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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.2 Florianopolis abr./jun 2018  Epub 24-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n2p650 

Artigos de Demanda Contínua

Internacionalização na educação superior: docentes brasileiros em espaço africano

Internationalization in higher education: brazilian teachers in the african space

Internacionalización de la educación superior: maestros de Brasil en el espacio africano

Maria Aparecida Marques da Rocha2 
lattes: 9462952469104050

1Universidade Alto Vale do Rio do Peixe, UNIARP

2Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS

3Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC


Resumo

O estudo aqui registrado envolveu docentes brasileiros que realizaram suas práticas docentes em Instituições de Educação Superior africanas. Os docentes responderam a questionários com perguntas abertas, enviados por correio eletrônico. Três professores exerceram a docência em Angola; e uma professora, em Moçambique. O objetivo da pesquisa procurou compreender o quão significativa esta experiência foi para os docentes que dela participaram e quais os desafios e as possíveis tensões vividas por eles nesse processo de ensinar e aprender em solo africano. Os docentes estiveram atentos ao sentimento altruísta em relação aos estudantes africanos, ao processo de colonização, aos impactos relativos à infraestrutura, entre outros desafios.

Palavras-chave:  Internacionalização da Educação; Educação Superior; África

Abstract

Abstract

The article aims to understand the “inconvenient” children and young people’s medicalization process and its effects on their subjectivity and life trajectory. The research was supported by a case study, selected for psychiatric diagnoses based on school complaints, and involved interviews and documentary analysis of medical records and school reports. The results indicated that medicalization is a network that operates through various discourses (medical, pedagogical and family) that reproduce an essentialist conception of childhood and adolescence, based on the notion of "normal development". The various institutionalization and segregation attempts (including attempts to transfer to a disabled school and to a psychiatric hospital) and the construction of the notion of dangerousness throughout the described life trajectory, show how medicalization can be associated with life judicialization at the service of social control of the dissent. The family, seen as "unstructured", reproduces school and health discourses, with little resistance and looks at their children as 'inconvenient” ones, but the trajectory described shows the constant presence of resistance movements on the part of the medicalized youth.

Keywords:  Education; Internacionalization; Higher Education; Africa

Resumen

En el estudio participaron profesores brasileños que llevaron a cabo su práctica docente en las instituciones de educación superior en el espacio africano. Los maestros respondieron cuestionarios con preguntas abiertas por correo electrónico. Tres maestros han ejercido la enseñanza en Angola, y el cuarto en Mozambique. El objetivo de la investigación busca entender cómo esta experiencia puede ser significativa para los profesores que participan y qué desafíos y las posibles tensiones experimentadas por ellos en el proceso de enseñanza y aprendizaje en suelo africano. Los maestros estaban atentos ya que el sentimiento altruista hacia los estudiantes africanos, el proceso de colonización, el impacto en la infraestructura, entre otros retos.

Palabras-clave:  Internacionalización Educación; Educación universitaria; Àfrica

Introdução

O processo de internacionalização da Educação Superior, que vem trazendo alunos de outros contextos para estudar no Brasil, assim como tem levado estudantes brasileiros para cursar a graduação e a pós-graduação no exterior, com prioridade, no caso dos brasileiros, para os países do hemisfério norte. As oportunidades de estudar em outros países vêm ocorrendo por meio de programas de mobilidade, com apoio estatal e privado.

Outro fenômeno que ocorre há pouco mais de uma década, caracterizando outra forma de internacionalização, é a mobilidade dos professores brasileiros, convidados a exercer a docência na educação superior, tanto na graduação quanto na pós-graduação, em países africanos, especialmente os países de língua portuguesa.

Este estudo buscou compreender o quanto tal experiência pode ser significativa para os docentes que dela participam, quais são os desafios e possíveis tensões vividas por eles nesse processo de ensinar e aprender em solo africano. Importou-nos saber os motivos que levaram os docentes a aceitar uma experiência tão peculiar. Interessou-nos, ainda, saber como ocorreu esta oportunidade/parceria e em que esta prática tem sido significativa para os docentes brasileiros.

O estudo foi norteado pelas seguintes questões: que aprendizagens pessoais e profissionais tiveram os professores?; o que os desafiou a viverem essa experiência?; quais foram as principais tensões e como foram superadas?; que relações foram estabelecidas, no campo da formação de professores, entre o Brasil e o país africano para onde se dirigiram?

A perspectiva utilizada tem caráter qualitativo, envolve quatro docentes que responderam a questionários com perguntas abertas, enviados por correio eletrônico, os quais traduziram os questionamentos acima mencionados. A seguir, apresentamos os sujeitos questionados e o contexto pesquisado.

Os sujeitos foram três professores exerceram a docência em Angola; e a quarta, em Moçambique.

A professora que realizou sua prática em Moçambique entre abril/2004 e outubro/2006 é bastante experiente no campo da formação docente, formando mestres e doutores para a composição de um Programa de Pós-Graduação na Universidade Pedagógica de Maputo.

Dos que estiveram em Angola, uma professora iniciou a docência no curso de graduação em Direito na Universidade Lusíada de Angola, na capital, Luanda, em 2009, e segue trabalhando como docente nessa Instituição de Ensino Superior (IES) e vivendo no país. Outra, professora do Programa de Mestrado de uma universidade de Santa Catarina (Brasil), esteve ministrando aulas em fevereiro/2014 e seguiu com aulas intensivas quinzenais nos meses de janeiro e julho de cada ano, até finalizar o curso, em julho/2016. Entre os trabalhos ainda por concluir, está a participação em bancas de defesa das dissertações de mestrado de sessenta estudantes, todos docentes na Educação Superior. O quarto o professor exerce a docência em uma universidade privada no estado da Bahia, no Brasil, e esteve pela primeira vez em Angola em junho/2009, para atuar como professor em cursos de graduação e, desde fevereiro/2014, tem retornado semestralmente – até julho/2016 –, a fim de ministrar aulas em um curso de mestrado.

Esses dados nos mostram que o interesse por docentes brasileiros em espaço africano não é recente, pois esta pesquisa evidencia que, desde 2004, ou seja, onze anos atrás, já havia professores brasileiros exercendo sua prática em países daquele continente.

A Internacionalização da Educação Superior

O período da modernidade testemunhou uma globalização muito rápida da vida social, conectando sociedades em grande escala por intermédio de diferentes alternativas, desde trocas econômicas e políticas internacionais até o incentivo ao turismo global, estimulado pela tecnologia de comunicação eletrônica e pelos padrões de migração mais fluidos (GIDDENS, 2012).

O atual cenário de internacionalização da Educação Superior, por exemplo, não emerge do espaço universitário, mas das instâncias econômicas e políticas, segundo Castro e Neto (2012). Para os autores, a internacionalização da Educação Superior é “entendida como uma das formas para que os países em desenvolvimento possam enfrentar os desafios da globalização” (CASTRO; NETO, 2012, p. 73).

A economia global se alimenta da instrumentalidade do conhecimento e das competências técnicas a ele associadas, impondo à Educação Superior a incumbência de fortalecer o sistema produtivo e potencializar as riquezas econômicas.

Morosini (2006) aponta que, embora a maior marca da internacionalização tenha sido a pós-graduação, por meio da pesquisa, o ensino de graduação, a partir da década de 1990, passou a sentir a influência da globalização e foi inserido também nos interesses do panorama internacional.

Dias Sobrinho (2005) afirma que o fato de a educação ser categorizada e regulamentada pela Organização Mundial do Comércio (OMC) como um serviço corrobora para que haja a internacionalização e a comercialização do Ensino Superior.

Por isso, as características da educação estão cada vez mais

[...] imbricadas com o processo de globalização e com as determinações oriundas de organismos internacionais multilaterais [...]. Entretanto, é no sistema de ensino superior que se verifica o maior impacto. Isto porque a globalização considera como um dos principais valores o conhecimento, e neste, o advindo de patamares superiores, onde a busca de educação e de certificação continuada se faz presente. (MOROSINI, 2006, p. 112).

Desta forma, podemos considerar que o processo de globalização a que estamos submetidos é profundo e intenso, e pode ser definido como:

[...] conjunto de relações sociais que se traduzem na intensificação das interações transnacionais, sejam elas práticas interestatais, práticas capitalistas globais ou práticas sociais e culturais transnacionais. A desigualdade de poder no interior dessas relações (as trocas desiguais) afirma-se pelo modo pelo qual as entidades ou fenômenos dominantes se desvinculam dos seus âmbitos ou espaços e ritmos locais de origem, e, correspondentemente com o modo ou as entidades ou fenômenos dominados depois de desintegrados e desestruturados, são (re)vinculados aos seus âmbitos, espaços e ritmos locais de origem. Neste duplo processo, quer as entidades ou fenômenos dominantes (globalizados) quer os dominados (localizados) sofrem transformações internas. (SOUSA SANTOS, 2005, p. 85).

No conjunto de relações e interações produzidas pela globalização, Sousa Santos (2010, p. 109) afirma que “nos deparamos com os processos de internacionalização, que consistem em fomentar e intensificar as formas de cooperação transnacional [...] que já existem e segundo princípio de benefícios mútuos”.

A internacionalização do Ensino Superior, nesse contexto, tem como objetivo a integração da dimensão internacional/intercultural ou global dentro das propostas e funções tradicionais da universidade (ensino, pesquisa, serviços), incluindo a oferta de programas educacionais de Ensino Superior (KNIGHT, 2004). Entre as ações previstas no processo de internacionalização da Educação superior, estão as parcerias internacionais com programas de cooperação (Alfa III, Iberoamérica, Pró-África), pesquisas conjuntas entre universidades, desenvolvimento tecnológico, acordos institucionais diversos, mobilidade de docentes e estudantes. Para o ensino, busca-se a revisão curricular com conteúdo internacional, a importância da aprendizagem de uma língua estrangeira e o desenvolvimento de novas competências para os docentes, entre outros objetivos. A internacionalização contempla as políticas e os programas específicos organizados em diferentes níveis: governos, instituições acadêmicas e mesmo pela iniciativa individual de departamentos e instituições, para se adaptarem ou para explorarem de forma criativa os desafios impostos pela globalização (MIURA, 2006).

A Conferência Mundial sobre Educação Superior no Século XXI: Visão e Ação, realizada em Paris em 1998, trouxe a perspectiva de que “sem uma educação superior e sem instituições de pesquisa adequadas que formem a massa crítica de pessoas qualificadas e cultas, nenhum país pode assegurar um desenvolvimento [...] nem reduzir a disparidade que separa os países pobres e em desenvolvimento dos países desenvolvidos” (UNESCO, 1998).

Na mesma Conferência, em seu preâmbulo, que trata das Missões e Funções da Educação Superior, no art. 15, ressalta-se o “compartilhar conhecimentos teóricos e práticos entre países e continentes” como um valor. Lá encontramos:

a) O princípio de solidariedade e de uma autêntica parceria entre instituições de educação superior em todo o mundo é crucial para que a educação e a formação em todos os âmbitos motivem uma compreensão melhor de questões globais e do papel de uma direção democrática e de recursos humanos qualificados para a solução de tais questões, além da necessidade de se conviver com culturas e valores diferentes [...] b) Os princípios de cooperação internacional com base na solidariedade, no reconhecimento e apoio mútuo, na autêntica parceria que resulte, de modo equitativo, em benefício mútuo, e a importância de compartilhar conhecimentos teóricos e práticos em nível internacional devem guiar as relações entre instituições de educação superior em países desenvolvidos, em países em desenvolvimento, e devem beneficiar particularmente os países menos desenvolvidos. Deve-se ter em conta a necessidade de salvaguardar as capacidades institucionais em matéria de educação superior nas regiões em situações de conflito [...] Por conseguinte, a dimensão internacional deve estar presente nos planos curriculares e nos processos de ensino e aprendizagem. (UNESCO, 1998).

No estudo por nós realizado, houve o interesse de compreender a imersão dos docentes brasileiros na docência das IES africanas dos países de língua portuguesa. Essa experiência parece incorporar-se nas exigências mencionadas pelas agências internacionais, no caso, a Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco), mostrando-se determinante para especificar os parâmetros da Educação Superior contidos nos processos de internacionalização que, por sua vez, têm sido inseridos nos processos de globalização.

Ouvir os docentes foi um interessante exercício, e os depoimentos foram analisados à luz da Análise de Conteúdos, proposta por Bardin (1977), que se caracteriza por um conjunto de instrumentos metodológicos que se aplicam a discursos diversificados.

Os achados foram organizados de acordo com as seguintes dimensões, que expressaram o núcleo das questões norteadoras da investigação: (1) Impactos Pessoais e Profissionais dos Docentes; (2) Tensões, Razões e Aspectos Significativos da Experiência.

A Experiência e a Docência Universitária no Espaço Africano

Caracterizamos a experiência no sentido dado por Larrosa (2002), que afirma ser ela distinta de atividade, pois inclui a subjetividade do sujeito nela envolvido, como um processo que marca a trajetória de vida e ressignifica caminhos. Afirma o autor que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece” (LARROSA, 2002, p. 21).

Nessa perspectiva é que colhemos as impressões dos interlocutores e procuramos compreender o que vivenciaram.

a) Impactos Pessoais e Profissionais dos Docentes

Os docentes, ao se referirem aos impactos profissionais, foram unânimes em mencionar a relação professor-aluno. Percebiam uma cultura diferente da realidade acadêmica brasileira, que parece ser mais informal e menos protocolar. Uma das professoras disse que ficava surpresa, no início, “com o gesto dos alunos, que se levantavam quando eu dirigia a palavra a eles, o que, para eles, era considerado como respeito pela professora. Fui logo conversando sobre a ideia de respeito, que se expressa de muitos jeitos.

No contexto geral da universidade, assim como em outros níveis educacionais, há a presença forte da hierarquia nas relações, tanto entre os professores como entre estes e seus alunos. Desse modo, a figura do professor ocupa um lugar especial, central, na estrutura de poder e nas relações de ensinar e aprender no espaço acadêmico. Os países africanos de língua portuguesa estão imersos em uma formação tradicional, trazida pelos portugueses, seus colonizadores.

Após sua independência, os africanos buscam reconstruir seus países, muitos deles assolados por guerras internas. Sobretudo Angola, que depois da independência de Portugal, ocorrida em 1975, esteve em conflito armado por trinta anos. Hoje os conflitos estão abafados, e o Estado impõe um regime de Paz. Procuram, mesmo com pouco acesso aos meios de comunicação, ampliar a formação da população em geral e do corpo docente em especial. Este é, entretanto, um processo moroso, ainda com muitos desafios.

Os professores brasileiros demonstraram certa perplexidade diante dessa realidade. “Percebi que os professores falam e ensinam, e os estudantes têm pouco espaço para questionamentos”, relata uma docente:

Esse distanciamento, como pude perceber, ocorre também pela insegurança do professor, que tem uma formação frágil. Em muitos casos, um questionamento pode desestabilizar a autoridade do professor, atingindo sua autoridade. Afinal, ele é visto como alguém que sabe.

Segundo Aquino (1999), uma das bases fundamentais para que o professor consiga o reconhecimento da sua autoridade é ter conhecimento. O aluno parte do princípio de que o professor deve ‘saber mais’ a respeito daquilo que se propõe a ensinar do que seus estudantes, pois a confiança deles é diretamente proporcional à segurança daquele, isto é, do seu domínio teórico em determinado campo de conhecimento. Essa perspectiva revela uma concepção do papel da educação escolarizada, ligada à transmissão de um conhecimento tácito.

De posse de um saber reconhecido, esperam que o professor escolha a forma mais adequada de comunicar, de mediar, considerando a heterogeneidade do grupo. É aí que entra em cena o domínio metodológico. Aquino (1999) acrescenta que, para o professor ser reconhecido como autoridade que mereça confiança, precisa de maestria no exercício de sua função. Essa condição, contudo, poderia corresponder a outro paradigma de docência. Ou seja, a autoridade do professor constituir-se-ia a partir da relação entre conhecimento e experiência na condução do processo educativo. Conforme o autor, “é possível assegurar que a autoridade docente não se sustenta exclusivamente na – e nem é decorrência unívoca da – erudição de seu portador, mas do trabalho engenhoso, árduo e compromissado daquele que, de fato, se dispõe a ensinar algo a outrem” (AQUINO, 1999, p. 140). E essa perspectiva cultural talvez seja uma contribuição interessante aos angolanos.

Nossa interlocutora, no seu relato, registrou também que,

Ao falar com o professor, alguns estudantes abaixam a cabeça, falam baixo e não olham para o professor, como sinal de submissão e respeito; tal como que fazem com as pessoas mais velhas da sua família.

Os docentes percebem que os estudantes angolanos e moçambicanos acolhem muito bem os professores estrangeiros, e existe uma grande disponibilidade para colaborar e investir na sua formação. Porém, quando se trata de trabalhar individualmente, sem o professor, alguns encontram dificuldades, certamente pela falta de autonomia no estudo, bem como de infraestrutura, como livros e acesso aos referenciais teóricos. Em muitos casos, recorrem a cópias da internet. Não estão acostumados ao protagonismo e esperam a iniciativa dos professores.

Os aspectos didáticos foram sendo construídos pouco a pouco, uma vez que três dos docentes pesquisados têm uma prática mais próxima do construtivismo e/ou do sociointeracionismo, exigindo a participação ativa do estudante no processo de apropriação e construção do conhecimento. Os estudantes angolanos, por exemplo, não imaginavam ser possível essa forma de relação professor-aluno na universidade. Causou surpresa e certo desconforto a prática de organizar a sala de aula de forma circular, de modo que todos estariam frente a frente, entendendo que teriam direito de participar com suas opiniões sobre a temática da aula. No início, foi difícil interagirem dessa forma.

Uma das professoras relatou que a maioria das investigações realizadas é de natureza quantitativa, e por isso foi necessário desenvolver, desde o início, a possibilidade de utilizar outro tipo de abordagem, envolvendo dados qualitativos. As avaliações desenvolvidas nas disciplinas universitárias são extremamente tradicionais, e causa impacto uma avaliação processual com a possibilidade de reconstrução. Os alunos têm, também, um ritmo próprio para aprender – “o processo de ensino e aprendizagem é diferente”.

Será preciso investir muito no ensino básico e secundário, pois os alunos chegam ao ensino superior com muitas lacunas, o que de algum modo prejudica o ritmo a que estamos habituados para ensinar, para aprender, especialmente quando os alunos precisam desenvolver habilidades de aprender a aprender.

Partilhar saberes entre os docentes, trabalhar em conjunto, ensinar e aprender ao mesmo tempo foi

Um exercício muito rico de debate, uma oportunidade de aproximar-me da cultura e da escola moçambicana; partilhávamos a orientação dos mestrandos com professores doutores moçambicanos, alguns deles formados na PUC-São Paulo, no Brasil. Procurávamos valorizar seus saberes, aqui entendidos na perspectiva de Tardif, que significa saber fazer.

Como afirma Tardif (2005), trata-se de saberes e habilidades que os professores mobilizam em sala de aula para construir a docência. O saber é deslocado de outras dimensões sociais para a prática do professor, envolvendo, além de saber, justificar o porquê de fazer, unindo a prática à teoria.

Nossos interlocutores manifestaram preocupação com o risco de repetirem práticas colonizadoras com os estudantes africanos. “Não queria impor nosso conhecimento aos angolanos, mesmo assim, acho que isso aconteceu, pois levaria muito tempo para conhecer a realidade, seus educadores de renome... e já estávamos iniciando as aulas.

Parafraseando Sousa Santos (2003), as pessoas têm direito à igualdade sempre que a diferença as tornar inferiores, mas têm direito à diferença sempre que a igualdade ameaçar suas identidades.

Uma das interlocutoras mencionou que “não me sentia levando saberes. Sentia-me buscando aprender”. Percebe-se que os docentes procuraram estar atentos para respeitar o “universo de grupos bem estabelecidos, de muitas línguas, de crenças e lendas que me permitia olhar de um jeito diferente para a nossa própria cultura”.

Em relação à infraestrutura, os países do pós-guerra lutam para reconstruir suas economias e ainda enfrentam inúmeros problemas sociais e culturais. Por conseguinte, a infraestrutura das universidades e escolas é precária. O fornecimento de energia elétrica, em muitos casos, ocorre por meio de geradores privados; o saneamento básico é mínimo, incluindo a dificuldade para encontrar água potável. Sendo assim, nem todos os docentes que aceitam a imersão em países como Moçambique e Angola sabem exatamente o que vão encontrar. “Foi um desafio trabalhar sem a possibilidade de bibliotecas na instituição e internet para pesquisa e buscas.

Para um dos nossos respondentes:

Em 2009, a principal tensão da experiência relacionou-se à utilização das TIC [Tecnologias de Informação e Comunicação] no contexto de ensino e aprendizagem, pois a IES possuía apenas um projetor multimídia (datashow) para cerca de 250 docentes! Naquela ocasião, ministrei aulas para turmas com 150 estudantes, sem qualquer recurso audiovisual, valendo-me basicamente de aulas expositivas mais ou menos dialogadas. Fiquei desestimulada e desisti de continuar no semestre subsequente com a justificativa da quebra de contrato por parte da IES, tornando financeiramente inviável a continuidade.

Foi o propósito de todos abrir-se para aceitar o outro, o que “exercitou meu aprimoramento da empatia ou capacidade de colocar-me no lugar do outro, especialmente quando o outro apresentava enormes lacunas”. Era necessário compreender o momento sócio-histórico no qual os estudantes viviam.

Mesmo com essas dificuldades e limitações e, talvez, em função delas, os docentes foram unânimes em afirmar que ampliaram suas experiências de vida no âmbito pessoal. Voltaram mais maduros e compreensivos com a diferença. Aumentaram o grau de tolerância, empatia e sensibilidade para com uma realidade que lhes era, até então, desconhecida. Mesmo considerando os desafios da realidade brasileira, ficaram chocados com o que viram lá:

A pobreza, a miséria, revelada nas ruas esburacadas, nas “casas de caniço”, na sujeira dos panos estendidos com todo tipo de mercadoria (carvão, laranjas, esmaltes, peixes, pães, soutiens); muito lixo também. A convivência com a malária também me impactou. Não havia energia à noite nem internet fora do hotel. As ruas retratam as imagens deixadas pela guerra em muitos momentos; bicharada espalhada nas casas e no centro da capital moçambicana e nas cidades angolanas.

É inegável, contudo, ressaltar positivamente

A disponibilidade dos colegas e dos alunos, os convites para visitar as famílias, para festas e comemorações. A possibilidade de fazer o exercício antropológico de reconhecer o igual na diferença e aprender a estranhar o costumeiro. Compreender o processo sócio-histórico ao qual os estudantes foram submetidos me tem ajudado a mediar o processo de ensino e aprendizagem. (grifos nossos).

O sentimento altruísta e de compromisso está quase sempre presente em quem aceita uma experiência no espaço africano. Os sujeitos revelaram essa condição em algum momento da entrevista. Uma das professoras disse: “como vim por querer, e não por necessidade, encarei tudo como uma missão que talvez tivesse de concluir na minha vida.

A profissão docente inclui, na sua essência, a preocupação com o outro, com o processo de desenvolvimento dos sujeitos, com os motivos que levam os sujeitos a apresentarem esse ou aquele comportamento, e creio que isso minimizou o impacto com a realidade africana. “Sempre fui uma pessoa que respeitou a diversidade, outras classes sociais, outras raças e culturas. Isso me fascina.” Por isso, “não tive dificuldades com as diferenças e fui muito acolhedora e receptiva com tudo que queriam me ensinar e me explicar sobre a Angola e os angolanos”. Desse modo, tornou-se possível “o aprimoramento da empatia ou a capacidade de colocar-se no lugar do outro, especialmente quando o outro apresenta enormes lacunas.

O impacto cultural esteve sempre presente à medida que os docentes se deslocavam de seus lugares. “Tive que entender outra cultura para depois entender por que caminho deveria seguir na formação dos estudantes.” Mesmo com os impactos apontados pelos professores questionados, uma professora relata “que a adaptação foi fácil e tem sido uma excelente experiência.

No contexto moçambicano, os orientandos escolheram temas ligados ao ambiente do país para suas dissertações de mestrado, principalmente em relação à organização escolar. “Pudemos acompanhá-los nas pesquisas, que revelaram dados muito significativos do processo ensino e aprendizagem.” Foi preciso considerar as línguas locais na articulação com o aprendizado da língua portuguesa e na incorporação de elementos da tradição moçambicana ao currículo das diversas etapas da escolarização.

Os angolanos também buscaram abordar, nos seus estudos, problemas ligados à educação do país. Pesquisas como exclusão de determinada tribo africana pelas demais tribos, em que se procura entender no que a educação pode minimizar essa dolorosa realidade, foram possíveis focos dados como exemplo. Também interessou a alguns a avaliação das suas universidades, comparadas com as IES de prestígio internacional. Queriam compreender a lógica que preside os rankings e o que poderiam aprender com eles, inclusive em termos de resistências.

O racismo, que tanto conhecemos no Brasil, parece não chegar até os espaços africanos, pois os estudantes não costumam sair do seu contexto local. Uma das professoras relata um fato que lhe chamou a atenção em uma das aulas:

Ao ler um trecho do livro de Paulo Freire em que o autor fala sobre o racismo e sobre as dores de ser negro no Brasil, os estudantes riram muito, acharam engraçado, e eu olhei para a turma pensando: “Se eles nunca saíram da Angola, talvez não imaginem do que estamos falando!”

b)Tensões, Razões e Aspectos Significativos da Experiência

Ao falar sobre as tensões ocorridas, a professora que atuou em Moçambique revelou:

No que diz respeito à nossa participação no trabalho, havia, como em toda instituição de ensino superior, divergências em relação a aspectos do trabalho, mas tivemos a sorte de constituir uma equipe que soube superar essas divergências e empenhar-se numa ação coletiva em torno de objetivos comuns.

O interesse das instituições africanas no trabalho de docentes estrangeiros atualmente “se deve, principalmente, ao desejo de expansão de relações de todos os tipos nesse mundo globalizado em que vivemos, com todas as suas contradições”.

Se, por um lado, há, segundo alguns, a permanência do espírito do colonizado, que vai buscar nas chamadas nações desenvolvidas recursos para o aprimoramento de seu contexto, por outro, há o esforço saudável de ampliar o diálogo e partilhar experiências com outros (países, pessoas), numa perspectiva emancipatória.

Há uma procura por parcerias brasileiras, dado o desejo de se acelerar a qualificação dos recursos humanos na área da educação e da docência. Nos países africanos onde estiveram nossos interlocutores, os professores doutores, que são poucos, são absorvidos pelas universidades públicas, e as demais instituições contratam alguns docentes mestres; a maior parte do corpo docente, no entanto, é constituída apenas de graduados. O “contexto educacional africano tem a necessidade de formação stricto sensu”.

Há muitas razões, na visão dos docentes que participaram do estudo, para o recrutamento de formadores brasileiros. A escassez de docentes africanos tem raízes históricas, embasadas ora nos processos colonizadores, ora na instabilidade econômica e social decorrente das guerras internas. A presença de docentes de outros países é registrada

[...] como o legado do período socialista, quando muitos professores cubanos atuaram nas IES angolanas. Hoje, as diferenças linguísticas (37 dialetos africanos, no caso da Angola), frequentemente aliadas a práxis pedagógicas tradicionais, têm impulsionado a busca por professores brasileiros, visto que, no imaginário, são considerados parte de um sistema educativo bem-sucedido em um país de língua portuguesa.

Pelo menos na Universidade Pedagógica em Moçambique, onde tenho desenvolvido meu trabalho, percebo esse esforço. Tenho encontrado ali professores de outros países africanos, de Cuba, de Portugal, além dos brasileiros. E os estudantes têm desenvolvido estágios em universidades desses países, relatando experiências muito positivas.

Este estudo nos fez compreender que a experiência de docentes brasileiros na África tem sido muito importante do ponto de vista pessoal e profissional, inclusive favorecendo reflexões que, anteriormente, talvez não fossem possíveis, dada a escassez de reflexões teóricas sobre a temática e de pesquisas dessa natureza.

Tendemos a chamar de “internacionais” os que são apenas “estrangeiros” e tratamos como estrangeiros os que possuem uma cultura diferente, que estranhamos e tendemos a desvalorizar. A democracia é exatamente a convivência na diversidade. E isso é muito difícil!

Os professores percebem que aprenderam muito com as experiências que tiveram em Angola e Moçambique.

Podemos levar para lá alguns aspectos de nossa cultura universitária que mereciam ser explorados e partilhados. Ao mesmo tempo, temos de estar abertas a aprender com eles e a valorizar suas culturas. Nunca havia sentido com tanta intensidade minha profissão de professor. Nesses lugares, o que se fala, o que se estuda e discute em aula tem eco na prática dos estudantes.

Parece que o impacto causado na vida das pessoas é algo significativo em qualquer experiência de ensino e aprendizagem e, “No caso dos países africanos, isto é ainda mais notório.” “Num seminário sobre TIC na educação, a maior parte das possibilidades de tecnologias educativas amplamente utilizadas no mundo era completamente desconhecida pelos professores locais.”

Mas também foi muito significativo reconhecer o compromisso da população com seu país.

Admiro muito este povo e os jovens e menos jovens que têm coragem de voltar à Escola. São persistentes, humildes e querem muito “ouvir” o que temos para lhes dizer. Cada vez mais vejo a educação, e o ensino, em particular, se constituir um fator preponderante para o desenvolvimento dos povos em todas as suas vertentes. Essa condição nos entusiasma e dá sentido à nossa opção de estar aqui.

A pesquisa sobre essas experiências pode dar visibilidade ao vivido, pelo sentido que lhes é atribuído e pelas aprendizagens sobre a docência, proporcionando ao proceso de internacionalização a solidariedade necessária, no contexto do hemisfério sul (SOUSA SANTOS, 2010).

Considerações Finais

Explorar a internacionalização através dos docentes que exerceram suas práticas em países africanos de língua portuguesa teve o objetivo de compreender o significado dessa experiência, suas tensões e aprendizados.

Os docentes aceitaram o desafio por acreditarem que seria um ato solidário, movidos por uma intenção altruísta, o que os levou a pensar a partir de uma visão colonialista, que parte da ideia de ‘levar o que temos a quem não tem’. Esse sentimento está fortemente relacionado às experiências de quase todos os professores estrangeiros aqui pesquisados. Estar em território africano, entretanto, exigiu assumir uma visão intercultural com a qual todos aprenderam, enriquecendo-se uns com os outros.

Entre os principais impactos profissionais causados pela experiência, houve destaque para a diferença na relação professor-aluno, pois tanto em Angola quanto em Moçambique ainda existe uma forte hierarquia, o que nos faz compreender que apenas o professor está autorizado a falar e decidir sobre o encaminhamento das aulas.

Os docentes brasileiros têm a percepção de que a concepção do papel da educação escolarizada, nos países em que estiveram, ainda é transmitir conhecimentos – uma visão que no Brasil vem sendo superada, pelo menos na esfera dos discursos. Há uma fragilidade na formação dos docentes angolanos que estimula essa perspectiva e reforça a hierarquia.

A experiência trazida com a internacionalização profissional reveste-se de uma dimensão de solidariedade, que, no entanto, não obscurece a condição de aprendentes de todos os professores que se envolveram ou se envolvem nesse processo. Os docentes que viveram essa experiência reconhecem que voltaram melhores ao seu país de origem. Melhores porque mais abertos à diversidade multicultural e reabastecidos de esperanças ao admirarem o investimento e o empenho do povo dos países em que estiveram com relação ao futuro.

Certamente outras pesquisas serão importantes para subsidiar a relação da internacionalização na direção sul-sul. Parece que esse pode ser um caminho alternativo de conhecimento, reverência e humanização da globalização.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 27 de Setembro de 2016; Aceito: 01 de Maio de 2017

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