mencionado por alguns autores, mas que não é tratado especificamente no Guia das Escolas Cristãs. Nesse sentido, assim como toda narrativa histórica, temos um texto inacabado, uma versão construída a partir de um olhar particular sobre as leituras e análises realizadas. Outras leituras são possíveis e necessárias.

João Batista de La Salle é um personagem denso e complexo, protagonista de várias práticas cujas ressonâncias e ecos são identificadas no cotidiano de nossas escolas, a exemplo do uso do quadro negro, do ensino simultâneo, da vinculação da aritmética ao mundo da vida e do trabalho, bem como de algumas práticas de disciplinamento e controle do tempo presentes na cultura escolar. São vários os estudos sobre sua vida e obra, porém, especificamente quanto às práticas relativas ao ensino de aritmética e a formação de professores que ensinam matemática, ainda são poucos, e neste sentido, pensamos que este primeiro texto, ainda inicial e modesto, poderá contribuir com outras pesquisas, sejam no campo da História da Educação Matemática, sejam na Formação de Professores que ensinam matemática.

iPio XII, em 15 de maio de 1950, concede-lhe o título de “Padroeiro junto a Deus de todos os professores que se dedicam à educação da infância e da adolescência” (JUSTO, 2003, p.354).

iiPio XII, em 5 de maio de 1952, declarou São João Batista de La Salle Padroeiro dos Educadores Católicos (JUSTO, 2003, p. 356).

iiiDecreto n. 9.872, de 30 dezembro de 1958, assinado pelo então governador do Rio Grande do Sul, Hildo Meneguetti.

ivSegundo Hengemüle, existem discordâncias ente os autores sobre o ano de inauguração da Escola Normal “número maior traz a data 1685. Mas um bom grupo a situa em 1864. Alguns em 1683 ou 1687” (HENGEMÜLE,2007, p. 152).

vPrática monofônica de canto sem acompanhamento de instrumentos, que acompanhava os rituais religiosos.

viLivro de Salmos bíblicos.

vii“As cadeiras dos mestres, em cada sala, terão, desde o assento até o estrado, vinte polegadas; o estrado, onde se encontra a cadeira, medirá 12 polegadas de altura; do assento até o alto do encosto, haverá 18 polegadas, O assento será de palha.” (LA SALLE, 2012, p. 242).

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Recebido: 15 de Setembro de 2017; Aceito: 26 de Fevereiro de 2018

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