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Perspectiva

versão impressa ISSN 0102-5473versão On-line ISSN 2175-795X

Perspectiva vol.36 no.3 Florianopolis jul./set 2018  Epub 29-Jul-2019

https://doi.org/10.5007/2175-795x.2018v36n3p908 

Artigos

Memórias da ÍdichSchule: movimentos de uma escola judaica, pelas narrativas de estudantes e professores (1922 – 1956, Porto Alegre/RS)

ÍdichSchule Memories: movements of a Jewish school, through the narratives of students and teachers (1922-1956, Porto Alegre/RS)

Mouvements d’une école juive pour les récits d’étudiants et d’enseignants ( 1922-1956, Porto Alegre/RS )

Doris Bittencourt Almeida1 
http://orcid.org/0000-0002-4817-0717

1Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS


Resumo

O artigo tematiza processos de educação vividos por uma comunidade judaica em Porto Alegre, tendo como foco a construção de uma escola, a ÍdichSchule. A temporalidade da pesquisa compreende, como marco inicial, o ano de 1922, data de fundação da primeira sinagoga e da escola, até o ano de 1956, quando esta passa por importantes transformações, passando a oferecer o Curso Ginasial. O corpus empírico consiste em narrativas de memória oral de pessoas longevas, a grande maioria de origem judaica, estudantes e/ou professores desta instituição educativa. São entrevistas produzidas entre as décadas de 1980 e 1990 que se encontram arquivadas em um acervo judaico, transpostas para a cultura escrita. O interesse da pesquisa reside no que foi escolhido pelos narradores como lembranças das vivências comunitárias. Por meio da análise documental, produziu-se uma inteligibilidade acerca das memórias desses sujeitos que conservam, quase que visceralmente, o apreço pela cultura escrita. De tudo o que se investigou, pode-se dizer que a construção de um lugar para estudar era tão importante quanto um lugar para rezar. É nessa interface que se constitui a ÍdichSchule, uma instituição que precisou, como muitas outras, superar as oposições para integrar-se à sociedade brasileira. Neste sentido, infere-se que havia uma intenção assimilacionista, em meio às discussões sobre a condição dos judeus na sociedade brasileira. Nas disputas, que se traduziam especialmente nos entendimentos acerca da formação dos estudantes, buscou-se uma conciliação entre aqueles que priorizavam o ensino religioso e aqueles que defendiam uma maior laicização da educação.

Palavras-chave:  História da Educação; História Oral; Educação dos judeus; Acervos de memórias orais

Abstract

This paper is about processes of education lived by a Jewish community in Porto Alegre, and focuses on the construction of a school, the ÍdichSchule. The research covers the period from 1922, date of foundation of the first synagogue and of the school, to the year of 1956, when this school goes through important transformations, and begins to provide High School education. The empirical corpus consists of narratives of oral memory by long-lived people, mostly of Jewish origin, students and/or teachers from this educational institution. The interviews were produced between the decades of 1980 and 1990, which were filed in a Jewish collection, and had been translated to a written culture. This investigation is interested in aspects that were chosen by the narrators as memories of communal experiences. By means of documentary analysis, it was possible to understand the memories of these individuals who preserve, almost viscerally, an appreciation for written culture. Above all, it is possible to state that the construction of a place to study was as important as a place to pray. Therefore, ÍdichSchule was constituted in this interface; it was an institution that needed, as well as many others, to surpass oppositions in order to fit in the Brazilian society. In this sense, it is possible to infer that there was an intention of assimilation amid discussions on the Jewish situation in Brazilian society. In disputes, which were expressed through understandings around students’ development, they sought a conciliation between the ones that prioritized religious teaching and those that defended a more secular education.l.

Keywords:  History of Education; Oral history; Jewish education; Oral memories' collections

Resumé

L’article traite des procédures de l’éducation eprouvés par une communauté juive à Porto Alegre, en se concentrant sur la construction d’une école, la ÍdichSchule. La temporalité de la recherche comprend, comme point de départ, l’année 1922, date de fondation de la première synagogue et l’école, jusqu’en 1956, quand il subit des transformations importantes à offrir le Curso Ginasial. Le corpus empirique est constitué de récits de mémoire orale de personnes agées, la pluspart d’origine juive, étudiants et/ou professeurs dans cette institution d’enseignement. Sont entrevues produites entre 1980 et 1990 des décennies qui sont archivées dans un acquits traduit dans la culture écrite. L’intérêt de la recherche réside dans qui a été choisi par les narrateurs comme souvenirs d’expériences de la communauté. Grâce à l’analyse de documents, s’est produit une intelligibilité sur les souvenirs de ceux qui préservent, presque viscéralement, l’appréciation de la culture écrite. L’objet d’une enquête, on peut dire que la construction d’un lieu à l’étude était aussi importante comme un endroit pour prier. Sur cette interface qui est le ÍdichSchule, une institution qui a besoin, comme beaucoup d’autres, surmonter l’opposition à se joindre à la société brésilienne. En ce sens, en déduit qu’il y avait l’intention assimilacioniste, au milieu des discussions au sujet de la condition des Juifs dans la société brésilienne. Dans les disputes, qui étaient traduit en particulier des accords sur la formation des étudiants, un rapprochement entre ceux qui donnaient la priorité à l’enseignement religieux et ceux qui prônaient la sécularisation accrue de l’éducation.

Mots-Clés:  Histoire de l’éducation; Histoire orale; Éducation des juifs; Collections de memoires orales

... a peculiaridade judaica: aqui, bem cedo narrar histórias tornou-se um preceito ancorado no texto. Professores ensinavam a partir de livros. A sabedoria oral transformava-se em códice escrito. Desde tempos antigos, pais tinham acesso a algum texto a partir do qual liam para seus filhos. A fórmula “para gerações e gerações” estava literalmente entalhada em pedra, escritaem papiros, ou peles de bezerros e mais tarde em papel (SCLIAR, Moacyr, 1985, p.38).

Nesta epígrafe, Moacyr Scliar1 reflete acerca do significado milenar da palavra escrita para o povo judeu, que, segundo o autor “fez do texto a sua pátria” (2017, p.100). Para Scliar, e para tantos outros estudiosos, é visceral a relação entre o sentir-se judeu e a cultura escrita, assim, “livro, para um judeu, é objeto de reverência. Isso não é de estranhar num grupo humano que teve na Bíblia – registro histórico, código de ética, e, por último, mas não menos importante, narrativa poderosa, a primeira fonte de sua identidade” (p. 146). Neste sentido, Amoz Oz e Fania Oz Salzberger (2015) complementam a reflexão de Scliar, ao explicarem a importância da transmissão da memória pela escrita, para eles, “uma família judia obrigatoriamente depende das palavras. Não quaisquer palavras, mas palavras que venham dos livros” (2015, p.40).

Portanto, ao falar da história dos judeus, independente do lugar em que estejam, estão implicadas relações com a cultura escrita, como elemento constitutivo de sua formação identitária. No Rio Grande do Sul, o processo de imigração judaica compreende a instalação de colônias agrícolas no norte do Estado, a partir de 1904, em Phillipson2. Esses imigrantes foram trazidos para o Brasil graças à Jewish Colonization Association (ICA), uma associação internacional que prestava assistência aos judeus emigrados, especialmente aqueles que vinham da Europa Oriental. Logo, nessas colônias, sentiu-se a necessidade da sinagoga e da escola, como instituições propagadoras de sua identidade religiosa. À ICA interessava a escolarização dessas comunidades e, para tanto, como ação precursora, em 1908 enviou um professor para Phillipson, Leon Back, que, antes de deixar a França e vir para o Brasil, aprendeu a Língua Portuguesa. A preocupação dessa Associação em preparar um professor com conhecimento do idioma local indica a intenção de promover a integração desses primeiros judeus ao Brasil. Apesar do pouco tempo nessa colônia, Leon Back parece ter imprimido uma marca naqueles lugares, pois é seguidamente evocado por judeus de diferentes gerações, quando o assunto remete aos primeiros tempos das colônias judaicas no Rio Grande do Sul3. Além de escola, as colônias contavam com a presença de bibliotecas, com uma quantidade expressiva de livros vindos de diferentes países da Europa e da América, que demarcam a potência da cultura escrita em lugares idealizados para uma vida rural (ALMEIDA e GRAZZIOTIN, 2016).

Todavia, a partir da década de 1920, desenvolve-se um contínuo e irreversível esvaziamento dos núcleos agrícolas. Nesse processo de mudanças em direção ao mundo urbano, pode-se dizer que o desejo de aprimoramento intelectual, através do maior acesso à escolarização, em graus de ensino que não havia nas colônias, conduziu essas pessoas a se inserirem de outro modo na sociedade brasileira. Portanto, neste texto, investigam-se processos de educação de uma comunidade judaica em Porto Alegre, tendo como referência inicial o estabelecimento de famílias judias da etnia azhenazim4 a partir dos anos 1920, em uma determinada região de Porto Alegre. Embora se apresentem evidências de diferentes modos de educar as crianças dessa comunidade, o foco está na construção da ÍdichSchule, em 1922, hoje Colégio Israelita Brasileiro.

O corpus empírico da pesquisa consiste em narrativas de memória de pessoas longevas, a grande maioria de origem judaica. São entrevistas produzidas entre as décadas de 1980 e 1990 que se encontram arquivadas no "Acervo de História Oral", salvaguardado pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall (ICJMC)5. Em diferentes projetos, desenvolveram-se entrevistas, muitas apresentando os itinerários vividos pelos sujeitos narradores, intituladas “histórias de vida” e outras, em menor quantidade, envolvendo temáticas específicas. Trata-se de um acervo de memória oral transposto para a cultura escrita que, em suas potências e fragilidades, prerrogativas de quaisquer documentos, permitem, por meio de suas análises, que se construam intelegibilidades múltiplas sobre o passado dessas comunidades6.

Cumpre dizer que o interesse da investigação consiste no que foi escolhido para ser lembrado por esses narradores, todos eles, estudantes e/ou professores da escola. É neste “estranho diálogo com os mortos” (CERTEAU, 2008, p.13), que se percebe o significado do Acervo que guarda vozes do passado. Essas memórias estão, de certo modo, imortalizadas, transformadas em textos escritos, disponíveis a quem quiser ler. São como “poeiras de fragmentos”, que murmuram acerca de outras temporalidades (CERTEAU, 2008, p.38). E, como acentua Ricoeur, “não temos nada melhor que a memória para significar que algo aconteceu, ocorreu, se passou antes que declarássemos nos lembrar dela” (2007, p.40).

Desse modo, aqui se produziu uma história acerca da formação de uma comunidade de judeus da etnia azhenazim em Porto Alegre, muitos deles oriundos das colônias agrícolas, ou filhos desses imigrantes. Nesta cidade, ocuparam uma determinada região, o Bairro Bom Fim, fundaram sinagogas e uma escola, a ÍdichSchule. Por meio de um exercício de garimpo entre as “histórias de vida” salvaguardadas no ICJMC, identificaram-se cinco narrativas de antigos estudantes da Escola Ídiche, mesmo daqueles que não freqüentaram o colégio desde o primeiro ano do Curso Primário. Consultaram-se também cinco entrevistas temáticas produzidas com professores da escola, sendo que três deles ocuparam funções de Direção da instituição e um esteve como Diretor provisoriamente. Em todas essas entrevistas, também narram memórias da cidade de Porto Alegre e do Bairro Bom Fim, especificamente.

Quadro 1 Levantamento das entrevistas consultadas no Acervo de História Oral/ICJMC 

Alunos Anos em que estudou no colégio
Maurício Ratnowski 1923 – 1928
Luis Kulkes 1925 – 1930
Marcos Iolowich 1937– 1942
Moyses Eizirik 1923 – 1930
Dora Berger 1938– 1943
Professores Tempo que trabalhou no Colégio
Nair Magalhaes de Freitas 1942 –1967 (professora/diretora)
José Baratojo 1956 –1970
José Blumenthal 1950 – 1957 (aluno) 1960- 1970 (professor)
Luiz Glock 1958 – 1963 (apenas diretor)
Matilde Gus 1956 –1959 (apenas diretora)

Ao iniciar a investigação, acreditava que, por se tratar de uma comunidade étnico-religiosa que valoriza a escolarização, a maioria teria cursado o ensino primário nessa instituição. Ao contrário do que supunha, foi difícil localizar aqueles e aquelas que estudaram na Escola Ídiche. Das 50 “histórias de vida” consultadas, poucas foram aquelas em que observei a presença dessa instituição nos percursos escolares dos entrevistados, entre os anos 1920 e 19567. Como entender essa situação?

Os dados encontrados evidenciam uma profusão de itinerários escolares. Há aqueles que buscavam escolas públicas, desde os primeiros anos de estudo. Escolas católicas, metodistas e batistas também eram procuradas. Muitas judias estudaram nos Colégios Sevigné e Bom Conselho, ambos católicos, destinados às moças. Outras escolheram o Colégio Americano, metodista, os três localizados em regiões próximas ao Bairro Bom Fim. Entre os rapazes, o interesse pelo Colégio Marista Rosário, situado junto ao centro histórico da cidade. Com relação às escolas públicas, observou-se uma recorrência ao Grupo Escolar Uruguai8, que oferecia o Curso Primário, localizado no limite do Bairro Bom Fim com a antiga Colônia Africana9, hoje Bairro Rio Branco. Quanto às instituições públicas de ensino secundário, vê-se a preferência pelo Colégio Julio de Castilhos10 e muitas moças optavam pelo Instituto de Educação Flores da Cunha11, que oferecia o Curso Normal. Ambas eram, e em certa medida continuam sendo, escolas públicas referências em Porto Alegre.

Cabe ressaltar que todos os sujeitos cujas entrevistas foram consultadas não cursaram apenas o Primário, indicando a disposição em prosseguir estudando, para homens e mulheres, com vistas à profissionalização. Neste sentido, interessante a narrativa de Dora Berger (1990), cursou o Primário na ÍdichSchule, mas, para continuar a formação escolar, era importante buscar uma escola que a preparasse para o exercício de uma profissão: “minha mãe queria que eu trabalhasse logo, eu também queria trabalhar, ela ficou sabendo que o Colégio Batista tinha o comércio, o curso de comercial, quer dizer, [...], datilografia, estenografia, inglês comercial. Aí ela me botou lá no Batista, no fim do mundo.”

Diante da constatação da distribuição de crianças e jovens judeus pelas instituições de ensino públicas e privadas em Porto Alegre, pode-se perceber que havia uma intenção assimilacionista entre essas comunidades, ou seja, as informações levam a crer que muitos deles desejavam sentir-se incluídos como brasileiros e, nesse processo de inserção, cabia a escolha por uma escola não judaica. Portanto, parece que estar na escola para os judeus era o que de fato importava, independente de ser uma instituição judaica, pública ou de outra confissão religiosa.

“Vivíamos todos juntos...”: a criação da ÍdichSchule

Os primeiros judeus azhenazim habitaram, em Porto Alegre, a região que hoje compreende o Bairro Bom Fim. Trata-se de uma área que começou a ser loteada em fins do século XIX, em um momento de expansão urbana da cidade, ocupada, inicialmente por imigrantes portugueses, italianos, e, logo em seguida, por judeus e seus descendentes, pessoas que mantinham pequenos comércios e pequenas fábricas.

Maurício Ratnowski (1989) rememora o cotidiano em tempos longínquos: “viveu quase todo mundo no Bom Fim. E a vida era mais tranqüila, sabe por quê? Porque duas, três famílias moravam em uma casa só. Nenhuma casa tinha banho quente. Nos domingos, tínhamos que ir na Rua da Praia12, lá tinha banho quente, banheiro e todo mundo ficava satisfeito”. Outras narrativas encontradas no Acervo de Memória Oral indicam o significado da vida em coletividade, como um refúgio, em parte pelas dificuldades de comunicação por ainda não dominarem a Língua Portuguesa. Luis Kulkes (1990) traduz esses sentimentos: “me lembro, chegava de noite, os vizinhos eram um grupo só, vivíamos todos juntos. Na rua, sentados nas calçadas, tinha aquele costume, todo mundo levava os banquinhos e sentavam na rua, na calçada.” Como em muitas outras comunidades étnicas de emigrados13, a solução encontrada era o associativismo, uma estratégia de enfrentamento às adversidades.

Passados alguns anos, Matilde Gus (1991) rememora o bairro em que passou sua juventude na segunda metade dos anos 1940. Define o Bom Fim como “maravilhoso”. Estudante do Colégio Júlio de Castilhos, lembra dos deslocamentos a pé para a escola, “os colegas todos passavam ali em casa e me chamavam e nós íamos juntos e voltávamos juntos... nos sentindo judeus sem problemas muito grandes, sem discriminação.”

Ainda procurando entender a importância dos vínculos que agregaram essas pessoas, cabe destacar suas atividades econômicas preferenciais. Para Scliar, são profundas as relações entre o comércio e as pequenas indústrias de construção criadas como ocupações tipicamente judaicas, em suas palavras, “móveis, casa, roupa: há um nexo aí. São coisas que abrigam, que guardam, que protegem” (1985, p.41).

Entende-se que o Ídiche era uma espécie de aliança entre essa comunidade. Matilde Gus (1991) evoca a lembrança de sua avó, que “lia sempre um livro em caracteres em Ídiche, e sempre sentada lendo, ela passava o dia inteiro lendo, era o lazer dela”. Explica que a presença de uma avó leitora em casa, em uma sociedade pouco escolarizada, era algo incomum, pouco compreendido pelas amigas não judias que viam com estranhamento o comportamento da anciã.

Scliar (2017, p.116) considera o Ídiche como “língua visceral, errante na qual se exprimiam as emoções mais autênticas”. Explica as origens mais remotas dessa formação linguística, produto da diáspora judaica, por volta do século X, que se constitui em uma mistura linguística, nas atuais fronteiras franco-alemãs, “do Hebraico ritual, mais o aramaico herdado da linguagem corrente à época bíblica, mais francês, mais italiano, e, sobretudo, alto-alemão” (SCLIAR, 2017, p.115). Essa língua acompanharia os judeus em seus constantes deslocamentos pela Europa Oriental14 e depois na América. Cabe ainda ressaltar, segundo Scliar, que o grande responsável pelo desmantelamento do Ídiche foi o Holocausto, que praticamente eliminou judeus nos países da Europa Oriental. Na América, o desaparecimento desta Língua está relacionado à necessidade de assimilar uma nova cultura, “do ponto de vista cultural, o que desapareceu foi o próprio substrato do Ídiche, aquele tipo de judaísmo do qual ele se nutria: um judaísmo culto, mas com profundas raízes populares, possuído de uma incrível fé no futuro” (p.115). E conclui: “o Ídiche sobrevive agora unicamente no país chamado memória”.

A questão religiosa também está presente na busca pela manutenção da unidade dessa comunidade. Moacyr Scliar (1985) explica que a formação de um “miniam”, reunião de adultos que agrega as pessoas para as orações, deu origem à União Israelita, a primeira sinanoga em Porto Alegre, em 1922, como espaço de congregação, que também promovia festas, celebrações, onde se falava o Ídiche, se dançava e se fazia teatro (SCLIAR, 1985). 15 Neste sentido, observa-se que a preocupação com a educação das crianças fomentou o aparecimento de vários grupos de estudo entre os judeus, os “cheder”. O primeiro deles, na Sinagoga União, seria o germe da Escola Ídiche, sendo difícil separar as fronteiras entre o lugar de rezar e o lugar de escolarizar, pois ambas, sinagoga e escola, podem ser definidas como instituições educativas.

Portanto, a Sociedade Mantenedora da escola foi fundada em 1922 e, no mesmo ano, a escola iniciou suas atividades, funcionou, inicialmente, junto à Sinagoga União Israelita, na Rua Barros Cassal. Em 1938, a instituição de ensino transferiu-se para a sede do Centro Israelita Porto-Alegrense, na Rua Henrique Dias e, em 1942, ocupou uma casa na principal avenida do Bairro Bom Fim, a Osvaldo Aranha, número 1006, alterando o nome para Sociedade de Educação e Cultura.

A escola oferecia o Curso Primário e assim se manteve até a década de 1950, em uma espécie de turno integral. Pela manhã, eram ensinados conteúdos básicos, à tarde Ídiche, Hebraico e Cultura Judaica para um pequeno grupo de estudantes (EIZIRIK, 1984). Nos primeiros anos, a Sociedade contratou um casal de professores vindos da Palestina. Kleimann (1992) explica que, logo após a fundação, não foi nada fácil para o colégio conseguir manter um número alto de matriculados. Segundo a autora, apesar das pessoas judias sentirem necessidade de uma escola no bairro, muitas crianças eram filhas de pais com poucas posses ou já frequentavam as escolas públicas da cidade.

Havia também a situação de crianças judias que demoraram a ingressar na escola. Em depoimento, Luis Glock16(1991) indica as dificuldades que havia para custear a ÍdichSchule, no entanto, em suas memórias, reconhece o capital cultural de sua família, valoriza a formação ética que recebeu. Lembra quando faltava até mesmo o dinheiro para o aluguel. E assim, o início de sua escolarização esteve atrelado aos ensinamentos de um “shoichet que vinha em casa nos ensinar. Todos os dias. Você pensa que ele vinha uma vez, de vez em quando, tá? Nós estudávamos Ídiche em casa” (LUIS GLOCK, 1991). Explica que seus irmãos iam à residência do “shoichet”, pois eram maiores, andavam pela cidade sozinhos. Para Luis, essa pessoa apresentou os primeiros contatos com a instituição judaica,

porque o shoichet era uma instituição. Ele vinha em casa, sexta-feira, de manhã para matar uma galinha. Veja, com toda a nossa miséria. Nós morávamos num cortiço. O velho judeu, ao mesmo tempo que matava uma galinha, tomava um copo de chá, escutava toda a lição de Ídiche que eu tinha que dar para ele, ta? Sob o controle da minha mãe. E a minha mãe, muitas vezes pegava erros que ele deixava passar, e ela não deixava. E ela na cozinha, tá? (LUISGLOCK, 1991)

Trata-se de uma narrativa carregada de simbolismos, que pode ter sido também a história de muitas outras crianças judias que não iam à escola, mas aprendiam com esses anciãos que representam uma instituição, que ensinavam, em meio às atividades domésticas.

Outras crianças, como José Blumenthal (1992), tiveram passagem pelos Grupos Escolares e depois migraram para a Escola Ídiche. Conta que quando iria ingressar no primeiro ano do Curso Primário, sua mãe esteve doente e uma amiga de sua mãe o matriculou no Grupo Escolar Uruguai, que se localizava na Rua Esperança, hoje Miguel Tostes, atualmente, Bairro Rio Branco, que faz limite com o Bom Fim. Segundo Blumenthal, quando estava no terceiro ano primário, outra amiga judia de sua mãe havia condenado o fato dele não estar matriculado na Escola Ídiche, e assim foi transferido para lá. Como lembranças da infância, comenta a importância da educação familiar que permitiu a ele conhecer com maior liberdade outras concepções de vida e de religião, para além do Judaísmo. Sobre a experiência no Grupo Escolar, destaca:

Era comum rezar Ave Maria, Pai Nosso e eu aprendi, até hoje eu sei rezar isso. E um dia morreu a Diretora e eu cheguei em casa e disse para mãe: Hoje eu fui no enterro da diretora, na igreja... Foi a maior revolução! Eu entrar numa igreja. Mas assim depois, a ponto de, digamos assim, aquilo que o meu pai aprendeu com o pai dele, eu não sei como, se era forçado ou espontâneo, ele não se preocupou que eu aprendesse da mesma forma. Então, eu fui aprendendo como achei que devia ser, ele sabe disso (JOSÉBLUMENTHAL, 1992).

Feitas essas ponderações que representam memórias daqueles que não foram, ao menos de imediato, estudantes da ÍdichSchule, voltamos a atenção para o desenvolvimento da escola desde seus primeiros anos, observando, atentamente, o que dizem os documentos orais da pesquisa.

Neste sentido, Moyses Eizirik (1988) explica que frequentou a ÍdichSchule, entre os anos de 1923 a 1930, tendo sido, portanto, um de seus primeiros alunos. Assim, prossegue

Em 1923, estive apenas como ouvinte, pois não tinha a idade mínima necessária (...). Naquela época, a coletividade era muito pequena e havia duas a três dezenas de alunos. No turno da manhã, eram ministradas as matérias básicas como Português, Aritmética, Geografia e História, enquanto que, no turno da tarde, estudávamos Ìdiche, Hebraico e História Judaica. Quando estive no segundo ano, nossos professores no ensino judaico foram o Moré Glambotzky, de Hebraico e sua esposa Morá Glambotzky de Ídiche. Eles vieram da Palestina (MOYSES EIZIRIC, 1988).

Segundo Eizirik (1988), esses professores palestinos dominavam o Ídiche e o Hebraico, mas pouco conheciam a atividade pedagógica, sendo esta uma questão recorrente entre as narrativas examinadas, que parece ter atravessado por décadas a história da escola. Suzana Starosta, em depoimento para Kleimann (1992) apresenta uma situação de inserção na escola, diz que seu irmão teria sido um dos primeiros alunos da instituição e lá ia buscar a formação judaica, pois estudava em outra escola. Explica que as famílias não tinham tempo de transmitir um judaísmo formal, desse modo, buscavam apoio para isso na ÍdichSchule. Percebem-se os múltiplos significados dessa escola, por um lado, a importância da formação do estudante do ponto de vista intelectual, por outro, o significado de construir uma identidade ao judaísmo em Porto Alegre, por meio do ensino do Ídiche e da Cultura Judaica.

Outras memórias comparecem na entrevista de Moyses Eizirik. Afirma que “imperava o castigo físico, se o aluno não sabia a lição ou conversava na aula, a professora batia com a régua na cabeça ou nas mãos. Lembro os nomes das professoras Dona Rina e Dona Estela” (1988). Continua declarando que, por qualquer ato de desobediência, a professora colocava o aluno em um “canto da aula, onde ficava de pé ou de joelhos”, tanto nas aulas do turno da manhã, quanto nas vespertinas. Recorda duas expressões em Hebraico recorrentes no cotidiano escolar, “lechlapina”, que, segundo ele, significa “vai para o canto”,e “leclazazel”, com tradução de “vai para o diabo”, utilizadas em situações de irritação da professora em sala de aula. Contudo, o fato de ter ficado órfão de mãe parece ter sensibilizado as docentes, conta que, a partir do momento em que perdeu a mãe, quando fazia algo de errado, não era mais punido, a professora Estela dizia “neste não, o coitado não tem mãe” (MOYSES EIZIRIK, 1988)

Ainda na esteira dessas narrativas, observa-se que o tema da higiene corporal comparecia às práticas escolares. A saúde do corpo é um elemento importante da educação escolarizada daquele contexto dos anos 1930 e 1940, considerada determinante no processo formativo das crianças (GONDRA, 2007). De acordo com Eizirik (1988), a professora, sem avisar, “dava uma incerta e examinava as unhas dos alunos. Os que estavam com as unhas sujas, apanhavam de régua nas mãos e ainda tinham que fazer em casa, como castigo, escrever cem ou duzentas linhas devo manter as unhas limpas”. Essa descrição associa a questão dos preceitos higiênicos às punições, traduzidos pelas memórias dos antigos estudantes. Aquele era um tempo em que “ainda se praticavam os castigos físicos e morais; nas quais se exacerbava a vigilância sobre o estado de limpeza do corpo, da roupa e dos modos dos alunos...” (NUNES, 2007, p. 372). Percebe-se que a ÍdichSchule, mesmo guardando determinadas especificidades, não estava distante das concepções que vigiam para a escola no Brasil naquela temporalidade.

Na entrevista de Dora Berger (1990), observa-se que, mesmo tendo estudado alguns anos depois de Moyses Eizirik na mesma escola, comparecem lembranças semelhantes em relação aos castigos. Menciona “uma professora muito braba, uma solteirona, eu já te contei que ela era muito braba, ela dava com a régua na cabeça da gente. O meu primo estudava comigo, ela pegou um estojo e quebrou na cabeça dele” (DORA BERGER, 1990). Além disso, descreve outras lembranças envolvendo ela e Moishe, seu colega, de mesma idade, “eu me lembro ele tão quietinho, ele não fazia nada, não sei porque a professora dava castigo. Eu mesma ia muito de castigo, ela me botava atrás da porta. Sabe aquelas portas que tinham dois metros de altura, antigas, né? (...) Eu devia ser...”(DORA BERGER, 1990).

Marcos Iolowich (1991), que, como Dora Berger, estudou na escola em meados dos anos 1930, recorda que também nas aulas de Cultura Judaica havia punições, o professor indicava um aluno para iniciar a leitura e tradução do Torá, e outros continuavam a leitura, sucessivamente, todos deveriam acompanhar em silêncio, mas “às vezes a lição era tomada salteadamente. E aquele que colhido de surpresa, não encontrasse logo o fio da leitura, apanhava, impiedosamente.17” (MARCOS IOLOWICH, 1991)

Ao observar as narrativas de Dora Berger, Marcos Iolowich e Moyses Eizirik, percebe-se uma confluência entre aprender e obedecer, como condições para escapar de ser punido. Nota-se também, diferente de outras pesquisas, que não eram apenas os meninos os alvos das reprimendas, pois os relatos indicam que aquele ou aquela que não seguisse os padrões disciplinadores da escola seria penalizado de diferentes modos.

Para além dessas memórias, apresentam-se aqui outras, relatadas por Eizirik. Diz que o momento do recreio era aguardado com ansiedade pelas crianças, era quando se fazia “a esperada pelada de futebol” (1988). Acrescenta que, no final do ano, aconteciam os exames, escritos e orais, referentes às disciplinas comuns e às disciplinas de cultura judaica, tendo banca examinadora formada por três professores e a Direção do Colégio. E, ao terminar o ano letivo, havia uma solenidade de encerramento das aulas, no salão de festas do Centro Israelita, com apresentação de peças de teatro em Ídiche e declamação de canções, “me lembro de uma peça na qual foi apresentada a vida de Moisés, eu fui ele” (MOYSES EIZIRIK, 1988). Em 1929, concluiu o Curso Primário e fez o Exame de Admissão ao Ginásio para estudar no Colégio Julio de Castilhos. Entretanto, mesmo estudando em outra instituição de ensino, continuou, no turno da tarde, frequentando a ÍdichSchule, segundo ele, formou-se uma turma extra para continuar o ensino da cultura judaica, o que indica o prestígio da instituição entre os judeus.

José Blumenthal (1992) avalia a escola como uma instituição de “bom nível”, em função da quantidade de estudantes aprovados no Exame de Admissão ao Ginásio, afirma que muitos prosseguiam os estudos no Colégio Julio de Castilhos e no Instituto de Educação Flores da Cunha, segundo ele, “não era fácil entrar nessas duas na época”. Lembra das orientações da Diretora Nair Magalhães, “uns dias antes do Admissão, ela nos falava em relação ao que nós íamos encontrar, as dificuldades, mais ou menos fazia um prognóstico: esse entra, esse não entra.”

Idealiza-se uma nova escola: tempos de disputas

Em 1942, a escola transferiu-se para outro lugar, localizado na Avenida Osvaldo Aranha. Segundo Kleimann (1992), em 1944 havia 14 professores e 254 alunos distribuídos entre Jardim de Infância e Curso Primário. Eram 500 os sócios da Mantenedora, e a instituição contava com subvenções da prefeitura municipal e do governo estadual.

Por meio da análise dos documentos orais, é possível perceber como os espaços afetam as sensibilidades de quem os habita. No processo de narrar o passado, emergem representações do sensível, entremeadas à ficcionalização das memórias. Assim, Nair Magalhães (1992), professora e, por muitos anos, diretora da instituição, descreve espacialmente o Colégio, “a gente entrava num portãozinho. Depois tinham duas portas que davam para frente, era o que o professor de Religião ocupava (...) e então ia para os fundos, onde tinha a escola mesmo. Então tinha duas salas na frente, duas salas no fundo e mais uma outra sala. Aí era o Jardim...” . E a estudante Dora Berger complementa:

eu me lembro do prédio, devia assim ser tombado de tão bonito que era; o portão, a grade assim de ferro, depois um salão na frente que era um saguão, tinha uma sala para reuniões, e tinha, aonde tinha aulas de Hebraico, de Ídiche, no prédio da frente, depois um pátio, depois o prédio da escola, tudo térreo, né? Depois o pátio dos fundos... por que não preservaram aquilo? (1990)

As narrativas da aluna e da professora permitem que se construa uma imagem do prédio. Parece ter sido uma casa adaptada para uma escola, localizada na principal avenida do Bom Fim, em meio ao comércio, pequenas fábricas e as residências da população. Percebe-se que o terreno era estreito e comprido, como são até hoje os terrenos nessa região da cidade. As salas aonde aconteciam as aulas de Religião, localizadas mais à frente do prédio, indicam um lugar de destaque da cultura religiosa.

A escola é como um microcosmo da realidade maior que os judeus encontravam na sociedade brasileira. Assim, durante o Estado Novo18, urgia adaptar-se às prescrições do nacionalismo do ensino. Essa não era uma prerrogativa da ÍdichSchule, mas atingiu sobretudo a Região Sul do país, pela forte presença de imigrantes europeus. No Rio Grande do Sul, as escolas étnicas alemãs19, italianas e polonesas também precisaram nacionalizar-se.

Voltando para a situação da escola judaica, importava alterar seu nome, uma ação necessária, entre tantas outras, na tentativa de permanecer como instituição escolar e não fechar suas portas. Assim, abandona a nomenclatura original, adotando, em seu lugar, Sociedade de Educação e Cultura. Evidente, não era apenas uma questão de troca de nome, era preciso deixar claro à Inspeção de Ensino um firme propósito de aderir aos princípios do nacionalismo.

Entretanto, pelas narrativas consultadas, vê-se que a adesão às imposições do Estado Novo não foi algo unânime entre a comunidade escolar. Formou-se um acirrado campo de disputas entre aqueles que defendiam a continuidade de um modelo de escola atrelado à manutenção da Língua Ídiche e cultura judaica e aqueles que postulavam a constituição de um ensino laico, afinado às perspectivas assimilacionistas. Esta seria uma estratégia para a escola continuar a existir, enfrentando o poder público nas questões do nacionalismo do ensino? Kleimann (1992) avalia as complexas relações que se estabeleceram entre essas comunidades que, se por um lado buscavam uma integração como forma de se identificarem por meio da preservação de tradições, por outro, era necessário “poder garantir um novo enraizamento e evitar que a nova geração sofresse novas perseguições” (p. 49).

Pela análise do que dizem antigos discentes e docentes, observa-se que, em diferentes momentos da história da escola, os professores eruditos religiosos careciam de formação pedagógica e isso, entre outras questões, fomentou uma série de tensões na construção da proposta pedagógica do colégio. Ou seja, à medida que o ensino leigo passava a ser ministrado por professores contratados junto à rede pública ou mesmo cedidos por ela, era quase inevitável o choque de concepções acerca das prioridades curriculares para a formação dos estudantes dessa escola.

A narrativa de Moacyr Scliar (1985), referindo-se ao tempo que estudou na ÍdichSchule, nos anos 1930, é importante para que se perceba que essas questões já se faziam presentes desde os primeiros anos de funcionamento da escola. Lembra que o colégio costumava celebrar “um pouco das festas judaicas, embora o ensino judaico se restringisse muito mais ao ensino do idioma, o que os alunos detestavam” (p.81). Complementa, afirmando que os métodos de ensino religioso lhe pareciam ultrapassados e isso se diferenciava em relação ao ensino leigo.

Nas entrevistas temáticas examinadas, destaca-se o relato da professora Nair Magalhães de Freitas (1992), que veio a ser a diretora do Curso Primário. Nascida em 1912, não era de origem judaica, ingressou na escola em 1942 e lá permaneceu por 25 anos. Nesse período, acompanhou mudanças da instituição. Antes de lecionar na escola, cursou uma espécie de especialização em educação pré-escolar, portanto, iniciou na Sociedade de Educação e Cultura como professora do Jardim de Infância. Afirma que foi selecionada para lá trabalhar em função de sua mãe ter sido Inspetora de Ensino naquele estabelecimento. Sua mãe teria, então, sugerido à Direção da escola que contratasse a filha como docente. É interessante buscar compreender os motivos que levaram a instituição a seguir a proposta da Inspetora e contratar a professora Nair. Seria essa atitude uma forma da escola dizer “sim” à nacionalização do ensino? Seria um recado da escola à sociedade, que não era tão judaica assim, por aceitar docentes e discentes não judeus? Enfim, seria esse modo de não sucumbir, como tantas outras escolas étnicas e/ou religiosas naquele contexto?

Outro aspecto narrado por Nair Magalhães (1992) refere-se à substituição do nome da escola que aconteceu também em 1942. Segundo a professora, sua mãe, Inspetora de Ensino, teria influenciado nessa mudança: “aí a mamãe fez mudar, de ordem da Secretaria de Educação. Então a mamãe disse: Por que não para Escola de Educação e Cultura? Fica tão bonito o nome! Concordaram. Ficou Escola de Educação e Cultura, que, aliás, é um nome muito bonito mesmo” (1992). Mais do que um conselho, nota-se um tom de imposição na troca por um nome que expressasse maior neutralidade, que não comprometesse a Mantenedora da escola diante da nova ordem vigente.

Observa-se nessa entrevista que a antiga diretora construiu uma espécie de “lenda pessoal” (THONSON, 2001) acerca de sua trajetória no colégio. Produziu uma narrativa edificante, parecendo fazer questão de destacar como se tornou uma pessoa fundamental na instituição por enfrentar as adversidades e conseguir resolver os mais diferentes problemas, afirma, em mais de uma vez: “eu comecei a levantar o nome do colégio” (NAIR MAGALHÃES, 1992). Thomson (2001), ao analisar memórias de velhos veteranos de guerra, discute esses limites entre a busca pela verdade do passado e modo como as experiências pretéritas são ficcionalizadas pela narrativa do presente. Lidar com o passado implica em filtrar memórias e, nesse processo, é preciso ter em conta que “o modo como lembramos nossas recordações muda através do tempo, indicando como isso pode ser relacionado com as mudanças na percepção pública” (THOMSON, 2001, p.88). Neste sentido, cabe recordar que a entrevista concedida ao ICJMC é uma narrativa dotada de publicidade, considerando que está disponível a quem quiser consultá-la.

Assim, Nair Magalhães (1992) inicia a narrativa relatando que, ao ingressar na escola em 1942 como professora do Jardim de Infância, a diretora teria dito a ela no primeiro dia de aula, “te arruma”, pois não havia mobiliário específico para crianças pequenas. Diante disso, conta que serrou os pés de uma mesa alta que havia, fez cortinas para a sala, e, à medida que os alunos iam aparecendo, dizia “olha, é só tu trazer uma cadeirinha, eu já comprei quatro, vou dizer aonde é que tem e quero que comprem iguais". Ela prossegue, explicando que “choveu tanta mesinha de cozinha, pequeninha, que elas cortavam, e eu pintei a minha sala toda de azul (...) Aqui, minha filha, é assim: não há dinheiro. Tinta eu arrumo, cadeirinhas as mamães trazem, vamos pintar. Tinham então três salas de Jardim” (1992).

Em sua fala, percebe-se que a escola, como muitas naquela temporalidade, pouco tinha noção das especificidades deste grau de ensino. Houve embates com a direção da época. Em um deles, exigia-se a construção de um horário das aulas para o Jardim de Infância, ao que Nair Magalhães teria argumentado: “o Jardim é uma continuidade, de acordo com o trabalho que está se fazendo. Se fazia uma palestra com eles, uma conversa, dali é uma continuidade. A única coisa certa é a hora do recreio e a hora da saída”. Entretanto, a professora não teve acolhida em suas justificativas, precisou acatar a ordem, “que hoje até me constrange porque eu achava uma estupidez ter horário num curso de Jardim de Infância” (NAIR MAGALHÃES, 1992)

Logo nos anos seguintes, a professora Nair passou a trabalhar dois turnos na escola, até ser convidada para assumir o cargo de Direção. É possível que a Mantenedora observasse sua dedicação, somada à sua capacidade de liderança. E o fato de não ter origem judaica? Seria este um elemento a mais para dizer à sociedade, sim, somos uma escola judaica, mas temos uma diretora que não é judia. Neste sentido, José Blumenthal (1992), ex-aluno e também professor da escola, explica que, para a Mantenedora, naquele momento, era necessário apresentar à sociedade uma Diretora que não tivesse origem judaica.

Ao longo da entrevista, Nair Magalhães (1992) lembra várias situações em que empreendeu ações para fomentar o desenvolvimento da instituição: “então consegui um médico para o colégio. Era um colegiozinho daqueles... Iam botar um médico lá dentro? Tinha era em colégios grandes, (...) Veio a professora de Música que nós não tínhamos, veio do Grupo Escolar Ernesto Dornelles. Ela fez um coral com as crianças”.

É bem possível que a prática instalada de contar com professores cedidos pelo Estado fomentasse a perspectiva assimilacionista, segundo a diretora: “eu me entendia com o pessoal.” Sobre o pagamento das mensalidades, explica que as famílias “pagavam o que podiam, existia um carnê, eu fazia um livro caixa de despesas” (NAIR MAGALHÃES, 1992). Preocupada em aproximar a escola das demais instituições, diz ter promovido o desenvolvimento de ações nessa perspectiva. Integrou a escola às festividades e práticas de civismo. José Blumenthal (1992) acentua que aquele era um tempo em que aderir ao discurso do patriotismo seria vital para sobreviver enquanto instituição educativa. Assim, “estudar o Português, cantar o Hino Nacional, conhecer as datas da pátria e a Nair, nisso ela era durona. E com razão, porque afinal de contas ela era diretora de um colégio judaico, mas brasileiro e ela não abria mão disso”.

Em relação às festividades, Nair Magalhães relatou que o Instituto de Educação Flores da Cunha promovia a “escolha da Rainha da Primavera”, envolvendo as crianças do Jardim de Infância. Então, decidiu promover uma festa no mesmo estilo na escola judaica. Salienta o caráter filantrópico dessas atividades, pois o valor arrecadado seria destinado a instituições de caridade, como a Santa Casa de Misericórdia. Pela leitura de sua narrativa, percebe-se que se preocupava em publicizar a escola, que, até então, parecia ser bastante encapsulada em sua própria comunidade:

eu convidava a fiscal do ensino pra ir, era no Dia da Criança, nós fazíamos uma festa no Circulo Israelita, com docinhos. Nós mesmas nos prontificávamos e fazíamos os docinhos, fazíamos uma festa para as crianças. E nesse dia coroava-se a rainha, a meninazinha. E eu, sabe quem eu tive o topete de convidar? A mulher do governador. E ela veio (NAIR MAGALHÃES, 1992).

A diretora parecia contar com habilidade política, era assim que articulava negociações com a Secretaria de Educação e conseguia doações, como as classes escolares que seriam usadas no futuro, quando a escola tivesse também o Curso Ginasial. Um pavilhão na antiga sede do colégio também foi fruto de negociações com o poder público do Estado,

eu queria que fizessem um pavilhão, mas o colégio não podia. Eu digo: olha, vou ver se consigo auxílio da Secretaria de Educação. Aí, juntos, construímos um pavilhão. Então, fizeram a planta, eu digo: eu quero bem grande; agora, eu quero a parede com duas portas que possam abrir assim toda... (NAIR MAGALHÃES, 1992)

Em meio à entrevista, retoma uma questão que, de certo modo atravessa esse texto, referindo-se às tensões entre os professores de ensino religioso e cultura judaica, que lutavam pela manutenção da tradição, e aqueles que entendiam a importância da laicização do ensino, pensando na formação daquelas crianças e jovens como cidadãos brasileiros. Neste sentido, percebe-se que eram constantes os problemas com os professores de ensino religioso. As aulas dessa disciplina eram, até o fim dos anos 1940, diárias, ocupavam em torno de 45 minutos, em que se aprendia a prática da escrita em Hebraico. A diretora afirma que a Secretaria de Educação não tinha conhecimento exato do funcionamento curricular no colégio, o que evidencia a capacidade das instituições de oferecer uma resistência, até certo ponto tácita, à legislação vigente. Narra um episódio da presença da Inspeção de Ensino no colégio.

Aí eu cheguei um dia e digo, Olha, a inspetora vai aparecer aqui, entrar, e vai ficar um pouco desagradável ela ver o que estou vendo aqui. O professor disse: Eu não acho que tenha importância.. Continuei: O senhor furou toda a mesa e desenhou o mapa de Israel todo furado. Ela entra aqui, eu estou dando aula para crianças pequenas aqui nesta sala, vamos convir que é desagradável. E pra não estragar o seu trabalho, vou lhe dar um conselho que o senhor... vai durar este trabalho, está tão bonito! O senhor vai comprar uma folha de papel e vai tapar. O senhor, quando for dar a sua aula, o senhor quer mostrar o trabalho, tira o papel. Tinha que contemporizar a situação, também não podia ficar mal, não é? (NAIR MAGALHÃES, 1992)

Sua narrativa elucida questões que envolviam essas disputas entre a perspectiva assimilacionista e a manutenção da tradição do judaísmo na escola. Explica que a Mantenedora a orientava a exercer uma espécie de diplomacia no trato com os professores de ensino religioso que pareciam nunca estarem satisfeitos com a carga horária de suas aulas. Rememora uma questão que considerava indiscutível. Para ela, eram inviáveis aulas de Religião no primeiro ano do Primário, pois, desse modo, seria muito difícil alfabetizar as crianças tendo que dividir o tempo escolar. Procurando contemporizar os conflitos, dizia “eu concordo com o ensino religioso, esse colégio foi feito para isso, agora eu sei que não é ensino religioso, é a língua. Eu sei que era o Ídiche ou o Hebraico” (MAGALHÃES, 1992). Propõe uma alteração no tempo destinado às aulas, sendo que essas passariam a iniciar as 7h30min. Em suas palavras: “os senhores tem que convir que as crianças no fim do ano têm que estar alfabetizadas. Como é que eu vou mandar uma professora ensinar assim e depois o professor de Hebraico ensina assim? Não é possível. Como é que uma criança, sinceramente, pode apreender?” (MAGALHÃES,1992). E encerra a questão afirmando a impossibilidade das aulas de Religião no primeiro ano do Curso Primário.

A mudança da escola para um novo prédio é outro tema evocado na entrevista. Essa edificação foi importante a fim de expandir a instituição e poder contemplar o Curso Ginasial e depois o Científico. Nair Magalhães lembra que a pedra fundamental foi lançada em 30 de novembro de 1952. A nova/atual sede localiza-se na Avenida Protásio Alves, uma continuação da Avenida Osvaldo Aranha, marcando a distribuição de comunidades judaicas para além do Bairro Bom Fim. Idealizou-se um prédio moderno com vistas à ampliação da escola, e, em 1956, foi inaugurado o Ginásio Israelita Brasileiro, nome que retoma a tradição judaica, obliterada no tempo do Estado Novo. José Blumenthal (1992) dá a entender que havia uma efetiva intenção de modernizar a instituição, no sentido de aproximá-la das escolas mais prestigiadas em Porto Alegre. Lembra que se inaugurou uma prática de buscar docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul para a implementação do Curso Ginasial.

José Blumenthal (1992) avalia a mudança de lugar da escola ao deixar o Bom Fim em direção à outra área da cidade: “o ideal dos velhinhos, eu chamava de velhinhos o pessoal da Mantenedora, era tirar a escola dali e construir uma escola maior que pudesse ser um Ginásio. Eles achavam que com o Ginásio poderia dar mais alguns anos de Judaísmo.” Na época da ocupação do novo prédio, Nair Magalhães (1992) recorda que foi procurada pela Mantenedora, pediram que percorresse as ruas da cidade arrecadando doações para a construção, diziam para ela “a senhora sendo gói20, não vão lhe dizer não.” Por fim, explica “eu conhecia, conhecia a colônia aqui (aponta a palma da mão). É, sabia com quem eu contava e com quem eu não contava”. Avalia seu envolvimento com a comunidade desse modo, “eu participava dos rituais judaicos na escola e sinagoga, especialmente às sextas-feiras, no shabat, eu então ia, ia. Ia sempre com uma echarpe na cabeça e eu ia. Cantava as cantorias deles. Mas eles faziam o que eu queria”.

O Ginásio Israelita Brasileiro, a partir de 1956, mantém a presença de Nair Magalhães como Diretora do Curso Primário, mas institui uma outra Direção do Curso Ginasial. Neste sentido, Matilde Gus (1991) explica como se tornou a primeira diretora do Ginásio. Diz que a Sociedade Mantenedora fez um convite a um grupo de alunos judeus da UFRGS, ao qual ela fazia parte:

Eles perguntaram se nós não gostaríamos de assumir alguma atividade junto ao colégio, porque como eles iam inaugurar o ginásio naquela ocasião, isso foi em 1955. Então, eles nos procuraram e pediram que a gente desenvolvesse alguma atividade que nos ligasse ao colégio porque, provavelmente, nós seríamos os futuros professores do ginásio, como se chamava naquela ocasião, do Colégio Israelita Brasileiro (MATILDEGUS, 1991).

Matilde Gus conta que liderou uma festa para recolher fundos e assim ajudar a finalização das obras do colégio: “então, foi realizada uma grandiosa quermesse para aquela ocasião, que foi realizada nos altos do cinema Baltimore, onde se localizava o Círculo Social Israelita e essa quermesse trouxe praticamente toda a comunidade para a festa” (1991). E, segundo a narradora, essa sua capacidade de liderança foi percebida pela Mantenedora do colégio que a convidou para ocupar o lugar de Diretora do Curso Ginasial, “cargo que eu assumi em março de 1956.” Entretanto, sua permanência na gestão foi efêmera, pois, em menos de três anos, deixou a escola para lecionar no Colégio Júlio de Castilhos, fato que indica a relevância do trabalho docente na educação pública, nos anos 1950. De sua entrevista, chama a atenção o fato da Mantenedora buscar compor o quadro docente valorizando pessoas de origem judaica que estavam concluindo sua formação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Isso pode ser entendido como uma estratégia de afirmação da identidade judaica, tendo como referência o reconhecimento dessa Universidade naquela época.

Outra entrevista examinada é a do Professor José Baratojo (1990). Nascido em 1930, em 1956 começou a trabalhar como secretario no Ginásio Israelita Brasileiro, logo quando a escola transferiu-se para a nova localização. Naquele ano, ainda estava na Universidade, como aluno do Curso de Matemática. José Baratojo, assim como Nair Magalhães, também não tinha origem judaica. Trabalhou na escola até 1970. Explica que assumiu como docente antes mesmo de concluir a graduação, porque os professores de Matemática exoneraram-se de seus cargos. Segundo o professor, aquele era outro tempo, em que havia forte presença da Inspeção do Ensino. Mesmo assim, a inspetora Ana Íris do Amaral não se opôs à escolha por Baratojo como docente, apenas orientou que a escola fizesse uma divulgação da vaga pela imprensa e, alegando não haver candidatos, daria uma autorização provisória para sua contratação. E assim foi feito, colocou-se um anúncio nos jornais da cidade, Correio do Povo e Diário de Notícias. Destaca que, naquele tempo, os formados em Matemática eram poucos, não apareceu nenhum com condições que preenchesse a exigência da escola,

e, dessa forma, eu então, em 12 de março de 1959, eu comecei a trabalhar como professor de Matemática do Ginásio Israelita Brasileiro, e peguei as ferinhas. E, graças a Deus, fui muito bom, tanto é que fiquei, depois, só como professor, que aí começaram a me dar mais turmas, e daí em diante, eu não parei mais como professor do Israelita. Faz várias referências ao clima bom de trabalho no colégio e a camaradagem com os alunos (JOSÉBARATOJO, 1990).

José Baratojo conta que assumiu interinamente a Direção do Curso Ginasial por duas vezes, uma quando Matilde Gus engravidou e outra quando a mesma pediu sua demissão. Como secretário, conhecia muito a escola, portanto a Mantenedora o via como pessoa indicada para a função. Na sequência, foi convidado para assumir efetivamente a Direção da escola. Chama a atenção o fato de escolherem, mais uma vez, uma pessoa sem relações com o judaísmo para uma função de comando da instituição. Baratojo não aceitou, argumenta, na entrevista, que, no seu entendimento, este cargo deveria ser ocupado por alguém de origem judaica.

José Baratojo explica que o ensino religioso na escola tinha o nome de “Cultura Religiosa”, continuava se ensinando o Hebraico e o Ídiche e persistiam os conflitos. Entende-se que o ensino religioso era como uma seção do Ginásio, que envolvia as disciplinas de Ídiche, Hebraico e Cultura Religiosa, havia, inclusive, um Diretor de Ídiche. De acordo com o professor, eram constantes os atritos entre a Direção de Ídiche, a Direção do Primário e a do Ginásio. A primeira defendia que a cultura religiosa se sobrepusesse ao restante da formação: “os pais dos alunos, às vezes, iam a escola se queixar, porque no fim, o diretor queria que os alunos soubessem mais Cultura Religiosa do que as outras disciplinas, os pais se preocupavam, não é?” (1992). O professor continua explorando esse tema, reforçando outros problemas dos docentes de Cultura Religiosa que, embora dominassem o Hebraico e o Ídiche, em sua opinião, careciam de formação pedagógica.

Sobre o ingresso na escola, fala que havia concessão de algumas bolsas, mas sem entrar em detalhes. Acentuou o ingresso pelo Exame de Admissão ao Ginásio e lembra que alguns poucos alunos vinham transferidos de escolas judaicas de países como Rússia, Egito, Estados Unidos da América. Em média, diz que havia 35 alunos por turma, sendo que noventa por cento dos discentes eram judeus. José Blumenthal (1992) esclarece que a escola aceitava estudantes não judeus. Se a família não tivesse origem judaica, os filhos estariam dispensados das aulas de formação religiosa. Contudo, se o pai ou a mãe fossem judeus, o estudante precisaria necessariamente assistir as aulas de Cultura Judaica, que contemplavam uma grande carga horária, “as pessoas tinham que ou se sujeitar aquilo ou não entrar na escola”. Do tempo em que foi professor, recorda que os estudantes “nunca deram mostras de que não estavam gostando. Tinham mais dificuldades que os outros, não tinham sentimento nenhum em relação a Shabat21, mas participavam, e se apaixonavam pelas judias também e vice-versa e queriam casar e acho que alguns casaram até”.

Como docente, José Blumenthal (1992) também recorda que se priorizava, além da formação intelectual, a manutenção das tradições judaicas. Entende que importava à instituição manter os elos com os antepassados, portanto, incentivava o estudo da cultura judaica, como um meio de melhor conhecer a religião. Afirma que a convivência entre estudantes judeus e não judeus era tranquila. Sobre as festividades do calendário escolar, diz que datas religiosas judaicas e datas cívicas brasileiras eram comemoradas igualmente, “ShanaTová22, IomKipur23, todas realmente comemoradas, eram feitas aquelas cabanas, né? Era o e “Pessach”24, RoshHashaná”25, todas as festas...Hasteamento de bandeira nas datas, sete de setembro, quer dizer, isso se fazia, isso era Semana da Pátria, cantar o Hino Nacional”.

Entretanto, Blumenthal (1992) faz uma interessante avaliação, como uma crítica à Mantenedora da escola que, conforme suas palavras, “não soube, não conseguiu difundir o Judaísmo entre a comunidade escolar”. Ele explica: “assim como nossos pais ou os nossos avós não souberam transmitir à nossa geração nem dez por cento do que eles vivenciaram em termos de Judaísmo na Europa, eu acho que esses senhores na época estavam fazendo a mesma coisa”. Continua dizendo que a diferença entre as gerações no sentido das práticas do Judaismo é muito grande “do que eles faziam e nós fazemos”. Encerra declarando que as pessoas que compunham a Mantenedora, apesar de abnegadas, dedicadas, não tinham conhecimento do judaísmo, estavam “perdidos, cada um achava que tinha que ser uma coisa. E nenhum deles era um profissional da área”.

Neste processo de mudanças que envolvem espaços físicos, concepções pedagógicas, religiosas e visões de mundo, estavam implicadas discussões sobre o lugar dos judeus na sociedade brasileira. Essas disputas, que se traduziam especialmente nos entendimentos acerca da formação dos estudantes, tomavam corpo no enfrentamento entre aqueles que priorizavam o ensino religioso e aqueles que defendiam uma maior laicização do ensino. De qualquer modo, a escola, que se materializa na Sociedade Mantenedora, docentes, discentes e suas famílias, parece que soube, estratégica e diplomaticamente, adaptar-se às políticas educativas impostas pela nacionalização do ensino. Assim, pode seguir em frente e apostar na construção de uma escola maior, que oportunizasse o Curso Ginasial com vistas a se constituir uma escola referência em Porto Alegre.

Considerações Finais

Este texto procurou discutir, entre outras memórias que remetem às práticas educativas dos judeus azhenazim em Porto Alegre, a constituição de uma escola idealizada por uma comunidade judaica, que residia no Bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Por meio de relatos, salvaguardados pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall em Porto Alegre, encontraram-se vestígios que permitem nos aproximarmos das memórias dessa instituição educativa. Da ÍdichSchule, passando pela Sociedade de Educação e Cultura até a formação do Ginásio Israelita Brasileiro, passaram-se algumas décadas, em que os embates entre propostas centradas entre o ensino laico e o ensino religioso acirraram-se. De certo modo, as narrativas indicam uma busca por contemporizar, por harmonizar esses dois lados, buscando superar as oposições, mas com uma nítida intenção de integração à sociedade brasileira. Ao que tudo indica, consolidou-se a ideia de que o mais importante era sentir-se judeu entre os judeus e cidadão comum no corpo social.

Essas pessoas de origem judaica que chegavam à cidade de Porto Alegre com o intuito de ali permanecer carregavam consigo, em suas bagagens, o apreço pelos livros. O que é a escola senão um lugar importante de assentamento da cultura escrita? De tudo o que se investigou, pode-se inferir que a construção de um lugar para estudar, era tão importante quanto um lugar para rezar. É nessa interface que se constitui a ÍdichSchule. As poeiras desse passado murmuram nas folhas de papel preservadas, que representam histórias de vida de sujeitos que partilharam suas memórias e, nelas, houve espaço para falar da escola em que estiveram como estudantes e/ou como professores.

1Escritor e médico judeu, Moacyr Scliar (1937-2011) produziu uma extensa obra literária composta por romances, contos, crônicas, em que discute, entre outros temas, a condição judaica.

2Phillipson foi a primeira colônia agrícola fundada pelos imigrantes judeus entre os municípios de Cruz Alta e Passo Fundo/RS, em 1904. Na sequência, formaram-se outras no Norte do Estado, sendo as mais povoadas, Quatro Irmãos e Erebango.

3Ao consultar as entrevistas que compõem o acervo de memória oral do ICJMC, encontra-se frequentemente a referência a Leon Back, entre os judeus moradores das colônias agrícolas.

4De acordo com Gutfreind (2004), há uma complexidade geográfica, linguística e cultural para definir etnicamente o povo judeu, especialmente em fins do século XIX, tempo em que se redesenhavam fronteiras em uma Europa que vivia transformações em que estavam implicados espaços e nacionalidades. Esses fatos permitem entender a presença de alemães, húngaros e austríacos que passaram a ser percebidos membros de um mesmo grupo, os azhenazim, sejam originários da Bessarabia, Polônia, Lituânia, Ucrânia, Rússia, Bulgária, entre outros. A etnia sefaradim agrega turcos, gregos, egípcios ou marroquinos. A Língua Alemã integra os judeus vindos em sua grande maioria na década de 1930 da Alemanha, mas também em partes do império austro húngaro.

5O Instituto Cultural Judaico Marc Chagall (ICJMC) foi criado em Porto Alegre, em 1985, por um grupo de intelectuais e empresários judeus com o objetivo de difundir a cultura judaica de uma forma ampla, favorecendo o reconhecimento da identidade e o desenvolvimento de formas de expressão cultural dessa comunidade. O Marc Chagall também promove a realização de estudos sobre a comunidade judaica do Rio Grande do Sul e do Brasil, no que se refere às suas singularidades sociológicas e culturais, no intuito de preservar e divulgar as pesquisas desenvolvidas. Como princípio norteador, está a ênfase da contribuição dos judeus na educação, arte, ciência, literatura entre outros (www.chagall.org.br).

6Destaca-se que essas entrevistas foram concedidas ao ICJMC para consulta pública de todos os interessados nos temas que envolvem o judaísmo no Rio Grande do Sul.

7Entre as quase 500 entrevistas do ICJMC, há muitas do grupo sefaradi que residia em outras regiões da cidade, portanto fogem ao escopo da investigação. Também tantos outros passaram a infância nas colônias agrícolas ou vieram de outros países ou outros Estados, chegando adultos em Porto Alegre.

8A presença de estudantes judeus no Grupo Escolar Uruguai foi observada nas entrevistas do ICJMC e também compareceu em outras entrevistas produzidas em 2016. Ver ALMEIDA, JACQUES e GRIMALDI, 2016.

9Sobre a história da Colônia Africana, região de Porto Alegre ocupada pela população negra após o fim da escravidão, ver SANTOS, Irene, 2010.

10Importante instituição de ensino pública de Porto Alegre, fundada em 1900. Para maiores informações, ver Cunha, 2016.

11Fundado ainda no período imperial, como Escola Normal. Ao longo de sua existência, foi adquirindo importância significativa nos projetos relacionados à formação docente por parte dos governos estaduais, representando um sinal de modernidade no Estado. Considerando isso, é construído o prédio monumental que abriga o Instituto de Educação desde 1937, quando passou a ter o nome de Instituto de Educação General Flores da Cunha(SCHNEIDER, 1993).

12Trata-se da Rua dos Andradas, uma das principais vias do Centro Histórico de Porto Alegre, conhecida por Rua da Praia, pela proximidade do Lago Guaíba.

13Situações semelhantes foram vividas por imigrantes alemães (KREUTZ, 1999), italianos (LUCHESE, 2007, entre outros grupos étnicos.

14Eram os azhenazim (do hebraico Ashkenaz, Alemanha), a diferenciar-se dos sefardim (de Sefarad, Espanha) que falavam o ladino, uma espécie de espanhol arcaico.

15O conceito de instituição educativa é desenvolvido por Justino Magalhães (1999). Em suas palavras, “compreender e explicar a existência histórica de uma instituição educativa é, sem deixar de integrá-la na realidade mais ampla que é o sistema educativo, contextualizá-la, implicando-a no quadro de evolução de uma comunidade e de uma região, é, por fim, sistematizar e reescrever- lhe o itinerário de vida na sua multidimensionalidade, conferindo um sentido histórico” (p.64).

16Luis Glock ingressou na escola iídiche no terceiro ano do Curso Primário.

17É possível entender os castigos físicos e morais como elementos da cultura escolar (Viñao Frago, 2012) daquela temporalidade, presentes naquele estabelecimento e em tantos outros. Para tanto, consideram-se estudos desenvolvidos nessa temática (Castro, 2010, Grazziotin e Almeida, 2013) que evidenciam a constância dessas práticas em diferentes épocas, em distintas instituições de ensino, públicas, particulares e étnicas, por vezes trazidas pelas memórias dos discentes.

18Em 1937, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso Nacional, os partidos políticos e estabeleceu uma nova Constituição Federal. O Estado Novo firmou-se no campo político por meio de uma política populista, com o apoio do Exército. Emergiu um forte sentimento nacionalista, associado à defesa de ideias autoritárias. Para garantir o desenvolvimento econômico industrial idealizado por Vargas, era preciso fortalecer a identidade nacional e isso ficou expresso no projeto político pedagógico adotado para educar a população, especialmente destinado às comunidades descendentes de imigrantes europeus no Sul do país. O sucesso dessa política seria assegurado por meio da propaganda política de massa e da nacionalização do ensino. A rede escolar foi, então, concebida como agência de difusão e de propaganda de uma cultura nacionalista, de normas de convivência social, de civismo e de uma identidade nacional. Nesse contexto, a partir de 1939, a Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul criou um setor responsável especificamente pela nacionalização do ensino, tendo a atuação da Inspetoria do Ensino como órgão controlador da adequação de cada instituição de ensino à nacionalização. As ações dos inspetores de ensino objetivavam padronizar culturalmente a sociedade rio-grandense no sentido de contribuir para a construção da unidade nacional pretendida pelo Estado Novo (QUADROS, Claudemir de (org), 2014).

19Em Porto Alegre, a título de exemplo emblemático, o "Colégio Alemão" assumiu uma nova identidade afinada a uma identidade rio-grandense, passa a chamar-se "Colégio Farroupilha" (BASTOS, JACQUES, ALMEIDA, 2015).

20Não judia.

21Sábado, dia do descanso.

22Feliz Ano Novo.

23Dia do Perdão.

24Páscoa judaica

25Ano Novo Judaico.

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Entrevistas

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José Blumenthal. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista: 1992 [ Links ]

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Luis Kulkes. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista: 1990 [ Links ]

Marcos Iolowich. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista:1990 [ Links ]

Matilde Gus. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista: 1991 [ Links ]

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Moyses Eizirik. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista: 1988 [ Links ]

Nair Magalhaes de Freitas. Acervo do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, data da entrevista: 1992 [ Links ]

Recebido: 05 de Dezembro de 2017; Aceito: 13 de Junho de 2018

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Revisores

Língua Portuguesa

Dora Marize Bittencourt Almeida

E-mail: dobialmeida@gmail.com

Língua Inglesa

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Língua Francesa

Dora Marize Bittencourt Almeida

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