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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.2 Florianopolis abr./jun 2018  Epub 24-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n2p664 

Artigos de Demanda Contínua

Os “inconvenientes” na escola: medicalização de crianças e jovens e suas estratégias de resistência

“Inconvenient people” at school: children and youth’s medicalization and their resistance strategies

Los “inconvenientes” en la escuela: la medicalización de niños y jóvenes y sus estrategias de resistencia

Patrícia de Paulo Antoneli1 
lattes: 2100672519496341

Marcos Roberto Vieira Garcia2 
lattes: 3911188481669270

1Universidade Federal de São Carlos, UFSCar

2Universidade Federal de São Carlos, UFSCar


Resumo

O artigo busca compreender o processo de medicalização de crianças e jovens ‘inconvenientes’ e os respectivos efeitos sobre suas subjetividades e trajetórias de vida. A pesquisa apoiou-se em um estudo de caso, selecionado em virtude de diagnósticos psiquiátricos baseados em queixas escolares, envolvendo entrevistas e análise documental de prontuários e relatórios escolares. Os resultados apontaram que a medicalização configura-se como uma rede operada através de vários discursos (médico, pedagógico e familiar), que reproduzem uma concepção essencialista da infância e da adolescência, baseada na noção de ‘desenvolvimento normal’. As diversas tentativas de institucionalização e de segregação apresentadas (incluindo tentativas de transferência para escola especial e de internação em hospital psiquiátrico), assim como a construção da noção de periculosidade ao longo da trajetória de vida descrita, demonstram como a medicalização pode se articular à judicialização da vida a serviço do controle social das dissidências. A família, vista como ‘desestruturada’, reproduz os discursos da escola e das instituições de saúde, pouco resistindo e passando a ver seus filhos como ‘inconvenientes’. Mas a trajetória descrita aponta para a presença constante de movimentos de resistência por parte do jovem medicalizado.

Palavras-chave:  Medicalização; Fracasso escolar; Dificuldades escolares

Abstract

The article aims to understand the “inconvenient” children and young people’s medicalization process and its effects on their subjectivity and life trajectory. The research was supported by a case study, selected for psychiatric diagnoses based on school complaints, and involved interviews and documentary analysis of medical records and school reports. The results indicated that medicalization is a network that operates through various discourses (medical, pedagogical and family) that reproduce an essentialist conception of childhood and adolescence, based on the notion of "normal development". The various institutionalization and segregation attempts (including attempts to transfer to a disabled school and to a psychiatric hospital) and the construction of the notion of dangerousness throughout the described life trajectory, show how medicalization can be associated with life judicialization at the service of social control of the dissent. The family, seen as "unstructured", reproduces school and health discourses, with little resistance and looks at their children as 'inconvenient” ones, but the trajectory described shows the constant presence of resistance movements on the part of the medicalized youth.

Keywords:  Medicalization; School failure; School difficulties

Resumen

El artículo trata de comprender el proceso de medicalización de los niños y jóvenes "inconvenientes" y sus efectos en la subjetividad y la trayectoria de vida. La investigación realizada fue un estudio de caso, seleccionado a partir de diagnósticos psiquiátricos con base de problemas escolares, e incluyó entrevistas y análisis documental de los registros e informes escolares. Los resultados mostraron que la medicalización se configura como una red que opera a través de diversos discursos (médico, educativo y familiar), que reproducen una concepción esencialista de la infancia y la adolescencia, basado en la noción de "desarrollo normal". Los diversos intentos de institucionalización y la segregación presentado (incluyendo intentos de transferencia a las escuelas especiales y al ingreso en el hospital psiquiátrico) y la construcción de la noción de peligrosidad a lo largo de la trayectoria de vida descrito, muestran cómo la medicalización puede estar relacionado con la judicialización de la vida a servicio del control social de la disidencia. La familia, visto como "disfuncional", reproduce el discurso de la escuela y la salud, con poca resistencia e considera a sus hijos como 'inconvenientes', pero la trayectoria descrita muestra la presencia constante de los movimientos de resistencia por el joven medicalizado.

Palabras-clave:  Medicalización; Fracaso escolar; Dificultades de aprendizaje

Introdução

Ah, o João, nossa... tem muita coisa dele aqui, muitos relatórios, ele era terrível... Tenho uma palavra para descrevê-lo: “inconveniente”.

O presente artigo apresenta uma pesquisa cujo tema é a medicalização de crianças e jovens na escola pública, com o intuito de compreender os efeitos produzidos em suas subjetividades e trajetórias de vida.

A pesquisa apoiou-se em um estudo de caso, o de João, que foi selecionado com base na análise dos diagnósticos de crianças e adolescentes com queixas escolares1. O trabalho da pesquisa se consolidou por meio dos procedimentos de pesquisa: análise documental de prontuários e relatórios (do serviço de saúde mental e das escolas); entrevistas abertas com o sujeito da pesquisa e um familiar; e diário de campo de visita escolar. Foram feitas três entrevistas com João, que tinha 18 anos no momento da pesquisa, sendo duas em sua residência e uma no serviço de saúde mental. Com o pai foram realizadas duas entrevistas, ambas em sua residência. As entrevistas foram gravadas e transcritas integralmente.

A pesquisa seguiu os parâmetros éticos recomendados, o que incluiu sua explicação minuciosa, a garantia de anonimato para os participantes, a formalização por meio da assinatura de termo de consentimento livre e esclarecido e a possibilidade de retirarem seu consentimento a qualquer momento desejado, além da solicitação de autorização para acesso às informações e relatórios de João no serviço de saúde mental que frequentou e nas escolas em que ele havia passado. Ambos foram consentidos. Ao final, teve-se acesso ao prontuário no serviço de saúde mental e a relatórios de duas das três escolas em que João estudou.

A coordenadora da primeira das três escolas em que João estudou forneceu todos os relatórios e seu prontuário escolar. Na segunda escola a que se teve acesso, a última em que João havia estudado, foram realizadas três visitas, a fim de obter-se informações sobre o menino, o que foi possível graças à conversa havida com a professora Jussara2, que o conhecia, e também à análise do conteúdo de relatórios e anotações em registros escolares. As conversas com a professora foram compiladas em um diário de campo. Todo o processo envolveu o consentimento informado e esclarecido, devidamente documentado.

A descrição apresentada na epígrafe, de João como ‘inconveniente’, dada pela professora, representa a fala de muitos atores: educação, saúde, sociedade, familiares, entre outros. No dicionário Michaelis (2004), o termo se refere àquele “que não é conveniente, que não convém; impróprio; que não guarda as conveniências; indecoroso; grosseiro; desvantagem, prejuízo; embaraço, estorvo, obstáculo, transtorno; coisa molesta; incômodo”. João era tudo isso nos discursos das pessoas e nos registros das instituições. Por isso, nessa pesquisa, usaremos o termo ‘inconveniente’ como categoria para falar dessas crianças e jovens. Eles são os que aprendem – mas não o que a escola e a sociedade querem que eles aprendam –, que se comportam rompendo com as disciplinas e ordens estabelecidas, que não se adaptam aos modelos hegemônicos, os que diferem dos outros, os desviantes da norma.

O presente artigo apresenta e discute a trajetória de vida de João, marcada pelo processo de medicalização que passou a sofrer a partir dos seis anos de idade, sua migração por vários diagnósticos psiquiátricos, os mecanismos de poder concernentes a esse processo e a resistência que João opôs a ele.

O início da medicalização

No serviço de saúde mental: olho aquela estante enorme, repleta de prontuários e penso que há tantas vidas ali. E o de João, o menino ‘inconveniente’, estava lá no meio. À primeira vista chama a atenção por ser um prontuário grosso, do que se depreende que ele já realizava o atendimento no serviço há um bom tempo3. Olhei a idade e vi que tinha 18 anos, mas parecia um prontuário daqueles pacientes idosos, que se tratam há anos lá. Abri e vi que na primeira vez que João tinha passado lá ele estava com seis anos, ou seja, ele está há 12 anos neste serviço. Proponho-me a buscar entender sua história e, para isso, leio todo seu prontuário. Lá vejo problemáticas sociais, familiares, escolares e seu diagnóstico psiquiátrico, ou melhor, alguns diagnósticos. Liguei para o telefone que havia no prontuário e falei com o Sr. Beto, pai de João. Expliquei sobre a pesquisa e ele se prontificou a falar para o João ir conversar comigo e agendamos um horário lá no serviço de saúde. João chegou no horário combinado, estava na sala de espera com a cabeça baixa e um boné quase escondendo todo o seu rosto. Estava em pé, encostado na parede. Quando chamado entra e se senta na sala e fala: ‘por que você me pediu para eu vir aqui? Eu parei o tratamento, acho que não preciso mais vir aqui’, disse João. Então ele me contou todo o seu percurso institucional na escola e no serviço de saúde mental. Dava risadas ao contar o que ‘aprontava’, ficava angustiado quando falava das perdas que teve na vida. Mostrou algumas fotos no celular, contou sobre as meninas que paquerava... João era um jovem... normal! (Trecho do diário de campo).

João frequentou o serviço de saúde mental por doze anos. Chegou ao serviço com a queixa de dificuldades na aprendizagem e recebeu o diagnóstico F81.0 (transtorno das habilidades escolares). Ao longo dos anos e do acompanhamento, teve a passagem para o diagnóstico de F70.0 (retardo mental). Até o momento da pesquisa, ele continuava com o diagnóstico de F70.0, porém, durante o tratamento, recebeu como hipótese mais dois diagnósticos, o de F41.0 (ansiedade generalizada) e o de F63.0 (transtorno dos hábitos e impulsos). Essa passagem de um diagnóstico transitório para um definitivo chamou a atenção, levando ao interesse de entender o que houve e como foi esse processo na vida de João, o que havia de singularidade em sua história.

A sensação do primeiro contato com a história de João foi por meio de seu prontuário, o que gerou uma sensação de incômodo, especialmente pelas falas e discursos com referência a ele: “incorrigível,inconveniente,terrível,não aprende”, eram esses os dizeres sobre ele, remetendo à imagem de alguém que não serve para nada, um estorvo, alguém que não sabe nada. Não havia nada de bom relatado ali.

João chegou ao serviço de saúde mental quando tinha seis anos de idade, provavelmente no primeiro ano escolar. Veio encaminhado pela pediatra do Posto de Saúde do bairro onde morava. No prontuário havia a guia de encaminhamento para a psicologia, e a médica escreveu como queixa: “criança muito agitada e inquieta, não aprende. A avó materna passou por uma entrevista com a psicóloga Juliana, do serviço de saúde mental, e contou:

Ele é nervoso, muito agitado, inquieto, irritado, às vezes grita muito e responde. Na escola não para sentado na carteira, só quer brincar e fica andando pela sala, tem também dificuldades para aprender. E briga muito com os amigos (Anotações do prontuário do serviço de saúde mental).

São estes os primeiros dizeres sobre João encontrados em seu prontuário. Ressalta-se que já se falava em dificuldades de aprendizagem, embora ele tivesse apenas seis anos. No prontuário consta que João morava com os avós maternos e o irmão mais velho. Nessa entrevista com a Psicóloga Juliana, essa avó relatou que os pais de João eram separados e que por isso ele morava com ela. A mãe dele, Márcia, morava no fundo da casa deles. João tem também uma irmã mais velha por parte de mãe, que morava com os avós paternos. A avó pontuou que a mãe de João era epiléptica, tinha muitos desmaios e, devido a isso, era ela quem cuidava de João desde que ele era bebê.

Para Foucault (2006), o poder psiquiátrico se instaurou através do regime disciplinar, sobretudo pela confluência dos ideais eugênicos com os programas de higiene social e a criação da psiquiatria moderna. Uma das vias de difusão desse poder ocorreu também a partir da reinvenção do modelo e ideal de família e de sua função, família essa que passa a ser responsabilizada pelo processo de degeneração psíquica e moral de seus membros que se tornam doentes e/ou criminosos.

A família de João, nos relatos do prontuário, parece ilustrar esse processo, pois da sua parte há a procura por uma justificativa e por indícios dos motivos de o menino ser assim. Na família, os ‘doentes’ são postos em evidência, e no prontuário há uma construção discursiva que retrata a família do menino como degenerada e desestruturada.

O Sr. Beto não morava com João nesta época, mas, na entrevista, ele falou um pouco sobre Márcia. Contou que, por conta da epilepsia, ela era recorrentemente internada em hospitais psiquiátricos, onde, por ocasião de uma dessas internações, teve uma parada cardíaca e faleceu4. Ele falou também que Márcia começou a ter problemas com 18 anos e era muito nervosa.

Conforme relatado por João em uma das entrevistas, sua mãe era ‘morena’, e João se autoidentifica também como ‘moreno’. Quando solicitado a se definir de acordo com as categorias propostas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), identifica-se como ‘pardo’, após ser esclarecido sobre o sentido do termo. A morte da mãe de João se relaciona também, possivelmente, à questão étnica, pois, conforme o estudo de Wandi (2006, p. 75) sobre a trajetória de mulheres internas em um manicômio, “a relação entre gênero e raça/cor talvez seja o fio condutor das identificações do discurso psiquiátrico, que marcaram como única saída possível do labirinto a morte em seu interior”.

No prontuário, a primeira infância de João é descrita a partir dos supostos problemas de desenvolvimento. O Sr. Beto relata na entrevista:

Nasceu de oito meses, ele sujou dentro dela e foi feita uma cesárea às pressas. Ele não nasceu bem, nasceu sem peso, ficou 40 dias na incubadora até ganhar peso. Márcia cuidava bem, mas tinha que ficar junto com ela, por causa das crises. Ela não amamentou por conta dos remédios. Ele era um bebê tranquilo, até os 3 meses era chorão, e teve 3 hérnias na virilha e umbigo, fez cirurgia com 3 meses. [...] Andou com 2 anos e meio, ele engatinhava sentado. A médica achava que ele não ia andar. Fez exames e não deu nada. Falou com 3 anos, ele falava bem. Ele foi para a escola apenas com 7 anos, antes tinha ido no parque, mas os avós tiraram ele porque ele chorava lá. (Trecho da entrevista com Sr. Beto).

João nasceu com a marca de ter algum problema, de não ser normal, ou por problemas de saúde, ou por descrédito de médicos, o que pode ser interpretado a partir do conceito de estigma. Como indicou Goffman (1988), o processo de ‘confirmação’ da normalidade pela exposição do que é anormal já ocorria entre os gregos antigos, que costumavam marcar os corpos dos escravos, criminosos ou traidores com sinais feitos com cortes ou fogo. Estes sinais corporais depreciativos foram denominados ‘estigmas’ e tinham função de identificar publicamente indivíduos que deveriam ser evitados, os quais, nas sociedades modernas, foram substituídos por outros tipos de estigmas, que indicam que indivíduos ou grupos de indivíduos não podem obter plena aceitação social (MEIRA, 2012).

Na sociedade contemporânea, o fenômeno da medicalização da vida vem ganhando um importante espaço. Desde crianças, medicalizadas a partir do diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, até jovens, a partir do transtorno opositor desafiador ou de transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substâncias psicoativas, e ainda adultos, a partir dos transtornos depressivo e/ou de ansiedade generalizada, o processo de normatização do comportamento e da vida comparece com toda a força para ditar o que é o ‘normal’.

Compreende-se aqui o fenômeno da medicalização da vida como um instrumento da biopolítica, que opera sobre os corpos, controlando-os e submetendo-os. Ao mesmo tempo, envolve sujeitos que resistem aos modos ‘normais’ de se comportarem, de aprenderem, e assim criam novas formas de existência, uma vez que a biopolítica implica também um escapar da vida às técnicas que a dominam e geram (FOUCAULT, 1977).

Com relação à medicalização, é importante situar que não se trata somente da tradução de problemáticas sócio-políticas em problemas individuais pertencentes ao universo de cuidados próprio à medicina mas também do reconhecimento de um discurso que constitui o homem no mundo moderno como indissociável de uma percepção medicalizada de si, dos acontecimentos que o envolvem, sociais ou particulares, discurso este que dessubjetiva o homem e olha para o corpo separado do seu contexto cultural e social.

Discursos escolares

Fui até à escola de João para conversar com Jussara, a professora que se referiu a João como ‘inconveniente’. Parei no estacionamento, desci do carro e, quando fui em direção à secretaria, vejo João de bicicleta, ali no estacionamento e olhando para dentro das salas. Havia grades nas janelas que dificultavam sua visão. Chamei-o e cumprimentei-o. Perguntei o que ele estava fazendo ali no estacionamento da escola e ele me disse que sempre vinha ver as meninas, que ele tem ‘umas minas’ ali. Eu questionei se ele conseguia ver as meninas lá dentro com essas grades. Daí ele falou que mais ou menos e acrescentou: ‘Parece prisão essas grades, né? Quando eu estudava aí parecia que estávamos presos’. Eu pensei comigo, é verdade, João! Despedi-me e falei que precisava entrar. Na saída, o encontrei novamente ali. Fui saindo com o carro e coincidiu com o sinal de saída da escola. Havia muitos alunos saindo e andando na rua, e fiquei ali esperando abrir um espaço para eu passar com o carro. João pegou sua bicicleta, saiu pela frente do meu carro e gritou: ‘saí gente, deixa ela passar!’ Então, abriu um bom espaço para eu passar com o carro. E logo fui atrás dele, ele de bicicleta sinalizando e gritando e eu ali atrás com o carro. E conseguimos sair do meio da multidão. Agradeci o João, ele fez um sinal de “legal” com a mão e fui embora. Fez em seguida o caminho de volta, acho que para voltar e ver as meninas. (Trecho do diário de campo).

João iniciou o acompanhamento psicológico no serviço de saúde mental em grupo, com Juliana, após o primeiro encaminhamento. Alguns meses depois, recebeu alta por melhora no comportamento e no rendimento escolar, conforme informação do prontuário. No ano seguinte, há nos relatórios da escola em que João estudava a informação de que ele foi encaminhado pela própria escola para a Sala de Apoio Pedagógico Especializado – SAPE (atualmente denominado de Atendimento Educacional Especializado - AEE), com o intuito de trabalhar as suas dificuldades escolares.

No ano subsequente, João, agora com oito anos, foi novamente encaminhado pela pediatra do Posto de Saúde para a psicóloga, com a seguinte queixa, encontrada em seu prontuário: “é muito agitado, não fica sentado, atrapalha os colegas, pega objetos dos outros alunos e estraga, provoca brigas. Tem evidências de sexualidade aguçadas.

Anexado a essas anotações, no prontuário de João, havia um relatório escolar, assinado pela coordenadora, diretora e professora da escola em que ele estudava, no qual citava-se que:

O aluno não assimila os conteúdos, não se interessa por nada do que é feito em sala, mesmo as atividades de Educação Artística. Não fica sentado, é agitado, atrapalha os colegas o tempo todo, pega objetos dos mesmos e estraga, provoca brigas. Apresenta evidências de sexualidade aguçada em demonstrações diárias e crescentes, tais como: fala o tempo todo em pornografia: - vou enfiar o lápis no fiu-fiu da ...... se eu não fizer ela vai enfiar o dedo. – Vou fazer “sexo” com a ....... (aluna da classe). – Be a bá .... vou balançar. Constantemente passa a mão no ....... das meninas e meninos, abraça, beija. Na aula de vídeo, assistindo a fita da Turma da Mônica, em uma das cenas em que o Chico Bento ficava boiando com o traseiro para fora da água e a Mônica aparece derrubando a toalha e ficando nua, o aluno, que até então não havia dado a mínima atenção ao vídeo, ficou alterado e gritou duas vezes: - oba, que gostoso! No mesmo dia, saindo da aula, agarrou uma aluna do infantil e a beijou. São atitudes como as descritas acima que o aluno vem se colocando na escola, portanto, para nós educadores, a preocupação é muito grande, pois o aluno não consegue ter como parâmetro a escola como lugar em que se aprende e se socializa, mas não tem limites e infelizmente não conseguimos atingir o seu aprendizado quanto a sua socialização e o seu pedagógico. (Anotações do prontuário escolar).

Observa-se que João é encaminhado a pedido da escola, e a família procura o serviço de saúde mental novamente. A escola e este serviço se comunicam apenas por meio de relatórios. Se o discurso da escola afirma que João “não consegue ter como parâmetro a escola como lugar em que se aprende e se socializa”, ao mesmo tempo evidencia que a escola não consegue ver João como um ser humano que, antes de ser um aluno, é uma pessoa com singularidades, com história, inserido em um contexto de vida. Pode-se até conjecturar o quanto esse comportamento não se coloca como uma forma de resistência à disciplinarização imposta pela escola: ele não obedece e, ainda por cima, escancara sua sexualidade.

Como apontam Garcia, Borges e Antoneli (2015), o “não aprender” pode ser uma forma de resistência ao ensino que não cativa, não envolve, não interessa. Classificar o aluno como “incapaz” é um modo de expropriá-lo de sua condição humana de transformação e aprendizado constantes. Tal tipo de atribuição formata histórias de vida, que passam a ser marcadas pela incapacidade, e não pela possibilidade.

Como mostra Christofari (2014), a escola produz discursos que rotulam alunos de diversas maneiras, discursos estes que não descrevem subjetividades, mas que as produzem. Pode-se entender que a ‘inconveniência’ de João foi sendo construída por atravessamentos dos múltiplos discursos (psiquiátricos, pedagógicos, psicológicos, escolares e jurídicos) que, relacionados, compuseram-no. Os discursos compõem um dispositivo estratégico de relações de poder-saber, e a escola funciona atravessada por essas composições discursivas (PELBART, 2013). Essa composição discursiva sobre João estava sendo tecida: não aprende, nervoso, agitado, ‘inconveniente’, sexualidade aguçada e outras que estão por vir.

Poucos meses depois, João teve nova alta da psicóloga Juliana, referente ao processo psicoterapêutico pelo qual estava passando, com informações de melhora em seu comportamento. No final do mesmo ano, quando o menino estava concluindo o segundo ano escolar, sua escola encaminhou um pedido à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) solicitando uma avaliação da criança. Esse encaminhamento é embasado no seguinte relato, que uma professora de João fez sobre ele:

O aluno apresenta distúrbios de comportamento (mentais) não tendo capacidade de concentração, não assimila conteúdos. O aluno foi avaliado e encaminhado para Escola Especial, aguarda vaga. (Relatório da escola encontrado no prontuário do serviço de saúde mental).

No começo do ano subsequente, a Apae encaminhou o relatório de avaliação de João para sua escola, com a seguinte conclusão:

O menor acima passou em avaliação com a equipe multidisciplinar da APAE (Assistente Social, Fisioterapeuta, Fonoaudióloga, Psicóloga e Terapeuta Ocupacional), onde observamos que o mesmo não apresenta Deficiência Mental e sim um comportamento que possivelmente seria compatível a um TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), portanto não se enquadrando em nossos programas de atendimento. CONDUTA: Sugerimos a continuidade na 2ª série do ensino fundamental no programa SAPE e avaliação com neurologista para a conclusão do diagnóstico. (Relatório da Apae encontrado no prontuário do serviço de saúde).

Há aqui um conflito significativo: por um lado, a demanda da instituição em que João estudava por uma Escola Especial, segundo a lógica de que ele teria uma patologia crônica que o impossibilitava de prosseguir no ensino regular, necessitando, portanto, de um lugar especializado. Por outro lado, a Apae, ao diagnosticar um possível TDAH, embora também medicalizando seu comportamento, o faz segundo uma patologia tratável, livrando-o do espaço segregado da Escola Especial, porém o mantendo sob o prisma do estigma.

Para Foucault (2002), a sociedade disciplinar ou normalizadora pode ser compreendida como um ambiente de sucessivos confinamentos, cada qual com suas próprias leis e sanções disciplinadoras. Portanto, o isolamento constitui-se numa prática importante no tratamento do desvio da normalidade, e, uma vez estabelecidos os critérios de pertencimento e não pertencimento à normalidade, a sociedade passa a avaliar e posicionar seus membros conforme os padrões por ela definidos. A deficiência, entendida como desvio da normalidade, constitui-se em objeto de frequente isolamento e vigilância.

O pai, Sr. Beto falou, nas entrevistas, sobre o desempenho e comportamento do filho na escola à essa época:

A cabeça dele é lenta. A médica disse que ele tem a mente atrasada, de uma criança, teve atraso no desenvolvimento. No primeiro ano não aprendeu, tinha reclamação de que ele não queria estudar, atrapalhava os outros, nunca fez lição em casa. Hoje ele sabe ler e escrever mais ou menos. A escola não aguentava ele. (Trecho da Entrevista com Sr. Beto).

Nas entrevistas com o próprio João, quando perguntado sobre sua vivência na escola, ele refere:

Era bem legal, os professores... só tinha uma professora que me tratou mal. Ela mandava eu escrever letra de mão certa, igual a dela. Ela xingava e falava palavrão feio para mim... eu fazia letra de forma [...]. (Trecho da entrevista com João).

Corpos dóceis e disciplinados fazem apenas o que mandam. Se a letra era ‘de mão’, quem fazia letra ‘de forma’ estava errado. A escola só aceita os disciplinados, buscando excluir os que resistem, como neste caso, aqueles que escrevem de outra maneira que não a considerada adequada.

Logo em seguida, João viveu um momento marcante em sua vida, com a perda da mãe, quando estava com oito anos. Para o Sr. Beto, João não sentiu muito a perda da mãe, por ter convivido pouco com ela. Para o pai, o menino ‘inconveniente’ parecia não ter afetos e sentimentos, até disso foi desapropriado. Durante o processo de pesquisa, João mostrou seus afetos, falou da relação pai e filho e dos momentos prazerosos dessa relação. Suas falas sugerem apenas ser ele um menino travesso, que priorizava o brincar. Passou por perdas na vida, mas ninguém parece tê-lo compreendido e acolhido. Olhavam somente para o que ele não tinha, não sabia. O que ele aprendia e o que ele fazia não eram valorizados.

Entrando na adolescência

Cheguei à casa de João, como havia combinado. Na frente da casa, estava o pai de João, o Sr. Beto, arrumando as bicicletas. Ele tem uma bicicletaria na frente da casa. Parei o carro, desci e fui em direção e o pai disse: ‘Oi doutora!’ Respondi ao cumprimento e ele falou: ‘O João está lá dentro... hoje é só com ele mesmo?’ Disse que sim e ele me acompanhou até o fundo da casa. Mostraram-me a casa, era de dois cômodos. Um sendo a cozinha, sala e quarto do João, tudo junto, e no outro, que era separado por um armário, era o quarto do Sr. Beto. E tinha um banheiro também. Havia uns objetos decorativos, fotos e vasinhos dando um ar aconchegante para o lar deles. João estava na cama, sentei ao lado dele e passamos a conversar. Vi rapidamente uma foto ao lado da cama dele que me chamou a atenção: era ele, João, vestido de beca. Perguntei sobre a foto e ele me disse que tirou no final do último ano na escola e o pai que comprou desses fotógrafos que vão à escola tirar fotos. E a foto estava bem ali, estampada na parede, mostrando a sua importância. Na entrevista, ele respondeu tudo, estava tranquilo. Em um determinado momento apareceu na porta da sala um jovem, João falou com ele e daí perguntei: ‘quem é ele?’ ‘Ah é meu primo, ele mora na casa da frente’. E me disse: ‘ele tem problema’ Eu perguntei: ‘Que problema?’ Ele falou: ‘Ele é mental, sabe?’ Então perguntei: ‘Como assim mental?’ E João falou: ‘Ele não sabe ler nem escrever, não aprende as coisas!’ Naquele momento me fiz a pensar, realmente João não era ‘mental’ como estavam querendo fazer com que ele fosse... (Trecho do diário de campo).

Após quatro anos, quando João tinha doze anos, segundo informações do prontuário, a avó materna procurou novamente o serviço de saúde mental, com uma nova guia da pediatra solicitando atendimento psicológico para João, ou seja, mais uma vez uma demanda que não era diretamente da família, mas de outrem. Porém, neste momento, a queixa mudou um pouco, pois a pediatra escreveu na guia: “Paciente está agressivo, tendo crises de agitação, pioraram após falecimento da mãe, já acompanhou com psicologia. Diagnóstico: distúrbio do comportamento.

João volta a passar por atendimento em grupo psicoterapêutico com Juliana, que se refere a ele, no prontuário, como “hipersexualizado”, apontando também sua “infantilidade”. A mesma referência ao fato de ele ser ‘hipersexualizado’ aparece na entrevista com a professora Jussara, para quem João “era muito difícil”, “falava tudo o que queria”, “não pensava para falar”, “chamava a inspetora de gostosa” e “mexia com as alunas”. Para Louro (2000), a sexualidade é um dispositivo histórico. Em outras palavras, ela é uma invenção social, uma vez que se constitui, historicamente, a partir de múltiplos discursos sobre o sexo: discursos que regulam, que normatizam, que instauram saberes, que produzem “verdades”. O que esses discursos queriam dizer? João estava com doze anos, idade em que os comportamentos sexuais costumam ser mais frequentes. Mas esses comportamentos também foram patologizados. João continuava a ser visto sob a ótica da anormalidade, por um comportamento supostamente fora do convencional, mas jamais se questionou quais seriam os parâmetros utilizados para balizar esse julgamento. Observa-se aqui a presença da pedagogia da sexualidade, descrita por Louro (2000), reprimindo ou marginalizando as identidades e práticas sexuais, por meio de seu silenciamento ou da afirmação de sua anormalidade.

João é desligado da psicoterapia no mesmo ano, por faltar às sessões sem justificativa, retornando dois anos depois, já com quatorze anos. Nesse período, João ainda morava com os avós e passou a estudar em outra escola, na qual ficou apenas um ano5. O menino passou por outras perdas significativas em sua vida. Há relatos no prontuário que, nesse mesmo ano, ambos os avós maternos, D. Maria e Sr. Antônio, com quem ela morava, faleceram em datas muito próximas. João foi então morar com o pai. Nas entrevistas, pouco falou disso.

Ele estava ainda frequentando o atendimento psicológico e, segundo anotações de Juliana em seu prontuário, em uma das conversas o Sr. Beto solicitou-lhe prescrição de medicação psiquiátrica para João, dizendo que estava muito difícil lidar com ele. João, então com quatorze anos, foi encaminhado para a psiquiatra Luísa, que fez as seguintes anotações no prontuário:

Queixa: ‘é nervoso’. Muito atrasado em questões escolares, dificuldades na escrita. “Piores alunos na mesma sala”. Brinca e não presta atenção. Professores se queixam de comportamento de falar etc. Tem episódios de agressividade. Oscila o padrão do sono – sonambulismo. Avós falecidos. Bom apetite. Tem vários amigos – pai não deixa ficar na rua. Operou estrabismo 2ª feira. Nega crises convulsivas. Histórico de doença mental mãe e tias. Conduta: 1) F 70.0 e transtorno ansioso. 2) Imipramina 2mg (001) (002). 3) apoio + orientação. Retorno 60 dias. (Anotações no prontuário do serviço de saúde mental).

A partir desse momento, João passa não só a ter um diagnóstico referendado por um psiquiatra como também a usar medicamentos. Nesse cenário, o fármaco parece encarnar a análise de Foucault (2002) acerca da biopolítica como tecnologia de gestão da vida (DECATELLI; BOHRER; BICALHO, 2013): é receitado com a expectativa de que os comportamentos daquele a quem fora administrado sejam controlados, fazendo com que a inconveniência da parte dele venha a ser minimizada com o uso de medicação.

Passam a existir, então, formas tidas como eficientes para alcançarmos esse ponto normal, que serão definidas segundo as necessidades e os desejos que se produzem no funcionamento social, nas formas de viver de certo tempo, sendo uma dessas formas a ação de medicar-se. A engrenagem vai se ampliando e se conectando com novas práticas e relações cotidianas: a norma, a individualização, a busca por soluções imediatas que remediam aquilo que se considera anormal, o mercado, os laboratórios farmacêuticos, a química, a intensa presença de medicação para aliviar a vida. Com isso, intensificou-se, nos últimos anos, a crítica em relação ao excesso de uso de medicação e psicofármacos visando a alterar formas de sentir e de viver, e a grande quantidade de crianças medicadas (em uma sociedade medicalizada) nos alerta para um grande perigo. (MACHADO, 2014, p. 94).

Nada parece conseguir propagar de forma tão imperiosa o saber/poder médico quanto a medicalização. Pode-se relacionar esse processo com o poder disciplinar, conforme analisado por Foucault, para quem seu sucesso “se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (FOUCAULT, 2009, p. 164). O exame psiquiátrico vem com essa função de controle e de vigilância que permitem qualificar, classificar e punir. O exame permite levantar todo um campo de conhecimento sobre o sujeito.

João passa a ter o diagnóstico de retardo mental agregado ao de transtorno de ansiedade. A passagem de um diagnóstico transitório, que traz a ideia de um desenvolvimento não satisfatório (como o de transtorno das habilidades escolares - F81.0), para o de retardo mental (F.70.0), um diagnóstico definitivo6, marca de forma indelével sua trajetória, referendando sua anormalidade em torno de uma concepção de inabilidade e incapacidade. Nas palavras do pai, “Ah... ele nunca foi normal... né... sempre diferente das outras crianças... Ah, na televisão ele gosta de assistir desenho que criança gosta....

O ‘carimbo’ médico reforçou ainda mais os discursos do pai e da escola, o que evidencia a presença de uma rede medicalizante, que se retroalimenta destes diversos discursos. São comuns os discursos de pais, professores e outros agentes escolares acerca da necessidade de certas medicações, que têm por objetivo fazer os ‘ajustes necessários’ para que o aluno aprenda: acredita-se que as crianças que demonstram comportamentos destoantes do considerado normal só têm capacidade de aprender se estiverem sendo tratadas, medicadas, controladas e contidas.

Com João, nas entrevistas, o assunto da medicação e do tratamento que havia realizado também veio à tona, evidenciando sua resistência em relação à condição de anormalidade a ele atribuída. Em suas palavras: “Eu não tomava muito o remédio. Eu não me sentia muito bem com esse remédio... A escola que mandava eles me levarem na médica, né, mas eu não precisava.

No ano seguinte, os relatos do pai para a psiquiatra que acompanhava João, cujo registro consta no prontuário, são: dificuldades para dormir, agitação, péssimo rendimento escolar, falta de interesse na escola e interesse apenas pelo brincar. Com essas informações, foi aumentada a dosagem da medicação receitada a João, que continuou com o diagnóstico de retardo mental (F70.0).

Observa-se nesse momento o quanto a diversidade de comportamentos é limitada por uma lógica que lhe reduz à condição de sintoma a ser tratado pelo uso de medicação. Desinteresse pela escola, perda concreta da mãe, dos avós e da credibilidade por parte das pessoas em relação ao seu potencial: tudo isso presumivelmente se resolveria com um medicamento. Cabe pensar aqui no quanto a suposta indisciplina não se configura como um movimento de resistência aos discursos da escola, da instituição de saúde e da família, que o criticavam cada vez mais.

A trajetória de João revela um projeto que promove a contenção, recorrendo ao domínio e à força do poder de controle, exatamente daquilo que escapa à norma, em um mundo que deixa transparecer cada vez mais sua inabilidade para lidar com tudo o que é exceção. A psiquiatria parece cumprir aqui, primordialmente, a função de controle social, função esta bastante criticada por diversos teóricos nos últimos cinquenta anos.

Tentativas de institucionalização

Aos quinze anos, João ainda continuava o acompanhamento com a psiquiatra. Em uma das consultas, constam as seguintes anotações, feitas em seu prontuário:

Rebaixado leve. Gosta de brincar de carrinhos. Não consegue acompanhar na escola. Carta para escola, solicito inclusão. CD:1) medicação mantida. Oriento pai sobre escola especial. (Anotações no prontuário).

Mais uma vez a Escola Especial surge como uma resposta ao desejo de afastá-lo da escola regular, segregando-o. Para a psiquiatra, João tem uma deficiência intelectual, não sendo possível outra alternativa escolar. Nesta lógica, a diferença humana, além de ser reduzida a marcas do corpo, “é utilizada como um mecanismo sutil de apagamento das diferenças” (DIAS, 2006, p. 215). Segundo esse juízo, não cabe à escola abrir possibilidades de rompimento com a lógica disciplinar para incluir João em sua singularidade. No contexto da biopolítica, a escola é o lugar por excelência de constituição dos corpos saudáveis e educáveis (DECOTELLI; BOHRER; BICALHO, 2013).

Quando perguntado sobre como era não conseguir aprender, sobre como se sentia, João disse, em diferentes momentos das entrevistas realizadas:

Ah... sentia magoado né... Antes eu não sabia nem ler e nem escrever. Aprendi na quinta série. Todo mundo lia, era eu e um amigo que não sabiam... os outros tiravam sarro... falavam “não sabe ler, analfabeto”... falavam um monte... eu ficava bravo, eu saia da sala, batia a porta. (Trecho da entrevista com João).

Nesse ponto, o sistema educacional encontra-se de forma perversa com as políticas de saúde. A escola era para João um local de encontro, ela tinha uma importância social para ele. Porém, por não aprender o que os professores ensinavam e por não se comportar como eles queriam, os outros aspectos importantes da escola foram colocados de lado.

Se a escola pública exclui os alunos que não aprendem como ela quer, os ‘inconvenientes’, e a saúde colabora ao sustentar esse processo com diagnósticos, conclui-se que tal processo é atravessado por uma questão de classe. Ao se detectar dificuldades na aprendizagem de crianças, há que se considerar que crianças pobres e ricas não seguem o mesmo caminho, não possuem as mesmas possibilidades e, certamente, não chegam com a mesma frequência ao diagnóstico rotulador e definitivo de ‘retardo mental’. A impressão que fica é que o caso de João reflete uma história específica de camadas populares.

No discurso de Jussara, João aparece como um aluno antissocial, que ficava feliz de irritar os colegas, sendo por isso excluído da sala. O pai se refere de forma parecida à relação de João com os alunos da escola: “Ah... a maioria dos alunos não gostava muito dele...”.

João tem impressões ambíguas sobre esse tema. Afirma sobre os demais alunos que “eles falavam que eu era chato, não deixava eles estudarem... e eu fazia isso mesmo. Mas esses relatos contrastam com outros, ocorridos principalmente fora do ambiente escolar, nos quais se visualiza momentos bons entre ele e os colegas:

Às vezes eu queria ir na rua de baixo, encontrar com os colegas, eu sempre ia, a gente pegava massinha de pão, os caras da padaria davam para nós né... dava 7 sacos cheio, nós fazia uma luta com um monte de gente. 20 para o lado direito e 20 para o lado esquerdo... nós víamos carro batido e ficávamos fazendo guerrinha de massinha, jogava um no outro... brincava de esconde-esconde, ficava com as meninas. (Trecho da entrevista com João).

E, segundo ele, os amigos o viam como “Ah, legal, meio simpaticão, meio assim, a gente ia sair na festa junina e eles meios que ajeitavam menina para mim... mas eu falava ‘não sei não...’ ficava meio de canto.

Esses relatos parecem apontar que estar na turma ‘aprontando’ com os amigos era uma forma de encontrar um reconhecimento, uma aceitação, um olhar. Ao mesmo tempo, João reconhece, falando de si mesmo: “Ah eu não me adaptava na escola”, o que mostra uma consciência de sua inadequação àquele espaço, sem, no entanto, culpabilizar-se por isso. Para alguém que supostamente teria ‘retardo mental’, João parece se expressar muito bem e ter uma boa consciência de si e do seu entorno.

Para Angelucci (2014), o debate sobre a medicalização deve ser inserido na discussão sobre a educação que queremos. Isso significa ir contra o conjunto de ações de adaptação das singularidades à escola: as diferenças não devem ser homogeneizadas, mas sim respeitadas enquanto alteridade.

João torna-se perigoso

Na última escola que João frequentou, a partir dos quinze anos, seu nome aparece com frequência no ‘livro de ocorrências’ - nome que remete a um discurso policial, sugerindo dispositivos de controle e vigilância. Havia ‘ocorrências’ sobre ele acerca de não fazer lições e atividades propostas e de perturbar os outros alunos e as aulas. Dois anos mais tarde, já com dezessete anos, as ‘ocorrências’ se intensificaram:

O aluno vem apresentando comportamento inadequado em sala de aula. Brinca o tempo todo, também falta com respeito com alguns colegas através de brincadeiras maliciosas e vexatórias. Com a Joana comete bullying, chamando-a de vara de pescar, bambu, espeto, entre outros, com o Mateus, constrange-o chamando-o de veado, e que um outro aluno tem caso com ele. Na sala, em minhas aulas, não realiza as atividades atrapalha o tempo todo com as brincadeiras citadas acima. Aluno imaturo. Professora de Inglês, Marcela. (Livro de Ocorrências da escola).

Nesse ano, alguns alunos escreveram cartas reclamando do comportamento de João. Uma delas relata:

Eu, Felipe, por meio deste documento escrito a punho, venho relatar que estou sendo assediado verbalmente e psicologicamente pelo aluno que infelizmente estuda no 1ºC. Suas atitudes são venenosas perante minha posição de estudante na escola. Prejudicando minha vida pessoal. Ele faz chacota da aparência de meu olho esquerdo, que é atrofiado e sem visão, causando um dano físico na minha face, eu tento me aceitar como sou, mas infelizmente o aluno me faz passar de idiota e alvo de chacota para a sala de aula. Ele é um aluno preconceituoso como já dá para perceber. [...] Ele abusa da paciência dos outros, principalmente a de professores. Enfim, a situação é precária. (Relatório do prontuário escolar).

Os relatos evidenciam o fracasso da escola em lidar com as diferenças sendo reproduzidas no corpo discente. João é discriminado pela instituição e responde discriminando outros alunos por sua diferença em relação aos padrões que seriam aceitáveis. Quando perguntado sobre esse período, João se refere principalmente às relações que estabelecia com os colegas e a como era visto: “O pessoal nessa escola me chamava de Cilão... era o nome do outro colega meu, é igualzinho eu... Eu era o mais velho da turma [risos]”, “eles me chamam de ET, não sei por que, a mulher do meu colega que colocou.... não sei por que.

Apesar de João gostar de ser chamados de Cilão e ET, vemos o estigma sendo construído por meio das marcas que sobre ele são produzidas. Além de ser um ‘vacilão’, ele é um ‘ET’, um ser de outro mundo. É reproduzindo o lugar de ‘alguém de outro mundo’ que João se insere marginalmente na escola, em busca de reconhecimento. Para Goffman, é comum a pessoa estigmatizada fazer um uso a seu favor do estigma, o que parece ser o caso de João, que incorporava o papel de ‘bagunceiro’ e de ‘anormal’ para ganhar respeito. Segundo o autor, “a criatura estigmatizada usará, provavelmente, o seu estigma para ‘ganhos secundários’, como desculpa pelo fracasso a que chegou por outras razões” (GOFFMAN, 1988, p. 12).

Aos dezessete anos, João passou a ser atendido por um novo psiquiatra no serviço de saúde mental, que anotou em seu prontuário:

No momento em uso de Imipramina 25 mg (003), parou por conta própria o uso de carbamazepina. Na escola – 1º colegial – joga chiclete nos colegas, coloca apelido nos colegas. Fala “palavrão” com as meninas. Não apresenta comportamento agressivo. Não faz atividades, só quer brincar, dificuldade de aprendizagem. Em casa, não obedece ordens, responde, fica nervoso quando contrariado. Dorme e come bem. Nega uso de drogas ilícitas, Bebida Alcóolica. Usa tabaco. Não sabe ler e escrever direito. Hipótese Diagnóstica: F70.0, F637. Conduta: Risperidona8 1mg (001/2) – 7 dias – (001). Imipramina 25mg (002) – 7 dias – (001) – 7 dias – encerra. Retorno 60 dias. (Anotações do prontuário do serviço de saúde mental).

Muda o psiquiatra, mas o serviço de saúde continua em seu papel, que se resume a diagnósticos e tratamento medicamentoso, sem debate com a escola e outras instâncias. Os diagnósticos se tornam cada vez mais ‘graves’ e apontados de forma aparentemente superficial. Os relatos e queixas sobre João só aumentaram. Ao final do mesmo ano, nova anotação no prontuário por parte desse psiquiatra:

Comparece conselheira tutelar. Relata que o menor, está agressivo, com heteroagressividade, uso irregular de medicação e provável uso de drogas ilícitas [sic]. Ameaçou familiares e tentativa de suicídio com faca há alguns dias. CD: Solicito internação em Hospital Psiquiátrico. Luís. (Anotações do prontuário do serviço de saúde mental).

O Conselho Tutelar baseia-se no Estatuto da Criança e do Adolescente, que preconiza uma lógica de proteção ao seguir uma direção político-pedagógica, em vez de correcional, como nos códigos anteriores a ele. Nesse caso, porém, o Conselho Tutelar pega emprestado uma função policialesca, de ameaça, de correção, o que não deveria ser seu papel (DECATELLI; BOHRER; BICALHO, 2013). A ideia de aproximação entre ‘anormalidade’ infantil e delinquência apoia-se em medidas ‘preventivas’ e por elas é apoiada, através da propagação de modelos de controle moral e social.

A professora Jussara, na entrevista, também relatou que se acreditava na escola que João estava envolvido com drogas, porque aparecia com isqueiro e bebidas. O pai disse que desconfiava desse uso, pelo fato de João ter pego uma quantia de dinheiro de uma tia:

Ele falou “ah não peguei nada...”, daí comecei a apertar ele, e ele falou que tinha gastado, e falei “gastado como? 100 reais, assim, na hora...”, daí depois ele confessou, quer dizer, inventou que ele tinha cagoetado os caras, e os caras iam pegar ele, daí ele jurou que era verdade... daí foi o dia que eu chamei a polícia, porque tava demais, sabe... daí foi o policial, e como ele era menor ainda, tinha 17 anos, foi a conselheira tutelar junto... daí o policial forçou e depois me chamou no canto e falou: “é tudo mentira dele, ele está devendo em biqueira [local de tráfico de drogas]”. (Trecho da entrevista com Sr. Beto).

O fenômeno da judicialização da vida segue em paralelo ao da medicalização: a ideia de periculosidade e delinquência é construída, e a polícia e o Conselho Tutelar comparecem para resolver e corrigir essa situação. Pelo bem da ordem e da paz, além da psiquiatria, agora também atuam a polícia e o Conselho Tutelar. Ambos os fenômenos se articulam em torno de uma lógica de imposição de modos corretos de se viver e se relacionam à gestão da vida, à biopolítica, portanto. A judicialização da vida ganha força com a configuração de uma noção de periculosidade, um caminho típico para jovens de camadas populares.

O pai contou, na entrevista, que o pedido de internação psiquiátrica de João partiu dele próprio, uma vez que não sabia como lidar com filho, o que se somava ao fato de sua mãe (avó de João) estar doente e acamada:

Eu que pedi, para ver se dava uma melhorada, porque tava demais, né... queria que melhorasse o comportamento dele, porque minha mãe estava de cama, mal, e eu cuidando dela. Ah, não sei se ia melhorar, mas ia melhorar em casa o tempo que ele estivesse fora... agora mesmo eu saio de casa e tenho que deixar minhas coisas tudo fechado com cadeado... sabe, não confio nele mais. (Trecho da entrevista com Sr. Beto).

João não concordou com a atitude do pai e também não concordava com o tratamento que o pai queria que ele fizesse. Segundo ele, dizia ao pai: “Eu não sou doente.

O pedido de internação de João aponta para algumas problematizações que setores da juventude vêm colocando acerca da psiquiatrização dos jovens estar a serviço de seu encarceramento, pela via da patologização das condutas criminosas (KOLKER, 2005 apud VICENTIM, 2010).

O pai foi orientado a trazê-lo ao serviço de saúde mental caso não conseguisse a internação. Há anotações no prontuário quanto à ciência em relação a um Termo de Ajustamento de Conduta que determinou o fechamento dos manicômios da região onde se localiza a cidade em que João mora9.

Segundo informações e relatórios presentes no prontuário de João, há uma comissão em sua cidade, composta por alguns setores da sociedade e presidida pelo Conselho Tutelar, para lidar com casos de crianças e adolescentes de maior complexidade. Um trecho de um desses relatórios informa:

Requisição de serviço público, pedido do Conselho Tutelar. Este conselho foi chamado em uma denúncia pelo Sr. Beto, para comparecer em sua residência por estar sendo ameaçado pelo menor em tela, o mesmo passa por tratamento psiquiátrico, chegando na residência eu e o Soldado, o menor estava bem abalado e conversando com o mesmo e com o pai me relatou que está sendo pressionado por alguns indivíduos dependentes químicos, mas diz não ter envolvimento com drogas, o pai mora com a mãe acamada e a mesma sofre muito pelas atitudes do menor, em conversa com o psiquiatra foi encaminhado para internação mas no momento não há vaga disponível no município, Assistente Social ciente, aguardando, encaminhamento e relatório em anexo. Conselheira Tutelar.

Anexo: Termo de Encaminhamento ao Ministério Público. [...] Em visita à casa do Sr. Beto, o qual fez relato em denúncia que o menor em tela estaria ameaçando o mesmo e sua mãe idosa e acamada aparentemente após um surto psiquiátrico, dizendo que iria fazer uma besteira e com a vida dele também, junto com um furto de dinheiro da avó e tia, após adentrar na casa da Tia idosa, em cima de ameaça o genitor acionou este Conselho e a ajuda da Polícia civil, chegando na residência o menor se mostrou mais calmo e relatou que estaria sendo ameaçado de morte por outros indivíduos do bairro, e que no desespero se apossou de quantias em dinheiro de ambas idosas, e que queria ajuda deste órgão para um tratamento, após o relato fiz o encaminhamento à Rede do município, que se constitui em ameaça e violação dos direitos da criança/adolescente [...]. (Relatório encontrado no prontuário do serviço de saúde mental).

João, mais uma vez, conseguiu escapar e não foi institucionalizado, pois, devido ao Termo de Ajustamento de Conduta, são proibidas, na cidade, novas internações psiquiátricas nos manicômios locais. Embora a região esteja sendo obrigada a se alinhar com a nova política pública, que defende os serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico, baseada nos princípios de aprender a lidar com a diferença, e de existir um trabalho em rede que dê suporte aos usuários no serviço de saúde em que João é atendido, prevalece a lógica manicomial, o que é evidenciado nesse pedido de internação psiquiátrica, que, ao invés de propor um acolhimento territorial, investe na segregação dos ‘inconvenientes’.

Nas anotações no prontuário, consta que no retorno da consulta de João com o psiquiatra, após o pedido de internação, João e seu pai não compareceram. João não frequentou mais o psiquiatra nem a psicóloga. O Conselho Tutelar e o Ministério Público, até a data deste estudo, não haviam procurado o serviço para saber mais do caso. Nem a justiça, nem a saúde atuaram mais no caso de João.

Fora da escola

Ao completar dezoito anos no final do ano do mesmo ano, consta nos relatórios escolares de João a orientação para que ele passasse a estudar na Educação de Jovens e Adultos (EJA), pois sua idade seria inadequada para a escola regular. João conta na entrevista que “Não pode continuar na escola com dezoito anos... se pudesse eu continuaria sim... Porque era legal... muita bagunça... Às vezes eu vou até hoje na escola, ver lá.” “Ah, não sei, me inscrevi no EJA, lá é só fazer prova... Tenho vontade de terminar... falta um ano só.”

Após várias tentativas – de o transferir para escola especial, depois para o Atendimento Educacional Especializado (AEE), novamente para escola especial, na sequência para o Hospital Psiquiátrico –, finalmente a retirada de João da escola, uma importante rede social para ele, é bem-sucedida. Resta-lhe o encontro com os demais alunos na saída da escola, como visto anteriormente.

Durante as entrevistas, o pai nos contou como ele percebia e olhava para o filho, demonstrando uma visão de descrédito e de desconfiança. Parecia não saber o que fazer para a situação melhorar:

Não sabe mexer nas peças da bicicleta. Não sabe mexer no caixa eletrônico. Tem celular, mas não sabe mexer direito. Em casa ele não é agressivo, não responde, mas não obedece também. Ninguém confia mais nele lá [...]. (Trecho da entrevista com Sr. Beto).

As famílias não aguentam a pressão de ter um filho desajustado. O desajustamento de João parece se disseminar por sua família, que seria, conforme visto, facilmente classificada como ‘desestruturada’ pelas teorias que culpabilizam a família pelo insucesso de seus membros, passando a ser vista como perniciosa para a sociedade, sem afeto, sem qualidades. O pai estava sofrendo com esse processo (COLLARES; MOYSÉS, 2010).

Segundo a professora Jussara, o pai dizia que João “não prestava para nada” e, quando João completasse dezoito anos, iria mandá-lo embora “para cuidar da sua vida”. Na entrevista, o pai falou muito de como o filho foi um problema na escola, como ele não era benquisto pelos familiares e não tinha bons amigos. Já João, na entrevista, afirmou estar à procura de um novo emprego e falou sobre o que quer do futuro: “Procurar serviço... quero trabalhar, estudar... quero namorar.

João se coloca como um jovem com desejos, apesar de seus desejos estarem entrelaçados com os discursos sobre o que esperam dele. Ele diz querer se disciplinar, se normatizar, ao procurar um serviço e estudar. Difícil avaliar até que ponto sua fala não está atravessada pelos discursos de que tratamos até o momento: da psicologia, da escola, da psiquiatria, do higienismo, da justiça, dos quais a todo momento ele escapava.

Outro ponto importante é a falta de perspectiva vivenciada por ele. A questão da pobreza atravessa-o fortemente, não oferecendo outros caminhos de vida para o menino. João escapou da institucionalização, mas a ineficiência do processo educacional pelo qual passou limitou também suas possibilidades de trabalho. No momento da pesquisa, João vive a contradição entre o desejo de liberdade das instituições que o querem disciplinar e o aumento das demandas de obter meios de se sustentar, de forma a resistir à pressão paterna crescente.

Considerações Finais

Na última entrevista na casa do João, estávamos sentados conversando e ele me contou sobre seu grande amor, a Marina. João se lembrou de que no primeiro dia que ele foi ao serviço de saúde, na entrevista, ele havia encontrado a Marina saindo do atendimento comigo (eu era psicóloga da Marina no serviço de saúde mental). João havia ficado muito feliz de reencontrá-la e sempre perguntava dela para mim. Ele havia me contado anteriormente que conheceu a Marina quando participava do grupo terapêutico com a psicóloga Juliana, no serviço de saúde. Falou que logo em seguida eles namoraram, mas ela acabou terminando com ele. Ele ficou triste ao falar disso. Encantava-se ao falar dela. João contou-me que estava saindo com uma moça mais velha, mas ele queria a Marina e disse que com ela até se casaria. Despedi-me de João, do pai e agradeci imensamente a disponibilidade e contribuições deles. Mas no fundo eu estava com dificuldade de me despedir deles. João era uma figura encantadora e me apeguei a ele; Eles foram até o portão comigo, João pegou a bicicleta e falou: “a gente se encontra por aí, vou lá te ver um dia.” Fiquei feliz em ouvir isso. E fui em direção ao carro e pensei o quanto eu havia aprendido com o João e seu pai, e o quanto a vida deles havia me tocado. Eles não faziam ideia da riqueza que eles tinham, apesar de todo o caminho limitado que percorreram e percorrem na vida. (Trecho do diário de campo).

A pesquisa teve como objetivo investigar a repercussão do dispositivo medicalizante sobre crianças e adolescentes na escola pública, para compreender que efeitos são produzidos nas subjetividades, na trajetória escolar e nas instituições de saúde de crianças e jovens.

A medicalização, conforme discutido, não pode ser reduzida a uma responsabilidade da educação, da medicina ou da psicologia: é um fenômeno muito mais amplo, sustentado por diversos discursos e práticas, que consideramos aqui como um dispositivo que se configura como uma biopolítica, que opera, por sua vez, por meio de uma rede (medicina, psicologia, educação, higienismo, justiça, entre outros), mas que também produz resistências a partir de seus alvos principais.

Observamos o quanto uma concepção essencialista de infância e adolescência está presente no olhar da medicina, da educação e da família. A noção de “desenvolvimento normal”, problematizada por Foucault (2006a), é onipresente nos discursos da rede social de João. Também está implícito nesses discursos o conceito de desestruturação familiar, o que faz com que as famílias se vejam pressionadas a adotar os discursos da escola e da saúde: a pressão para terem filhos ‘normais’ é tão grande que eles reproduzem estes discursos e passam a ver seus filhos como ‘inconvenientes’. A família de João não encontrou saídas para romper com essa rede de discursos que a envolvia.

A medicina, em especial a psiquiatria, compareceu com seu olhar hierárquico, através das técnicas de exame, produzindo ‘verdades’ sobre João. Sem muita articulação com outros profissionais da saúde, principalmente com os da educação, ela terminou por consagrar o processo de medicalização de João. O menino também vivenciou várias tentativas de institucionalização e de segregação, da escola especial até a tentativa de enviá-lo ao hospital psiquiátrico. Como não se deseja lidar com a diversidade, a segregação passa a ser o caminho escolhido, resgatando técnicas das instituições totais dos séculos passados. Mas João resistiu.

A noção de periculosidade também foi sendo construída ao longo da adolescência de João. Ele passou a ser tido como um descontrolado dos ‘instintos’, perigoso, e, não tendo os dispositivos de saúde conseguido domá-lo, a justiça foi acionada. A sexualidade de João também aparece como incontrolável, devendo ser regulada. Mas o corpo de João resiste à docilidade que lhe querem impor.

O desafio aos princípios de uma sociedade calcada na ideia da saúde e produtividade é evidenciado na trajetória de João. A escola não consegue cumprir o papel de controle que lhe é designado, mas seria João o fracassado ou o que está em jogo são falhas de um projeto de sociedade?

Para Hannah Arendt, a crise da educação se refere a uma crise da sociedade. Para ela, “certamente, há aqui mais que a enigmática questão de saber por que Joãozinho não sabe ler” (ARENDT, 2009, p. 222). Arendt tira a compreensão das dificuldades de aprendizagem “do Joãozinho” e olha para “o mundo em que Joãozinho vive”. O caso de João, aqui descrito, não é certamente o único, haja visto o enorme contingente de crianças e jovens em que transparece essa crise na sociedade.

Arendt (2009) e Biesta (2013) debatem como a educação se transformou em um campo de conhecimento sobre o ensino, transformando-se em ciência da aprendizagem. Ao fazê-lo, deixou de ser uma ciência de educação para o mundo que habitamos, para a formação de seres humanos. E esse ato de receber o novo em um mundo já velho, ou seja, de educar e de formar seres humanos, não pode se dar sem tensão. A função da escola é ensinar às crianças como o mundo é, e não as instruir como ser, como viver. É colocar em debate e em conflito, é não silenciar suas crianças e jovens com ações reguladoras e disciplinadoras. É não tornar dóceis os corpos, é não os medicalizar. É olhar para a diversidade produzida pela potência de vida e acolhê-las.

A crise, portanto, é social. Encontramo-nos em uma sociedade de controle em que os poderes estão capilarizados por todos os espaços e relações, tentando produzir sujeitos dóceis e disciplinados. Os poderes atuam com força para manter o rótulo de ‘anormal’ e ‘inconveniente’. Nesse caminho, a medicalização se configura como uma rede operada através de vários discursos, que atuam por meio dos biopoderes que se inserem na vida. Mas há rupturas nesse processo. João, o menino ‘inconveniente’, rompeu-lhes as amarras e não se tornou um corpo dócil e disciplinado. A potência da vida humana está no novo, no rompimento com o instituído. É possível pensar e criar novos modos de vida, com a valorização da pluralidade e da diversidade.

O problema de João não foi a escola tê-lo colocado no lugar de ‘inconveniente’, não foi a saúde tê-lo diagnosticado e medicado, nem o pai se cansar e passar a desacreditar dele. Ele vivenciou um processo da medicalização construído em rede, por meio dos discursos e práticas da escola, do serviço de saúde, da família e da sociedade. O poder normativo se inseriu em todos os espaços de sua vida. Sua trajetória de vida foi construída a partir do lugar da ‘inconveniência’. João viveu tentativas de exclusão e institucionalização, mas admiravelmente desenvolveu estratégias de resistência.

Importante ressaltar que não se está afirmando aqui que João não pudesse se beneficiar de um processo psicoterapêutico. Parece evidente que as perdas que sofrera e a convivência com estigmas de exclusão, de medicalização e judicialização o afetaram, e seria importante que ele vivenciasse um processo terapêutico que abarcasse tais questões, para poder reconhecer suas singularidades e potencialidades, o que infelizmente não ocorreu.

Conclui-se pela necessidade constante de se debater sobre os ‘Joãos’ e tantos outros meninos ‘inconvenientes’ e pela necessidade de mais pesquisas que possam compreender esses processos. Pesquisas que discutam a articulação do processo de medicalização com questões de classe, de gênero e raça/etnia se fazem necessárias. Há que se ter em vista que a sociedade precisa lidar melhor com a diversidade, o que requer o desenvolvimento de uma visão crítica sobre esse tema.

1.Foram selecionados prontuários de jovens com idades entre 18 e 22 anos que tivessem diagnóstico de retardo mental em um serviço de saúde mental de um município da região de Sorocaba-SP. Com esses prontuários, foi feita uma análise e pré-selecionados casos de jovens que realizavam o acompanhamento desde a infância nesse serviço e que houvessem passado pelo diagnóstico de transtorno das habilidades escolares, uma vez que a pesquisa exploratória identificou ser comum a passagem dos diagnósticos de transtorno das habilidades escolares na infância para o retardo mental na adolescência. E assim chegamos à história de João (nome fictício). O caso foi selecionado pela qualidade dos dados que puderam ser obtidos, em especial os referentes às escolas frequentadas.

2Todos os nomes utilizados nesse artigo são fictícios.

3A primeira autora do presente artigo era psicóloga do serviço de saúde mental onde João se tratava no momento da pesquisa, mas nunca foi responsável por seu atendimento.

4A morte da mãe de João pode também ser entendida como consequência de políticas de assistência violadoras de direitos humanos. Na região de Sorocaba, um estudo evidenciou a elevada mortalidade nesses manicômios e a violação de direitos humanos neles presentes (GARCIA, 2012).

5Infelizmente, não foi possível obter os registros escolares desse período, pelo fato de a escola não responder aos pedidos de contato feitos.

6A maior presença de diagnósticos transitórios em crianças menores e a de diagnósticos definitivos nas maiores e adolescentes foi apontada no levantamento quantitativo que orientou a presente pesquisa, realizada a partir do banco de dados dos pacientes atendidos no serviço de saúde mental onde João se tratava.

7Transtorno dos hábitos e dos impulsos.

8A Risperidona é um neuroléptico do grupo benzisoxazol. Sua principal indicação é para o tratamento de sintomas psicóticos, especialmente para pacientes esquizofrênicos que não melhoraram com outras medicações antipsicóticas.

9O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) foi uma iniciativa dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, com apoio das três esferas (União, Estado e municípios) para enfrentamento dos problemas no atendimento e de violações de direitos humanos ocorridas nos sete manicômios da região de Sorocaba, que naquele momento compunham o maior polo manicomial do país, com mais de 2,7 mil pacientes. O Termo estabelece que todos os pacientes atendidos por estes manicômios passariam a ser atendidos pela Rede de Atenção Psicossocial.

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Recebido: 11 de Abril de 2016; Aceito: 21 de Julho de 2017

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