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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.3 Florianopolis jul./set 2018  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n3p891 

Artigos

Sobre as formas de excluir: permanência da seletividade escolar no ensino médio integrado

On the ways to exclude: permanence of school selectivity in integrated secondary education

Sur les formes d'exclusion : permanence de la sélectivité scolaire dans l'enseignement moyen intégré

Igor Ghelman Sordi Zibenberg1 
http://orcid.org/0000-0001-7441-0430

1Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul, IFRS

2Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS


Resumo

Este artigo tem com objeto de análise a seletividade escolar no ensino médio integrado. No intuito de compreender esse processo, realizamos entrevistas com estudantes do último ano dos cursos de ensino médio integrado de um Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia localizado em uma zona de periferia urbana. Considerando que uma significativa parte dos ingressantes desiste durante sua trajetória, a análise se deteve nos casos de permanência e êxito entre os estudantes do curso. Interessava-nos conhecer os motivos reportados pelos estudantes e suas disposições sociais que favoreceram a permanência na instituição. Para tanto, mobilizando aportes da Sociologia da Educação, pudemos verificar três aspectos fortemente vinculados ao êxito dos estudantes: (1) a formação do habitus atrelada ao capital cultural da origem social (BOURDIEU, 1998); (2) o aprendizado do ofício de aluno (PERRENOUD, 1995); (3) o curso de educação profissional como estratégia de acesso ao ensino superior. Na análise proposta, buscamos, ainda, explicitar a feição seletiva e excludente que caracteriza a história da escolarização no Brasil, argumentando que no processo de instalação e ampliação do acesso à escola no país o que se estabeleceu socialmente como “natural” foi a exclusão, a despeito das políticas e dos discursos em defesa do direito à educação para todos.

Palavras-chave:  Seletividade de ensino; Permanência na escola; Ensino médio profissionalizante

Abstract

This paper aims to analyze the school selectivity in the integrated secondary education. In order to understand this process, we conducted interviews with students of the last year of the integrated secondary education courses of a Federal Institute of Education, Science and Technology (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia) located in an area of urban periphery (Brazil). Considering that a significant part of the beginners gives up during his/her path, the analysis focused in the cases of permanence and success among the students of the course. It was of our interest to know the dispositions and motivations mentioned by the students who remain in the institution. For this, mobilizing contributions from the Sociology of Education, we could verify three aspects strongly related to the students’ success: (1) the formation of the habitus linked to the cultural capital of the social origin (BOURDIEU, 1998); (2) the learning of the students’ work (PERRENOUD, 1995); (3) the professional education course as a strategy for access to higher education. In the proposed analysis, we also sought to explain the selective and excluding character that characterizes the history of schooling in Brazil, arguing that, in the process of establishing and expanding access to school in the country, what was socially established as “natural” was the exclusion, despite of the policies and discourses in defense of the right of education for all.

Keywords:  School selectivity; Permanence in school; Professional high school

Resumé

Cet article propose l'analyse dela sélectivité scolaire dans l'enseignement moyen intégré. Pour comprendre ce processus, nous avons accompli des entretiens avec les étudiants de la classe terminale du cours d’enseignement moyen intégré d’un Institut Fédéral d’Éducation, Science et Technologie situé dans une zone périphérique urbaine (Brésil). Étant donné qu’une partie significative des étudiants renoncent pendant leur trajectoire, l'analyse a été focaliséeaux cas de permanence et de succès parmi les étudiants du cours. Nous étions intéressé à connaître les dispositions et les motivations évoquéespar les étudiants qui reste dans l'institution. De cette manière, en mobilisant les contributions de la Sociologie de l'Éducation, nous avons pu vérifier trois aspects fortement liés avec le succès des étudiants : (1) la formation du habitusliée au capital culturel de l'origine sociale(BOURDIEU, 1998); (2) l’apprentissage du métier d’élève (PERRENOUD, 1995) ; (3) le cours d'enseignement professionnel comme stratégie d'accès à l'enseignement supérieur. Dans l'analyse proposée, nous avons cherché, tout de même, à expliciter la marque sélective et excluant que caractérise l'histoire de la scolarisation au Brésil, en argumentant que dans le processus d'installation et de l'élargissement de l'accès à l'école dans le pays ce que s'est installé socialement comme "naturel" c'était l'exclusion, malgré la politique et des discours en défendantle droit de l'enseignement pour tous.

Palabras-clave:  Sélectivité scolaire; Permanence à l’école; Enseignement moyen profissionnel

Introdução1 1

A afirmação do direito à educação e a expansão do acesso à escola são processos cuja gênese remonta ao século XVI, que se aceleraram nos séculos XIX e XX e que, em aparente paradoxo, articulam-se ao aguçamento da seletividade escolar – forte característica da escola brasileira na atualidade. Proveniente do ideário Iluminista, a defesa da educabilidade como aspecto constitutivo e distintivo do ser humano e, por consequência, o acesso à educação como direito de todos, confrontou-se desde o princípio com os temores de que tal perspectiva pusesse em risco a manutenção do status quo e dos privilégios de classe2. Os Estados constitucionais modernos, assentados nos princípios do Liberalismo, desenvolveram seus sistemas de ensino (tendencialmente acessíveis a toda a população) pautados na meritocracia, supondo que a seleção dos melhores dependia da garantia de oportunidades para o desenvolvimento das capacidades individuais e do estabelecimento de processos seletivos neutros e justos. A escola foi alçada ao posto de instituição por excelência capaz de realizar essa supostamente justa seleção.

Com a real ampliação do acesso à escola – o que no Brasil só ocorreu após 1930 – foi se desvelando a incapacidade da instituição para a atribuição que lhe tinha sido dada. Ao contrário, a escola mostrou-se um recurso bastante adequado para contribuir na manutenção do status quo fazendo parecer que garante o direito de todos à educação. Embora esse não seja um tema de pesquisa novo, visto que a Sociologia da Educação desde os anos 1960 vem investigando a questão permitindo melhor compreender como esse processo se realiza, é fato que na atualidade tais processos – classificatórios, seletivos e excludentes – continuam a funcionar e a se aperfeiçoar, ancorados na compreensão romantizada e excessivamente otimista de muitos profissionais e pesquisadores da educação de que a ampliação do acesso à escola significaria atendimento do direito de todos à educação. Assim, consideramos que importa seguir apontando, pela pesquisa empírica, as contradições das políticas educacionais e das práticas escolares atuais que, envoltas em discursos de defesa da escola inclusiva e da ampliação dos direitos, enredam-se em práticas antigas, reinventadas e reinvestidas, de seletividade e exclusão.

Pretendendo contribuir nesse debate, nos argumentos apresentados neste artigo destacamos que, a despeito da política de educação profissional brasileira que pretende ampliar a escolaridade de jovens de grupos sociais historicamente excluídos da escola, as práticas cotidianas presentes no ensino médio integrado dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) continuam selecionando e excluindo com os mesmos critérios que garantiram por séculos a continuidade dos estudos apenas para as elites. Na primeira parte, apresentamos elementos históricos da escola brasileira a fim de mostrar que a expansão do acesso à educação no Brasil não permitiu o rompimento com a compreensão da função seletiva e excludente da escola. Na segunda parte do artigo, trazemos a análise empírica de um IF específico, onde a partir da investigação junto aos alunos que permaneceram no curso, foi possível identificar três aspectos fortemente vinculados ao êxito: a formação do habitus atrelada ao capital cultural da origem social; 2) o aprendizado do ofício de aluno; 3) o curso de educação profissional como estratégia de acesso ao ensino superior.

Exclusão da escola e seleção na escola: uma longa história

A forte feição seletiva da escola brasileira atrela-se, em grande medida, ao modo como foi, no Brasil, instituída a escola moderna – modelo no qual se assenta o sistema de ensino na atualidade3. Desde o período colonial, quando foram criadas as primeiras dessas instituições, sua função precípua foi a formação das elites (FONSECA, 2006). Inicialmente destinadas apenas aos meninos de famílias socialmente bem posicionadas, a instrução somava-se a outros signos de distinção e era condição para distribuição das posições de poder. No século XIX, após a Independência, a elite dirigente – formada no ideário Iluminista – se auto instituiu na tarefa de criar as condições para entrada do Brasil no rol dos países ditos civilizados. Dentre as várias exigências decorrentes de tal objetivo, estava a educação do povo (FARIA FILHO, 2003). Nesse sentido, ficou estabelecido em lei, em 1827, que deveriam ser criadas escolas de primeiras letras para instrução de meninos e meninas. Tem-se, nesse momento, pela primeira vez no país, o direito à educação estendido às mulheres – ainda que a elas fosse destinado um currículo mais restrito.

Durante o século XIX (e mesmo nas primeiras décadas do século XX), no entanto, não foram criadas as condições necessárias para realizar o que aquela lei determinava (FARIA FILHO, 2003) e que as leis subsequentes reafirmaram. A despeito da existência de algumas poucas escolas masculinas e, em menor número, femininas, o acesso à educação esteve longe de alcançar a abrangência sugerida nos termos da lei. As raras escolas existentes localizavam-se predominantemente em espaços urbanos (enquanto a população residia majoritariamente no campo) e, embora fossem formalmente destinadas a toda a população livre, atendiam as poucas famílias que partilhavam do entendimento da importância da educação escolar das crianças e podiam prescindir da atividade laboral de seus filhos e filhas (VEIGA, 2008; GIL, 2016). Ou seja, em termos legais a escola brasileira foi destinada a todos, mas desde o início esteve objetivamente dificultada aos pobres. Tal situação perdurou nas primeiras décadas do período republicano.

Esse panorama fez com que os responsáveis pelas reformas educacionais, que desde os anos 1920 reclamavam por mudanças na estrutura política do país, defendessem a democratização da educação elementar (CARVALHO, 2003). Ao lado do combate ao analfabetismo, propunham a expansão do acesso ao ensino primário. Democratizar a educação, no ideário Liberal ao qual se filiavam, significava, sobretudo, garantir a todos – pobres e ricos, meninos e meninas etc. – a entrada na escola. Na compreensão dessa elite, para que a educação fosse democrática era preciso que se ampliassem as vagas, que se criassem escolas em todas as localidades, de modo a garantir a matrícula da totalidade das crianças. Estavam convencidos de que a escola teria condições de identificar com neutralidade e justiça os talentos inatos, independentemente da origem social, classificar os estudantes de acordo com suas habilidades, destinando cada qual para o percurso escolar e a carreira profissional mais adequados às suas capacidades.

Foi a partir desse ideário, portanto, que a escola brasileira se expandiu após 1930, assumidamente seletiva e meritocrática. Para que a classificação e progressão dos estudantes se desse de modo justo e eficiente, os especialistas e as políticas educacionais do período enfatizavam a importância da aplicação de testes psicológicos supostamente capazes de orientar a organização de classes homogêneas, onde os alunos seriam distribuídos de acordo com seu nível de maturidade, sua capacidade e o domínio dos conteúdos curriculares:

Por meio do estudo científico do aluno, a psicologia prometia oferecer o seu auxílio à superação dos problemas de rendimento escolar. A identificação das características individuais era útil à organização do trabalho na escola porque permitia operar uma série de ajustamentos: possibilidade de alocar adequadamente o indivíduo na instituição e na classe mais indicada para o seu caso; de adaptar o ensino às possibilidades de cada grupo; oportunidade de estudar as aptidões naturais, tendo em vista promover a orientação profissional do estudante, tendo em vista o seu ajustamento social (LIMA; VIVIANI, 2015, p.102).

Entre os anos 1930 e 1960, no entanto, foi ficando evidente – pelos resultados escolares expressos em índices de reprovação e evasão – que a exclusão promovida no interior da instituição recaía de modo desigual sobre crianças de diferentes origens sociais (ROMANELLI, 1978). A promessa liberal meritocrática não tinha se realizado, ou seja, não tinha garantido a “identificação” dos talentos das crianças pobres, que eram sistematicamente excluídas da escola e na escola4. Organizada em torno de um currículo enciclopédico e baseada em valores e comportamentos das elites (econômica e cultural), a escola tinha favorecido a classe média urbana, grupo para o qual representou efetivamente forma de ascensão social, e se tornando um entrave para a progressão nos estudos de grande parte das crianças que chegavam a se matricular.

A partir dos anos 1930 a reprovação torna-se quantitativamente expressiva e já começa a aparecer no discurso político-educacional referida como problema (GIL, 2018). Nas décadas seguintes, ganha destaque o “debate que acentuava as deficiências do alunado como causa do fenômeno e que propunha ações no âmbito da política educacional para tornar a escola mais eficiente, mas não necessariamente mais adaptada às necessidades dos estudantes” (GIL, 2018, p.4). As estatísticas do século XX traziam números alarmantes. Almeida Junior (1957, p.4), participando de uma Conferência promovida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em Lima, indicava que, no Brasil, a “taxa de reprovações na escola primária foi, em 1943, de 57,4% para a primeira série e de 20,9% para a quarta série”. Os estudos seguintes realizados pela UNESCO continuamente apontavam as altas taxas de reprovação na escola brasileira: em 1982, era de 29,6% (JACOMINI, 2010) e, em 2008, 18% (UNESCO, 2012).

Na primeira série primária (depois denominada 1ª série do Primeiro Grau/Ensino Fundamental) a situação se apresentava como mais grave que nas séries subsequentes. O afunilamento das matrículas dá indícios de quão aguda era a exclusão daqueles que chegavam a se matricular. A título de exemplo, vale apresentar alguns números:

Analisando dados da década de 1980, Sérgio Costa Ribeiro (1991, p.9) ressaltava que a reprovação na 1º série ainda correspondia a 52,5% das matrículas. Tais números punham em dúvida se a garantia de ingresso na primeira série primária era condição suficiente para asseverar a escolarização de toda a população.

Nos anos 1980, com a redemocratização do país, ganham novo fôlego as organizações da sociedade civil em defesa da escola pública e do direito à educação de todos. Naquele período já era evidente o caráter discriminatório da seleção promovida pela escola (ROMANELLI, 1978). Estudos como os de David Raher, Ana Lúcia Schliemann e Terezinha Carraher (1989), Na vida dez na escola zero, e de e Maria Helena Souza Patto (1993), A produção do fracasso escolar (cuja primeira versão, como tese, é de 1985), aportavam ao debate educacional os efeitos perversos do modelo de expansão da escola no Brasil: que ampliou o acesso, sem ter sido capaz de alterar a cultura escolar elitista que guiava as práticas pedagógicas e avaliativas, bem como definia os padrões das relações professor-aluno.

A constituição de 1988 estabeleceu a educação como direito subjetivo, impedindo que o Estado se eximisse da responsabilidade de garantir, não apenas acesso, mas também permanência dos alunos durante todo o Ensino de 1ª Grau (que desde 1996 passa a ser denominado Ensino Fundamental). Nos anos 1990 e 2000, coadunando-se com o preceito legal assiste-se à profusão de políticas inclusivas que reafirmam o direito de todos à educação, mas também a obrigatoriedade, independentemente de suas capacidades e de seus interesses (ROSA et. al., 2015). A despeito da amplitude e relevância desse movimento político, é forçoso reconhecer que diversas práticas seletivas e excludentes continuam existindo no cotidiano das escolas brasileiras.

Conforme se argumentou anteriormente, a exclusão discriminatória existe desde a criação da escola no Brasil. Isso significa dizer que as crianças pobres foram atingidas pelos processos de exclusão mais do que as de outros grupos sociais (e, naquele grupo, os meninos negros mais do que as outras crianças5). O discurso educacional, a partir dos testes já citados e dos estudos da Psicologia, foi consolidando entre professores e alunos a ideia de que existem níveis de inteligência e a convicção de que há um padrão “normal”, com relação ao qual os estudantes podem e devem ser classificados. Esses estudos tomavam frequentemente como parâmetro saberes e habilidades de crianças urbanas, inseridas em famílias cultural e economicamente privilegiadas, crendo que o desenvolvimento psicológico fosse universal e que esses desempenhos independessem das vivências e experiências culturais dos sujeitos. A longevidade desses estudos nos currículos de formação dos professores foi consolidando no magistério expectativas acerca de saberes, comportamentos e desempenhos dos estudantes que não correspondiam à diversidade de valores e experiências que chegava à escola pela expansão do acesso. A expectativa de que os bons alunos6 viessem à escola calçados e uniformizados ou que comprassem livros e cadernos esbarrava objetivamente na falta de recursos financeiros das famílias. Essas restrições foram frequentemente, no entanto, entendidas como descaso dos pais com a escolarização de seus filhos. Decorre disso a persistência da consideração, para classificação e seleção operadas na escola, de elementos atrelados à condição econômica das famílias. Ou seja, onde as famílias podem assumir esses gastos e/ou os consideram gastos prioritários, os docentes e a sociedade tendem a vislumbrar maior probabilidade de rendimento do ensino. Por outro lado, se os alunos não se vestem, não falam e não se comportam de acordo com o que os docentes esperam de um “bom aluno”, tende-se a esperar pouco desempenho deles e a instituição acaba por direcionar a eles menores investimentos pedagógicos7.

A predileção pelas políticas educacionais de gabinete talvez seja uma das razões para que as orientações legais e as concepções inclusivas tenham tido tanta dificuldade de se firmar nas mentes e práticas dos agentes em atividade nas escolas. Se é fato que muitos professores e gestores atuam em conformidade com essas propostas, não menos verdade é que muitos dos envolvidos nos processos escolares – professores, famílias, estudantes – mantêm suas ações e compreensões mais afeitas às características históricas da escola classificatória, seletiva e excludente. Os altos índices de reprovação escolar servem como evidência desse descompasso. A convicção inabalável da sociedade brasileira no vestibular como mecanismo justo de seleção para as raras vagas no ensino superior público é outro elemento que se pode evocar nesse sentido. O descompasso enunciado acima se expressa em diversos processos de exclusão escolar, que se tornam menos assumidos e visíveis tanto mais a legislação os interdita. Nem por isso deixam de ter efeitos importantes, tanto do ponto de vista quantitativo, como na biografia dos sujeitos excluídos da e na escola8.

Importa reconhecer, portanto, a manutenção de procedimentos e atitudes seletivas e excludentes mesmo no âmbito de políticas que pretendem incluir grupos sociais historicamente privados do acesso à educação. Tais processos precisam ser melhor compreendidos e é com o intuito de colaborar na ampliação dessa compreensão que se apresenta o caso a seguir.

Seletividade Escolar no Ensino Médio Integrado

Recentemente o Brasil vem experimentando um processo de expansão e capilarização de Instituições Federais de Ensino. No que tange à educação profissional, a promulgação da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro de 2008, instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e criou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. A lei ainda previu que a metade das vagas ofertadas pelos IFs seriam direcionadas para cursos técnicos, prioritariamente na forma integrada ao ensino médio (ensino médio integrado). Os IFs surgem a partir das instalações dos Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs) e das Escolas Técnicas Federais, Agrotécnicas e Vinculadas às Universidades Federais (BRASIL, 2010). Essa recente política pública de expansão da educação profissional brasileira viabilizou também a criação de novos campi especialmente em periferias de centros urbanos e em municípios interioranos.

Considerando que um dos intuitos dos IFs é a promoção de justiça social e equidade (BRASIL, 2010), a compreensão das relações entre esta nova perspectiva de educação profissional e o público estudantil alvo dessas diretrizes parece ser necessária. Em pesquisa realizada por Zibenberg (2016), a qual tinha como objeto de análise a permanência e o êxito no ensino médio integrado nos cursos de um campus localizado em uma área de periferia urbana, evidencia-se que a seletividade escolar continua sendo a tônica. Essa seletividade operada pelos agentes sociais ocorre a despeito de um cenário nacional onde há perspectiva de ampliação da garantia do direito ao acesso e permanência à educação básica associada à política pública de expansão da educação profissional. O elevado investimento em termos de orçamento, tanto em infraestrutura como em recursos humanos, e os instrumentos de gestão pedagógica não têm sido, contudo, suficientes para garantir a permanência e o êxito da maior parte dos estudantes.

Embora as normativas que fundamentam a operacionalização do ensino médio integrado no campus – desde o ordenamento jurídico educacional até as normativas internas do Instituto Federal da qual faz parte – favoreçam uma prática pedagógica progressista onde haja aprendizado satisfatório, muitos estudantes se deparam com reprovações ao final do ano letivo ou acabam desistindo de permanecer no curso.

Ademais, a implementação do ensino médio integrado na Rede Federal de Educação Profissional objetivou, além de integrar o ensino propedêutico ao técnico com vistas à verticalização da educação básica à educação profissional e educação superior, a efetivação de uma educação emancipatória que viabilizasse a escolarização de setores sociais historicamente colocados à margem do mote das políticas públicas educacionais.

Com o afã de superar o dualismo histórico da escola brasileira, que apresenta trajetórias educacionais divergentes para a elite e para as classes populares, a proposta político-pedagógica do ensino médio integrado visa a:

[...] superar o ser humano dividido historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar. Trata-se de superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social. (CIAVATTA, 2005, p. 85).

Ainda que a concepção do ensino médio integrado se ocupe em consolidar a valorização da educação pública através de um percurso educativo dotado de equidade social, Frigotto (2005, p. 73-74) problematiza as exigências para sua efetivação:

A questão crucial para a nova política educacional e, em especial, a concepção de ensino médio integrado, é: quais são as exigências para que o mesmo se constitua numa mediação fecunda para a construção de um projeto de desenvolvimento com justiça social e efetiva igualdade, e consequentemente uma democracia e cidadania substantivas, de forma que, ao mesmo tempo, responda aos imperativos das novas bases técnicas da produção, preparando para o trabalho complexo.

A despeito da feição emancipatória que orienta a política, tem perdurado a seletividade escolar nessas instituições, visível nos altos índices de evasão. Visando contribuir na compreensão de tal processo, Zibenberg (2016) ouviu estudantes que estavam matriculados no último ano dos cursos de ensino médio integrados ofertados pela instituição9. Mobilizando aportes da Sociologia da Educação, a pesquisa demonstrou que a formação do habitus dos estudantes, vinculado tanto ao capital cultural implicado pela origem social (BOURDIEU, 1998) quanto ao aprendizado do ofício de aluno (PERRENOUD, 1995), tinha forte relação com a permanência e o êxito.

Um aspecto importante a enfatizar é que apenas dois dos estudantes (dentre os vintes que responderam ao questionário) que permaneceram na instituição com êxito até o último ano haviam solicitado algum tipo de reserva de vaga quando do processo seletivo de ingresso10. Percebe-se nesse contexto que os processos e as políticas de democratização do acesso à educação não garantem a permanência com êxito dos estudantes. Embora a estrutura administrativo-didático-pedagógica do campus tenha condições de intervir junto às necessidades de ensino-aprendizagem dos estudantes a fim de garantir que um maior número pudesse concluir o ensino médio integrado, é notório que a instituição segue reproduzindo a seletividade escolar e a exclusão social que se perpetua na sociedade brasileira ao longo dos anos.

No contexto analisado, a compreensão da permanência e do êxito estudantil relaciona-se com três questões: 1) processo de formação do habitus dos estudantes vinculado ao capital cultural implicado pela origem social; 2) o aprendizado do ofício de aluno; 3) a utilização do curso como “passagem” para o ensino superior.

No que diz respeito ao capital cultural e ao habitus, foi possível observar que para os estudantes que permaneceram com êxito no campus, a família tem um papel bastante significativo. Conforme Bourdieu (2013, p.42):

Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático [...] de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e de divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. O habitus é essa espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação.

A partir da análise do contexto educacional dos familiares que residem com os estudantes, foi possível perceber que quase a totalidade dos mesmos possui familiares com o ensino médio completo, como pode ser observado na Tabela 1:

Tabela 1 - Evolução, no sistema escolar, da matrícula no início do ano (IBGE) 

Período 1ª série 2ª série 3ª série 4ª série
1942/45 1.681.699 680.181 461.625 260.811
1945/48 1.758.465 725.056 513.847 297.910
1950/53 2.458.702 946.220 655.697 353.853
1955/58 3.157.680 1.257.915 909.824 589.925
1960/63 3.950.504 1.692.440 1.285.889 916.088

Fonte:(ROMANELLI, 1978, p.89)

Tabela 2 – Escolaridade dos familiares que residem com os estudantes. 

Estudante Escolaridade dos familiares
A Avó: curso Técnico em Enfermagem.
B Pai: ensino médio completo; mãe: ensino superior completo
C Pai: ensino fundamental incompleto; mãe: ensino médio completo.
D Mãe: pós-graduação em Psicopedagogia; padrasto: ensino médio completo; irmão (13 anos): cursando o ensino fundamental; irmã (12 anos), cursando o ensino fundamental.
E Mãe: ensino médio completo.
F Mãe: Engenharia Mecânica; pai: não informado.
G Mãe: Mestrado em Educação; pai: Graduação em Ciências Sociais.
H Mãe: ensino médio completo; pai: ensino médio completo.
I Irmão (20 anos): ensino superior incompleto; mãe: ensino médio incompleto; pai: ensino médio incompleto.
J Irmão (27 anos): cursando pós-graduação; mãe: curso Técnico em Enfermagem.
K Mãe: ensino médio completo; mãe: ensino médio completo; Irmão (16 anos): cursando o ensino médio.
L Pai: ensino fundamental completo; mãe: ensino fundamental incompleto.
M Mãe: graduação em Administração; irmão (20 anos): estudante de Arquitetura.
N Mãe: ensino médio completo; irmã (22 anos): cursando Engenharia Civil; Pai, ensino fundamental incompleto.
O Pai: ensino fundamental incompleto; mãe: ensino fundamental completo; irmão (16 anos) cursando o ensino médio.
P Irmão (9 anos): cursando o ensino fundamental; mãe: ensino médio completo; pai: ensino médio incompleto.
Q Mãe: ensino médio completo; avó: ensino fundamental incompleto; tio: ensino fundamental incompleto.
R Mãe: ensino fundamental incompleto; pai: ensino fundamental completo; irmã (7 anos) cursando o ensino fundamental; irmã (16 anos): cursando ensino médio.
S Pai: ensino superior incompleto; mãe: ensino superior incompleto; irmão (11 anos) cursando o ensino fundamental.
T Mãe: ensino fundamental completo; pai: ensino fundamental incompleto.

Fonte: Zibenberg (2016, p. 95).

A tabela demonstra que somente quatro estudantes (“L”, “O”, “R” e “T”) não possuem familiares com no mínimo o ensino médio completo. Dentre esses quatro, os estudantes “O” e “R” possuem irmãos que estavam cursando o ensino médio na ocasião. Os estudantes “L” e “T” possuem pelo menos um familiar que completou o ensino fundamental. Todos os demais dezesseis estudantes convivem em seu núcleo familiar com, no mínimo, uma pessoa com ensino médio completo.

Dentre os estudantes apresentados na tabela, há um caso de familiar com curso de mestrado concluído: a mãe do estudante “G” concluiu o curso de pós-graduação stricto sensu em Educação. Há dois casos de estudantes com familiares com nível de pós-graduação lato sensu: a mãe do estudante “D” concluiu o curso de pós-graduação em Psicopedagogia; o irmão do estudante “J” estava cursando na ocasião um curso de pós-graduação (não foi mencionada a área). Também há estudantes que possuem familiares com ensino superior concluído: a mãe do estudante “B”; a mãe do estudante “F” (Engenheira Mecânica); o pai do estudante “G” (Cientista Social); e, finalmente, a mãe do estudante “M” (Administradora). Há cinco casos de familiares com ensino superior incompleto ou em andamento: o irmão do estudante “I”; o irmão do estudante “M” (cursa Arquitetura); a irmã da estudante “N” (cursa Engenharia Civil); o pai e a mãe do estudante “S”.

Por decorrência, o senso prático dos familiares com relação à escola e à educação formal funciona como referência para os estudantes. As disposições sociais transmitidas de forma sistemática pelas famílias intervêm de modo significativo no desempenho escolar. Para Bourdieu (1998, p. 52), “as vantagens ou desvantagens sociais são convertidas progressivamente em vantagens e desvantagens escolares”. No caso examinado, os estudantes possuem exemplos concretos dentro de seu núcleo familiar que apontam a realização do ensino médio como algo factível e compulsório ao mesmo tempo. Em uma entrevista realizada por Zibenberg (2016, p. 81), é possível observar a interveniência do contexto familiar na relação com a permanência e o êxito do estudante:

A: Tive apoio e pressão da família, isso fez eu não desistir. Pensava que se alguém consegue eu também posso conseguir. Engoli o conhecimento. Minha família foi muito importante, incentivando e colocando pressão. [...] Vai ser uma conquista muito importante na vida, principalmente aqui vendo muita gente saindo, me vejo uma pessoa especial, que conseguiu concluir, isso é uma grande conquista para alguém que quer construir uma carreira profissional ou acadêmica. Primeira e muito importante graduação.

Esse capital social familiar é rentável do ponto de vista escolar e é revertido em vantagem social. Com uma influência significativa da família, a incorporação de estruturas de pensamento dos estudantes que permaneceram com êxito resulta num conjunto de percepções e de comportamentos adequados às exigências impostas pelos agentes sociais da instituição. Em suma, há fortes indícios de relação entre o capital cultural dos estudantes com sua permanência e seu êxito escolar, especialmente pelo capital cultural institucionalizado (BOURDIEU, 2012) demonstrado através dos diplomas de educação formal adquiridos pelos familiares. Os estudantes que angariam êxito são aqueles que se distinguem dos demais através do envolvimento com bens culturais disponíveis no seio familiar e reconhecidos como “legítimos” pelos agentes sociais do campus.

No que diz respeito ao aprendizado do ofício de aluno, todos os estudantes entrevistados mencionaram o processo de adaptação às exigências institucionais do campus. Em entrevista realizada para Zibenberg (2016, p. 73), ao responder quais eram os motivos percebidos como relevantes para o êxito e a permanência no curso, uma estudante afirmou que:

B: Precisa de dedicação, muito esforço, tem que estudar, tem que saber o que tá fazendo, não adianta colar, é importante aprender. Não li apenas para estudar para prova, estudei para praticar, praticava o estudo, especialmente os experimentos. Quando entrei no primeiro ano, vim de um colégio municipal, foi um choque, até o segundo trimestre as notas eram péssimas. Comecei a estudar mais e fui pegando o jeito de colégio. As coisas foram ficando mais claras. Fui pegando o jeito de passar a matéria, jeito de levar a aprendizagem, aprender a cobrança.

No trecho da entrevista é possível perceber a tomada de consciência (ao menos em parte) do que está em jogo no processo avaliativo escolar. O aprendizado do “jeito” do colégio e do “jeito” de “passar a matéria” elucidam um aprendizado pela estudante das exigências institucionais com as quais deve conviver e por onde é medido seu desempenho escolar.

Essa adaptação é decorrente de um processo de socialização vivido no contexto. Perrenoud (1995, p.15) afirma que “o aluno exerce um gênero de trabalho determinado, reconhecido ou tolerado pela sociedade, e do qual retira os seus meios de sobrevivência”. O mesmo autor afirma que ter sucesso na escola é aprender as “regras do jogo” (PERRENOUD, 1995, p. 62). Aqueles estudantes que permaneceram com êxito até o último ano no campus são capazes de reproduzir o que seria esperado deles em termos de aprendizado e no que se refere às questões atitudinais. Nos depoimentos dos estudantes aparecem afirmações que dão conta de que eles próprios avaliam que incorporaram “as regras do jogo” e “o jeito de passar na matéria”, ou seja, a maneira pela qual estabelecem estratégias para serem aprovados em cada componente curricular. Essa incorporação não significa que os estudantes obtêm elevadas notas na avaliação escolar nem significa que os mesmos sejam “brilhantes”. Entretanto, o domínio incorporado os habilita a avançar atendendo, com certo grau de segurança, às expectativas dos agentes sociais que possuem a prerrogativa de avaliá-los.

Os estudantes que possuem disposições sociais herdadas e que acabam se submetendo ao processo de socialização imposto pelos agentes sociais da escola para integração à cultura escolar, tornam-se “excelentes” em desempenhar um ofício de aluno pelo qual angariam a chancela escolar objetivada através da aprovação ao final de um período letivo. Embora a cultura escolar esteja constantemente sujeita a tensionamentos, ela é sistemática e hegemonicamente reproduzida pelos agentes sociais do campus.

Ainda que essa perspectiva da incorporação de um ofício de aluno tangencie uma relação utilitarista com os saberes ensinados e exigidos pela escola, cabe destacar que os estudantes que permanecem com êxito se apropriam de estratégias que viabilizam sua “sobrevivência escolar”. Inclusive com relação aos conteúdos de alguns componentes curriculares profissionalizantes, os quais são obrigatórios para conclusão do ensino médio integrado, mas não serão objeto de continuidade de estudo, necessariamente, nos próximos níveis da educação formal para onde irá a maior parte dos estudantes após o término do curso.

Com relação à conotação do ensino médio integrado como “passagem” para um curso de nível superior, a pesquisa demonstrou que, na perspectiva dos estudantes, o campus e os cursos são procurados com o intuito de preparação para realização futura de um vestibular ou Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM). Em outra entrevista realizada para Zibenberg (2016, p. 67), uma estudante explicita sua relação com o curso técnico e seus planos após a conclusão do ensino médio integrado:

C: Não penso em seguir na área de informática, não me identifiquei muito com a programação, acho mais difícil, não gosto muito do específico. Acho que o currículo integrado vai me ajudar na entrada em uma faculdade, para estar mais preparada para o vestibular ou para o Enem. Vou fazer Letras para ser professora.

Ou seja, os estudantes não buscam o campus prioritariamente pela habilitação profissional ofertada e também desejam que sua educação formal não se encerre no ensino médio integrado. A ênfase da realização do curso de ensino médio integrado está muito mais vinculada ao “ensino médio”, como se o “integrado” fosse um apêndice passível de ser ignorado. Tal estratégia educacional é fruto da escolha familiar que vislumbra no campus uma possibilidade de realização de um ensino médio gratuito e de “qualidade”, considerando especialmente os recursos disponíveis (quadro de pessoal efetivo, estrutura etc.). Indubitavelmente, as condições objetivas do campus são mais favoráveis se comparadas à realidade da educação pública estadual ou municipal da mesma localidade.

Cabe enfatizar que a maioria dos estudantes que “passa” pelo ensino médio integrado não pretende seguir no eixo tecnológico ao qual pertence seu curso. Os estudantes mencionaram que objetivavam cursar História, Letras, Odontologia, Medicina, Medicina Veterinária, Português, ou seja, seus itinerários de formação serão direcionados para áreas bastante diferentes daquelas vistas nos cursos técnicos no campus.

A análise indica que ao mesmo tempo em que o ensino médio integrado no campus é “procurado” e “viável” pelos/para estudantes que o veem como estratégia para ingresso no ensino superior, ele pode estar “expulsando” aqueles outros que se interessariam justamente pela habilitação profissional técnica de nível médio pretendida de modo específico pelos cursos e de modo amplo pela política pública de educação profissional brasileira, que reserva metade das vagas para curso de ensino médio integrado. Aqueles estudantes que não têm incorporadas as disposições sociais suficientes para respaldar sua permanência acabam se tornando fortes candidatos a deixar o curso e aumentar os funestos índices brasileiros de “fracasso escolar” e evasão. Nessa esteira, o ensino médio integrado permanece a serviço da seletividade escolar através da ação dos agentes sociais presentes no campus que, é possível supor, eles próprios, ao longo de seus percursos escolares incorporaram as disposições seletivas e excludentes que garantiram sua continuidade nos estudos e sua aprovação em concurso para trabalhar no IF.

Considerações Finais

Nas últimas décadas, foi expressivo o aumento das matrículas na escola brasileira, em todos os níveis de ensino. No entanto, é notório que a tônica da seletividade escolar segue forte, operando através de um conjunto de exigências institucionais – nem todas conscientes e explícitas. Ainda que uma parcela significativa da sociedade tenha acessado os bancos escolares, o espaço díspar que encontram, resultado de práticas institucionais avessas àqueles que não demonstram a incorporação das disposições sociais “adequadas” ao ambiente escolar, tem dificultado a permanência e o êxito dos recém-chegados.

No que se refere ao Ensino Médio, algumas das políticas formuladas no início do século XXI focalizaram sem margem para dúvidas a inclusão de grupos sociais que historicamente estiveram apartados desse nível de ensino. Tal movimento, embora relevante e certamente responsável por permitir, para alguns, trajetórias estudantis antes improváveis, não tem sido suficiente para incorporar massivamente setores sociais até então impedidos de prosseguir nos estudos. Kuenzer (2001) afirma que o ensino médio brasileiro vem referendando a inclusão dos incluídos, ou seja, aqueles estudantes que previamente vivenciaram um conjunto específico de experiências culturais e sociais possuem grande vantagem no que se refere ao sistema avaliativo escolar.

Pretendemos aqui chamar a atenção para a necessidade de se expandirem estudos acerca dos limites e contradições das políticas inclusivas – sob pena de nos mantermos romanticamente crendo que criar leis é suficiente para alterar a situação social. Longe de dizer que tais políticas não sejam necessárias e úteis. É preciso, contudo, atentarmos para o fato de que sua implementação esbarra em disposições sociais historicamente constituídas e muito atuantes nas percepções e ações dos sujeitos sociais. No caso da escola brasileira, tais disposições são majoritariamente seletivas e excludentes. A pesquisa aqui apresentada demonstrou o desencontro entre os estudantes visados na política que orienta o ensino médio integrado e os que efetivamente conseguem permanecer nos cursos. Seria certamente interessante perscrutar outras contradições.

2Para o aprofundamento dessas questões, ver Pallares-Burke (2001) e, especificamente para o caso brasileiro, ver “A República, a escola e os perigos do alfabeto” (CARVALHO, 2003, p. 143-164).

3Assume-se aqui a perspectiva proposta por Pierre Bourdieu (2014, p.78) que afirma que os “princípios de divisão e de visão do mundo, associados às diferentes disciplinas [escolares], são por sua vez associados à história – em grande parte contingente – da instituição do ensino [...]”. Por extensão, consideramos, na análise aqui apresentada, que os princípios de divisão e visão dos desempenhos e comportamentos dos estudantes estão associados à história da escola.

4Para o aprofundamento dessa discussão, ver Ferraro e Machado (2002).

6Reconhece-se aqui que o “bom aluno” na expectativa dos professores é um critério vago e impreciso. Seria importante conhecer o que os professores efetivamente esperam e reconhecer que há no quadro docente uma ampla diversidade de pertencimentos sociais e trajetórias de formação. Esse é um tema que merece ser melhor estudado. Aqui o que se pretendeu foi apenas lembrar que tais disposições, ditas subjetivas, acarretam resultados bastante objetivos.

7A propósito ver análise acerca das profecias auto-realizadoras (ROSENTHAL; JACOBSON, 1968).

8Assume-se aqui a distinção sugerida por Ferraro (2009) para quem há uma exclusão da escola, expressa pela grande quantidade de indivíduos que não chegam a se matricular ou evadem precocemente, e há uma exclusão na escola, que se manifesta nos índices de reprovação e na distorção idade-série, por exemplo.

9O processo teórico-metodológico contou com aplicação de questionário e entrevistas semiestruturadas junto aos estudantes. No ano em que a pesquisa foi realizada havia um total de 32 estudantes regularmente matriculados no último ano dos cursos ofertados, sendo que 11 pertenciam ao Curso de Eletrônica e 21 estavam realizando o Curso de Informática para Internet.

10Um por ser egresso de escola pública, com renda familiar bruta superior a 1,5 salário-mínimo per capita e outro por ser egresso de escola pública, com renda familiar bruta igual ou inferior a 1,5 (um vírgula cinco) salário-mínimo per capita e autodeclarado preto, pardo ou indígena.

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Recebido: 07 de Dezembro de 2017; Aceito: 30 de Julho de 2018

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