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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.2 Florianopolis abr./jun 2018  Epub 01-Jan-2018

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n2p741 

Artigos de Demanda Contínua

Tipos e sentidos de motivação para a escolha do curso de licenciatura

Types and meanings of motivation for the choice of a licentiate graduation course

Tipos y sentidos de motivación de la elección del curso de grado

Fabrício de Oliveira da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-7962-7222

Marinalva Lopes Ribeiro2 
http://orcid.org/0000-0002-9197-1341

1Universidade do Estado da Bahia, UNEB

2Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS

3Universidade Estadual de Feira de Santana, UEFS


Resumo

O trabalho analisa, mediante representações sociais de estudantes de uma universidade pública do Estado da Bahia, os tipos e sentidos da motivação para a escolha do curso de licenciatura. Contribuições de Arruda, Bezara e Cerdeiriña, Dubar, Martins, Moscovici, dentre outras, deram a principal sustentação teórica para a interpretação dos dados. Baseada na perspectiva qualitativa de pesquisa, a investigação envolveu 77 estudantes de 4 cursos, quais sejam: Licenciatura em Geografia, Letras, Música e Química. Foi-lhes aplicado um questionário, indagando-lhes quais motivações impulsionaram a seleção do curso e a importância atribuída por eles à profissão escolhida. Conclui-se que há dois tipos de motivação: uma intrínseca, oriunda da vontade, do desejo, do gosto, sem influência de fatores externos como recompensas, pressões e ameaças; e outra, marcada por influências externas, por pressões e recompensas a respeito de como conseguir uma colocação no mercado de trabalho. O estudo evidencia que a profissão docente é valorizada como a principal, sob a justificativa de ser a docência a base de formação de todas as outras profissões.

Palavras-chave:  Representações sociais; Motivação; Escolha profissional; Identidade docente

Abstract

This work analyses the types and directions for motivation at choosing a graduation course, resorting of students’ social representations in a public university at Bahia state (Brazil). The theoretical background for the data interpretation was mainly given by contributions of Arruda, Bezara and Cerdeiriña, Dubar, Martins, Moscovici, among others. This investigation, based on the qualitative perspective, was performed with seventy-seven students from four different courses for teaching degree : Geography, Languages , Music, and Chemistry. A quiz was applied, asking about the motivations which lead to a certain choice and, about the relevance that they would give to that profession. It was concluded that there are two types of motivation, one intrinsic, coming from the will, desire, taste, without the influence of external factors such as rewards, pressures and threats; and another that is marked by outside influences such as pressures and rewards, as for instance to get a job placement. The study shows that the teaching profession is valued as being the main one, on the grounds that it is the teaching base of all other professions

Keywords:  Social representations; Motivation; Professional choice; Teaching identity

Resumen

El trabajo analiza, desde de las representaciones sociales de los estudiantes de una universidad pública del estado de Bahía, Brasil, los tipos y las direcciones de la motivación para la elección del curso. Contribuciones de Arruda, Bezara y Cerdeiriña, Dubar, Martins, Moscovici, entre otros, constituyeron el principal marco teórico para la interpretación de los datos. A partir de las características de la investigación cualitativa, el estudio fue realizado con la participación de setenta y siete alumnos de cuatro cursos, a saber: Graduación en Geografía, Letras, Música y Química. Se aplicó un cuestionario, pidiendo que contestasen sobre las motivaciones para elegir el curso y la importancia dada por ellos a la profesión elegida. Concluimos que hay dos tipos de motivación, una intrínseca, oriunda de la voluntad, deseo, gusto, sin influencia de factores externos como recompensas, presiones y amenazas; y otra que está marcada por influencias externas, como presiones y recompensas, como conseguir una colocación en el mercado de trabajo. El estudio muestra que existe un cierto consenso acerca de sus opciones para el grado, es decir, las representaciones sociales de estos estudiantes se fundan en el imaginario que la profesión docente es valorizada como la principal ya que ella es la base de las otras profesiones.

Palabras-clave:  Representaciones sociales; Motivación; Elección profesional

Introdução

Esse trabalho é fruto de uma pesquisa intitulada Inovação da Prática Pedagógica de Professores do Ensino Universitário pela Pesquisa-ação Colaborativa. Trata-se de uma pesquisa interinstitucional desenvolvida por duas instituições públicas de Ensino Superior do Estado da Bahia, que visa trazer para o centro das discussões, no âmbito das universidades envolvidas, questões sobre a prática dos professores universitários, como por exemplo, as estratégias de ensino e aprendizagem, a avaliação da aprendizagem e a motivação dos estudantes. Destarte, a pesquisa-ação colaborativa tem se constituído como espaço de reflexão e de inovação no campo educacional. Para atingir esse objetivo, um dos procedimentos utilizados no desenvolvimento do estudo foi ouvir os estudantes, por meio de um questionário, sobre suas motivações para estarem na universidade. A ideia foi partir de um entendimento sobre o que os estudantes dizem sobre a escolha por seus cursos e sobre como veem as práticas que seus professores desenvolvem em sua formação. Assim, neste artigo, trazemos para a discussão alguns resultados obtidos a partir das respostas que os estudantes de quatro cursos de licenciatura deram a duas de cinco questões do questionário, com as quais os indagamos sobre suas motivações para a escolha do curso superior.

Diante desse cenário, este trabalho busca compreender, a partir das representações de estudantes de licenciatura, suas motivações para a escolha dos cursos de Geografia, Letras, Música e Química em uma das duas universidades públicas do Estado da Bahia envolvidas na pesquisa. Nesta direção, o artigo visa analisar as principais motivações dos estudantes para o ingresso na licenciatura, a partir dos diferentes significados atribuídos por tais sujeitos às suas escolhas.

A escolha profissional tem se revelado como grande desafio para sujeitos que desejam lograr êxito no desenvolvimento de uma profissão. Não se trata de uma escolha simples, por meio da qual os estudantes optam por uma carreira que seja promissora. Há diversos elementos que influenciam nesse processo, inclusive pondo em xeque a própria concepção do que se adota por escolha. Nem sempre é o próprio sujeito que a faz por suas razões próprias, por sua vontade e desejo.

Nessa lógica, a escolha passa de uma dimensão pessoal para ancorar-se na representação do curso construída pelo grupo social em que o sujeito está inserido. É o que se pensa de uma área, de uma profissão e o que ela pode promover aos olhos da sociedade o que determina por vezes a escolha de um curso. Nessa direção, a escolha perde a essência de ser construída na subjetividade do estudante e passa a ter determinações outras, que se fundamentam numa lógica capitalista, mercadológica e sob o peso da opinião popular. Por vezes é fechada na lógica do que pensa o mantenedor, em muitos casos, os pais, que determinam qual curso e área devem os filhos realizar, sem levarem em conta a aptidão e o desejo do próprio estudante.

Essa é uma situação bastante visível, conforme estudos de Biase (2008), em jovens de classe média, sobre cujas decisões os pais têm uma influência direta, sobretudo porque é uma tradição familiar, um elemento de peso que precisa ser considerado para determinar a escolha profissional. Nessa lógica, o estudante tem pouco espaço ou condição de opinar a partir de suas concepções e compreensão de mundo e vida. Por serem ainda tutelados pelos pais e por valorarem a amplitude de uma determinada área, pode ser vantajoso não exercerem, em muitos casos, uma escolha baseada no seu desejo pessoal. É, em alguns contextos, no imaginário social uma escolha balizada dos benefícios e das vantagens que a profissão pode ofertar aos jovens.

Na instituição pública, a realidade parece não ser diferente, em se tratando de algumas áreas, como Engenharia, Medicina, Direito, sobretudo aquelas que logram êxito de aprovação popular sobre as condições promissoras que os cursos revelam possuir.

Se analisarmos a concorrência no exame para seleção de estudantes para o Ensino Superior na universidade locus deste estudo, no primeiro semestre de 2016, verificamos que os cursos mais concorridos eram, por ordem de classificação, Medicina (133,3), Direito (36,5), Psicologia (21,76) e Engenharia Civil (19,62). No entanto, os cursos de licenciaturas apontam para uma quebra dessa lógica de raciocínio, exatamente por não haver socialmente uma valorização positiva de suas carreiras. Destarte, no mesmo exame, a concorrência para seleção nestes cursos cai vertiginosamente: Letras/Francês (1,86); Física (1,9); Música (2,5); Matemática (2,6); Letras Vernáculas (3); e Geografia (3,32), apenas para citar alguns cursos. No processo seletivo do primeiro semestre de 2017, verificamos que, enquanto a concorrência para os cursos de Odontologia, Psicologia e Direito sobe, respectivamente, para 40,53, 23,70 e 41,95, nas licenciaturas a concorrência baixa ainda mais: Letras/Francês (0,8), Letras Vernáculas (2,25) e Geografia (2,77).

Tais dados locais confirmam uma tendência nacional. A pesquisa de Nascimento (2015) mostra que, diante de uma conjuntura complexa e contraditória, na qual se valoriza mais a aparência e o status social, a procura pela carreira docente tem diminuído quando se busca o ingresso no Ensino Superior.

Vale a pena destacar, que, apesar da pouca concorrência, existe uma demanda por professores licenciados no Brasil. O Censo Escolar da Educação Básica mostra que apenas 77,5% dos professores que atuam na Educação Básica possuem nível superior completo. E no Ensino Médio, somente 82% têm nível superior completo com licenciatura (BRASIL, 2017).

Pelo visto, a carreira de professor exerce pouca atratividade, e o enfrentamento a tal desafio deveria ser feito, avalia Gatti (2014), por meio da inovação no cotidiano da vida universitária, mais que por meio de decretos e normas. Todavia, essa pesquisadora, analisando dados dos Censos da Educação Superior de 2009, 2010 e 2011, disponibilizados pelo Ministério da Educação e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (MEC/Inep), destaca que as matrículas dos cursos de licenciaturas estão majoritariamente nas instituições privadas de Ensino Superior, na modalidade a distância, enquanto as matrículas presenciais no ano de 2011 apresentam decréscimo de 0,2% em relação a 2010.

Os dados do Censo da Educação Superior de 2014 mostram que 87,4% dos estabelecimentos de Ensino Superior no Brasil pertenciam à iniciativa privadas, contra apenas 12,6% de instituições públicas. Na análise de Gatti (2014), todavia, a multiplicação de consórcios e polos que oferecem cursos de licenciatura a distância não é acompanhada de um projeto político-pedagógico articulado nem de estruturas operacionais adequadas, deixando de lado as condições efetivas de ensino-aprendizagem.

Os alunos da modalidade de Ensino a Distância (EaD), dez anos mais velhos que os estudantes dos cursos presenciais, segundo análise de Gatti (2014), já ocupavam funções diversas e buscaram os cursos de licenciatura a fim de alterar sua condição de emprego. Assim, a escolha pela docência leva em consideração que, para os licenciados, há oferta de emprego, mas a acentuada precariedade de condições de trabalho passa a ser determinante para a desvalorização da profissão e motivo de abandono do magistério.

Para se ter uma ideia da perspectiva de empregabilidade para professores e profissionais de ensino no Brasil, segundo Gatti e Barreto (2009, p. 17), em 2006, “existiam 2.949.428 postos de trabalho para professores e outros profissionais de ensino”, fazendo com que, no cômputo geral, ocupassem o terceiro lugar no ranking dos empregos registrados.

Convém dizer que, nesta investigação, tomou-se como aporte teórico a Teoria das Representações Sociais (TRS), porque ela tem o potencial de reconhecer que as escolhas pela profissão e o processo identitário docente são forjados, engendrados e partilhados nos grupos sociais aos quais os indivíduos pertencem. Embora reconheça, também, que existe uma diversificação em tais grupos, a partir dos tipos de informação, das imagens, dos campos de representação e das atitudes, fazendo com que essas representações não sejam homogêneas, a TRS defende que as representações sociais servem para orientar os indivíduos, neste caso, os estudantes de cursos de licenciatura, em seus comportamentos e ações ou, em outras palavras, nas suas escolhas profissionais.

Além dessa função de orientar e guiar comportamentos e práticas, as representações sociais apresentam a função de guiar o saber, que permite ao indivíduo compreender e explicar a realidade; a função justificativa, que permite, a posteriori, justificar as tomadas de posição e as condutas adotadas pelos indivíduos, de maneira a manter ou reforçar a posição social do grupo; e a função identitária, que nos interessa neste momento, na medida em que permite ao indivíduo definir a identidade e salvaguardar as especificidades dos grupos, no nosso caso, as dos professores.

Percurso metodológico

O trabalho surgiu de uma pesquisa-ação desenvolvida por um grupo de pesquisadores da área de Educação das instituições envolvidas no estudo, quando se discutia a desmotivação dos estudantes universitários nas aulas. A preocupação inicial do grupo era a de compreender por que estudantes escolhem determinado curso de graduação e, depois, não encontram entusiasmo para aprender. Esse grupo está vinculado ao Departamento de Educação de umas das universidades em que se desenvolve a pesquisa e é composto por docentes de diferentes áreas do conhecimento, como Ciências Biológicas, Química, Engenharia, Música e Pedagogia, geralmente as vinculadas às didáticas, às metodologias, aos estágios e às práticas de ensino. Boa parte dos professores que desenvolvem a pesquisa-ação atua nas licenciaturas.

Mobilizados em querer entender os sentidos da motivação para a escolha profissional dos seus estudantes, o grupo de docentes decidiu por aplicar-lhes um questionário aberto, composto por cinco questões, com as quais buscaram compreender suas razões ao escolher determinado curso e como a motivação estava presente no contexto atual da universidade, uma vez que os professores revelavam preocupações com a pouca disponibilidade dos estudantes para aprender, identificada nas aulas. Ouvir tais sujeitos por meio do questionário foi o princípio metodológico utilizado pelos docentes.

Dessa forma, o questionário foi aplicado a 233 estudantes de vários cursos de graduação da universidade, sendo 33 de Biologia, 12 de Enfermagem, 31 de Engenharia Civil, 78 de Engenharia de Alimentos, 8 de Química, 54 de Letras Vernáculas/Estrangeiras, um de Filosofia, um de Psicologia, 12 de Enfermagem, 6 de Geografia e 9 de Música, cursos estes escolhidos tendo-se em vista que os professores pesquisadores neles ministravam aulas, fato que favoreceu a preocupação dos docentes e, consequentemente, a mobilização para a realização da enquete.

Ressaltamos que este texto toma como base para a análise apenas as respostas a duas questões, que versam especificamente sobre a motivação para a escolha profissional. Assim, analisamos as respostas dadas por 77 estudantes de licenciatura dos cursos de Química, Geografia, Música e Letras. A razão para este recorte justifica-se pelo intuito de compreender se há motivações específicas em se tratando das licenciaturas e como elas se constituem como elementos que portam representações sobre a escolha da profissão de professor.

Feita aplicação dos questionários, os dados foram organizados em tabelas, com o auxílio do programa Microsoft Office Excel (2007), o que nos permitiu analisar e compreender as principais dimensões que emergiam das respostas dos estudantes de licenciatura. Vale destacar que, inspirados na TRS, optou-se por escutar as vozes de sujeitos que nem sempre são ouvidos, mas que assumem um papel fundamental na prática pedagógica dos professores – os estudantes. A TRS elimina ou pelo menos diminui as fronteiras entre o universo consensual, que se constitui na conversação informal, e o universo reificado da ciência, no qual falam apenas os especialistas (ARRUDA, 2002).

Assim, os dados foram extraídos e agrupados tendo-se em vista as distintas representações e a carga de efeito que os estudantes revelaram sobre as motivações que os levaram a escolher a profissão docente. Esclarece-se que, atendendo às exigências éticas, utilizou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e preservou-se a identificação dos participantes, usando-se as letras iniciais de cada curso, seguidas do número correspondente à ordem de organização dos questionários nas tabelas de tratamento dos dados.

Diante desse desenho metodológico, considera-se que esta é uma pesquisa de abordagem qualitativa, pois explora, organiza e expõe dados, inclusive quantitativos, a fim de analisá-los a partir do(s) sentido(s) que os estudantes revelam em suas respostas, bem como das compreensões que se construíram desses sentidos a partir do referencial teórico sobre a motivação e a docência apresentado nas seções subsequentes, transversalizado pelas análises das respostas, o qual, consequentemente, sustenta este trabalho.

Minayo (2008) destaca que, na pesquisa qualitativa, o importante é a objetivação, pois durante a investigação científica é preciso reconhecer a complexidade do objeto de estudo, rever criticamente as teorias sobre o tema, estabelecer conceitos e teorias relevantes, usar técnicas de coleta de dados adequadas e, por fim, analisar todo o material de forma específica e contextualizada. Assim, na pesquisa qualitativa, o estudo dos sentidos sobre a experiência humana deve ser feito entendendo-se que as pessoas interagem, interpretam e constroem compreensões sobre o que são e o que fazem. No caso deste trabalho, a abordagem qualitativa ajuda a compreender, mediante as representações de estudantes de cursos de graduação da universidade locus desta investigação, os motivos da escolha profissional.

Das motivações ao desenvolvimento do processo identitário docente

Antes de passar à análise das narrativas dos estudantes que participaram como colaboradores desta investigação, parece pertinente definir o termo motivação. O termo motivação tem na sua origem latina, movere, a ideia de movimento, supondo algo que queremos alcançar mediante forças internas (PINTRICH; SHUNK, 2006). De acordo com o enfoque cognitivo que orienta este trabalho, “la motivación es el processo que nos dirige hacia el objetivo o la meta de una actividad, que la instiga y la mantiene” (PINTRICH; SHUNK, 2006, p. 5).

Pintrich e Shunk (2006) evidenciam as influências socioculturais, dos companheiros, das famílias, da cultura e das comunidades onde estão inseridos os estudantes na motivação e no rendimento destes sujeitos. Destarte, fica evidente que a escolha profissional não é tecida na subjetividade do próprio sujeito, vez que, em maior ou menor grau, ele sofre influência de fatores externos para a realização de uma escolha. Sobretudo se tratando da realização de um curso universitário, considera-se que o individual e o imaginário coletivo se entrecruzam e se entrelaçam num movimento reflexivo que faz com que a produção de uma identidade profissional seja atravessada pela dimensão do pessoal e pelo sistema social de que se faz parte. “O saber do professor na interface entre o individual e o social, entre o ator e o sistema é um dos componentes que formam a sua identidade.” (TARDIF, 2007, p. 16). Com efeito, Alves-Mazzotti (2008) mostra que a noção de representação social proposta por Moscovici é psicossocial, tendo em vista que dialetiza as relações entre o indivíduo e a sociedade, ou seja, a TRS compreende o universo externo e o universo interno do sujeito de forma articulada.

É na dimensão da coletividade, influenciada pelo valor social da profissão docente, que Q51, estudante de Licenciatura em Química, reflete sobre a escolha profissional, dimensão esta entrecruzada pelas dimensões pessoais, pelo gosto que desenvolveu pela profissão e pelo contexto da importância social onde são engendradas as representações da docência.

O meu primeiro contato com a química e minha aptidão para o ensino me levou a escolher Licenciatura em Química, contudo essa escolha não foi fácil, pois nos dias de hoje a área de licenciatura não tem um reconhecimento bom, a maioria das pessoas não dá muito valor a essa área, que é de extrema importância para a sociedade. Minha profissão tem uma importância incalculável, pois é a base de todas as outras, constrói mentes críticas e possui o dever de trazer conhecimento para a sociedade. (LQ5, resposta escrita, 2016, destaque nosso).

Isso sugere que, embora seja uma profissão desvalorizada por um grupo social, talvez o de maior prestígio, ainda persiste, no imaginário de outros grupos, uma representação de que a docência é uma profissão valorizada, justamente por constituir-se como base para o desenvolvimento de outras. Nesse contexto, a compreensão da docência não se desvincula da dimensão de concebê-la como um trabalho que se desenvolve socialmente no contexto de relações. Desse lugar, ou seja, da ideia de entender que a motivação para a escolha da licenciatura se dá numa afinidade com a química, entendida na conjuntura da docência, como trabalho laboral do professor, que o faz desenvolver saberes específicos, permitindo-lhe desenvolver condições de base formativa para outras profissões.

Essa ideia de que a produção identitária do ser professor está relacionada com a valoração da profissão, como base para outras, aparece nos relatos de alguns outros estudantes, como no de L10 (2016), ao considerar que “A minha profissão é de fundamental importância para a sociedade. O professor é a matriz de todas as formações.” A ideia da reflexividade, de formar a pessoa crítica e reflexiva, consciente de direitos e deveres, aparece também como motivação para a escolha da docência. Isso é o que se destaca nas representações de alguns estudantes, como uma licencianda em Letras, que assim se expressa sobre a sua motivação para tornar-se professora: “A minha profissão é importantíssima para formar cidadãos críticos, reflexivos. Além disso, por ela passam todos os outros profissionais, e isso reforça sua grandiosidade.” (L46, 2016).

Na resposta da estudante, é importante destacar que o processo identitário ganha expressividade a partir do foco de pertencimento à profissão. Ela inicia seu relato utilizando o pronome possessivo de primeira pessoa, antecedido por um artigo definido. Essa estrutura já corrobora a ideia de que a escolha se constitui na base da dimensão de imersão na lógica dos princípios valorativos da profissão. Trata-se, para a estudante, da profissão que lhe pertence, com a qual se identifica e a qual escolheu como carreira. Aqui, corroborando a ótica de Arruda (2007, p. 118), a representação expõe a sua dimensão afetiva, “ligada a crenças profundas, valores e expectativas que movem os seres humanos”.

Além disso, o relato evidencia uma hipervalorização da docência, manifestada pelo uso do adjetivo superlativo, com o qual se dá a entender que não se trata de uma profissão importante, mas muito importante, logo importantíssima. Isso sugere a aceitação da profissão docente e o desenvolvimento de consciência pessoal a seu respeito, que faz a licencianda tomar relevância social como profissão, e não necessariamente como um curso de Licenciatura em Letras, mas uma maneira de o aluno manifestar compreensão sobre a profissão e consequentemente revelar o modo identitário da compreensão de si no contexto de sua formação.

A ideia de valorizar a profissão por ela mesma, bem como pelo seu valor social de constituir-se como base para outras, é concebida ainda por outra estudante do curso de Letras, que assim entende a docência:

É de fundamental importância, porque a educação é a base de tudo, formar cidadãos críticos, formação de conhecimento, formação de profissionais, através do ensino e aprendizagem as pessoas abrem suas mentes. Enfim, todos passam pelo professor, seja qualquer profissional. (L14, resposta escrita, 2016)

É curioso observar que há uma tendência em se hipervalorizar a docência como base formativa de todas as outras profissões. Tal ideia aparece em 31 respostas das 54 analisadas no curso de Letras. Nos demais cursos, essa ideia também está presente em grande parte do que respondem os estudantes. Essa é a forma de estar num curso de licenciatura e desenvolver uma consciência de si para si, como modo de entendimento valorativo do processo identitário, que se mostra ancorado afetivamente. De fato, a identidade docente está, como nos diz Nóvoa (1995), no exercício profissional. Entrar na profissão e vivê-la no mundo do trabalho faz com que a identidade docente se constitua a partir das experiências que a própria profissão permite ao professor. No entanto, para os sujeitos colaboradores desta pesquisa, a produção identitária tem a ver com a representação social que se constrói da profissão, sobretudo a partir da lógica ancorada em chavões, tais como: o professor forma todos os outros profissionais, é a profissão mais importante, é a base para todas as profissões, é a profissão mais antiga, logo a mais importante etc.

O reconhecimento de que a profissão de professor é importante parece fazer parte do discurso oficial há muito tempo, o que não representa avanços em termos práticos. Em 1966, por exemplo, a Organização para a Educação, a Ciência e a Cultura das Nações Unidas (Unesco) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT) apresentaram diretrizes ressaltando a condição dos docentes:

A questão é algo mais do que uma simples questão de números. A qualidade dos professores e da docência é fundamental para que os resultados da aprendizagem sejam satisfatórios. A qualidade supõe um sistema educativo que atraia e retenha um pessoal docente motivado, eficaz, com boa formação e em que os homens e as mulheres estejam equitativamente representados; supõe um sistema que apoie aos professores na aula e em seu desenvolvimento profissional permanente. A insatisfação causada pela descida na escala social, os baixos salários, as difíceis condições do ensino e da aprendizagem e a falta de perspectivas da carreira ou da formação profissional adequada têm induzido muitos professores a abandonar a profissão, às vezes com poucos anos de serviço. (UNESCO/OIT, 2008, p. 3, tradução e destaque nossos).

Se existe tal recomendação por órgãos reconhecidos mundialmente, era de se esperar que a docência fosse efetivamente valorizada e não se ancorasse no imaginário de desvalorização social, de profissão vulnerável e desacreditada, na qual os profissionais são despojados cada dia mais dos seus direitos.

Há contextos em que a desvalorização da profissão é tomada como elemento balizador da escolha. Assume-se que há um descrédito em torno da docência, do ponto de vista do não reconhecimento social em torno da profissão, mas que não lhe tira a condição de ser responsável pelo desenvolvimento cognitivo do sujeito, dando-lhe qualidades para exercer a cidadania pela consciência do seu papel social. A cidadania emerge como elemento identitário do professor, ao dar a este a condição de ensinar e de aprender com o outro, numa ratificação da dimensão social dos processos identitários, como entende Dubar (2005). A esse respeito, um licenciando de Geografia assim se expressa sobre sua motivação para a escolha do curso:

Muito importante, mas é uma pena que esteja bastante desvalorizada, aos olhos de terceiros, Mas para mim é onde posso exercer minha cidadania. E onde posso compartilhar conhecimento e adquirir. E onde posso fazer a diferença. (G1, resposta escrita, 2016, Destaque nosso)

Gilly (1989) mostra que os sistemas de representações são feitos de contradições. Assim, os sujeitos vivem numa realidade – a brasileira – em que são confrontados com a desvalorização do magistério. Todavia, G1 faz questão de explicitar que, embora esteja desvalorizada, esta profissão, para ele, permite exercer a cidadania. As representações sociais garantem aos sujeitos, segundo Gilly (1989), a possibilidade de preservarem seu próprio equilíbrio e sua própria necessidade de coerência no exercício de suas práticas sociais e nas suas relações com o entorno. Na docência, os processos não são meramente cognitivos, envolvem a dimensão afetiva, ao surgir como ancoradouro para a paixão, para os sentimentos, para a memória, para o simbólico, entre outros elementos, como os contextos do trabalho, em que a identidade e o conhecimento sobre a profissão vão formando uma amálgama.

Tardif (2007) assevera que “embora os professores utilizem saberes, essa utilização se dá em função do seu trabalho e das situações, condicionamentos e recursos ligados a esse trabalho”, ou seja, “que as relações dos professores com os saberes nunca são relação estritamente cognitivas” (TARDIF, 2007, p. 16). Em não sendo estritamente cognitivas, assume-se a ideia da dimensão de saber produzido na relação com o outro e com as práticas que se constituem plurais e que são marcadas pela escolha. No caso do estudo em tela, compreendem-se as produções identitárias a partir das práticas formativas tecidas no contexto do próprio curso, fruto da escolha que fez o estudante ao almejar a produção identitária do ser professor.

No desenvolvimento do curso de licenciatura, a produção identitária se dá, conforme sinaliza Garcia (1999), nas experiências de aprendizagem da docência, que irão mediar todo o processo de formação inicial, que se mostram como construção histórica e social, capazes de produzir significados e sentidos em relação à docência, logo a construção do processo de sua profissionalização. As experiências de aprendizagem vão sendo constituídas a partir das escolhas que cada um faz balizado pela sua subjetividade, que, além de favorecer a exploração dos sentimentos e sensações nos processos interativos, ocupa lugar nas aprendizagens experienciais, dado o envolvimento que o sujeito desenvolve consigo mesmo no processo de formação. Há nessa ideia a concepção de que não existe circularidade na produção da identidade, como se pudéssemos defini-la ou ordená-la como um produto pronto e acabado. Scoz (2011) considera que a subjetividade possui característica semelhante à da identidade, uma vez que, segundo esta autora, a subjetividade também não se define de uma vez por todas. É produto de escolhas, mas também fruto das relações que estabelecemos ao longo da vida.

De forma semelhante, a TRS reconhece que a cultura, particularmente a comunicação e a linguagem, bem como a inserção socioeconômica, institucional, educacional e ideológica (ARRUDA, 2002) influenciam o sujeito na produção de representações sobre um determinado objeto, que vão guiar seus pensamentos, comportamentos e tomadas de posições.

Esse contexto específico foi percebido nas respostas dos estudantes de Licenciatura em Música, que trazem à baila as motivações pessoais e sociais como princípios para justificar a escolha pela profissão. Diferentemente do que encontramos nas respostas dos demais sujeitos desta pesquisa, nas de Música há uma clara relação de gosto e afinidade pela arte, ou seja, pela própria música, que em determinados contextos ganha mais expressividade do que a profissão docente. Neste sentido, é o gosto pela música e pelo que ela pode proporcionar à vida dos estudantes o foco principal da motivação. Ser professor de música é a condição para ser professor. Portanto é a música e a inserção dela no cotidiano da história de vida que os move à escolha pela licenciatura. Isso pode ser observado na resposta de M1:

Essa escolha foi devido a minha grande afeição pela música, que despertou pela primeira vez em minha infância. Demonstrei grande interesse no teclado e esse foi meu primeiro instrumento. Fui criada em um ambiente musical, porque meus pais são músicos e minha família materna é bem musical. (M1, resposta escrita, 2016).

Os processos de adjetivação, como os encontrados em algumas respostas dos estudantes de Letras, são uma forma de hipervalorizar a escolha, mas com a diferença de que, neste caso, a escolha é pela música, e não necessariamente pela profissão docente. Estar no curso emerge como possibilidade de o estudante dedicar-se àquilo por que tem muita feição e grande interesse. No conjunto das respostas destes estudantes, vemos a centralidade em motivações intrínsecas, que apontam para uma relação afetiva expressa em forma de interesse e paixão pelo curso.

O processo identitário é fluido e está diretamente relacionado ao contexto de vivências e experiências com a música, sobretudo com o ensino, que acontece para alguns estudantes antes mesmo da formação. M5 relata o modo como a docência em música a motiva a escolher a licenciatura. Não menos importante que a própria música, a docência é entendida como o lugar de produção de experiências em que a arte de ensinar ganha a dimensão de importância na vida do estudante. Segundo Beraza e Cerdeiriña (2012), a ideia de arte associada à docência é muito importante, tendo em vista que incorpora esse métier à criatividade e ao desenvolvimento pessoal e profissional do professor, que lhe permite ser ele mesmo, dando espaço ao “caos”, à incerteza, à inovação.

A inserção no trabalho docente faz M5 perceber que a sua motivação para a escolha do curso de Licenciatura em Música incidia no reconhecimento do processo identitário com a docência, que a estudante, em sua trajetória de vida, estava desenvolvendo. Em sua resposta, ela nos relata o seguinte:

Escolhi o curso de licenciatura em música, porque sempre gostei de cantar, tocar violão e ouvir música sacra e a cada dia fui me apaixonando pelas matérias de educação. Em 2010 comecei a dar aula de musicalização para adolescentes no Projeto “Mais educação”. Foi uma experiência maravilhosa. Em 2012, comecei a trabalhar música com a educação infantil em escolas particulares e descobri que queria fazer isso o resto da vida. Sou apaixonada pelo que faço e quero me aperfeiçoar cada dia mais. A música é um instrumento de expressão que desperta sensações e sentimentos e penso ser importante para aliviar um pouco o caos da nossa sociedade. (M5, resposta escrita 2016, destaque nosso).

Para Martins (2002), a identidade docente é construída a partir das imagens, da significação social, de princípios e valores, dos saberes, das expectativas e do sentido que o aprendiz da profissão docente atribui ao considerar as experiências que lograra passar na vida e que têm alguma relação com a sua escolha. Com efeito, na narrativa da estudante, está explícito a paixão que tem pela música e pela docência da música. Muitos autores defendem a necessidade da paixão na docência. Bezara e Cerdeiriña (2012) afirmam que a paixão é um componente essencial à docência. Day (2011, p. 74) também reconhece que sem a paixão “seria difícil manter na prática a ideia de uma profissão docente adequada”, o que implica elevados níveis de energia emocional e de sentimento, que, quando positivos, fazem com que a aprendizagem seja pessoalmente interessante, como acontece com os estudantes da Licenciatura em Música participantes deste estudo.

Day (2011) concorda com essa ideia de que a identidade está relacionada com o conceito de eu. No que diz respeito aos docentes, Day (2011) identifica a identidade empresarial, associada aos professores eficientes e responsáveis, que dão conta dos seus atos e aceitam os imperativos normativos externos e a identidade ativista que se mobiliza em benefício da aprendizagem dos alunos e da melhoria das condições para que tal aconteça, como a investigação, a defesa dos ideais e valores sociais e a promoção de competências e atitudes necessárias ao desenvolvimento de uma cidadania mais capacitada e participativa. A este último conjunto de características, podemos associar a identidade de grande parte dos sujeitos desta pesquisa, que se mostram motivados pela carreira docente justamente como escrevem M1, M5 e G1: “Os profissionais dessa área têm um importante papel na sociedade, porque ajudam as pessoas a resgatar sentimentos nobres do ser humano e a se integrar na sociedade.” “A música é um instrumento de expressão que desperta sensações e sentimentos e penso ser importante para aliviar um pouco o caos da nossa sociedade.” (M 5, 2016). “Mas para mim é onde posso exercer minha cidadania.” (G1).

A concepção de que é o professor o profissional que auxilia o estudante na constituição de suas próprias ideias e opiniões constitui um modo de ver a identidade docente num contexto do papel social que este profissional desenvolve. Estar inserido no cotidiano da atividade de ensino, logo na produção de aprendizagens, ainda que não por vias da formação em licenciatura, constitui a motivação de alguns estudantes para a escolha da profissão. No relato de M3, ele nos diz que antes de ingressar no curso de Licenciatura em Música, o estudante já exercia atividade de monitoria de flauta doce e iniciação musical. Isso implica dizer que foi por meio da monitoria que alguns saberes da docência se constituíram como motivadores para a escolha do curso. Logo, a história de vida e a atuação no campo de ensino de música são tomadas como elementos motivadores da produção identitária do professor. A esse respeito, a estudante assim justifica a motivação da sua escolha:

Antes de cursar a universidade já atuava como monitora de flauta doce e iniciação musical no projeto que participo e faço parte da coordenação da orquestra. O projeto e a orquestra são meus meios de motivação a estudar e querer aprender cada vez mais, passando esses conhecimentos para nossa sociedade. A melhor contribuição que um professor, que é um motivador, faz é lhe mostrar os prós e os contra do seu curso para que tenha vontade de aprofundar seus estudos e ter suas próprias ideias e opiniões. (M3, resposta escrita, 2016).

A partir do que se vê na resposta de M3, bem como nas que até aqui foram analisadas, a identidade docente surge relacionada ao modo como cada licenciando se localiza e se reconhece na profissão a partir das representações sociais sobre o que é ser professor com as quais convive. Esse aspecto ratifica a lógica de que os processos identitários nos contextos das representações sociais constituem uma construção marcada pela complexidade, que envolve interação constante entre os sujeitos e suas práticas formativas e educativas, tecidas a partir dos seus diferentes contextos históricos, sociais e culturais. Desse modo, a construção de uma visão sobre os processos identitários em torno da docência, logo da identidade docente e da motivação para a escolha do curso de licenciatura, é gerada a partir da ideia de que tanto as identidades quanto as motivações não são fixas; são processos que demandam um construto social complexo e dinâmico. Longe de ser definida como um conceito fechado, pronto, a identidade docente, por um lado, reflete um processo de construção do qual emergem diversos fatores, dentre os quais as atuações e experiências em práticas educativas, bem como experiências pessoais, histórias de vida e de formação para a docência. As motivações dos estudantes, por outro lado, são atravessadas por estes contextos, que os mobilizam a tomar a decisão de fazer um curso de licenciatura, para o qual cada estudante tem uma motivação intrínseca, que faz com que ingresse no curso pelo seu próprio valor, sem influência de qualquer fator externo, pelo desfrute que o curso oferece, ainda que possa dedicar-se ao curso porque este vai lhe proporcionar resultados desejáveis.

Nessa perspectiva, as escolhas são frutos de uma perspectiva interna, na qual entra um componente afetivo, mas também frutos de motivações extrínsecas, ou seja, influenciadas pelo grupo social ao qual os estudantes pertencem, seja por pressões ou mesmo pela possibilidade de receberem um diploma, serem reconhecidos socialmente como profissionais e inserirem-se no mercado de trabalho, o que pode se constituir uma recompensa.

Isso remete à concepção que Dubar (2005, p. 145) defende ao tratar de uma dimensão da análise sociológica que considera o discernimento dos “movimentos que afetam os modelos sociais de identificação, ou seja, os tipos identitários pertinentes”. Assim, o processo de produção da identidade não se isola na subjetividade de um indivíduo, mas também não se configura apenas pelas relações sociais estabelecidas com o outro. Há um processo de socialização que favorece a produção identitária a partir da dupla organização, a individual e a do imaginário coletivo. Para esse autor, o modelo de análise sociológica evidencia duas situações de produção identitária, uma interna, do eu, do indivíduo; e outra externa, do indivíduo em seu pleno processo de socialização com o outro, em diversas instituições. Desta feita, Dubar (2005) leva-nos a conceber a ideia de que

Identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática. Inseparáveis, uma vez que a identidade para si é correlata ao Outro e a seu conhecimento: nunca sei quem sou a não ser no olhar do Outro. [...] portanto nos forjamos numa identidade para nós mesmos. (DUBAR, 2005, p. 135).

Se é a partir do outro que uma pessoa se motiva a produzir reflexões sobre quem é e como pensa, o curso de licenciatura constitui-se em uma possibilidade de os licenciandos estabelecerem relações com o espaço, o tempo e com os outros, de modo a produzirem um ambiente sociológico da docência que faz a produção identitária tornar-se fluida e desenvolver-se em um a partir do outro, mas não igual ao do outro. Por isso, Dubar (2005, p. 135) afirma que “eu nunca posso ter certeza de que minha identidade para mim mesmo coincide com minha identidade para o outro”. É nessa não coincidência que se delineiam as marcas de nossa pessoalidade, bem como a percepção de outras, que nos distinguem dos outros. Embora durante esse processo alguém possa compartilhar das mesmas condições de produção identitária, por estar inserido em um mesmo ambiente, no qual interage com as demais pessoas, cada um estabelece diferentes perspectivas relacionais, em diferentes tempos, motivo pelo qual não se apresenta do mesmo modo para si mesmo como o faz para os outros.

Em um processo de profissionalização, cada sujeito poderá, a partir da situação em que esteja inserido, desenvolver experiências em diferentes tempos e ter, portanto, diferente produção identitária. Está aí a prova de que o subjetivo e o eu se dualizam, pois não se pode assumir que se reconhece a própria identidade para si mesmo, como se faz para reconhecer a do outro. É em razão dessa dinâmica que o autor nos incita a pensar além da abordagem de uma relação interindividual do eu e do outro, para assumir uma perspectiva de compreensão da essência da socialização da identidade para si e para o outro.

Pensar em si e pensar a profissão na relação de si com o outro, é tomá-la como uma forma de mostrar que a motivação para o curso está numa essência de compreender a identidade docente a partir do que ela pode provocar no outro. Portanto, ser professor significa assumir uma identidade profissional que leve em consideração os contextos de atuação da profissão em benefício do outro. Assim, a identidade é produzida nos contextos subjetivos e de dualização do eu, que parte de mim para mim mesmo e de mim para o outro. Em outras palavras, preciso desenvolver bem minha profissão, por mim e pelo outro, afinal de contas a docência está sempre transversalizada pela necessidade de focalização do outro. É nisso que consiste a relação professor e aluno. Na resposta de M1, um dos papeis fundamentais do professor é o de incentivar o estudante a aprender de modo mais dinâmico. Isso implica reconhecer a identidade em mim, que se mobiliza para pensar no outro. Em seu relato, ela nos diz:

[...] os motivos que me levaram a escolher esse curso foram por vocação na área e a possibilidade de fazer a diferença na vida das pessoas através dessa arte. Os profissionais dessa área têm um importante papel na sociedade, porque ajudam as pessoas a resgatar sentimentos nobres do ser humano e a se integrar na sociedade. Escolhi esta universidade e no momento me dedico somente a isso e por isso me sinto motivada a estudar e me esforçar para ter sucesso nos estudos. Ao entrar no curso de licenciatura tenho consciência de que o professor é fundamental para incentivar os alunos em seus estudos. Algo que me desperta interesse em estudar uma matéria são aulas dinâmicas e participativas. (M1, resposta escrita, 2016, destaques nossos).

Essa posição ideológica permite afirmar que não se pode mais conceber a ideia de haver duas formas distintas de se pensar a produção da identidade. Uma que é estruturada a partir das considerações que o outro faz de mim, ou seja a minha identidade é produzida socialmente pelo que o outro diz e pensa de mim; e outra que surge da individualização do sujeito, a quem se atribui a condição de produzir a sua identidade, como se isso fosse um atributo único e exclusivo do sujeito, ao passar por experiências das quais extrai fundamentos para pensar sobre si e constituir, sem a interferência do outro, o seu processo identitário.

Estar no processo de formação, para alguns licenciandos, pode não ser o indicativo de uma escolha amplamente pessoal, mas, de fato nele estando, são estabelecidas relações entre o licenciando e os grupos e dele consigo mesmo, como nos mostra Dubar, (2005), provocando momentos reflexivos em que as experiências são frutos não apenas do tempo cronológico mas também da subjetividade do sujeito. E não há como não perceber nesse processo o lugar das escolhas e da motivação para o ser professor, ancorado naquilo que socialmente se constrói em torno da profissão. Farias et al. (2008, p. 60) ao abordarem alguns fatores relacionados à construção da identidade docente, evidenciam a influência das escolhas no processo de formação como um dos elementos identitários da docência:

A identidade docente é uma construção para a qual contribuem diversos fatores, dentre eles a escolha de ser professor, a formação vivenciada em sua trajetória profissional e o significado que cada professor confere à atividade docente no seu cotidiano, com base em seus saberes, em suas angústias e anseios. Esses elementos são constituidores das maneiras como ele se faz e refaz, dialeticamente, como profissional.

Na posição defendida por Farias et al. (2008), há dois importantes elementos que dialogam com a perspectiva até aqui defendida. O primeiro está no fato de que a formação vivenciada nas trajetórias favorece a produção da identidade docente. Esse princípio nega a ideia de que a produção da identidade só ocorre quando do exercício profissional. É, portanto, algo que numa temporalidade formativa ocorre antes da inserção do sujeito na prática cotidiana do exercício profissional. O segundo elemento que as autoras reconhecem no desenvolvimento do processo identitário está no fato de que cada pessoa atribui um sentido particular ao processo de formação de que participa ou mesmo ao desenvolvimento de uma atividade profissional.

Nessa lógica, o cenário de formação/atuação/representação do licenciando oportuniza o desenvolvimento destes dois elementos, à medida que as experiências formativas vão delineando a trajetória de cada um, favorecendo relações que serão importantes para as decisões que tomará quando profissional docente. O desenvolvimento da profissionalidade tem suas origens nas experiências formativas e de atuação inicial da docência e constitui um atributo da identidade docente que teve seu início quando do desenvolvimento e das reflexões de práticas pedagógicas que o indivíduo fez, ainda na atuação do processo de formação. Ademais, o segundo elemento sinalizado aqui mostra que a produção identitária está relacionada ao ato reflexivo que se desenvolve ao se analisar uma determinada prática docente e contatar como ela foi significativa ou não, a ponto de se considerá-la uma experiência que marcou a trajetória formativa do sujeito.

Assim, a escolha inicial para a realização de determinada licenciatura modifica-se em meio ao processo de identificação em que o estudante se insere a partir das interações humanas de que participa, em que são criadas e transformadas representações sociais, as quais, segundo Moscovici (2003), são capazes de influenciar os comportamentos dos indivíduos que participam de uma coletividade. Quase como objetos materiais, afirma o autor, elas possuem uma atividade profissional, na medida em que tornam conhecidas experiências que estão em torno do ser professor em contextos de estágios e demais práticas que evidenciam o fazer docente. É nesta lógica que as motivações para a docência vão se reconfigurando, na veia da formação e das possibilidades de inserção no trabalho. É desse lugar que muitos estudantes consideram que a escolha pela licenciatura tem raízes na condição de poderem exercer essa profissão, por não ser uma área muito concorrida, por haver muita oportunidade de trabalho e, principalmente, por se tratar de uma área que permite o desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor do sujeito.

Considerações

O trabalho evidenciou que as motivações para o curso de licenciatura têm origem no reconhecimento de um processo identitário da profissão docente que emerge de contextos da subjetividade do sujeito, revelando a existência de dois tipos de motivação: a intrínseca e a extrínseca. A primeira caracteriza-se por motivações que implicam o sujeito pelo seu próprio valor. Ela é evidente em motivações constituídas por gosto, desafio, curiosidade, fantasia, empatias pela profissão, afinidades e aptidões. A segunda tem como característica as motivações que fazem com que os indivíduos realizem uma escolha como meio para conseguir um fim, como um diploma ou um emprego.

Chama-nos a atenção um certo consenso de que a motivação intrínseca ganha expressividade para justificar a opção pela licenciatura. A maioria dos estudantes fundamenta sua escolha ancorando-se na concepção de afinidade e gosto pela profissão, sobretudo por verem nela certa relevância social no que tange à condição de ser a base para a formação das demais profissões. Querer ser professor significa compreender em si um processo identitário que se instaura numa dimensão pessoal e subjetiva de gostar da profissão. No entanto, esse gosto se justifica, entre outras coisas, pelo papel social da docência. No caso específico dos estudantes de Música, a motivação intrínseca se mescla com justificativas que evidenciam o gosto pela música como condição primeira para a docência nessa área. Em outras palavras, as respostas sugerem que a motivação é tecida do gosto pela área específica em detrimento do gosto pela profissão docente.

Vimos que o conjunto das respostas aponta para o entendimento de que a motivação para as escolhas se justifica numa lógica possivelmente explicada pela teoria das representações sociais, que considera a importância dos grupos sociais em que estão inseridos os indivíduos na escolha da profissão de professor. Portanto, foi com os familiares, nas igrejas que frequentam, nas ONGs de que participam ou na escola onde estudaram que tais indivíduos foram produzindo saberes sobre a docência, engendrando e partilhando tais conhecimentos, ao ponto de desenvolverem uma relação afetiva com eles.

Nesse contexto, percebemos que as motivações são reveladas pelos discursos sociais em torno das características e da natureza da profissão docente. Tais discursos transitam no meio social em que os estudantes estiveram inseridos, promovendo um modo singular de cada um auferir, por meio de sua motivação, os modos de ser e proceder na formação para a docência. Para Nóvoa (2007), a identidade não é um produto diretamente assimilado da realidade exterior, não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão (NÓVOA, 2017, p. 16).

Os resultados do estudo evidenciam que nem sempre é necessário estar formalmente na profissão para constituir o processo identitário. Conviveu-se com ideias sobre a profissão que transversalizam diversas gerações e que ao sujeito são impostas a partir do produto de concepções que se modificam pela força do tempo e de atribuições de sentido. Nessa lógica de reflexão, os resultados deste estudo encontram respaldo e coerência de fundamentos com o que propõe Moscovici (2003, p. 37) ao deixar claro que as representações “são impostas sobre nós, transmitidas e são o produto de uma sequência completa de elaborações e mudanças que ocorrem no decurso do tempo e são o resultado de sucessivas gerações.” Na ótica moscoviciana, o poder das representações sociais “deriva do sucesso com que elas controlam a realidade de hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe”.

Ter feito estágios, exercido monitoria ou até mesmo ter sido influenciado por discursos sobre o trabalho docente e sua contribuição social, faz o sujeito desenvolver modos de pensar e ser na docência, não sendo de fato, ainda, professor com formação superior. É isso que emerge no bojo das respostas e que evidencia a consciência de si na hora das escolhas pela licenciatura.

1.A referência aos estudantes foi convencionada pela letra inicial dos cursos, seguida do número correspondente à ordem de registro das respostas nas planilhas. A sequência dos registros foi feita pela ordem alfabética dos participantes. Ressaltamos que o critério adotado atende a exigência do Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos, de não revelar a identidade dos participantes. Ressaltamos que essa pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisas de uma das instituições proponentes.

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Recebido: 01 de Agosto de 2017; Aceito: 17 de Novembro de 2017

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